Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

sábado, 1 de agosto de 2015

O peregrino sobre o mar de névoa ~


Situação perigosa dos médiuns de cura |

A rejeição pura e simples do meio científico ao facto inegável das curas mediúnicas cria para os médiuns de cura uma situação perigosa, que geralmente os afecta perturbando-lhes o necessário equilíbrio psíquico, deformando-lhes o comportamento social e prejudicando-lhes a própria faculdade curadora. No nosso livro Arigó, Vida, Mediunidade e Martírio, sobre o médium Arigó, de Congonhas do Campo, Minas Gerais, tivemos a oportunidade de examinar este assunto de perto, em todas as suas minúcias, por antecipação e, depois, acompanhando as pesquisas realizadas no local pela equipa de cientistas norte americanos de várias Universidades, incluindo elementos da NASA, como Andrija Puharich e John Laurence, o primeiro médico e engenheiro electrónico, e o segundo, biofísico e manager da secção de satélites artificiais da NASA, que, cumulativamente, nos informaram da existência do caso similar de Agpoa nas Filipinas.

Nestes dois casos, justamente famosos, os dois médiuns, sofreram debaixo da pressão constante de elementos exploradores e com as campanhas difamatórias do clero católico, a perseguição por várias instituições médicas, não obstante numerosos médicos brasileiros e estrangeiros tenham comprovado a realidade das curas.

Com médiuns de cura das zonas rurais, como no caso da médium Bernarda Torrúbio, em Garça, na Alta Paulista, os factos não tiveram grande divulgação, o que os preservou e geralmente os preserva das perturbações, de campanhas e de perseguições. Congonhas é uma cidade modesta, mas a sua proximidade com Belo Horizonte, capital do Estado de Minas Gerais, expunha demasiadamente Arigó a pressões insuportáveis. Quando Arigó morreu, num trágico acidente de automóvel na estrada entre Congonhas e Conselheiro Lafaiete, o bispo D. Vicente Scherer, de Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, descarregou sobre o seu cadáver uma série de acusações caluniosas, sem um pingo de piedade cristã. Nem a morte livrou o médium e a sua família das consequências da sua actividade curadora.

A primeira cura feita por um médium, não raro de maneira inesperada, lança-o na senda das fascinações perigosas. Ele se sente escolhido por Deus, colocado acima do comum da humanidade, detentor de dons divinos. O fermento velho das religiões salvacionistas cresce no seu inconsciente, levedando-lhe a vaidade natural do homem. Pouco a pouco os necessitados aglomeram-se à sua volta. O atendimento torna-se difícil, em virtude do aumento sempre crescente dos necessitados. Amigos da onça o adulam, propagam os seus feitos, exaltam os seus dons. E, para facilitar a consulta de amigos e parentes, começam a levar-lhe presentes. O médium, que já se considera agraciado por Deus, não estranha que todos queiram agraciá-lo também. Se ele receita, os propagandistas de laboratórios levam-lhe as suas amostras, tratam-no como se ele fosse um médico na sua clínica e acabam oferecendo-lhe comissões, o que ele geralmente rejeita. Mas os amigos e os parentes o incitam a não ser tolo, a aproveitar enquanto é tempo, pois a mediunidade pode enfraquecer-se ou esgotar-se amanhã. Ele deve cuidar do seu futuro, pois os seus protectores espirituais não podem querer o seu desastre e ele mesmo não tem o direito de rejeitar as oportunidades de progresso. No torvelinho de súplicas, elogios, favores e atenções que o envolvem, o médium acaba aceitando as sugestões inferiores e escorrega na beira do abismo. As injustiças dos adversários o irritam, as perseguições o aturdem. Ele acaba por se entregar às fascinações e perverter as suas faculdades. Foge das pessoas que o auxiliaram nos primeiros tempos, considera-as suspeitas. Os políticos o assediam, tratando-o com deferências especiais que lhe estimulam a vaidade. Os seus dons se enfraquecem pelo próprio desgaste físico a que tem de se entregar para atender a todos. Para suprir as deficiências que nota nas suas próprias funções mediúnicas, inventa ou aceita expedientes escusos. Consuma-se, assim, o desvirtuamento do médium, que daí por diante fica entregue às feras que o irão devorar.

Isso acontece também com os sacerdotes terapeutas de todas as seitas e religiões milagreiras. Não se trata de um problema de ordem divina, sobrenatural, mas de um problema puramente humano. O médium não é um santo. É simplesmente um paranormal, uma criatura em que as funções terapêuticas da natureza humana, conhecidas e aceites no meio científico, se exteriorizam, exercendo influências nas pessoas em que essas funções defensivas do organismo se encontram em estado latente. Reduzida a apenas esses aspectos psicofisiológicos, a cura espírita não seria condenada, mas quando os espíritas afirmam, baseados em pesquisas e experiências científicas, mesmo que realizadas por cientistas eminentes, que a extroversão das forças curadoras é provocada por acção de entidades espirituais, o pavor dos fantasmas faz os homens mais graves perderem a cabeça. O médium transforma-se em bruxo ou lobisomem e as superstições da selva invadem os laboratórios. É o terror-pânico da sobrevivência humana que se manifesta, exigindo a acção das autoridades policiais contra os médiuns, já que não pode ser contra os espíritos. Num episódio curioso, o Dr. Silva Mello, confessando-se materialista congénito, classificou os médiuns como alienados mentais. Mas, inadvertidamente, contou que ele mesmo tinha medo de dormir no escuro. O Dr. Sérgio Valle, espírita, devolveu o diagnóstico ao autor, provando por esse e outros motivos que ele também era médium e temia a aproximação dos espíritos. Alienação por alienação, ficaram ela por ela. O saudoso e famoso Dr. Henrique Roxo, glória da psiquiatria nacional, considerou os médiuns como delirantes, sujeitos ao delírio espírita episódico. O seu discípulo mais dedicado e fiel, Dr. Lauro Gallwes, tornou-se espírita e contou num dos seus livros que o Dr. Roxo chegou ao fim de sua vida aceitando a realidade espírita. O mesmo já acontecera com Lombroso, RichetWilliam CrookesPaul GibierGustave Geley e tantos outros, pelo mundo inteiro, provando a fragilidade das construções científicas aparentemente inabaláveis. Hoje, Remy Chauvin denuncia a existência de uma doença típica do meio científico, a alergia ao futuro. Os cientistas alérgicos ao futuro sofrem também de autofobia, como observou Denis Bradley, pois temendo o espírito temem a si mesmos. Uma tragicómica situação que o avanço das ciências vai desmanchando na esteira do tempo.

Os cientistas que se apegam freneticamente aos métodos sensoriais da ciência académica revelam falta de percepção extra-sensorial, o que vale dizer falta de agudeza mental. A função da inteligência não é arrastar-se como insectos na casca da laranja, mas perfurá-la e descobrir o que existe no seu interior. Esses cientistas sistemáticos assemelham-se aos clérigos dogmáticos que não buscam a verdade, mas apenas a confirmação de princípios estabelecidos. Por isso a Ciência se volta muitas vezes contra si mesma, empregando anátemas e excomunhão contra os que rejeitam o credo fideísta. Há uma simbiose cultural dos opostos que gera a dialéctica do absurdo no campo cultural. A Ciência fixou-se, para desenvolver-se com segurança, no conceito do concreto. A fé científica repousa na realidade material. A Religião firmou a sua fé no conceito do abstracto. Da luta entre ambas resultou a assimilação recíproca de atitudes intransigentes. Essa barreira artificial contra a busca isenta e pura da verdade gerou um clero científico que se compraz com a condenação dos que se atrevem a mostrar-se criativos e não apenas repetitivos. A História das Ciências tem episódios medievais, como nos casos de Pasteur e Kardec, os dois atrevidos descobridores de mundos invisíveis e imponderáveis. O medievalismo, com o seu ideal totalitário de homogeneização do pensamento, pesa ainda na nossa consciência e prejudica o avanço científico de alguns sectores culturais onde sobrevivem os antigos carrascos da fogueira e do garrote vil. É inacreditável a certeza com que certos cientistas negam a existência do espírito baseados apenas em pressupostos doutorais. Quando o bispo de Barcelona queimou as obras de Kardec em praça pública (por não poder queimar o próprio), este declarou que a cauda da Inquisição ainda se arrastava pela Espanha. Historicamente essa cauda de sáurio enraivecido continuou a arrastar-se pelo mundo e esfacelou a Europa nos horrores do fascismo nazi.

O médium Arigó, preso na cadeia de Conselheiro Lafaiete, chamava os demais presos de colegas. Ao ser libertado, levou outros libertos para as suas terras em Congonhas e os manteve ali como colegas de trabalho na roça. Dizia sempre aos que o condenavam por isso: “São meus colegas, gente boa que só ficou ruim por causa da miséria.”

Essa atitude do médium roceiro e semi-alfabetizado devia servir de exemplo aos cientistas ilustres que hoje condenam os seus colegas corajosos que rasgam as perspectivas do futuro. É recente o episódio dos psicólogos norte-americanos que condenaram as pesquisas parapsicológicas, confessando não terem lido um só livro sobre o assunto. Rhine declarou apenas isto: “Esses cientistas descobriram um meio anticientífico de tratar de Ciência.”

Os homens vangloriam-se de arrancar os segredos da natureza, de a fazerem falar através dos seus métodos de pesquisa. Mas a verdade é outra. A Natureza não nos esconde nada. Hegel viu isso com clareza ao tratar do reino vegetal, definindo a árvore como um acto permanente de doação. Os demais reinos também se abrem para o homem, revelam-lhe as suas entranhas, convidando-os a aprender no livro aberto do mundo, de que falou Descartes ao sair do Colégio Jesuíta de La Fleche. O próprio Céu está hoje aberto ao homem, revelando-lhe os seus mistérios e oferecendo-lhe as rotas estelares. Bacon compreendeu com ajuda da intuição e reconheceu que toda a Ciência Humana não é mais do que um acto de obediência. O homem só não aprende, como aconteceu com os escolásticos, quando rejeita a liberalidade da natureza e se engolfa orgulhosamente em si mesmo, forjando sistemazinhos absurdos, estreitos leitos de Procusto, como observou Cassirer, nos quais espreme ou espicha, corta ou arrebenta os factos empíricos que não se sujeitam aos seus caprichos. Essa é a Tragédia da Cultura, não produzida pelo acúmulo de conhecimentos, como quer o filósofo, mas por desobedecer à natureza e torcê-la de acordo com as suas ideias e suposições geralmente ridículas.

No seu próprio caso o homem mostra-se rebelde. A natureza Humana não é menos pródiga do que a Natureza Geral. Desde que o mundo é mundo a natureza humana se abre ao homem revelando-lhe a sua essência espiritual, tão perene e imortal como a de todas as coisas e seres. Mas o homenzinho rebelde prefere considerar-se uma excepção orgulhosa. Se tudo é indestrutível, ele prefere considerar-se mortal,  que volta ao pó, luminescência esquiva e passageira no esplendor do Universo. A morte destrói as gerações, mas os homens voltam através de aparições, manifestações sensíveis, materializações, ressurreições tangíveis, como a de Jesus, mas os homens preferem a morte à ressurreição, fazem-se agéneres (seres não-gerados), que eles incluem nos seus fabulários ingénuos.

De onde vem essa relutância do homem ante os fenómenos naturais, mil vezes provados, comprovados e repetidos nas observações naturais e nas pesquisas de laboratórios? Da vaidade. Único ser pensante e racional no nosso mundinho sublunar, miserável subúrbio do cosmos, o homem se envaidece da sua capacidade de pesar e medir as coisas, como se isso bastasse para lhe dar a supremacia absoluta no Universo.

Os médiuns de cura sabem muito bem que nada podem fazer se não tiverem a assistência dos espíritos terapeutas que os envolvem no seu magnetismo perispirítico, descarregando energias espirituais e físicas nos organismos doentes e perturbados para restabelecer-lhes o equilíbrio abalado. Não obstante, julgam-se senhores do poder curador. Esse desequilíbrio mental, provocado pelo orgulho – engorgitamento mórbido do eu inferior –, anula os efeitos curativos no choque fatal das vibrações doentias em conflito. As ambições do poder, a ganância e a superioridade confundem-lhe a mente, levando-o ao fracasso e às tentativas inúteis de socorro e ajuda. Ele se transforma em explorador das esperanças e da fé dos doentes, emparelhando-se com estes no desequilíbrio inevitável. Essa queda do médium, que os espíritos benevolentes não podem impedir, para não anular a experiência necessária, reflecte-se negativamente no plano moral e social, invertendo os efeitos intencionais da sua prática terapêutica, em prejuízo moral e social do despertamento espiritual. Essa é a queda do médium, mais grave que a queda de Adão e a queda social de Rousseau. O fracasso do médium representa, por sua vez, a queda dos que depositavam nele as suas esperanças. É dever dos estudiosos aprofundar essas questões doutrinárias, colocando o problema em termos racionais, sem a precipitação nas ameaças de um misticismo alienante e ingénuo. O Espiritismo exige a verdade nua e crua. Os que temem expor a verdade não podem servir à Ciência Espírita. A verdade é o objecto imediato da Ciência. Sem ela, a Ciência é impossível. Não podemos ter nenhuma certeza no campo do saber se não dispusermos de provas daquilo que afirmamos. Mas há vários tipos de verdade, o que permitiu aos sofistas gregos jogar com as palavras a respeito do problema, até que Sócrates descobriu a maiêutica e aplicou esse método aos faladores perguntando-lhes sempre: “O que é isso?” Obrigados a definir os seus conceitos, os sofistas tiveram de calar ou fugir da sua presença. Como Jesus tratasse da Verdade, Pilatos lhe perguntou o que era a verdade e Jesus não lhe respondeu. Diante disso, muita gente entendeu que a verdade é inexplicável. Ora, uma verdade inexplicável jamais seria verídica. Jesus não respondeu porque Pilatos, envolvido na mentira do complô romano-judaico contra a sua pessoa, não estava em condições de compreender a verdade. O poeta Cleómenes Campos, num pequeno poema sobre esse episódio, escreveu:

Jesus não respondeu.
Foi como se dissesse: “A verdade sou eu.”

Jesus pregava aos homens a verdade da vida humana e os seus objectivos, que decorriam da Verdade Suprema de Deus. Como explicar isso a um romano que ia entregá-lo à crucificação para defender a mentira?

A verdade é uma questão de relação do pensamento com a realidade. Se essa relação é pura, directa, sem deformações interesseiras, ela é a verdade. Por exemplo: se vemos uma pedra e a reconhecemos como pedra, dizendo “vejo uma pedra”, essas palavras são a verdade da nossa percepção e podemos prová-lo facilmente. Mas se vemos uma nuvem e dizemos que se trata da deusa Juno, enganamo-nos, mentimos e não temos nenhuma possibilidade de provar o que afirmamos. Todas as civilizações, desde as mais primitivas às mais adiantadas, foram entretecidas de mentiras e verdades, de ilusões e realidades. Segundo Toynbee, cada civilização se apoia numa grande religião, herdando os seus vícios e virtudes. A corrida para o materialismo, nos últimos séculos do nosso desenvolvimento científico, foi impulsionada pela necessidade de separar o joio do trigo, as mentiras e ilusões da realidade e da verdade. As religiões apoiaram-se no pressuposto da fé, fundada nas revelações espirituais de profetas e messias. Criaram assim, sobre o mundo real, um mundo fictício de pseudo-verdades, toda uma imensa rede de símbolos pré-lógicos, por isso mesmo contraditórios entre si. Nem mesmo o desenvolvimento da lógica escolástica, na Idade Média, conseguiu sanar essa situação cultural alienante. Os pressupostos da fé pela fé, amparados no princípio teológico do credo quia absurdum (creio, mesmo que absurdo) fortaleceram a rede fantasiosa de crenças, mitos e ritos sagrados. O conceito do sagrado impediu, com as condenações violentas, a busca da verdade e qualquer possibilidade de esclarecimento total desse mundo de fascinações.

Surgindo na era científica, em meados do século XIX, o Espiritismo se opôs, ao mesmo tempo, ao religiosismo alienante e ao materialismo exclusivista. Kardec abriu a brecha espírita nesses maciços milenares, estabelecendo o critério da razão na busca da verdade. Sustentou o princípio dialéctico da constituição do mundo por dois elementos fundamentais: espírito e matéria. Dessa colocação, válida e confirmada nos nossos dias, nasceu a Ciência Espírita, armada com os métodos da pesquisa científica dos fenómenos e com os processos da cogitação filosófica livre de pressupostos e preconceitos. A Ciência académica rejeitou a dualidade espírito-matéria, sustentando o monismo materialista, mas o avanço das pesquisas no nosso século acabaram por dar razão à Ciência Espírita. A concepção monista permanece válida, mas em termos de estrutura orgânica da realidade; Espírito e matéria preenchem o cosmos, sendo o espírito o elemento estruturador da matéria. A verdade brota naturalmente das pesquisas científicas da realidade objectiva. O sonho dos fisiólogos gregos realiza-se hoje, plenamente, no desenvolvimento das pesquisas fenoménicas da Ciência Espírita. A Parapsicologia actual é simplesmente o elo de ligação da Ciência Académica com a Ciência Espírita. Sem esse elo, os dois campos científicos permaneceriam separados, impedindo a visão global da realidade, necessária à compreensão verdadeira do mundo, do homem e da vida.

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José Herculano Pires, Ciência Espírita e suas implicações terapêuticas, Situação Perigosa dos Médiuns de Cura, 20º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: O peregrino sobre o mar de névoa, pintura de Caspar David Friedrich)

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