Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

sexta-feira, 17 de julho de 2015

o grande desconhecido ~


as ligações do homem com a Terra

As pesquisas antropológicas e psicológicas confirmam a conhecida expressão de
Camões nos Lusíadas: o homem, esse bicho da terra, tão pequeno. O mito de Adão e Eva peca pela distorção histórica, constatando que o homem já era uma realidade cultural no mundo. Adão e Eva nasceram tarde demais, forjados pela mitologia judaica retardatária e sociocêntrica. (Veja-se o livro Adão e Eva, nesta série). Mas a verdade é que o homem não surgiu na Terra como um ser decaído. Pelo contrário, brotou das entranhas do planeta, num parto genésico, produto da elaboração das leis naturais. E isso em corpo e espírito, segundo a tese da evolução criadora de Bergson. Feito do limo da Terra, na expressão bíblica, a origem divina do homem não está no milagre fantástico do fiat mas na remota insuflação das mónadas no cosmo – embrionário e caótico. A teoria científica da evolução considera o homem como um todo evolutivo de natureza material, rejeitando a independência da sua essência espiritual. Darwin afirma que o homem resulta simplesmente da evolução das espécies animais, é um animal que desenvolveu a razão. A posição espírita de Alfred Russell Wallace, colega de Darwin, foi simplesmente rejeitada pela Ciência. Hoje o preconceito materialista foi superado no meio científico mais avançado, com os últimos avanços da Física Nuclear. A concepção espírita do homem volta a predominar e a Parapsicologia sustenta, através de suas pesquisas, que é um ser duplo, que possui um conteúdo extrafísico, segundo a cautelosa expressão de Rhine. A Ciência Espírita confirmou a sua validade científica e a eficácia dos seus métodos de pesquisa.

As ligações do homem com a Terra são de ordem genésica e se desenvolveram numa sequência evolutiva complexa. O esquema dessa sequência esclarece a expressão de Léon Denis que já mencionamos:

a) reino mineral – a alma dorme na pedra o sono preparatório das suas vibrações atómicas ocultas;

b) reino vegetal – a alma sonha na germinação de um mundo mágico de fibras, folhas, flores e frutos, tentando livrar-se do chão e projectar-se às alturas. O vento movimenta as suas folhas e os ramos e as raízes penetram no solo atraídas pelos veios de água subterrâneos, movimentadas pelo tropismo que também atrai folhas e ramos na direcção da luz, nos primeiros ensaios da motilidade. O vegetal é doação, como observou Hegel, o momento em que as energias monádicas se abrem para a doação de si mesmas ao mundo, numa antecipação do altruísmo humano.

c) reino animal – a estrutura monádica, aberta no vegetal em doação de si mesma, retrai-se para centralizar no centro monádico (espécie de núcleo atómico) o controle geral de sua estrutura, desprendendo-se do chão e assumindo a responsabilidade instintiva da sua motilidade, da sua capacidade de movimentar-se sozinha. As formas da motilidade se multiplicam segundo as especificações do desenvolvimento das potencialidades da mónada:

o rastejar, quase sempre acompanhado do escavar, na conservação dos automatismos de defesa e protecção adquiridos nas fases trópicas da movimentação das raízes no subsolo;

o andar, desenvolvimento da capacidade de equilíbrio sobre o solo, com apoio em garras, patas, movimentação muscular, prenunciando o aparecimento dos bípedes;

o saltar, primeira tentativa de libertar-se da força de gravidade, prenunciando o voo, com reminiscências inconscientes do equilíbrio das ramagens no alto, sopradas pelo vento;

o nadar, forma de equilíbrio provinda das primeiras sensações aquáticas no fundo dos mares, lagos e rios, exigindo o domínio das correntes líquidas na flutuação, prenúncio do equilíbrio do voo no ar;

o voar, forma sintética de todas as modalidades de equilíbrio, em que todas as energias da motilidade entram em acção, libertando o ser nascente da necessidade de apoios ligados à superfície do solo ou da água, levitações de um futuro distante em que ele terá de se projectar nas dimensões superiores do Cosmos e nas hipóstases dos mundos espirituais.

O nadar e o voar marcam o início e o fim das experiências da motilidade, segundo o esquema infinito de desenvolvimento das potencialidades da mónada, ou seja, do princípio inteligente que é a matéria-prima do ser. O esboço esquemático que apresentamos é apenas um esboço geral, desprovido das minúcias que só uma investigação mais profunda poderia nos dar, para termos uma visão grandiosa do plano divino de elaboração ou formação do Ser, da síntese final do gigantesco processo ontogénico, apresentada na criatura humana superior. As implicações éticas desse processo, para uma consciência esclarecida e ponderada, são suficientes para classificar de boçais todas as teorias que pretendem estabelecer sistemas políticos e sociais que aviltam a dignidade humana em favor de interesses mesquinhos.

Por outro lado, essa visão espírita do processo genético reduz à condição de um fabulário ingénuo, típico das civilizações agrárias e pastoris, toda a mitologia bíblica, sobre a qual as Igrejas Cristãs fundaram as suas teologias. A Palavra de Deus nunca foi pronunciada em nenhuma língua humana, mas na linguagem monádica das leis irreversíveis que regem o Infinito, desde as constelações atómicas de um grão de areia até às galáxias superiores. Deus não fala em palavras, fala em mónadas. As suas frases não são escritas em nenhuma língua inexpressiva dos planos inferiores, e as suas frases não estão sujeitas à exegese das mentes relativas. Cada palavra da linguagem divina é um ser e cada frase é um mundo, cada discurso uma constelação com milhões de anos-luz de extensão. Não obstante, o nosso pensamento pode compreender essa linguagem divina, se tivermos essa virtude tão simples e tão difícil que se chama simplicidade e floresce na humildade.

A Terra e o Homem formam uma unidade, pois as nossas ligações com o planeta foram estabelecidas na Génese. Mas a Terra não é apenas o planeta material que nos suporta. Espinoza, cujas ligações com o Espiritismo são flagrantes na Ética, ensinou a existência da Natureza Naturata e da Natureza NaturansTudo o que temos no plano natural exterior são efeitos produzidos pelas causas profundas da Natureza invisível. As duas Naturezas, que Platão chamou de Sensível e Inteligível se interpenetram. Hoje a Ciência reconhece, embora ainda de maneira incipiente, que os mundos de matéria e antimatéria são interpenetrados. Nessa interpenetração dinâmica o homem é um point d'optique, um ponto visual em que o Sistema do Mundo se reflecte por inteiro. As duas Naturezas do Mundo revelam-se no homem como alma e corpo. A nossa alma se liga à Alma da Terra (Natura Naturans) e o nosso corpo se liga ao corpo da Terra (Natura Naturata). Por isso, ao morrer, o nosso corpo retorna à terra de que nasceu e o nosso espírito não voa para mundos distantes, mas permanece imantado ao domicílio terreno. Só quando o espírito atingiu e ultrapassou os limites da evolução terrena tem o direito de elevar-se aos mundos superiores. As condições desses mundos não são acessíveis aos espíritos que ainda se encontram imantados ao pó da Terra.

Além dos motivos genésicos da nossa imantação ao solo e à atmosfera terrena, às hipóteses ou esferas da erraticidade, temos ainda:

a) os compromissos e as dívidas que contraímos, em encarnações sucessivas, com pessoas e comunidades, e que só se apagam com os resgates e as reparações que teremos de enfrentar em novas reencarnações;

b) as afeições que nos prendem a criaturas que continuem em trânsito no planeta;

c) os trabalhos e deveres que geralmente protelamos em encarnações sucessivas e que aumentam na proporção do nosso desleixo, quando não os somamos a novas protelações;

d) as exigências da consciência no tocante a realizações mal acabadas ou negligenciadas por interesses imediatistas;

e) o menosprezo com que enfrentamos as exigências do nosso aprendizado no plano moral e cultural, deixando de adquirir os elementos indispensáveis à convivência com espíritos elevados.

Podemos examinar nós mesmos, no momento presente, as nossas condições no tocante a esses pontos, para daí concluir se estamos ou não em condições de pleitear – como no episódio evangélico dos Filhos de Zebedeu – um lugar além dos limites planetários. Mas se não tivermos a humildade necessária para esse balanço, é melhor nos abstermos de fazê-lo, para não alimentar com a nossa vaidade e o nosso orgulho os motivos de nossa imantação à Terra. Os espíritos errantes de que trata Kardec são precisamente os que ainda não conseguiram determinar a sua localização num plano superior. Esses espíritos permanecem errando entre o chão do planeta e as esferas espirituais da Terra. Vão e voltam em sucessivas reencarnações, como os encarnados que erram pelos caminhos do mundo sem se fixarem em nenhum lugar. Plotino afirmava, no Neoplatonismo, que somos em geral almas viajoras, incapazes de permanecer no mundo espiritual. Sentimos a atracção da matéria – esse visgo que prende o espírito, segundo Kardec – e nos precipitamos em novas encarnações no plano terreno. Por isso Jesus insistiu na necessidade do desapego em tudo o que fazemos. A nossa tendência a nos apegarmos afectivamente às coisas e aos seres retarda a nossa evolução e nos mantém na erraticidade, muitas vezes através de reencarnações que são cópias das anteriores. A repetição excessiva das mesmas condições gera os sofrimentos cada vez mais penosos, forçando-nos a avançar.

O Alto não deseja que nos tornemos anjos antes do tempo, mesmo porque isso é impossível. A nossa evolução é regida por leis inflexíveis. É inútil pretendermos avançar além das nossas forças. Mas é também inútil querermos continuar indefinidamente na Terra. Na fase actual de transição da vida planetária que também evolui sem cessar – estamos todos acuados pelas forças da evolução e temos de atender às exigências da consciência e às intuições dos espíritos benevolentes, para não ficarmos sujeitos às migrações em mundos inferiores. Essas migrações são forçadas, mas não constituem castigo nem condenação. São medidas administrativas, como as tomadas nas escolas em que haja reprovações em massa. Os espíritos que não progrediram não estão em condições de permanecer no planeta que evoluiu e são enviados a outros planetas de grau inferior, para refazerem o aprendizado, depois do que poderão voltar ao planeta de origem. Os mundos são solidários, ensina Kardec, pois neles evolui a Humanidade Cósmica.

/…


José Herculano Pires, Curso Dinâmico de Espiritismo, 3 – As Ligações do Homem com a Terra, 4º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: Somos as aves de fogo por sobre os campos celestes, pintura em acrílico de Costa Brites)

quarta-feira, 8 de julho de 2015

Deus na Natureza ~

A Força e a Matéria II – O Céu ~

  Estrelas, sóis, mundos errantes, cometas fúlgidos, sistemas estranhos, astros misteriosos, todos proclamariam harmonia, seriam todos os acusadores de quantos decretam não passar a força de cego atributo da matéria. E quando, acompanhando as relações numéricas que ligam todos esses mundos ao Sol – qual coração palpitante de um mesmo ser – houvermos personificado o sistema planetário do próprio Sol – foco colossal que a todos absorve na sua esplendente e poderosa personalidade – então, não tardaremos a ver nesse Sol, com o seu sistema, em trânsito pelos espaços infinitos, o atestado de que todas as estrelas são outros tantos sóis, cercados, como o nosso, de uma família que deles recebe luz e vida, e veremos que todas as estrelas são guiadas por movimentos diversos e que, muito longe de ficarem fixas na imensidade, caminham com velocidades terrificantes, ainda mais céleres que as atrás mencionadas.

 Só então, o Universo inteiro brilhará aos nossos olhos sob o verdadeiro prisma e as forças que o regem proclamarão, com a eloquência maravilhosamente brutal de facto concreto, o seu valor, a sua missão, autoridade e poder. Diante desses movimentos indescritíveis – inconcebíveis mesmo, poderíamos dizer – que transportam pelos desertos do infinito essa infinidade de sóis; diante dessa catadupa de estrelas do infinito; diante dessas rotas, dessas órbitas imensuráveis, seguidas com a passividade dos ponteiros de um relógio, da maçã que cai, ou da roda do moinho, obedientes à lei da gravidade; diante da submissão dos corpos celestes a regras que a mecânica e as fórmulas analíticas podem traçar de antemão, bem como da condição suprema de estabilidade e duração do mundo, quem ousará negar que a Força não governe, não dirija soberanamente a Matéria, em virtude de uma lei inerente ou afecta à própria Força? Quem pretenderá subordinar a Força à cegueira constitucional da Matéria e afirmar, à maneira retrógrada dos peripatéticos, que ela não passa de atributo oculto, reduzindo-a ao papel de escrava, quando ela se impõe de tal arte e reivindica credenciais de absoluta suserania? Que Deus tal nunca permita. Que sucederia se ela, a Força, deixasse de agir e abdicasse do seu ceptro? A só imaginação desta hipótese dissolve a harmonia do mundo e o faz esboroar-se num caos informe, digno resultado, aliás, de tão insensata tentativa.

 Leis universalmente demonstradas proclamam a unidade do Cosmos e evidenciam que o mesmo pensamento que regula as nossas marés oceânicas preside às revoluções siderais das estrelas duplas, nos latifúndios do céu. Tais duplos, triplos, quádruplos sóis giram em conjunto, em volta do centro comum de gravidade, obedecendo às mesmas leis que regem o nosso sistema planetário. Nada mais próprio do que esses sistemas para nos dar uma ideia da escala da construção dos mundos – diz John Herschel.

 Quando vemos esses corpos imensos, encasalados, descreverem órbitas enormes, cujo percurso lhes demanda séculos, somos levados a admitir simultaneamente que eles preenchem, na Criação, uma finalidade que nos escapa e que atingimos os limites da humana inteligência para confessar a nossa inópia e reconhecer que a mais fecunda imaginação não pode ter do mundo uma concepção aproximativa sequer, da grandeza do assunto.

  Os astrónomos que humildemente remontam ao princípio ignoto das causas não podem eximir-se de considerar nas mãos de um ser inteligente essa atracção universal, que rege inteligentemente o Cosmos. “A lei de gravitação – dizia o saudoso director do Observatório de Toulouse (i) – enfeixa implicitamente as grandes leis que regem os movimentos celestes e, por uma dessas coincidências notáveis que são o mais seguro índice da verdade – longe de temer as excepções aparentes, as perturbações dos movimentos normais, antes delas extrai as mais brilhantes confirmações. Assim é que vemos os geómetras modernos explicarem a precessão dos equinócios pela combinação da força centrífuga, oriunda da rotação da Terra, com a acção do Sol sobre o nosso menisco equatorial. Assim é que vemos, ainda, explicar-se a nutação por uma influência análoga, da Lua, sobre a luminescência mesma da Terra e, mais: – as atracções planetárias, a oscilação da eclíptica e do movimento do apogeu solar; do retardamento de Júpiter quando Saturno se acelera, e vice-versa, quando a aceleração se dá em Júpiter, etc. Finalmente, é assim que sabemos por que, sob a influência solar, a média do nosso movimento terráqueo se vai acelerando de século em século e deverá diminuir mais tarde, por que a linha dos nós da Lua perfaz a sua revolução em movimento retrógrado dentro de dezoito anos e por que o perigeu lunar se completa em pouco menos de nove anos, etc. (ii)

 (i) F. Petit – Traité d’Astronomie, 24º et dernlère leçon.

 (ii) Curioso é que Clairaut, tendo encontrado nos seus cálculos um período de dezoito em vez de nove anos, declarasse insuficiente, para este caso, a gravitação inversa ao quadrado da distância e que fosse precisamente um naturalista, Buffon, que, persuadido de que a Natureza não podia ter duas leis diferentes, insistisse com o geómetra para que revisse os seus cálculos. Clairaut, após um novo exame, reconheceu que a primeira assertiva estava errada, pois que havia negligenciado, nas séries, termos indispensáveis.

 Não somente, em resumo, esse princípio notável explica todos os fenómenos conhecidos, como permite, muitas vezes, descobrir efeitos que a observação não indica, de modo que se poderia estabelecer a priori, pela análise, a constituição do mundo e não nos socorrermos da observação senão em alguns pontos de referência, de que se utilizam os geómetras sob a denominação de constantes, nos seus cálculos. – Tudo pois, no Universo, marcha por efeito de uma organização admirável de simplicidade, visto que os movimentos, aparentemente mais complicados, resultam da combinação de impulsos primitivos com uma força única agindo sobre cada molécula material; força única, com a qual, e consequentemente, haja de ocupar-se, por assim dizer, o Criador. Mas, também, que desenvolvimento de poder não requer a produção incessante dessas forças, cuja existência não é essencialmente inerente à matéria! Oh! como deve ser vigilante a mão eterna que sabe, a cada momento, renovar tais forças, até nos mais impalpáveis átomos dos inumeráveis astros destinados a povoar as regiões de infinita imensidade. Não será o caso de dizer com o rei-profeta, inclinando-se perante tanta grandeza: Coeli enarrant gloriam Dei?

 A partir de Newton e Képler, sabemos que o Universo é um dinamismo imenso, cujos elementos na sua totalidade não cessam de agir e reagir na infinidade do tempo e do espaço, com actividade indefectível. Esta a grande verdade que a Astronomia, a Física e a Química nos revelam nas imponentes maravilhas da Criação.

 Tal o sublime espectáculo do mundo, tais as leis constitutivas da sua harmonia. Ora, qual a perfídia de linguagem, ou de raciocínio, que os materialistas utilizam para traduzir pró-domo sua esses factos e concluírem pela ausência de todo e qualquer pensamento divino?

 Eis aqui os argumentos inscritos em letras berrantes num catecismo materialista que, por seu colorido de Ciência, se tem imposto a muita gente: (iii)

 (iii) Büchner – Força e matéria.

 “Todos os corpos celestes, pequenos ou grandes, se conformam, sem relutância, sem excepções nem desvios, com esta lei inerente a toda a matéria e a toda partícula de matéria, como podemos experimentar a cada momento. É com uma precisão e certeza matemáticas que todos esses movimentos se fazem reconhecer, determinar e predizer. Os espiritualistas vêem nestes factos o pensamento de um Deus eterno, que impôs à Criação as leis imutáveis de sua perpetuidade. Os materialistas, porém, ao contrário, não vêem nisso senão a prova de que a ideia de Deus não passa de uma pilhéria. Outro fora o caso, se existissem corpos celestes caprichosos ou rebeldes, se a grande lei que os rege não fosse soberana. É fácil (diz Büchner) conciliar o nascimento, a constelação (?) e o movimento dos orbes com os processos mais simples que a matéria de si mesma nos possibilita. A hipótese de uma força pessoal criadora é inadmissível. Por que? Ninguém, jamais, pôde sabê-lo. Os espiritualistas admiram o movimento dos astros, a ordem e harmonia que a eles preside. Ingénuos! No Universo não há ordem nem harmonia e sim, pelo contrário, a irregularidade, os acidentes, a desordem, que excluem a hipótese de uma acção pessoal regida pelas leis da inteligência, mesmo humana.”

 Ponderemos: Copérnico publicou Revoluções Celestes, após trinta anos de árduos labores; Galileu só depois de vinte anos fecundou a lei do pêndulo; Képler não levou menos de dezassete para formular as suas leis e Newton, já octogenário, dizia não ter ainda chegado a compreender o mecanismo dos céus; e, depois disso, vêm propor-nos acreditar que essas leis sublimes e que tudo quanto esses génios possantes mal puderam encontrar e formular não revelam no ascendente que as impôs à matéria, uma inteligência sequer igual à do homem!

 E o Sr. Renan escreve então esta frase: “Por mim, penso não haver no Universo inteligência superior à humana.” E ousam compadrinhar-se com acidentes que propriamente o não são, para afirmarem que não existe harmonia na construção do mundo.

 Que seria, então, preciso para vos satisfazer, senhores críticos de Deus?

 Vamos dizê-lo: primeiro, que não houvesse espaço (!) ou que esse espaço fosse menos vasto, visto haver, decididamente, muito espaço no infinito: “se houvéramos de atribuir a uma força criadora individual – diz Büchner – a origem dos mundos para habitação de homens e animais, importaria saber para que serve esse espaço imenso, deserto, vazio, inútil, no qual flutuam planetas e sóis? Porque os outros planetas do sistema não se tornaram habitáveis para o homem?” Na verdade, formulais uma pergunta bem simples. E aí temos como esses senhores se dão à fantasia de declarar inútil o espaço, a querer que todos os globos se comuniquem entre si. O caricaturista Granville já tivera a mesma ideia, quando representou num dos seus encantadores desenhos os jupterianos em excursão a Saturno, atravessando uma ponte, de charuto na boca. E o anel de Saturno lá está como um grande alpendre, onde os saturninos vão à noite refrescar-se. Se esse é o desejado universo, cujo primeiro resultado seria imobilizar o sistema planetário, mais avisados andariam os inventores dirigindo-se seriamente à Escola de Pontes e Calçadas, antes que à Filosofia.

 Que esta, na verdade, nada tem com isso.

/…


Camille Flammarion, Deus na Natureza – Primeira Parte, A Força e a Matéria II – O Céu 2 de 3, 12º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: Jungle Tales_1895, pintura de James Jebusa Shannon)