Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...
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sábado, 17 de dezembro de 2022

O Homem e a Sociedade ~


O SIGNIFICADO ESPÍRITA do Materialismo Dialéctico 
(III de III) 

  O que os materialistas dialécticos não deveriam ignorar é que o conceito de movimento traz como consequência um conceito idealista da natureza, quando se reconhece o movimento como a origem das formas. 

  O movimento levará sempre a um espiritualismo dinâmico, o que nos faz reconhecer que o materialismo histórico, para permanecer como um verdadeiro materialismo, não devia adoptar a dialéctica de Hegel, já que ela, queira-se ou não, desembocará numa concepção idealista do homem da vida. A filosofia espírita apresenta ao materialismo dialéctico uma interpretação nova do espírito, baseada na teoria do perispírito, mediante a qual demonstra a substancialidade do Ser e da Ideia, antes considerados como puras abstracções. Por isso, disse Gustave Geley: "A noção do perispírito suprime a grave objecção, feita continuamente ao espiritualismo, quanto à dificuldade de conceber a própria alma sem nenhuma forma definida.” 

  Com a teoria do perispírito, o movimento, como as formas materiais, resultam numa consequência da vida Universal. Com ela aparece uma teleologia do Ser, sendo a dialéctica a causa da expansão psíquica dos seres e, o perispírito o receptor da força e da inteligência. O materialismo dialéctico não conseguiu nunca explicar como se produz na mente do indivíduo a pantomnésia, isto é, a conservação da individualidade e das recordações. Porque, se o processo dialéctico é também mental, em virtude de que princípios a memória regista as impressões do mundo exterior e permanece inalterável à consciência do indivíduo? Além disso, que essência misteriosa protege o pensamento, se o movimento o renova totalmente e tudo é e não é ao mesmo tempo? Por que, se ninguém se banhará duas vezes no mesmo rio, a inteligência continua sendo a mesma, sem esquecer as suas aquisições e conhecimentos? Numa palavra, quem preserva a coesão individual e a memória, se tudo está exposto ao processo dialéctico? 

  Eis aqui, pois, os pontos capitais a que o materialismo histórico deverá responder. 

  O espiritismo pode solucionar o problema, dizendo que o Ser espiritual se mantém inalterável no meio do processo dialéctico, devido ao perispírito, no qual se resumem toda a sua inteligência e a sua individualidade. O Ser, com efeito, sustenta-se no perispírito, órgão que não pode ser alterado pelas leis do movimento dialéctico. Como veremos, esta interpretação do homem sobrepuja completamente a interpretação materialista da história. Assim, já não é somente o factor económico que determina as condições políticas, artísticas, religiosas e, outras da sociedade, pois nelas intervêm também os elementos espirituais. Porque, se a vida espiritual do homem dependesse exclusivamente dos modos de produção, não existiriam espíritos com sentido de justiça: a inteligência estaria ao nível das formas imperfeitas da sociedade. 

  Não obstante, as formas capitalista e socialista são a consequência de estados de consciência, respondendo a dois graus de evolução intelectual e mental do indivíduo. Estes dois graus de evolução deveriam explicar-se pelo estado moral do perispírito, base de todas as sensações do Ser e, pelo maior desenvolvimento palingenésico do homem. Se é certo que os modos de produção aperfeiçoam e ampliam a técnica, vemos, entretanto, que os referidos factores são incapazes de criar no organismo humano novos membros, que o indivíduo pudesse utilizar em seu proveito. Esta impotência dos modos de produção permite à filosofia espírita estabelecer a seguinte conclusão: 

  Se a mão foi o primeiro instrumento do qual se valeu o homem, na sua luta pela existência, este mesmo facto nos indica que é sempre a Ideia, ou o Espírito, que rege a realidade objectiva, por intermédio de um órgão material. 

  E a isto, para sermos mais explícitos, devemos acrescentar que não foram as forças produtivas da economia que desenvolveram as mãos no indivíduo, mas o próprio poder de materialização do Ser, já que os modos de produção em nada alteraram as formas anatómicas do homem. Podemos dizer que as formas orgânicas do indivíduo não foram tocadas pelo processo dialéctico da economia, o que nos mostra a existência, na natureza humana, de um princípio psíquico que não poderá ser alterado por nenhuma espécie de influência exteriores. 

  O desenvolvimento ou aparição de asas nas espécies voláteis não tem origem de carácter económico, mas corresponde apenas a uma finalidade do perispírito (i) desses seres. O aparecimento das faculdades metapsíquicas na espécie humana não se deve tampouco a qualquer tipo de determinismo económico. O seu desenvolvimento corresponde a factores espirituais que o homem traz em si mesmo, e que irão aumentando à medida que ele avance através do processo palingenésico. 

  Entretanto, os factores económicos são elementos que podem influir indirectamente sobre o desenvolvimento metapsíquico do homem. Por isso, no seu aspecto social, a filosofia espírita revela um sentido nitidamente socialista. Um povo economicamente pobre não poderá desenvolver com facilidade o sentido psíquico da vida espiritual; não terá oportunidade para isso, visto que a pobreza sempre engendra o raquitismo. O desenvolvimento de qualquer faculdade metapsíquica nos homens e nos povos requer a organização de uma sociedade próspera, no sentido económico; as nações pacíficas e felizes são as que mais prontamente se aproximam das realidades do mundo invisível. 

  O materialismo dialéctico deverá reconhecer que a vida do homem tem uma finalidade transcendental. Desse modo poderia conter, como parece desejar, os erros do existencialismo. Porque, se o homem e o cidadão, a sociedade e a história, não possuem uma suprema teleologia espiritualde nada valerá o esforço para instituir na Terra uma sociedade sem classes. Se o homem, repetimos, é um Ser para a morte e para o nada, como o admite o existencialismo ateu, pouco importa que existam ou não classes exploradoras, pois tudo há de terminar na gélida noite do sepulcro. Em compensação, se o Ser é uma individualidade espiritual para a vida eterna, poderão justificar-se as diversas lutas em prol de uma sociedade justa e perfeita. (1) 

  A filosofia espírita, que experimentalmente pode provar a existência imortal do Espírito, é uma vigorosa ideologia que poderá inspirar todo o homem que se sacrifique pelo bem e pela igualdade. Se o materialismo dialéctico quer enveredar por este novo caminho da filosofia e da ciência, deverá espiritualizar as suas conclusões e reconhecer que, nos diversos processos da evolução, todo o princípio material tem o seu espírito e, todo o princípio espiritual tem a sua matéria. Desta aproximação entre o material e o espiritual surgirá a mais extraordinária das revoluções, que dignificará o homem, como em nenhum outro período da história. 

 /… 
(1) Os materialistas lutam estoicamente por um futuro que nega o seu objectivismo e os coloca no plano do idealismo. Mariotti acentua essa contradição, dialecticamente resolvida pelo espiritismo. (Nota de José Herculano Pires). 


Humberto MariottiO Homem e a Sociedade numa Nova Civilização, Do Materialismo Histórico a uma Dialéctica do Espírito, 1ª PARTE O NÚMENO ESPIRITUAL NOS FENÓMENOS SOCIAIS, Capítulo V – O Significado Espírita do Materialismo Dialéctico (III de III), 10º fragmento desta obra. 
(imagem de contextualização: Alrededores de la ciudad paranóico-crítica: tarde al borde de la historia europea | 1936, Salvador Dali)

sábado, 12 de novembro de 2022

o grande desconhecido ~


Amor, sexualidade e casamento ~ 

No Espiritismo o problema do amor implica a relação directa do homem com Deus. O Criador e a criatura religam-se no desenvolvimento humano da lei de adoração. Quanto mais o homem desenvolve as suas potencialidades existenciais, mais o seu potencial ôntico se aproxima de Deus, mais o sente e mais o compreende. Nunca houve nem poderia haver um rompimento total e definitivo entre O Criador e a criatura. No próprio dogma da queda a expulsão do homem da face de Deus é apenas temporária. Por isso o Espiritismo é Religião, mas não é igreja. A diferença entre Igreja e Religião é a mesma que existe entre a alma e o corpo. O homem perde o corpo na morte, mas não perde a alma. A Religião anunciada por Jesus por não possui corpo, é alma pura, que sobrevive por si mesma. No diálogo com a Mulher Samaritana, Jesus desprezou o Templo de Jerusalém e o Templo do Monte Gerasin, referindo-se apenas à Religião Livre do Futuro. Porque a relação religiosa é puramente espiritual. A Religião não depende de formalismos, sacramentos, instituições e órgãos. É subjectiva e define-se como o Amor a Deus. Essa relação directa exclui naturalmente todas as formas de discriminação, pois o seu objectivo é a unidade. Quando uma criatura se liga a Deus, liga-se ao mesmo tempo a todas as criaturas e a todo o Universo, integra-se na realidade absoluta. Tudo o mais são coisas humanas, pertence à diáspora, ou seja, ao tempo do exílio, em que o homem se afastou de Deus. Esta simplificação da Religião só acontece na máxima complexidade, que é o mergulho do homem na sua essência, proveniente de Deus e que é o próprio Deus em nós. Exemplifiquemos humanamente esta questão. Conta-se que um sábio indiano mandou três filhos seus estudar na Inglaterra. Quando voltaram diplomados perguntou ao primeiro: “O que é Deus”? O rapaz fez uma longa e confusa digressão a respeito. O segundo vacilou na sua explicação e disse que precisava estudar melhor o assunto. O terceiro calou-se e os seus olhos se encheram de estranha névoa luminosa. Disse o pai aos três; por ordem das perguntas: “Você, meu filho, procurou Deus nas teologias e não conseguiu encontrá-lo; você, meu segundo filho, está tateando no escuro como um cego; e por último você, meu filho, que não me respondeu, encontrou Deus e nele mergulhou de tal maneira que não pode traduzi-lo por palavras. Você não perdeu tempo com as coisas exteriores e por isso foi o único que realmente aprendeu o que é Deus.” 

A contradição máxima complexidade e máxima simplicidade não é contradição, mas fusão. A complexidade infinita das coisas e dos seres no Universo aturde o homem que busca Deus, mas ao encontrá-lo o homem percebe, logo, que toda a complexidade se funde na Existência Única de Deus. É como o marinheiro que navegou por muitos mares, surpreendido com a variedade e as diferenciações formais de todos eles, mas ao terminar a sua navegação constata que todos os mares não são mais do que o Grande Mar. 

A religião em Espírito e Verdade é esse Mar Total em que todos os mares e todas as águas se reúnem numa só coisa. 

Todas as religiões nasceram da mediunidade, que é o fundamento de todas as religiões, que por sua vez se fundem na Religião em essência que é a Religião do Espírito ou o Espiritismo. Nela não se precisa de coisas específicas, pois todas as coisas se fundem numa só – o Amor a Deus. 

Um jovem e uma jovem se amam e o amor que os atrai é o Amor de Deus nas criaturas. A bênção do amor já os ligou e eles não necessitam de palavras, ritos ou sacramentos para se unirem, pois já estão unidos. Se não houver amor entre eles, não estão unidos e de nada valerá a união formal por meios sacramentais. É por isso que no Espiritismo não há sacramentos nem formalismo algum, pois tudo depende, em todas as circunstâncias, da essência única – e única verdadeira – que é o Amor. 

Mas o Espiritismo reconhece a necessidade humana de disciplinação social e, por isso recomenda apenas o casamento civil. Ainda por isso o Espiritismo reconhece a necessidade do divórcio, pois no plano ilusório da matéria as criaturas confundem-se e misturam sexualidade e desejo com o Amor. Jesus, respondendo aos judeus por que motivo Moisés permitia o divórcio, disse-lhes: “Por causa da dureza dos corações, mas no princípio não foi assim.” Kardec explica que no princípio da humanidade o amor era espontâneo, livre de injunções estranhas e, então não era necessário o divórcio. O Espiritismo não faz casamentos nem divórcios, nem a anulação de casamentos que a Igreja faz, pois esses problemas pertencem às leis humanas. Da mesma maneira o Espiritismo não faz baptizados – pois o baptismo é do espírito – nem recomenda defuntos ou distribui bênçãos, pois que todas essas coisas não são feitas pelos homens e sim por Deus. Todos os sacramentos e formalismos são substituídos no Espiritismo pela prece, que serve em todas as ocasiões da vida e da morte, pois é um momento de ligação do homem com Deus, o diálogo com o Outro, como queria Kierkegaard. Toda intervenção humana interesseira e venal é substituída pela serena confiança nas bênçãos gratuitas do Céu. Nesse acto humano de louvor ou de súplica, desprovido de aparatos exteriores, a presença da Divindade é o cumprimento da promessa de Jesus, sem nenhuma evocação formal. A solidariedade espiritual revela-se no esforço de transcendência vertical das criaturas, conscientes da lei da sublimação. Não há fórmulas orais nem gestos, nem signos ou mitos na tranquila vibração das consciências na intimidade de todos e de cada um. 

A prece espontânea brota das profundezas do ser com a naturalidade de uma flor que desabrocha. Não é um acto de vontade, mas um aflorar do espírito. Não é uma ficha arrancada do arquivo da memória, mas um impulso do coração. As raízes latinas: prex, precis, determinaram no tempo, através dos séculos e dos milénios, a forma leve e suave da palavra portuguesa prece, que soa nos lábios como um bater secreto de asas minúsculas. Prefere-se prece à oração, porque a primeira condiz e harmoniza-se com o acto interior e invisível com que a alma se lança na transcendência. Há um mistério subtil nessa escolha intuitiva desse par de sílabas poéticas que repercutem nos corações como o perpassar da brisa por entre as pétalas. Não tentamos fazer poesia nem divagar, mas descobrir pelas imagens e as palavras, o imponderável do instante da prece. 

Os que não se contentam com esse sopro do espírito, esse pneuma grego, esse frémito inaudível, captado mais pela alma do que pelos ouvidos, preferindo orações extensas e grandíloquas, estão ainda imantados dos formalismos sacramentais. Nada revela mais claramente a natureza intimista da religião espiritual do que essa preferência espírita pela prece. Livrar a criatura do peso da matéria, para que ela possa elevar-se a Deus no silêncio de si mesma é a finalidade da prece. 

Do problema da prece temos de passar à questão sexual, o que não seria recomendável ainda há pouco tempo. O tabu sexual fechava todas as passagens a atrevimentos dessa espécie. As marcas da era fálica haviam aterrorizado o Cristianismo Primitivo, que teve de lutar tenazmente contra a depravação romana e o paganismo em geral. As epístolas de Paulo mostram-nos o desespero do Apóstolo perante o comportamento animal dos conversos em certas igrejas, particularmente na de Corinto. Isso impediu o Apóstolo, já assustado com a corrupção grega e romana no próprio Judaísmo, a tomar uma atitude radical no tocante ao sexo. O falso conceito judeu da pureza (mais racial e religioso do que moral), provocava os seus brios de antigo Doutor da Lei contra o perigo da época. Das reacções de Paulo e do puritanismo hipócrita dos fariseus teria de nascer uma era anti-fálica e anti-sensual, voltada para o extremo oposto da castidade forçada e do celibato sacrificial. Foi tão violenta essa reacção que nem mesmo os exemplos de mentalidade aberta do Cristo puderam atenuá-la. Não somente o sexo, como instrumento de perdição, mas a própria sexualidade foram condenadas sumariamente. Por pouco a prática judaica da circuncisão, que alguns apóstolos mais afoitos, como Pedro, exigiam dos conversos pagãos, não se transformou na castração árabe dos haréns. É significativo o facto de Paulo, depois da circuncisão que praticou se recusar a continuar circuncidado e até mesmo a baptizar com água. 

Houve também, como teria de haver, reacções contrárias a essa posição extremada, com liberalidades também extremadas, que mais tarde resultariam no episódio dos Libertinos do Século XX, católicos e protestantes rejeitados pelas ideias renascentistas, precursores da fase actual de libertinagem que abalaram o mundo. A pornografia assustadora de hoje, que fomenta a indústria das perversões sexuais em revistas, jornais, cinema e televisão, é por sua vez um novo eclodir da sensualidade sem freio, desvirtuando o sentido natural da sexualidade. São esses os balanços de um barco de loucos atirado à fúria de tempestades marítimas, à semelhança do Barco dos Mortos de B. Traven. A contra-reacção da moral vitoriana inglesa não fez mais do que preparar a sua própria explosão, na fase actual do homossexualismo europeu desenfreado, que parece vingar a prisão de Oscar Wilde em Reading. 

A sexualidade afrontada encontrou em Marcuse o seu filosófico defensor, mas em termos exagerados. Desde o século passado o Espiritismo colocou nos fundamentos de toda a realidade terrena a questão do princípio vital, elemento mantenedor de toda a vida planetária. A sexualidade, que não é o sexo, mas a potência sexual geradora e mantenedora de vida, é a carga de energia vital do planeta, distribuída nos indivíduos de todas as espécies. Na era fálica essa força era cultuada mas não havia libertinagem nem pornografia nesse culto, pois não se considerava o sexo como pecado, mas como instrumento sagrado de reprodução da espécie. Na Suméria os casais uniam-se nos altares dos templos, na presença de sacerdotes que os abençoavam para a fecundação. Esse senso de dignidade do sexo perdeu-se nas civilizações teocráticas, esmagado sob as condenações do gozo, que impediam a alma de alcançar a salvação. Marcuse tem razão ao defender a teoria das civilizações suicidas, que condenam o sexo e a ele se entregam na exclusiva busca do prazer, desenvolvendo a indústria aviltante do gozo sexual, que reduz o sexo a instrumento de loucura e perversão. A colocação espírita desse problema é clara e precisa como vemos no capítulo sobre a Lei de Reprodução, de O Livro dos Espíritos

“As leis e costumes humanos que objectivam ou têm por efeito obstar à reprodução são contrários à lei natural?: Tudo o que entrava a marcha da Natureza é contrário à lei geral”. 

Todas as espécies devem reproduzir-se, mesmo as que parecem daninhas. O equilíbrio mesológico faz-se segundo as leis biomesológicas de cada área específica: o campo, o cerrado, a floresta, as águas, as cidades e assim por diante. Há espécies daninhas que são a sobrevivência de formas em extinção ou mutação, para adaptação a condições novas que estão a surgir. Como Kardec adverte: o homem, que só vê um canto do quadro geral da Natureza, não pode julgar o todo e confunde-se nas suas apreciações da harmonia natural. No tocante à população humana do planeta, que hoje preocupa os homens e os governos, o Espiritismo sustenta a tese do equilíbrio natural, governado pelas leis naturais. Afirma que a Terra está longe de possuir a população a ela destinada e que o homem não tem capacidade para impedir a progressão populacional. O recente Congresso Demográfico Mundial da ONU provou isso. Depois de vários dias de debates e da defesa de teses absurdas, o Secretário Geral da ONU advertiu os congressistas de que, durante as discussões, milhões de crianças haviam nascido em todo o mundo. Era impossível deter o aumento populacional através das medidas propostas, algumas delas ridículas, como a de um cientista inglês que propunha medidas para reduzir o tamanho actual dos homens, reduzindo-os a homúnculos, para se conseguir mais espaço e diminuir a necessidade de alimentos. Por outro lado, vários cientistas colocaram o problema da chamada explosão demográfica e a falta de alimentos em termos de crescimento local dos grandes centros urbanos e a falta de controlo da produção alimentícia, com o esbanjamento de grandes produções por falta de transportes, ganância exagerada de lucros e os transportes excessivamente caros de regiões produtoras distantes para as zonas consumidoras. Resta ainda considerar que todo o crescimento populacional não é permanente, seguindo uma curva estatística de ascensão que depois decai, ajusta-se em linha regular ou entra em declínio. Tudo isso confirma a posição espírita. Escapa ao homem o controle biomesológico em todo o conjunto de áreas populacionais animais e humanas, de maneira que as intervenções humanas só servem para provocar desequilíbrios perigosos. 

Passando desse problema para o da abstenção sexual e o do casamento e do celibato, vamos novamente verificar o acerto do Espiritismo na sua posição firmada desde meados do século passado. O casamento representa uma conquista na evolução social, disciplinando as relações humanas com vista à organização da família na estrutura mais ampla da sociedade. Se a maioria dos casamentos na Terra apresenta dificuldades e desajustes, isso decorre das condições inferiores do nosso mundo. O casal é uma unidade biológica que se forma por atracção afectiva recíproca desenvolvida em vidas sucessivas ao longo da temporalidade, que é a larga e profunda esteira dos tempos sucessivos. A afectividade que o liga no presente é positiva, mas está geralmente carregada de cargas negativas, provenientes de situações não resolvidas, de compromissos e dívidas morais recíprocas. Formada a unidade, ela funciona como um dínamo-psiquismo que atrai as entidades comprometidas com o par nas existências anteriores. O par sozinho enleia-se nos sonhos de felicidade dos anseios de amor. Mas as interferências dos comparsas causa disritmias e atritos na harmonia do dínamo, muitas vezes desde o namoro e o noivado, prenunciando tempestades magnéticas. São os filhos que procuram a reencarnação e os parentes do par e outros compromissados que chegam, cobradores de dívidas afectivas e de compromissos rompidos. Não é Deus que determina essas situações embaraçosas, mas os próprios envolvidos em complôs remotos e o próprio par, motivo de acções negativas anteriores que, segundo a lei de acção e reacção, formam o karma do grupo, ou seja, o conjunto de insolvências passadas, agora postas em resgate comum. (A palavra karma, de origem sânscrita, vem de arcaicas religiões indianas reencarnacionistas, mas é empregada no meio espírita pelo seu sentido prático e preciso). Se o casal se recusa a ter filhos, os compromissados reagem com vibrações mentais e psíquicas negativas, quebrando a harmonia do dínamo e provocando distúrbios biopsíquicos no casal e até mesmo ocasionando a interferência de reencarnados compromissados com o par. São essas as causas da maioria das situações difíceis resultantes de casamentos felizes. Os casos de aborto provocados no passado constituem pesados compromissos a resgatar e, os casos de aborto recentes (sem necessidade clínica real), vão acumular-se aos anteriores ou passam para débitos futuros. É por isso que os sentimentos de amor e o respeito ao próximo constituem elementos defensivos da felicidade futura de todos nós. A partir deste quadro podemos compreender com mais clareza as situações dolorosas em que se precipitam muitos casamentos felizes e, que as religiões explicam assustadoramente como castigos divinos ou influências diabólicas. Todas essas situações dependem exclusivamente das nossas relações humanas no passado e no presente. A consciência humana dispõe, em todos nós, dos recursos preventivos dessas situações. A nossa falta leviana de atenção às exigências e advertências da consciência respondem pelas situações negativas que criamos por nós próprios, contra os nossos interesses evolutivos. 


O problema do celibato ~ 

No tocante ao celibato a posição espírita é decisivamente contrária, considerando-o como fuga ao dever humano da reprodução da espécie, determinada por egoísmo. O celibato religioso, imposto pelas igrejas, vai além disso, pois representa uma violação consciente das leis divinas, sob o pretexto de dedicação exclusiva a Deus. Só é justificável o celibato obrigatório, motivado por questões orgânicas ou impedimentos decorrentes de doença ou mutilações. Admite-se o celibato por devotamento integral a uma causa social absorvente. Nestes casos o egoísmo está naturalmente excluído. No caso do sacerdócio e votos de castidade, o egoísmo reponta da pretensão de agradar a Deus violando as suas leis. Há mesmo, da parte do sacerdócio, como o demonstram as religiões em geral, conveniência no casamento dos sacerdotes, que não se vêem forçados à hipocrisia perante as exigências vitais do homem e da mulher. Uma grande causa pode levar uma criatura abnegada a não se casar para não causar sacrifícios à família que iria constituir. Essa é uma questão de consciência pela qual cada um responde individualmente. Mas o Espiritismo não o determina, pois não é uma igreja nem uma instituição secreta. A atitude espírita refere-se apenas aos deveres conscienciais da criatura perante as exigências da evolução humana. 

Há ainda o problema da poligamia, que o Espiritismo encara historicamente, lembrando que o casamento, com responsabilidades sociais definidas, superou as experiências poligâmicas do passado. Toda essa posição espírita está perfeitamente de acordo com as leis vigentes no mundo actual. Os movimentos actuais do próprio clero católico pela abolição do celibato sacerdotal e as concessões feitas pela Igreja em numerosos casos, confirmam a necessidade crescente de uma revisão pela Igreja dessa instituição contraditória em que se colocou, dividindo a sua posição em duas medidas antagónicas: o casamento de clérigos na Igreja do Oriente e o celibato obrigatório no Ocidente. O celibato das freiras é uma herança da castidade obrigatória das vestais romanas, sujeitas a serem enterradas vivas se violassem o voto. É interessante lembrar que as vestais, que mantinham o fogo da deusa Vesta nos templos, podiam casar-se sem problemas ao completarem 30 anos de idade. As medidas contrárias às leis naturais, que são as leis de Deus, tendem a desaparecer com a evolução cultural, moral e espiritual da Humanidade. 

Dizia o Apóstolo Paulo que há eunucos feitos pelos homens e os que se fazem eunucos por amor ao Reino de Deus. Há também os que nascem eunucos. Aplicando-se isso nos nossos dias, podemos dizer que há celibato forçado por deficiências orgânicas congénitas, por acidentes mutiladores e pelo desejo de servir a Deus. Mas o Espiritismo, colocando os antigos problemas místicos e as velhas superstições religiosas à luz da razão, mostra-nos a contradição da suposta dedicação a Deus através de violações egoístas das leis naturais. Se há, por assim dizer, todo um dispositivo natural de desenvolvimento das potencialidades humanas através de lento e complexo processo evolutivo, como pode o homem, sujeito a esse processo, fechado nas suas exigências condicionantes, querer modificá-lo, corrigindo Deus? A quem aproveita o sacrifício de uma jovem saudável na cela de um convento ou a negação por um jovem da sua própria virilidade? O móbil dessas atitudes revela-se na ambição egoísta de conquistar o céu para gozo próprio, adiantando-se aos demais e escapando às leis do processo evolutivo natural. Todas as formas de auto-flagelação, cilícios, abstenção exagerada, isolamento e quietismo são fugas à realidade que todos devem enfrentar, no cumprimento dos deveres inalienáveis de solidariedade humana e o amor ao próximo. E toda a fuga é um acto de desobediência à vontade divina. 

O mito de Adão e Eva tem a beleza poética do acto criador, mas a presença da serpente no Éden é uma advertência às pretensões humanas. Se não fosse a astúcia desse animal rastejante, a Obra de Deus ficaria reduzida, pela timidez do primeiro casal, a uma tentativa frustrada no meio do deserto. 

Desde que o homem atingiu, no processo da evolução criadora, segundo a tese de Bergson, a capacidade de pensar e julgar, o seu primeiro julgamento foi favorável a si mesmo, pois se julgou capaz de corrigir os erros de Deus. O despertar da inteligência faz o vinho subir à cabeça, mas é bom não esquecermos que a bebedeira de Noé depois do dilúvio atirou-o nu no fundo da tenda, escandalizando os seus próprios filhos. 

Por isso o Espiritismo adoptou os ensinamentos de Paulo, sobre a maior virtude, o seu lema de redenção racional: Fora da caridade não há salvação. As igrejas cristãs clamam até hoje que a salvação pela caridade excita a vaidade humana. Se ajudar os que sofrem e amar o próximo é um acto de orgulho, então a humildade deve estar como os que se entregam à ambição da fortuna pessoal e do poder, a tirar as suas correias das costas do próximo. 

/… 


José Herculano Pires, Curso Dinâmico de Espiritismo, XIX – Amor, sexualidade e casamento / O problema do celibato21º fragmento desta obra. 
(imagem de contextualização: Somos as aves de fogo por sobre os campos celestes, acrílico de Costa Brites)

domingo, 24 de julho de 2022

o grande desconhecido ~


O Problema das Mistificações
 
(II de II) 

Os adulteradores espíritas de Kardec mostraram-se de uma grande ignorância. O que fizeram com O Evangelho Segundo o Espiritismo é de estarrecer. Deformaram, cortaram, tornaram o texto lógico do mestre incongruente e contraditório. Não pouparam sequer as mais belas e poderosas frases de Jesus, como: Amai aos vossos inimigos, que reduziram a esta vergonha linguística: Amai aos que não vos amam. Das eloquentes mensagens de Lázaro extraíram as figuras expressivas e viris como: Nós vos faremos avançar com a dupla acção do freio e da espora, talvez por já estarem sentindo as esporas nas virilhas. Emacularam os textos, como se fossem eunucos destinados a servir nos haréns de velhos e trémulos sultões. 

Todas essas formas de mistificações, geralmente ao serviço de interesses humanos subalternos, estão presentes em todas as culturas e em todas as religiões, porque a mistificação é própria do homem, encarnado ou desencarnado. Na inferioridade visível e palpável do nosso mundo os mistificadores pululam no plano espiritual ligado à Terra e na crosta planetária. Nas escrituras sagradas de todas as correntes espiritualistas e de todas as religiões podemos encontrar e identificar diversos tipos de mistificação. Kardec foi o único a estabelecer um método seguro de prevenção das mistificações. Mas os mistificadores se servem da vaidade humana para se infiltrar nas instituições doutrinárias, onde sempre encontramos criaturas ansiosas por novidades que superem a obra do mestre. O Espiritismo é uma questão de bom senso, como escreveu Kardec, mas as criaturas insensatas estão por toda a parte. Precisamos manter constante vigilância nos nossos estudos para não cairmos nas mistificações que nos levam a deturpar e aviltar a doutrina. Bastaria um pouco de humildade para vermos, como ensina Kardec, a ponta de orelha do mistificador, que sempre aparece nos textos mentirosos ou ilusórios. A mistificação se alimenta de vaidade e pretensão, desse orgulho infantil a que não escapam nem mesmo pessoas ilustradas. Muitas vezes, pelo contrário, as pessoas ilustradas não passam de analfabetas ilustres, mais sujeitas, por sua vaidade pueril, à mistificação, do que as pessoas humildes, mas dotadas de bom senso. Kardec tem razão ao afirmar que o bom senso e a humildade são preservativos da mistificação. Nenhum espírito nos mistifica se nós mesmos já não estivermos mistificando-nos por vontade própria. 

Os médiuns dispõem de vários recursos para evitar as mistificações: orar e vigiar, manter a sua fé racional em Deus e nos Espíritos Superiores; confiar nos seus protectores espirituais; ler todos os dias pelo menos um trecho de O Evangelho Segundo o Espiritismo, manter a mente arejada e serena, sem temores inúteis; alimentar pensamentos altruístas, ou seja, em favor dos outros, evitando ideias de grandeza; rejeitar os Espíritos que lhes prometem revelações e os que pretendem contar-lhes o que foram em outras encarnações; afastar de sua mente qualquer ideia de maldade contra os outros; afugentar ódios e ressentimentos; não querer tornar-se anjos de um momento para o outro; viver como todas as criaturas pacíficas dignas, cumprindo os seus deveres sociais e morais, sem nunca se julgarem superiores aos outros; suportar as dificuldades da vida sem reclamações, dando mais atenção às necessidades dos outros do que às suas próprias; fazer todo o bem possível ao seu alcance, sem exageros e tendo sempre em vista que não devemos acocar-nos nem acocar os outros, pois todos temos de passar pelas experiências; evitar disputas sobre opiniões; não admitir interferências de dinheiro ou lucros de qualquer espécie nas suas actividades mediúnicas. Tudo isso se resume, como vemos, em caridade, humildade e honestidade. O médium ou espírita que seguir esses princípios estará vacinado contra a mistificação, desde que não se convença que estará livre de ser mistificado. A simples ideia de ter esse privilégio pode ser a porta que esqueceu aberta e pela qual a mistificação entrará com facilidade. 

O maior caso de mistificação, capaz de levar qualquer pessoa à fascinação, é a obra Os Quatro Evangelhos, de Jean-Baptiste Roustaing, que a Federação Espírita Brasileira tomou como fundamento da sua orientação doutrinária. A mistificação é tão evidente nessa obra que uma pessoa simples, mas de bom senso, logo se apercebe. Mas como se apoia nos resíduos mitológicos e místicos da nossa formação religiosa tradicional, continua a fazer as suas vítimas entre nós através dos anos. Nessa obra, Jesus é transformado num mistificador que fingiu nascer, mas não nasceu, fingiu mamar, mas não mamou, fingiu morrer na cruz mas não morreu; fingiu ressuscitar mas não ressuscitou, pois era um agénere, uma criatura não gerada, uma simples aparição tangível que combinou no espaço encontrar-se na Terra com Maria Madalena. E isso é apenas um pedaço mínimo do imenso ridículo em que essa obra das trevas procura mergulhar a Doutrina dos Espíritos Superiores. As obras de Ramatis constituem o segundo caso de mistificação no nosso movimento espírita, divergindo daquela em alguns pontos e apresentando outras novidades absurdas. A obra A Vida de Jesus Ditada por Ele Mesmo, recebida na Alemanha e completada na Argentina, onde existe uma instituição espírita para mantê-la, divulgá-la e defendê-la, é outro caso típico de mistificação em grande estilo, que tem iludido multidões de pessoas. Nessa obra vemos Jesus, nas suas memórias, prestar-nos um depoimento estranho sem princípio e sem fim e com a deformidade de um texto do Corto, de Maomé. Fala Jesus: “Meus irmãos, escutai o relato da minha vida terrestre como Messias.” A seguir o livro nos conta as primeiras peripécias de Jesus após a morte de José, seu pai, sua ida a Jerusalém e a entrega dos negócios da família em mãos estranhas. Jesus se diz o mais velho dos nove filhos de José e Maria. Descreve a vida tranquila que levava em Nazaré, mas lamenta que as suas ideias messiânicas o tenham levado para o caminho perigoso. Refere-se aos fundamentos da Ciência Kabalística que aprendeu, conta que após a morte do pai envolveu-se em Jerusalém com grupos subversivos e tornou-se agitador político. Nesse ritmo de estória à Jack London, o livro atinge a fase messiânica de Jesus. O auto-memorialista proclama: “A minha obra era santa, porque era a Obra do Pai; a minha missão não era de ódio, mas de amor.” Um livro mediúnico sem nenhuma base histórica, sem nada de novo quanto à interpretação da figura humana de Jesus, sem nenhuma marca da época, decalcado em situações actuais, desprovido da mínima verossimilhança e, que no entanto e apesar do seu volume de cerca de 400 páginas, não pesa em nada na balança da História. Mistificação evidente e sem defesa possível. Como podem espíritas ilustrados, inteligentes, perspicazes, aceitar esse relato de fraca imaginação como autobiografia do Cristo, do assombroso personagem histórico que transformou o mundo com as suas ideias, no vago registo das loggia, das anotações fragmentárias de seus ensinos morais, frases e expressões que balizaram o desenvolvimento humano a partir das suas prédicas? Essa é a glória da mistificação – fazer passar como verídicas as mais infundadas aberrações. Mas não se pense que o triunfo é da mistificação em si. Pelo contrário, é dos que se deixam mistificar, dos que desejam iludir-se e para isso alimentam o seu bom senso nas bancas de câmbio da imaginação. Essas criaturas ansiosas pelo maravilhoso, não encontrando o que desejam nas pesquisas e nos estudos sérios, aceitam emocionados os maiores absurdos. 

É um curioso mecanismo de compensação interior que leva os leitores dessas falsidades ingénuas a considerá-las como verídicas. O anseio de novidades maravilhosas é nelas mais poderoso do que a razão, que sabem aplicar nas coisas da vida diária, mas fracassam ao aplicá-las ao sonho, pois este exige a descoberta dos segredos a qualquer preço. É o mesmo caso das obsessões, em que o apego do obsedado ao obsessor é que dá forças a este para agir sobre aquele. O mesmo caso dos viciados, que embora conhecendo as consequências do vício, não podem abandoná-lo, pois sem ele a vida perderia em gosto e sentido. Uma face pouco ou nada conhecida dos processos esquizofrénicos. Uma área em que a Psicologia Espírita tem muito a trabalhar. 

Mas não é só no Espiritismo que isso acontece. A natureza é uma só em toda a parte. No Corão, de Maomé, a mistificação é tão transparente como no caso acima. O mistificador cobre as suas deficiências com o manto embriagador ou atordoante da fantasia. E serve-se de afirmações enfáticas, de frases altissonantes para melhor impressionar os que desejam ser enganados. Todo o génese bíblico se reveste desse mesmo aspecto. O episódio do nascimento de Jesus, no Corão, é ao mesmo tempo anedótico, pitoresco e impressionante. Maria recebe a anunciação do Anjo, que a manda fugir para o deserto. José foi inteiramente excluído dessa estória das Mil e Uma Noites em que um velho carpinteiro nada tinha a fazer. A jovem virgem foge da casa dos pais e dirige-se à tamareira solitária no meio do areal. Ali se deita e o Anjo lhe ensina como proceder. Ao mesmo tempo, faz correr um filete de água ao pé da tamareira. Quando tiver fome, basta-lhe sacudir a árvore e os frutos maduros caem. O menino nasce e o anjo a manda voltar para a casa. Lá, a família a repreende, mas ela tem o menino Jesus nos braços. Maria conta o que se passou e o menino recém-nascido o confirma. O espanto é geral e tudo se acomoda. A estória ingénua é simples ideação mistificadora, mas a palavra do Profeta é suficiente para transformá-la em realidade histórica. O Islã (Islão) nasceu do tronco bíblico, é uma espécie de sombra judaica projectada sobre a Arábia. As figuras bíblicas de Abraão, Isaac e Jacob aparecem deformadas nessa projecção. Era natural que Maria e Jesus também aparecessem assim. Mas temos nessa projecção conceptual uma espécie de intuição profética animitológica. O nascimento de Jesus sob uma tamareira no deserto devolve o acontecimento real à sua singeleza verdadeira. Resta o mito do Anjo Gabriel, mas este corresponde à realidade subjectiva da inspiração de Maomé. O facto de o menino Jesus falar precocemente não é mitológico, pois pode ser considerado na pauta da precocidade natural. É importante lembrar que o Islamismo revela maior tendência para a realidade figurada do que para o mito. A exclusão de José e os cuidados do Anjo com Maria parecem indicar o Anjo como o pai do menino, em lugar do Espírito Santo. Uma análise profunda desse episódio do Corão, que estabelece uma ligação genésica entre o Islamismo e o Cristianismo, pode revelar maiores significações na perspectiva histórica. A mistificação religiosa decorre muitas vezes de exigências lógicas num processo histórico de ocorrências complexas e cujas linhas se tornaram indefinidas no tempo. Esse é um problema de Para-história, nova área de interpretação histórica nascida das conquistas actuais da Parapsicologia e, que por isso mesmo interessa de perto aos espíritas. 

Maomé foi geralmente considerado como um mistificador, mas na verdade era um médium, um paranormal que, segundo Emmanuel, tinha a missão, em que fracassou, de forçar o retorno da Igreja de Roma à realidade histórica. O fracasso do Profeta Árabe decorreu do seu excessivo apego à matéria, em virtude de sua forte vitalidade. Por isso Dante o colocou no Inferno com o ventre rasgado e os intestinos saindo do ventre, condenação típica dos excessos de sensualidade. Todos estes elementos são importantes para uma reinterpretação do conjunto religioso-histórico formado pelo triângulo bíblico Judaísmo-Cristianismo-Islamismo. Cabe às instituições culturais espíritas, no futuro, analisar estes problemas referentes ao processo da evolução da humanidade terrena. O alfange (*) islâmico guarda ainda os segredos do Crescente Lunar, que podem ainda fazer mais luz do que o Sol sobre a condição humana. 

/… 
(*) Sabre de lâmina curta e larga, com o fio no lado convexo da curva. 


José Herculano Pires, Curso Dinâmico de Espiritismo, XVIII – O Problema das Mistificações, (II de II), 20º fragmento (II de II) desta obra. 
(imagem de contextualização: Somos as aves de fogo por sobre os campos celestes, acrílico de Costa Brites)  

terça-feira, 22 de março de 2022

o grande desconhecido ~


O Problema das Mistificações 

(I de II) 

Durante um século tudo se fez para reduzir o Espiritismo a um caso de truques e malabarismos. A Igreja insistia na tese diabólica. E os cientistas que se atreviam a enfrentar a questão com seriedade eram ridicularizados, ameaçados e perseguidos. Criou-se o preconceito negativo da doutrina e uma imagem falsa de Kardec. Todos os grandes médiuns (i), inclusive Daniel Douglas Home, que nunca foi espírita, eram sistematicamente caluniados. Cientistas eminentes, como Charles RichetWilliam CrookesFriederich ZöllnerRussel WallaceSchrenck-Notzing e tantos outros, incontestáveis luminares da Ciência, foram submetidos a ataques ferozes. Em 1935 Richet morria e os inimigos da verdade, cevados nos proventos da mentira, proclamaram por toda a parte que, com o grande fisiologista francês, Prémio Nobel de Medicina, morrera também a Metapsíquica, a goécia (i) moderna, ciência monstruosa de profanação dos túmulos. Não sabiam os espertalhões que, antes de morrer, a Metapsíquica já se havia reencarnado na Universidade de Duke (i) (EUA) em novo corpo e com o novo nome de Parapsicologia. Os Profs. Joseph Banks Rhine (americano) e William McDougall (inglês) eram os fundadores dessa nova escola científica de pesquisa dos fenómenos espíritas. Com recursos técnicos de pesquisa, aplicando o método quantitativo sob controlo estatístico dos resultados, a Parapsicologia rompeu, em dez anos de lutas e trabalhos exaustivos, todas as barreiras dos preconceitos, da ignorância e dos interesses subalternos e se impôs ao reconhecimento universitário mundial, conseguindo mesmo furar a cortina de ferro do materialismo soviético e despertar o mais vivo interesse na URSS e em toda a sua órbita de influência. 

Diante dessa vitória esmagadora, os adversários mudaram de táctica e passaram também a tratar do assunto para reduzi-lo aos mínimos efeitos possíveis. O problema das fraudes e mistificações (i) morreu por si mesmo, perante as novas possibilidades de controlo absoluto das pesquisas. Esta última filha do Espiritismo, a Parapsicologia, tornou-se disputada por todos como se não tivesse a menor ligação e o mínimo laço de família com a Astronáutica, que se interessou pelos seus poderes e a tivesse transformado em sua valiosa auxiliar na conquista do Cosmos. A Física, ditadora das Ciências (segundo Rhine)confirmou a veracidade das suas proposições audaciosas, descobriu a antimatéria e com ela um novo espaço que se abria para o Outro Mundo. Os russos descobriram o corpo bioplásmico da sobrevivência do homem à morte e as investigações sobre a reencarnação tomaram conta do mundo científico. – Já não é possível negar a verdade espírita. Onde estão os trapaceiros que atavam panos às pernas das mesas e fotografavam essa ridicularia para explicar as famosas mesas girantes (i) como o truque mais grosseiro e indigno que se possa imaginar? Para onde fugiram os teóricos e os fantasmas de papelão e das alucinações visuais? Tudo isso se tornou tão ridículo, perante as evidências científicas da verdade, que hoje somente os pregadores religiosos de arrabalde e os pastores-camelôs (i) da salvação ainda se atrevem a gritar, perante as assembleias de fanáticos, que o Espiritismo é um instrumento do Diabo. 

Mas infelizmente os próprios espíritas inscientes se incumbiram (muitos deles travestidos de cientistas desconhecidos), de atiçar o fogo morto das velhas mistificações, tentando criar um antiespiritismo de orientação materialista-mecabicista (i), carregado de contradições internas e de todas as incongruências características de amadores sem formação. Ao mesmo tempo, extrovertendo as contradições internas, surgiram de mistura com o cientificismo (i) insolente – que considerava Kardec superado e as suas teorias empoeiradas – brotavam do chão, como as heresias do tempo de Tertuliano, estranhas florações de concepção arcaicas, mais velhas que o Reino de Sabá, eivadas de alucinações, loucura varrida e cheiro a enxofre. O Espiritismo regredia, nas mãos dos falsários, uns ingénuos e os outros vaidosos, às pretensões da alquimia medieval. Foi nessa fermentação espúria que explodiu a adulteração, elaborada em segredo e à porta fechada, como os assassinatos a punhal nos templos de Veneza. 

Procuramos dar a este episódio as cores necessárias, com as expressões e as comparações mais adequadas, porque ele é de grande importância na História do Espiritismo, o que vale dizer: na História da Evolução espiritual da Terra. O atentado a Kardec e a Jesus, à Doutrina Espírita e à Verdade Evangélica estava consumado. E nos trinta mil exemplares de O Evangelho Segundo o Espiritismo, que a Federação do Estado vendeu à larga por todo o Brasil, sob o prestígio do seu nome e do seu passado saíram impressos, para que todos lessem e aplaudissem, os esquemas do vandalismo planeado e já iniciado, que abrangiam toda a obra gigantesca da Codificação. E não houve nenhuma erupção vulcânica no meio espírita, contra essa insolência sem limites, a não ser a de um grupo pequenino e pobre. No silêncio mortal que se fez, por todo o Brasil, o único rumor sinistro era o do Véu do Templo, que se rasgava sozinho de alto a baixo, no salão vazio da antiga dignidade espírita. 

Tudo isso resulta das mistificações, não as ingénuas, tolas as mistificações das sessões de materialização, a que se dava tanta importância no passado e que hoje só podem acontecer entre criaturas desactualizadas e incapazes de tratar do assunto. As mistificações realmente perigosas são as doutrinárias e, estas procedem sempre de um conluio de homens e espíritos. Muitas Casas Espíritas começaram a deteriorar-se quando se entregaram à orientação de supostos mestres espirituais. Daí por diante, numa sequência natural, encheram-se de doutrinas próprias, chegando algumas a retirar dos seus cursos as obras de Kardec, fundando escolas meio igrejeiras e meio esotéricas, instituindo-se uma ginástica de passes classificados e manobrados ao estilo das antigas escolas magnéticas, criando ordens especiais do tipo de congregações marianas, chegando ao cúmulo de declarar em artigos de jornais que a sua linha doutrinária não era ortodoxa, mas heterodoxa. Isto queria, dizer que não seguiam a doutrina certa de Kardec, mas uma mistura de doutrinas espiritualistas. Todo o trabalho de Kardec, superando o espiritualismo infuso e confuso do passado para estabelecer uma linha racional de espiritualidade superior, ia por água abaixo. E ninguém percebia isso, aplaudindo aqueles que não conseguiram entender Kardec e por isso passando sobre ele afastavam a sua obra como empecilho, estorvo de velharia secular. Foi o teste inexorável da miséria cultural dos espíritas, do seu completo desconhecimento da doutrina e da sua falta de orientação histórica e filosófica. Nunca os espíritos mistificadores encontraram campo mais vasto, fecundo e propício à deformação total da Doutrina Espírita, para afastá-la da Terra justamente nesta hora grave e aguda de transição por que passamos. 

O problema das mistificações é permanente nos mundos inferiores, como o nosso. As criaturas incultas e grosseiras formam a maioria da população destes mundos. É evidente que a população desencarnada, espiritual, que sobrevive nas esferas circundantes ao planeta é da mesma natureza. Lá, como cá, enxameiam os espíritos vaidosos, sistemáticos (como advertiu Kardec), empenhados em passar as suas ideias aos homens. As ligações por afinidade formam os complôs de homens e espíritos que se julgam capazes de ensinar verdades absolutas. Basta a arrogância visível, embora disfarçada, às vezes, em falsa humildade, para mostrar aos observadores sensatos a que ordem e grau da escala espírita pertencem estas criaturas em conluio. Dos descuidados nada se pode esperar. Deixam-se levar facilmente e servem de instrumentos dóceis a todos os mistificadores. É contra isso que temos de lutar, sustentando firmemente a Obra de Kardec, que na verdade é o cumprimento da promessa do Consolador, a obra do Espírito de Verdade. Esse é um dos pontos-chave da doutrina. Quem não o compreender e não meditar sobre ele estará sempre sujeito a servir de instrumento aos mistificadores do além e do aquém. Restabelecer os ensinamentos do Cristo na sua pureza é a função do Espiritismo. Só a Doutrina Espírita tem condições para isso. Porque a revelação espiritual, confirmada pelas pesquisas e os estudos de Kardec, nos mostram que o Cristo não veio fundar uma religião, mas estabelecer os fundamentos de uma nova civilização. O seu ensino apresenta de forma sintética as três coordenadas doutrinárias: Ciência, Filosofia e Religião, que Kardec desenvolveu, sob a assistência constante do Espírito de Verdade. Há uma tese do Dr. Canuto de Abreu que contraria esta verdade histórica, suficientemente provada nas comunicações inseridas nas Obras Póstumas de Kardec e demonstrada ao longo de toda a sua obra. Os estudiosos têm de se prevenir contra estas ciladas da enorme e tumultuada bibliografia espírita. Por sinal que esta tese já vem marcada pelos seus absurdos e a sua incongruência. 

Vejamos bem a mecânica do processo histórico para podermos compreender a questão. Oliver Lodge e Léon Denis sustentaram veementemente a tese de Kardec, que nos apresenta o Espiritismo como uma síntese conceptual de toda a realidade. Isso quer dizer que a doutrina abrange na sua concepção toda a realidade acessível ao conhecimento humano. As conquistas actuais da Ciência e da Filosofia e as reformas em curso nas igrejas dão inteira razão a esta interpretação do Espiritismo. Coloquemos o problema num esquema esclarecedor, para tornar mais claros cada um dos seus aspectos: 

a) O conhecimento da realidade processa-se no contacto do homem com o mundo. Dos tempos primitivos à Civilização o homem luta sem cessar para dominar a Natureza. Esse domínio só é possível pela descoberta das leis naturais. Mas essa descoberta exige do homem a luta contra si mesmo. Porque o homem é um espírito condicionado pela encarnação num corpo de percepções animais. O homem está sujeito ao sensório, ou seja, à rede dos seus sentidos físicos que sofre o impacto de uma realidade externa e estranha à sua natureza íntima. Os sentidos lhe dão a percepção das coisas, mas ele elabora essa percepção na sua mente, sob a influência de lembranças espirituais (a reminiscência platónica do mundo das ideias) e ao formar no seu espírito os conceitos da realidade, pelo processo de abstracção, ele desenvolve o seu poder imaginativo. Os conceitos são imagens mentais de coisas e seres concretos, mas a essas imagens misturam-se os elementos provenientes dos desejos e anseios do homem. A realidade do homem é diferente da realidade natural concreta, como Descartes demonstrou que a imaginação avança para além da razão. Nesses avanços surgem as deformações do real e a falsificação do conhecimento. Todas as teologias sofreram desse mal e toda a cultura religiosa do mundo se desligou da realidade. As igrejas, as ordens espiritualistas, as irmandades secretas se impregnaram de elementos ilusórios, de pressupostos considerados como verdades fundamentais e assim por diante. A cultura mitológica do tempo de Jesus, que abrangia até mesmo o Judaísmo, aparentemente infenso ao mito, mas de facto envolvido numa mitologia grosseira, estava desligada da realidade, flutuando entre o mundo do espírito e o mundo da matéria. Javé, o Deus de Israel, assemelhava-se ao Zeus grego e ao Júpiter Romano na sua ira, no proteccionismo exclusivo de um povo, no gosto pelas homenagens e as reverências, no prazer de aspirar as carnes assadas e na volúpia pelo sangue de animais e dos homens. 

b) Talvez a única vantagem de Israel sobre os povos da época fosse precisamente a desvantagem do seu excessivo sociocentrismo, o egoísmo racista que atravessou os milénios e se conservou até mesmo na diáspora com a dureza do lendário diamante-Schamil com que Moisés teria escrito na pedra as tábuas da lei. Porque foi dessa centralização do ego que nasceu a possibilidade do aparecimento da primeira nação monoteísta do mundo. Javé não tinha condições, com o seu exclusivismo racista, para se transformar no Deus Único, mas o povo judeu aceitou-o como tal porque isso agradava às suas pretensões de superioridade. O deusinho intrigante e até mesmo alcoviteiro das tribos hebraicas, raivoso, parcial e contraditório, que punia com a lepra os que censuravam o seu amado Moisés e que após o Decálogo autoriza o seu protegido a realizar a bárbara matança do Sinai e revelava um espírito rancoroso de chefe tribal e um exibicionismo arrogante no tracto com os povos estranhos. Ao mesmo tempo, não dispunha de forças para impedir os assaltos de povos mais fortes e aguerridos aos seus pupilos que os egípcios e os babilónios, assírios e romanos conquistavam e submetiam à escravidão. Apesar disso, o povo judeu mostrou-se capaz de enfrentar todas as derrotas e decepções sem perder a confiança no seu Deus. Essa virtude estóica e essa fidelidade interesseira, aumentada por um proteccionismo escandaloso e, a coragem e tenacidade que demonstravam em todas as circunstâncias, deram a Javé uma posição excepcional. Não foi Deus, nesse caso, quem salvou o homem, mas o homem-judeu quem salvou o deusinho fanfarrão que lhe deu a Terra de Canaã, numa doação injusta, ilegal e bárbara, em que os beneficiados tiveram de conquistar o seu presente com batalhas alucinadas. Verdadeiro presente grego, que custou sacrifícios e perdas irreparáveis aos judeus ludibriados. Na verdade, Javé não deu nada, pois foram Moisés e Josué os conquistadores de uma nação tradicional, de estrutura feudal e uma cultura desenvolvida. Uma conquista militar longamente preparada nos quarenta anos de expectativa angustiosa no pequeno deserto do Sinai, com assaltos e pilhagens dos povos vizinhos. A destruição de Canaã foi um dos mais bárbaros genocídios da História. E sobre a terra ensanguentada, juncada de cadáveres, o povo ludibriado construiu os seus monumentos ao deus truculento, erguendo-lhe o Templo de Jerusalém com aras especiais para os sacrifícios de animais que Javé não podia comer, mas de cuja fumaça se alimentava aspirando-a pelas suas narinas divinais. 

Durante dois milénios se considerou o nascimento de Jesus em Israel como uma confirmação da grandeza de Javé. Mas essa grandeza era apenas uma fantasia, pois nem do ponto de vista humano, à luz dos sentimentos de justiça e dos princípios éticos se poderia ressaltar um só gesto de grandeza na atitude brutal de Javé. Hoje, à luz dos princípios espíritas, podemos compreender esta verdade assustadora, marcada a fogo nas páginas da própria Bíblia: 

c) Javé não era mais do que o espírito orientador do clã arrogante e ganancioso de AbraãoIsaac e Jacob na velha cidade mesopotâmica de Ur. Um guia espiritual de inferioridade inegável, deus guerreiro como os de Atenas e Roma, que se serviu da mediunidade espantosa de Moisés e dos Anciãos no deserto para se materializar entre aventureiros rudes e ignorantes, nas fumaradas de ectoplasma que envolviam em nuvens assustadoras a tenda do deserto. Nessas manifestações então inexplicáveis, Javé falava cara a cara com o seu Servo Moisés, dando-lhe o prestígio necessário para a consecução dos seus planos de conquista sanguinária. As pesquisas contemporâneas e actuais sobre esses fenómenos mediúnicos desvendaram o mistério. Os estudos de Max Freedom Long e André Lang, entre as tribos selvagens da Polinésia, revelavam o emprego de mana ou orenda, forças mágicas que Richet explicou racional e cientificamente como emanações orgânicas do corpo do médium e os russos provaram recentemente serem constituídas por um plasma físico formado de partículas atómicas livres. Javé, o Deus Supremo e Único, servia-se apenas dos elementos mágicos empregados pelos povos primitivos nos seus contactos com os espíritos. Esse mesmo elemento, que na sua expansão manifesta cheiro da ozona (i), foi considerado nas manifestações diabólicas da Idade Média como explosões de enxofre. Friederich Zöllner demonstrou, na Universidade de Upsala (Alemanha) que esse elemento, o ectoplasma, pode produzir explosões violentas, raios e relâmpagos, causando destruições como o poder da dinamite. Estas provas científicas modernas podem também explicar as manifestações ígneas assustadoras do Monte Sinai, no momento em que Moisés falava com Javé e este lhe aparecia em forma de silva ardente, segundo o Génese. 

Diante destas verificações, compreende-se a preferência de Jesus por Israel. E o maior milagre de Jesus apresenta-se como sendo a utilização do povo judeu, acostumado a essas manifestações mediúnicas, para o desenvolvimento da sua missão mediúnica de implantação na Terra da concepção do Deus único no plano social, transformando Javé numa imagem alegórica de Deus. A unicidade e universalidade dessa concepção foi obra exclusiva de Jesus, que viu a possibilidade de fazer de Israel o centro de expansão do Monoteísmo, que negou ao mesmo tempo o orgulho sociocêntrico de Israel e a multiplicidade dos deuses mitológicos. Daí as contradições profundas e insanáveis entre o Deus iracundo da Bíblia e o Deus ético, justo, providencial e universalmente paternal dos Evangelhos. A fusão absurda destes deuses antagónicos no Cristianismo explica-se pela incompreensão inicial e a deformação posterior dos ensinamentos de Jesus, através das lutas brutais e sanguinárias entre as seitas cristãs dos primeiros tempos. Os homens recebiam as palavras do Messias na medida das suas posições contraditórias. As condições do tempo eram propícias ao fanatismo e à História imparcial; escrita por pesquisadores universitários independentes, revela-nos o panorama de paixões exacerbadas, no meio de interesses políticos e sociais os mais diversos, que levavam facções violentas aos mais hediondos crimes. O Cristianismo que chegou aos nossos dias, através das igrejas cristãs do Ocidente e do Oriente, é a herança trágica das profanações. Os textos evangélicos falam por si mesmos, particularmente nas epístolas de Paulo e do Livro de Actos dos Apóstolos, do que foram as dissensões no próprio meio apostólico. Nem mesmo a Ressurreição de Cristo, que Paulo explicou de maneira clara e lapidar, chegou a ser compreendida. O culto pneumático, da manifestação dos espíritos, foi suprimido; a simplicidade livre das assembleias cristãs foi injectada de elementos complexos dos cultos religiosos pagãos e judeus; a comunhão memorial do Cristo com os discípulos através do pão e do vinho – praticada nas ceias cristãs e bem antes nos cultos canaanitas – foi transformada em sacramento sofisticado pela magia da transubstanciação; expressões evidentemente alegóricas que se tornaram em dogmas indiscutíveis, motivando morticínios de estarrecer. 

A comparação singela e tocante encerrada na expressão Cordeiro de Deus, referente aos sacrifícios de cordeiros nos altares do Templo para purificação de pecados, foi transformada em mistério sagrado que acobertou muitos crimes nefandos; a ressurreição no corpo espiritual tornou-se ressurreição absurda no corpo carnal, pela maneira como Tomé, o apóstolo dissidente, tocou as chagas de Cristo manifestado mediunicamente, acreditando tocar no corpo material já sepultado; Maria transformou-se numa das muitas virgens mães da Antiguidade de que trata Saint-Yves num livro excomungado; José passou de pai a padrasto numa posição equívoca e Deus perdeu novamente a sua unidade para se dividir no mistério de três pessoas distintas e um só Deus verdadeiro. Só por milagre a definição de JoãoDeus é Amor sobreviveu a esse terremoto com a pureza ingénua de uma flor nos destroços. Nem se compreende que isso tenha sido possível no meio do entrançado de garras e caudas peludas, cheirando a enxofre, que lutavam para escurecer o Céu e ensanguentar a terra. Os erros dos copistas, as adulterações conscientes dos intérpretes sectários, as substituições ingénuas de reformistas ignorantes passaram à margem dessa definição de Deus sem atingi-la. O mais espantoso é que essas interferências criminosas não cessaram até hoje. As pretensas actualizações de linguagem dos velhos textos prosseguem nos nossos dias, com as edições deformadas da Bíblia pelas instituições guardiãs da sua pureza. Criou-se o dogma da Palavra de Deus para o velho livro judaico, digno de respeito histórico, mas as vestais dos textos preferem as palavras dos homens, mutilando, distorcendo, aleijando o verbo divino em cada nova tiragem da Bíblia. Se Deus falou, os homens o corrigem, porque Deus ainda não aprendeu a sujeitar-se aos caprichos formalistas das igrejas. Pois mesmo com essa permanência inquietante da censura humana, as definições de Jogo ainda não foram mascaradas. 

/… 


José Herculano Pires, Curso Dinâmico de Espiritismo, XVIII – O Problema das Mistificações, (I de II), 20º fragmento desta obra. 
(imagem de contextualização: Somos as aves de fogo por sobre os campos celestes, acrílico de Costa Brites)  

segunda-feira, 6 de dezembro de 2021

o grande desconhecido ~


Acção Espírita na Transformação do Mundo ~ 

Três são os elementos fundamentais de que o Espiritismo se serve para transformar o nosso mundo num mundo melhor e mais belo: 

a) O Amor, 
b) O Trabalho, 
c) A Solidariedade. 

[...] 

(III de III) 

III – A Solidariedade 

A solidariedade espírita manifesta-se particularmente no campo da assistência à pobreza, aos doentes e desvalidos. O grande impulso nesse sentido foi dado, desde o início do movimento doutrinário na França, pelo livro O Evangelho Segundo o Espiritismo, de Allan Kardec (i), que trabalhou em silêncio na elaboração dessa obra, sem nada dizer a ninguém. Seleccionou numerosas mensagens psicografadas, procedentes de diversos países em que o Espiritismo já florescia. A sua intenção era oferecer aos espíritas um roteiro para a prática religiosa, baseado no que ele chamava de essência do ensino moral do Cristo. Conhecendo profundamente a História do Cristianismo e as dificuldades com que os originais do Evangelho haviam sido escritos, em épocas e locais diferentes, bem como o problema dos evangelhos apócrifos e das interferências mitológicas nos textos canónicos e as interpolações ocorridas nestes, afastou todos esses elementos espúrios para oferecer aos espíritas uma obra pura, despojada de todos os acessórios comprometedores. O seu trabalho solitário e abnegado deu-nos uma obra-prima, que conta com milhões de exemplares incessantemente reeditados no mundo. Essa obra foi ameaçada com a tentativa de adulteração. Foi o maior atentado que a obra de Kardec já sofreu no mundo, pior que a queima dos seus livros em Barcelona pela Inquisição Espanhola. Muito pior, porque foi um atentado provindo dos próprios espíritas, através de uma instituição doutrinária que tem, por obrigação estatutária, defender, preservar e divulgar a Doutrina Espírita codificada por Kardec. A consequência mais grave desse facto lamentável foi a quebra da solidariedade espírita, a desconfiança e a mágoa provocadas entre velhos companheiros. O ataque das Trevas à vaidade e à ignorância de alguns espíritas invigilantes produziu os efeitos necessários. Sirva o exemplo doloroso para todos os que assumem encargos doutrinários, julgando receber prebendas e consagração. A vaidade excitada leva monges de pedra a se julgarem poderosos na aridez e na solidão dos desertos. 

solidariedade espírita não é apenas interna, entre os adeptos e companheiros. Projecta-se pelo menos em três dimensões: 

a) no plano social geral da comunidade espírita, além dos grupos domésticos e das instituições fechadas; 

b) envolve todas as criaturas vivas, protegendo-as, amparando-as, estimulando-as nas suas lutas pela transcendência, procurando ajudá-las sem nada pedir em troca, nem mesmo a simpatia doutrinária, pois quem ajuda não tem o direito de impor coisa alguma; 

c) eleva-se aos planos superiores para ligar-se a Kardec (i) e à sua obra, a todos os espíritos esclarecidos que lutam pela propagação do Espiritismo no mundo e a Deus e a Jesus na Solidariedade cósmica dos mundos solidários. 

Nessas três dimensões a Solidariedade Espírita realiza, como que apoiada em três poderosas alavancas, o esforço supremo de elevação do mundo, estimulando a transcendência humana. As mentes que ainda não atingiram a compreensão desse processo podem fechar-se em grupos e instituições de tipo igrejeiro, isolando-se nos seus ambientes de furna, onde os espíritos mistificadores (i) e embusteiros se acoitam facilmente. Mas na proporção em que os adeptos assim isolados, ou pelo menos alguns deles, procurarem realmente compreender a doutrina, a situação modifica-se, despertando os indolentes para actividades maiores. 

Todo o trabalho espírita é exigente e penoso, porque faz parte de uma grande batalha – a da Redenção do Mundo, iniciada pelo jovem carpinteiro Jesus, filho de Maria e José. Essa batalha não é a de Deus contra o Diabo, o estranho anjo de luz que se revoltou para fundar o Inferno. Essa ingénua concepção das civilizações agrárias e pastoris teve o seu tempo e a sua função, o seu efeito de controlo em fases de barbárie, mas não passa de uma alegoria inadequada ao nosso tempo. Tudo no Evangelho, como Kardec demonstrou, desde que afastado do clima mitológico, se torna claro e demonstra a posição evidentemente racional do Cristo. O jovem carpinteiro não pertencia à Era Mitológica e encerrou essa era com a sua passagem pela Terra e a propagação dos seus ensinos. O mito vingou-se dele, pois transformou-o também num mito. Por muito tempo, até aos nossos dias, a figura humana de Jesus figurou na nova mitologia, na fase romana do Renascimento Mitológico, em que se destacou a figura do Imperador Juliano, o Apóstata, que depois de aceitar o Cristianismo se apostatou e se empenhou na salvação dos seus deuses antigos. Os resíduos da mentalidade mitológica das civilizações arcaicas, particularmente a Grega e a Romana, reagiram, como era natural, contra o racionalismo cristão. Dessa maneira, na mente das populações bárbaras do Império Romano decadente, Jesus foi transformado num mito da Era Agrária. Os padres e bispos do Cristianismo nascente, todos impregnados pela carga mitológica de um longo passado de ignorância e superstições, não foram capazes de compreender o racionalismo (i) das proposições cristãs. Pelo contrário, cheios de medo e de espanto, contribuíram para a deformação do Cristianismo. Antes e depois da queda do Império, os cristãos fizeram concessões necessárias aos povos bárbaros para absorvê-los no seio da Religião Redentora. Onde quer que os cristãos se impusessem pela força do número e das armas, as igrejas pagãs eram transformadas em templos cristãos, conservando-se cautelosamente as tradições mitológicas mais arraigadas. O exemplo clássico e mais conhecido dessa táctica romana é a Catedral de Notre Dame, em Paris, que ainda guarda nos seus subterrâneos os restos do templo pagão da Deusa Lutécia (i). A Deusa pagã foi conservada no templo, mas com o nome de Nossa Senhora, para que o povo ingénuo aceitasse assim o culto cristão a Maria sob o prestígio secular da deusa pagã. Blavatsky (i) lembra que a Deusa Céres (i), divindade da fecundação e em muitas regiões, mais especificamente, deusa dos cereais, forneceu ao Cristianismo nascente uma das mais conhecidas imagens de Nossa Senhora, em que ela é representada com o manto estrelado do Céu, em pé sobre o globo terreno: Céres cobrindo a Terra com o seu manto celeste para fecundá-la. Esse mesmo processo de transposição acontece hoje no Sincretismo Religioso Afro-Brasileiro e nas formas de sincretismo (i) de outros países da América, onde os ritos e as figuras dos deuses ou santos católicos são absorvidos pelas religiões africanas transladadas pelo tráfico negreiro de escravos para o novo continente. Jesus (virou) Oxalá, Nossa Senhora passou a ser Iemanjá, São Jorge passou a chamar-se Ogum (deus da guerra), São Sebastião passou a chamar-se Oxum (deus da caça e, assim por diante). 

Basta lermos o Livro de Actos dos Apóstolos, no Evangelho e, as epístolas de Paulo (anteriores aos Evangelhos) para termos a confirmação dessa verdade histórica. Na primeira epístola de Paulo aos Coríntios, no tópico referente aos Dons Espirituais, temos uma descrição viva do chamado culto pneumático (do Grego: Pneuma, sopro, espírito), as sessões mediúnicas realizadas pelos primeiros cristãos e nas quais, segundo as pesquisas históricas modernas, que confirmam os dados da Tradição, manifestavam-se espíritos inferiores cheios de ódio a Cristo. Essas manifestações assustadoras foram consideradas como diabólicas, reforçando a imagem tradicional do Diabo na mente ingénua dos adeptos. 

A luta entre o Bem e o Mal é simplesmente o processo dialéctico da evolução. O Mal é a ignorância, o atraso, a superstição. O Bem é o conhecimento, o progresso, a adequação da mente à realidade. Essa é a grande luta das coisas e dos seres, figurada na revolta absurda de Luzbel, o anjo de luz que se entregou à inveja e se converteu em adversário de Deus. Esses símbolos de um passado bárbaro e longínquo ainda prevalecem na Terra como resíduos míticos que o tempo desgasta na proporção em que a Cultura se desenvolve. A Ciência incumbiu-se de ajustar a mente humana à realidade terrena, mas os homens envaideceram-se e negaram-se a si mesmos nas ideias materialistas, colocando-se abaixo de tudo quanto existe. Duro castigo que o orgulho humano ainda não reconheceu. A Ciência afirma que nada se perde na Natureza, tudo se transforma. O homem aprova isso com entusiasmo e ri de si mesmo (sem perceber), pois só ele não subsiste, só ele é pó que reverte ao pó. Essa é a verdadeira queda do homem, que se rebaixa ao pó num mundo em que tudo se eleva incessantemente na direcção dos planos superiores. A tentação simbólica de Jesus no deserto assemelha-se à tentação de Buda na floresta. É a tentação dos homens pelas fascinações dos bens terrenos. Quando o homem se apega à terra (com t minúsculo, porque a terra que pisamos e não o Globo Terreno), ele se nega evoluir e é castigado pelas forças da evolução, que o impelem a sair da sua toca de bicho para atingir a condição existencial da espécie. A lei da existência não é o pó, mas a transcendência. Pode o homem andar de joelhos pelas ruas e as estradas, jejuar, mortificar-se, ciliciar-se quanto quiser, mas com isso não se tornará melhor. Voltará às reencarnações (i) difíceis e dolorosas para aprender, no sofrimento e na decepção, que não se busca Deus rastejando, mas elevando-se no amor e na dedicação aos outros. As práticas religiosas de purificação são egoístas, aumentam a miséria humana e o apego do homem a si mesmo. As tentações que sofremos não vêm do Diabo, mas de nós mesmos, da nossa ignorância e do nosso apego hipnótico aos bens perecíveis da vida terrena. O Diabo é o Bicho-Papão dos adultos, o espantalho dos supersticiosos. Giovanni Papini, escritor católico italiano, contemporâneo, no seu livro Il Diavolo, escandalizou o Vaticano, pregando a conversão do Diabo. Não conseguia admitir esse mito impiedoso na sua teologia. O Padre Teilhard de Chardin, nos seus estudos teológicos, negou a condenação eterna do Diabo. O Espiritismo limita-se a mostrar a natureza mitológica do Diabo e a demonstrar, prática e logicamente, a impossibilidade da queda do Anjo Luzbel. A evolução espiritual é irreversível. O espírito que se elevou ao plano angélico não pode regredir, não pode ter inveja e outros sentimentos humanos. O anjo-mau é uma contradição em si mesmo, pois a Angelitude é a condição divina que o espírito busca e atinge na existência. A luta do homem para transformar o mundo é a luta do homem consigo mesmo, pois é ele quem faz o mundo e, o faz à sua imagem e semelhança. Deus criou a Terra e todos os mundos do espaço, mas deu cada mundo aos homens que os habitam, para que eles aprendam o seu ofício paterno de Criador, tentando criar o mundo humano que lhes compete. É evidente que existe o mundo físico, material, em que nascemos, vivemos e morremos. E é também inegável que, sobre esse mundo físico com os seus materiais, os homens construíram um mundo diferente, feito de artifícios humanos. O mundo material e a sua contraparte espiritual (que os cientistas começam a descobrir como antimatéria) constituem o mundo natural. Mas sobre ambas as partes desse mundo natural os homens constroem os seus mundos factícios. Cada Civilização é um mundo imaginário que o homem constrói com o seu trabalho, modelando com a argila e a pedra os seus sonhos e as suas ilusões. Esses mundos artificiais são o reflexo das ideações humanas na matéria. Nós os criamos, alimentamos, desenvolvemos, dirigimos e matamos. Os mundos bárbaros criados na Terra eram ingénuos; os mundos civilizados apresentam uma gradação que reflecte a evolução humana, indo das civilizações agrárias, fantasiosas e alegóricas até às grandes civilizações orientais, massivas e arrogantes e às Civilizações Teocráticas, míticas e supersticiosas; chegando às Civilizações Científicas, politeístas e pretensiosas, que se transformam em Civilizações Tecnológicas, materialistas e conflituais, que morrerão para dar lugar à Civilização do Espírito, na busca cultural da Transcendência. Segundo Toynbee, mais de vinte grandes civilizações já existiram na Terra. Agora está a surgir aos nossos olhos e sob os nossos pés uma Nova Civilização – a do Espírito – que podemos chamar de Cósmica ou Espiritual. É para preparar o advento dessa Civilização do Espírito que o Espiritismo surgiu. Não adianta querermos fazer do Espiritismo uma religião dogmática, carregada de misticismo tolo ou de materialismo alienante. As novas gerações que se encarnam para realizá-la não temem Deus nem o Diabo, simplesmente confiam nos planos irreversíveis de Deus, que se executam segundo as leis da consciência humana em relação telepática permanente com as entidades angélicas ao serviço de Deus. O Espiritismo é a Plataforma de Deus, aprovada pelos Espíritos Superiores para a transformação e elevação da Terra. 

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José Herculano Pires, Curso Dinâmico de Espiritismo, XVII – Acção Espírita na Transformação do Mundo, (III de III) – A Solidariedade, 19º fragmento desta obra. 
(imagem de contextualização: Somos as aves de fogo por sobre os campos celestes, acrílico de Costa Brites