Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

sexta-feira, 25 de março de 2016

Da sombra do dogma à luz da razão ~


Natureza da Revelação Espírita (XI)

  Não existe nenhuma ciência que tenha saído de todas as peças do cérebro de um homem; todas, sem excepção, são o produto de observações sucessivas, apoiando-se sobre as observações anteriores como sobre um ponto conhecido para se chegar ao desconhecido. 

  Foi assim que os Espíritos procederam para o Espiritismo; é por isso que o seu ensino é gradual; só abordam as questões à medida que os princípios sobre os quais se devem apoiar forem estando suficientemente elaborados e a opinião for estando madura para os assimilar. É até notável que, de todas as vezes que os centros particulares quiseram abordar as questões prematuramente, só obtiveram respostas contraditórias ou inconclusivas. Quando, pelo contrário, o momento favorável chegou, o ensinamento generalizou-se e unificou-se na quase universalidade dos centros.

 Há no entanto entre o andamento do Espiritismo e o das ciências uma diferença capital, que reside no facto destas só terem atingido o ponto a que chegaram após longos intervalos, enquanto ao Espiritismo bastaram alguns anos, se não para atingir o ponto culminante, pelo menos para recolher uma quantidade de observações suficientemente grande para constituir uma doutrina, isto deve-se ao número incontável de Espíritos que, por vontade de Deus, se manifestaram simultaneamente, trazendo cada um deles o contingente dos seus conhecimentos. Daqui resultou que todas as partes da doutrina, em vez de serem elaboradas sucessivamente durante vários séculos, foram-no quase simultaneamente em alguns anos e bastou juntá-las para formar um todo.

 Deus quis que assim fosse, primeiro para que o edifício chegasse mais rapidamente ao cume; em segundo lugar, para que se pudesse, por comparação, ter um controlo por assim dizer imediato e permanente na universalidade do ensino, não tendo cada uma das partes valor e autoridade a não ser através da sua ligação ao conjunto, devendo todas harmonizarem-se, encontrarem o seu lugar na arrumação geral e chegar cada uma a seu tempo.

 Não confiando a um só Espírito o cuidado da promulgação da doutrina, Deus quis além disso que o mais pequeno bem, assim como o maior, entre os Espíritos como entre os homens, levasse a sua pedra ao edifício, a fim de estabelecer entre eles um laço de solidariedade cooperativa que faltou a todas as doutrinas saídas de uma única fonte.

 Por outro lado, cada espírito, tal como cada homem, só possuindo uma soma limitada de conhecimentos, não conseguiria tratar individualmente ex professo as inúmeras questões que o Espiritismo aborda; eis também porque a doutrina, para preencher os objectivos do Criador, não podia ser obra nem de um só Espírito, nem de um só médium; só podia sair dos trabalhos colectivos controlados uns pelos outros. (i)

 Uma última característica da revelação espírita, e que resulta das próprias condições em que é feita, é que, apoiando-se nos factos, ela é e não pode deixar de ser essencialmente progressiva, tal como todas as ciências de observação. Pela sua essência, estabelece uma aliança com a ciência que, sendo a exposição das leis da natureza numa certa ordem de factos, não pode ser contrária à vontade de Deus, autor dessas leis. As descobertas da ciência glorificam Deus em vez de o diminuírem: só destroem o que os homens edificaram sobre as falsas ideias que criaram de Deus.

 Portanto, o Espiritismo estabelece unicamente como princípio absoluto o que é demonstrado com evidência ou que ressalta logicamente da observação. Tocando em todos os ramos da economia social a que dá o apoio das suas próprias descobertas, assimilará sempre todas as doutrinas progressistas, sejam de que ordem forem, atingida a ordem de verdades práticas e libertadas do domínio da utopia, sem o que se suicidaria; deixando de ser o que é; mentiria à sua origem e ao seu objectivo providencial. O Espiritismo, avançando com o progresso, nunca se excederá porque, se novas descobertas lhe demonstrarem que está errado num ponto, modificar-se-á nesse ponto; se uma nona verdade se revela, aceita-a. (ii)

 Qual a utilidade da doutrina moral dos Espíritos, já que não é mais do que a de Cristo? Tem o homem necessidade de uma revelação e não pode encontrar em si mesmo tudo o que lhe é necessário para se governar?

 Do ponto de vista moral, Deus forneceu sem dúvida ao homem um guia na sua consciência que lhe diz: «Não faças aos outros o que não queres que te façam.» A moral natural está certamente inscrita no coração dos homens, mas saberão todos lê-la? Não terão nunca ignorado os seus sábios preceitos? Que fizeram eles da moral de Cristo? Como a praticam esses mesmos que a ensinam? Não se tornou ela letra morta, uma bela teoria, boa para os outros mas não para si mesmo? Censuraríeis um pai por repetir dez vezes, cem vezes, as mesmas indicações aos filhos se eles não as aproveitassem? Por que faria Deus menos que um pai de família? Por que haveria de enviar, de tempos a tempos, mensageiros especiais para o meio dos homens, encarregados de os chamar às suas obrigações e de os recolocar no bom caminho quando se afastam dele, abrindo os olhos da inteligência aos que os fecharam, tal como os homens mais evoluídos enviam missionários para junto dos indígenas e dos bárbaros?

 Os Espíritos não ensinam outra moral que não a de Cristo por não haver nenhuma melhor. Mas então, para que servem os seus ensinamentos, uma vez que apenas dizem o que já sabemos? Poderíamos dizer o mesmo da moral de Cristo que foi ensinada quinhentos anos antes dele por Sócrates e Platão e em termos quase idênticos; de todos os moralistas que repetem a mesma coisa em todos os tons e em todas as formas. Pois bem, os Espíritos vêm muito simplesmente aumentar o número de moralistas, com a diferença que, manifestando-se por todo o lado, fazem-se entender na cabana tão bem como no palácio, tanto pelos ignorantes como pelas pessoas instruídas.

  O que o ensino dos Espíritos acrescenta à moral de Cristo é o conhecimento dos princípios que põem em contacto os mortos e os vivos, que completam as noções vagas que tinha dado da alma, do seu passado e do seu futuro e que sancionam a sua doutrina com as leis da mesma natureza. Com a ajuda do novo saber trazido pelo Espiritismo e pelos Espíritos, o homem compreende a solidariedade que une todos os seres; a caridade e a fraternidade tornam-se uma necessidade social; faz por convicção o que não fazia por obrigação e fá-lo melhor.

 Quando os homens praticarem a moral de Cristo, só então poderão dizer que já não precisam de moralistas encarnados ou não encarnados; mas então, também Deus não lhes enviará mais nenhum.

 /…

(i) Ver, em O Evangelho Segundo o Espiritismo, a Introdução e, na Revista Espírita, edição de Abril de 1864, a p. 90: Autoridade da Doutrina Espírita; Controlo Universal dos Ensinamentos dos Espíritos. (N. do A.)
(ii) Perante declarações tão claras e tão categóricas como as que estão contidas neste capítulo, caem todas as alegações de tendência para o absoluto e para a autocracia dos princípios, todas as falsas assimilações que pessoas preconceituosas ou mal informadas atribuem à doutrina. De resto, estas declarações não são novas; já as repetimos suficientes vezes nos nossos artigos para que não fique alguma dúvida a este respeito. Estabelecem-nos além disso o nosso verdadeiro papel, o único que ambicionamos: o de trabalhadores. (N. do A.)



ALLAN KARDEC, A GÉNESE – Os Milagres e as Profecias Segundo o Espiritismo, Capítulo I NATUREZA DA REVELAÇÃO ESPÍRITA números de 54 a 56 (XI), 13º fragmento da obra. Tradução portuguesa de Maria Manuel Tinoco, Editores Livros de Vida.
(imagem de contextualização: Diógenes e os pássaros de pedra, pintura em acrílico de Costa Brites)

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