as ligações do homem com a Terra
As pesquisas antropológicas e psicológicas confirmam a conhecida expressão de
Camões nos
Lusíadas: o homem, esse bicho da terra, tão pequeno. O mito de Adão
e Eva peca pela distorção histórica, constatando que o homem já era uma
realidade cultural no mundo. Adão e Eva nasceram tarde demais, forjados pela
mitologia judaica retardatária e sociocêntrica. (Veja-se o livro Adão e
Eva, nesta série). Mas a verdade é que o homem não surgiu na Terra
como um ser decaído. Pelo contrário, brotou das entranhas do planeta, num parto
genésico, produto da elaboração das leis naturais. E isso em corpo e
espírito, segundo a tese da evolução criadora de Bergson. Feito do limo da
Terra, na expressão bíblica, a origem divina do homem não está no milagre
fantástico do fiat mas na remota insuflação das mónadas no
cosmo – embrionário e caótico. A teoria científica da evolução considera o
homem como um todo evolutivo de natureza material, rejeitando a independência
da sua essência espiritual. Darwin afirma que o
homem resulta simplesmente da evolução das espécies animais, é um animal que
desenvolveu a razão. A posição espírita de Alfred Russell
Wallace, colega de Darwin, foi simplesmente rejeitada pela Ciência. Hoje o
preconceito materialista foi superado no meio científico mais avançado, com os
últimos avanços da Física Nuclear. A concepção espírita do homem volta a
predominar e a Parapsicologia
sustenta, através de suas pesquisas, que é um ser duplo, que possui um conteúdo
extrafísico, segundo a cautelosa expressão de Rhine. A Ciência
Espírita confirmou a sua validade científica e a eficácia dos seus métodos de
pesquisa.
As ligações do homem com a Terra são de ordem genésica e se
desenvolveram numa sequência evolutiva complexa. O esquema dessa sequência
esclarece a expressão de Léon Denis que já
mencionamos:
a) reino mineral – a alma dorme na pedra o
sono preparatório das suas vibrações atómicas ocultas;
b) reino vegetal – a alma sonha na
germinação de um mundo mágico de fibras, folhas, flores e frutos, tentando
livrar-se do chão e projectar-se às alturas. O vento movimenta as suas folhas e
os ramos e as raízes penetram no solo atraídas pelos veios de água
subterrâneos, movimentadas pelo tropismo que também atrai
folhas e ramos na direcção da luz, nos primeiros ensaios da motilidade. O vegetal é
doação, como observou Hegel, o
momento em que as energias monádicas se abrem para
a doação de si mesmas ao mundo, numa antecipação do altruísmo humano.
c) reino animal – a estrutura monádica, aberta no vegetal
em doação de si mesma, retrai-se para centralizar no centro monádico (espécie
de núcleo atómico) o controle geral de sua estrutura, desprendendo-se do chão e
assumindo a responsabilidade instintiva da sua motilidade, da sua capacidade de
movimentar-se sozinha. As formas da motilidade se multiplicam segundo as
especificações do desenvolvimento das potencialidades da mónada:
o rastejar, quase sempre acompanhado do escavar, na
conservação dos automatismos de defesa e protecção adquiridos nas fases trópicas da
movimentação das raízes no subsolo;
o andar, desenvolvimento da capacidade de equilíbrio sobre o
solo, com apoio em garras, patas, movimentação muscular, prenunciando o
aparecimento dos bípedes;
o saltar, primeira tentativa de libertar-se da força de
gravidade, prenunciando o voo, com reminiscências inconscientes do equilíbrio
das ramagens no alto, sopradas pelo vento;
o nadar, forma de equilíbrio provinda das primeiras
sensações aquáticas no fundo dos mares, lagos e rios, exigindo o domínio das
correntes líquidas na flutuação, prenúncio do equilíbrio do voo no ar;
o voar, forma sintética de todas as modalidades de
equilíbrio, em que todas as energias da motilidade entram em acção, libertando
o ser nascente da necessidade de apoios ligados à superfície do solo ou da
água, levitações de um futuro distante em que ele terá de se projectar nas
dimensões superiores do Cosmos e nas hipóstases dos
mundos espirituais.
O nadar e o voar marcam o início e o fim das experiências da
motilidade, segundo o esquema infinito de desenvolvimento das potencialidades
da mónada, ou seja,
do princípio inteligente que é a matéria-prima do ser. O
esboço esquemático que apresentamos é apenas um esboço geral, desprovido das
minúcias que só uma investigação mais profunda poderia nos dar, para termos uma
visão grandiosa do plano divino de elaboração ou formação do Ser, da síntese
final do gigantesco processo ontogénico, apresentada na
criatura humana superior. As implicações éticas desse processo, para uma
consciência esclarecida e ponderada, são suficientes para classificar de boçais todas as teorias
que pretendem estabelecer sistemas políticos e sociais que aviltam a dignidade
humana em favor de interesses mesquinhos.
Por outro lado, essa visão espírita do processo
genético reduz à condição de um fabulário ingénuo, típico das civilizações
agrárias e pastoris, toda a mitologia bíblica, sobre a qual as Igrejas Cristãs
fundaram as suas teologias. A Palavra de Deus nunca foi pronunciada em nenhuma
língua humana, mas na linguagem monádica das leis irreversíveis que regem o
Infinito, desde as constelações atómicas de um grão de areia até às galáxias
superiores. Deus não fala em palavras, fala em mónadas. As suas frases não
são escritas em nenhuma língua inexpressiva dos planos inferiores, e as suas
frases não estão sujeitas à exegese das
mentes relativas. Cada palavra da linguagem divina é um ser e cada frase é um
mundo, cada discurso uma constelação com milhões de anos-luz de extensão. Não
obstante, o nosso pensamento pode compreender essa linguagem divina, se
tivermos essa virtude tão simples e tão difícil que se chama simplicidade e
floresce na humildade.
A Terra e o Homem formam uma unidade, pois as nossas
ligações com o planeta foram estabelecidas na Génese. Mas a Terra não é
apenas o planeta material que nos suporta. Espinoza, cujas
ligações com o Espiritismo são
flagrantes na Ética, ensinou a existência da Natureza
Naturata e da Natureza Naturans. Tudo o que temos
no plano natural exterior são efeitos produzidos pelas causas profundas da
Natureza invisível. As duas Naturezas, que Platão chamou de Sensível
e Inteligível se interpenetram. Hoje a Ciência reconhece, embora ainda
de maneira incipiente, que os mundos de matéria e antimatéria são
interpenetrados. Nessa interpenetração dinâmica o homem é um point
d'optique, um ponto visual em que o Sistema do Mundo se reflecte por
inteiro. As duas Naturezas do Mundo revelam-se no homem como alma e corpo. A
nossa alma se liga à Alma da Terra (Natura Naturans) e o nosso corpo se liga ao
corpo da Terra (Natura Naturata). Por isso, ao morrer, o nosso corpo retorna à
terra de que nasceu e o nosso espírito não voa para mundos distantes, mas
permanece imantado ao
domicílio terreno. Só quando o espírito atingiu e ultrapassou os
limites da evolução terrena tem o direito de elevar-se aos mundos superiores. As
condições desses mundos não são acessíveis aos espíritos que ainda se encontram
imantados ao pó da Terra.
Além dos motivos genésicos da nossa imantação ao solo e à
atmosfera terrena, às hipóteses ou esferas da erraticidade, temos ainda:
a) os compromissos e as dívidas que contraímos, em encarnações sucessivas,
com pessoas e comunidades, e que só se apagam com os resgates e as reparações
que teremos de enfrentar em novas reencarnações;
b) as afeições que nos prendem a criaturas que continuem em
trânsito no planeta;
c) os trabalhos e deveres que geralmente protelamos em
encarnações sucessivas e que aumentam na proporção do nosso desleixo, quando
não os somamos a novas protelações;
d) as exigências da consciência no tocante a realizações mal
acabadas ou negligenciadas por interesses imediatistas;
e) o menosprezo com que enfrentamos as exigências do nosso
aprendizado no plano moral e cultural, deixando de adquirir os elementos
indispensáveis à convivência com espíritos elevados.
Podemos examinar nós mesmos, no momento presente, as nossas
condições no tocante a esses pontos, para daí concluir se estamos ou não em
condições de pleitear –
como no episódio evangélico dos Filhos de Zebedeu – um lugar além dos limites
planetários. Mas se não tivermos a humildade necessária para esse balanço, é
melhor nos abstermos de fazê-lo, para não alimentar com a nossa vaidade e o
nosso orgulho os motivos de nossa imantação à Terra. Os espíritos errantes de
que trata Kardec são
precisamente os que ainda não conseguiram determinar a sua localização num
plano superior. Esses espíritos permanecem errando entre o chão do planeta e as
esferas espirituais da Terra. Vão e voltam em sucessivas reencarnações, como os encarnados que
erram pelos caminhos do mundo sem se fixarem em nenhum lugar. Plotino afirmava, no Neoplatonismo, que somos
em geral almas viajoras, incapazes de permanecer no mundo
espiritual. Sentimos a atracção da matéria – esse visgo que prende o espírito,
segundo Kardec – e nos precipitamos em novas encarnações no plano terreno. Por
isso Jesus insistiu
na necessidade do desapego em tudo o que fazemos. A nossa tendência a
nos apegarmos afectivamente às coisas e aos seres retarda a nossa evolução e
nos mantém na erraticidade, muitas vezes através de reencarnações que são
cópias das anteriores. A repetição excessiva das mesmas condições gera os
sofrimentos cada vez mais penosos, forçando-nos a avançar.
O Alto não deseja que nos tornemos anjos antes do tempo,
mesmo porque isso é impossível. A nossa evolução é regida por leis
inflexíveis. É inútil pretendermos avançar além das nossas forças. Mas
é também inútil querermos continuar indefinidamente na Terra. Na fase actual de
transição da vida planetária que também evolui sem cessar – estamos
todos acuados pelas
forças da evolução e temos de atender às exigências da consciência e às
intuições dos espíritos benevolentes, para não ficarmos sujeitos às migrações
em mundos inferiores. Essas migrações são forçadas, mas não constituem
castigo nem condenação. São medidas administrativas, como as tomadas nas
escolas em que haja reprovações em massa. Os espíritos que não progrediram não
estão em condições de permanecer no planeta que evoluiu e são enviados a outros
planetas de grau inferior, para refazerem o aprendizado, depois do que poderão
voltar ao planeta de origem. Os mundos são solidários, ensina Kardec, pois neles evolui
a Humanidade Cósmica.
/…
José Herculano Pires, Curso Dinâmico de Espiritismo,
3 – As Ligações do Homem com a Terra, 4º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: Somos as aves de fogo
por sobre os campos celestes, pintura em acrílico de Costa Brites)
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