Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

sexta-feira, 30 de agosto de 2013

O Mundo Invisível e a Guerra ~


VII
O Dia de Finados na Trincheira

|2 de novembro de 1916|

   O céu está sombrio e uma imensa tristeza envolve a Terra. As almas dos que caíram lutando pela pátria pairam no espaço em incontáveis legiões.

   Nas casas solitárias, mulheres em luto pranteiam os desaparecidos.

   Os órfãos da guerra, cujos pais repousam debaixo da terra, nas planícies da região de Flandres ou nos bosques da Lorraine, vão lentamente para os cemitérios, para ornar de flores os túmulos das mães que os sofrimentos e os desgostos mataram.

   Bem ao longe, na trincheira, um jovem soldado vigia atentamente e lança os olhos em seu derredor.

   As linhas inimigas estão silenciosas e o canhão já se calou. A calma da natureza sucedeu ao tumulto da peleja e às conversas ruidosas dos acampamentos da retaguarda, porque aqui o perigo fez emudecer todas as conversações inúteis. A perspectiva da morte impõe a todos um grave recolhimento e os profundos pensamentos sobem dos corações aos cérebros.

   Aquele jovem soldado é um intelectual, um sensitivo e um espírita, e faz um ano que está na linha de frente, entrando em vários combates e vendo os colegas mortos pela metralha.

   De que depende a sua própria vida? Ela não é como um argueiro, uma palha, no meio da tormenta? Todavia, ele sabe que está sobre a sua cabeça uma protecção oculta e percebe que uma força desconhecida o ampara.

   Como todos aqueles cuja vida interior é intensa, agrada-lhe ficar só e a solidão é para ele a grande escola inspiradora, a causa das revelações, e nela se concretiza a comunhão de sua alma com Deus. Complacentes, os seus olhos repousam sobre a floresta próxima, que o Outono vestiu com as suas tintas de ouro e de púrpura.

   Até ele chega a canção de um regato, as colinas que cercam o horizonte desaparecem no pálido clarão do poente. Desse espectáculo da natureza emana uma serena paz que nada, nem o pensamento do perigo nem o receio da morte, consegue perturbar.

   Entre as cruentas visões da guerra, é bastante uma hora de contemplação para lembrar que a soberana beleza da vida e a eterna beleza do mundo superam todas as hecatombes humanas e que as guerras são impotentes para destruir qualquer parcela de embrião da alma.

   A noite se estende sobre a planície e, entre as nuvens, as estrelas projectam sobre a Terra os seus raios trémulos como provas de amor, testemunhos da imensa fraternidade que liga todos os seres e todos os mundos.

   Com a paz, a confiança e a esperança atingem o seu coração. Certamente ele saberá sempre cumprir o seu dever, batendo-se em defesa da pátria invadida, por cujo amor suportará todas as privações e trabalhos, porém as violências da guerra não lhe abafarão o sentimento superior da ordem e da harmonia universais.

   Assim como para os celtas (seus antepassados), os cadáveres estendidos pelo chão não são mais para eles, do que corpos despedaçados que a terra se prepara para receber no seu seio maternal.

   No mais profundo recesso de cada um de nós permanece um princípio imperecível contra o qual nada podem fazer todos os furores do ódio e todos os assaltos da força bruta.

   É dali, desse santuário íntimo, que renascerá, após a borrasca, o anseio humano pela justiça, a piedade e a bondade.
/…



LÉON DENIS, O Mundo Invisível e a Guerra, VII –  O Dia de Finados na Trincheira, 1 de 2, 20º fragmento da obra.
(imagem: Tanque de guerra britânico capturado pelos Alemães, durante a Primeira Guerra Mundial)

quarta-feira, 21 de agosto de 2013

Nas garras do pensamento crítico ~


Interpretação do homem ~

   O homem, segundo o materialismo, seja ele mecanicista dialéctico, é um animal pensante. Para Marx, e portanto para o dialéctico, é ainda o resultado da acção simultânea do trabalho, sobre ele e a natureza. Agindo sobre o meio em que vive, trabalhando-o, ele se modifica a si mesmo. Essa concepção materialista do homem não se enquadraria na doutrina de nenhuma das religiões corporificadas em igrejas. O Espiritismo, entretanto, não a contradiz. Apenas a amplia, ensinando que o princípio inteligente, no homem como no animal, independe do corpo. E por isso é condenado e combatido, ao mesmo tempo e por todos os lados, pelos religiosos e pelos materialistas.

   No capítulo III de O Livro dos Espíritos, de Allan Kardec, encontramos esta definição: “O trabalho é lei da natureza, por isso que constitui uma necessidade, e a civilização obriga o homem a trabalhar mais porque lhe aumenta as necessidades e os gozos.” Logo adiante: “Sem o trabalho, o homem permaneceria sempre na infância, quanto à inteligência.”

   A lei de causa e efeito é o princípio fundamental da doutrina, a evolução constitui a sua própria essência. Por outro lado, não se estruturou o Espiritismo através de formulações hipotéticas. Todo o seu edifício doutrinário se assenta na observação e na experimentação. Charles Richet, que condenava a “credulidade excessiva” de Kardec, já o notara, no TraitéDialéctico por natureza, em essência e pelos métodos que emprega, o Espiritismo, se bem estudado, revela-se o legítimo e natural herdeiro do título a que se candidata o materialismo dialéctico: síntese do conhecimento.

   Realmente, o Espiritismo, diante dos mundos em litígio do materialismo e do espiritualismo, não peca por exclusão, não comete o pecado proudhoniano ou marxista da escolha. Na sua estrutura encontraremos aquelas duas concepções, não apenas conjugadas ou ajustadas, mas superadas na transfiguração de um novo corpo – a síntese –, em que a ciência, a filosofia e a religião, as três províncias antagónicas do conhecimento, aparecem encadeadas no verdadeiro “processus” da mais pura dialéctica, uma resultando da outra.

   No Anti-DühringEngels lembra as origens do marxismo e expõe a doutrina como a sequência lógica destas fases: a filosofia, a economia-política e o socialismo. No Espiritismo, a sequência se tresdobra na ciência, na filosofia e na religião. Partindo da observação e da análise dos fenómenos materiais, de natureza supranormal, criamos a filosofia do ser, e atingimos, logo a seguir, a religião. Esta, porém, não se traduz na organização de uma nova igreja, de um novo culto, de um novo “suborno da divindade”. Nem se traduz no antropomorfismo socialista, erguido no altar da produção. Mas é, ao mesmo tempo, a comunhão de bens, de corações e de espíritos, pela qual todos ansiamos, espiritualistas e materialistas, para a construção do mundo melhor amanhã.

   Porque o homem, para o Espiritismo, não é apenas “o último anel da vida animal na terra” (A Gênese, Kardec), nem o produto quase exclusivo da acção simultânea do trabalho; mas também aquele ser que se mostra nos fenómenos de materialização, de aparição, de visão, de voz directa, de incorporação, de psicografia ou de tiptologia, para demonstrar “aos que ficaram” que ele não se extinguiu com a morte, e que o seu conteúdo moral continua a viver e a se desenvolver indefinidamente, na multiplicidade das formas, sem prejuízo da identidade substancial.
/…



José Herculano Pires, Espiritismo Dialéctico, Interpretação do homem, 10º fragmento da obra.
(imagem de ilustração: Vi o caçador levantar o arco-íris, pintura em acrílico de Costa Brites)

sexta-feira, 16 de agosto de 2013

a pedra e o joio ~


Autocriação do Espírito

   O livro do confrade Guimarães Andrade, A Teoria Corpuscular do Espírito, vale como um exemplo da facilidade com que os críticos e reformadores de Allan Kardec se perdem nas próprias contradições. Além da premissa falsa em que se baseia, desenvolve o falso silogismo de que os conceitos espíritas, sendo mecanicistas, devem modificar-se, adaptando-se aos princípios quânticos e relativistas da física moderna. A conclusão não podia ser verdadeira, como não é, pois representa a própria negação do espírito.

   Acusando Kardec e os Espíritos que o orientaram de se utilizarem de conceitos antiquados, o Sr. Guimarães Andrade acaba fazendo a mesma coisa. Mas, se Kardec empregava os conceitos científicos da época num sentido analógico, apresentando-nos uma visão do mundo e da vida que nada tem de mecanicista, o autor de A Teoria Corpuscular do Espírito faz o contrário. Tenta servir-se de conceitos relativistas para nos oferecer uma concepção mecânica do universo, da vida, do pensamento e do próprio espírito.

   Em Kardec, como vemos em O Livro dos Espíritos, a natureza do espírito é definida como inteiramente diversa da natureza da matéria. O Universo se compõe de três elementos essenciais: Deus, Espírito e Matéria. Não é possível falar-se em mecanicismo, quando se apresenta essa trilogia. Na teoria corpuscular, pelo contrário, o Universo se compõe apenas de matéria. Deus está ausente, e o espírito não é mais do que uma consequência das acções e reacções materiais.

   Vejamos o que é o espírito na teoria corpuscular. O Sr. Guimarães Andrade refere-se a dois tipos de arranjos atómicos: as formações espirituais simples e as formações espirituais compostas. As primeiras se constituem da seguinte maneira: dois corpúsculos, o “mentalton” e o “intelecton”, se juntam, formando um núcleo que se denomina “mónaton”, e em torno dele gira um “bion”. As segundas, “pela combinação sucessiva de mónatons com mentaltons, formando átomos espirituais cada vez mais espiritualizados”. (Suprimimos os parênteses explicativos do texto, para maior clareza da nossa exposição. O leitor encontrará esse trecho nas paginas 43 e 44 do livro). Esclarece o autor: “Assim como os átomos materiais têm afinidade entre si, capacitando-os a se combinarem, a fim de formarem moléculas, as formações espirituais simples também poderão originar combinações, as quais levarão o nome de formações espirituais compostas”.

   Temos aí o segredo atómico da formação do espírito, segredo que os próprios Espíritos orientadores de Kardec declararam desconhecer. A seguir, o Sr. Guimarães Andrade completa o quadro, afirmando: “A evolução do espírito resulta do crescimento em complexidade de uma formação espiritual composta, e é processada, inicialmente, através da vida no mundo físico, onde as experiências adquiridas nos vários ciclos de reencarnações sucessivas tornam possível a constituição de formações espirituais cada vez mais complexas”. (Isso na página 45 do livro).

   Como vemos, o espírito se forma na matéria e nela se desenvolve, por um processo puramente mecânico. Depois do arranjo-atómico de que resultou a constituição do espírito, o autor explica o processo de desenvolvimento da inteligência. Esse processo é um novo arranjo mecânico. As sensações produzidas nos átomos pela vida material formam o que ele chama de “rudimentaríssimo rosário de percepções puntiformes”. São linhas de pontos sensoriais, que deverão juntar-se mais tarde para formarem tecidos sensoriais. Dessa tecelagem vai nascer a inteligência. O autor descobre que o homem é o mais perfeito psicossoma da terra, e que o espírito se cria a si mesmo.

   O problema da autocriação espiritual é proposto na página oitenta do livro, quando o autor afirma ser o espírito “causa e efeito de si mesmo”. Para que assim seja, é claro que só podemos estar no plano do mecanicismo, que ele condenou em Kardec, como um dos motivos fundamentais da sua tentativa de reforma doutrinária. Arranjo de átomos, quanto à estrutura, e arranjo de sensações e percepções, no plano mental, o espírito é uma construção casual, semelhante à do atomismo grego. E dois elementos antiquados aí se reúnem: o empirismo filosófico e o elementarismo psicológico, ambos superados, que o autor procura juntar ao relativismo científico da física einsteiniana.

   Feito esse arranjo, o Sr. Guimarães Andrade enquadra o psicossoma na teoria do “continuum espaço-tempo”, de Einstein. Refere-se à quarta-dimensão, chamando os espíritos, quando livres do corpo material, de criaturas quadridimensionais. Mas acontece que a quarta-dimensão, para Einstein, é o tempo, que nada mais é senão uma continuação do espaço. As criaturas quadridimensionais, portanto, não são espirituais, no sentido espírita do termo, mas espaço-temporais, ou mais simplesmente, materiais, no sentido físico do termo. O hiperespaço em que os espíritos vivem é o próprio mundo físico no seu aspecto quadridimensional.

   Longe, portanto, de representar uma superação conceptual da doutrina espírita, na sua formulação kardeciana, a teoria corpuscular do espírito representa um retrocesso. Reduz o espírito à matéria e condiciona o seu aparecimento e o seu desenvolvimento às influências materiais. Além disso, a teoria se apresenta como um arranjo sincrético, uma mistura de concepções diversas, às vezes até contraditórias. Falta-lhe orientação lógica. Empirismo filosófico, elementarismo psicológico, atomismo grego, monadismo leibniziano, misticismo induísta, espiritismo kardeciano e relativismo científico moderno, são misturados ao sabor das conveniências.

   Foi por isso que dissemos, na crónica anterior, que consideramos o livro do confrade Guimarães Andrade prejudicial ao movimento doutrinário. Dando-se ares de novidade, a teoria corpuscular do espírito pode impor-se aos confrades desprevenidos, e particularmente aos “novidadeiros”, como o último passo da ciência espírita. Entretanto, quando alguém melhor informado das questões científicas e filosóficas da actualidade examinar o assunto, terá forçosamente de concluir que os espíritas não conseguem acertar o passo com a evolução do conhecimento. Se ficarmos, porém, com Kardec, estaremos avançando além dessa evolução, pois O Livro dos Espíritos abre perspectivas para a ciência moderna, em vez de ter sido ultrapassado por ela.
/…


José Herculano Pires – A Pedra e o Joio, Crítica à Teoria Corpuscular do Espírito. Autocriação do Espírito, 14º fragmento da obra.
(imagem: As Colhedoras de Grãos, pintura a óleo por Jean-François Millet)

sexta-feira, 9 de agosto de 2013

| o grande enigma ~


Unidade substancial do | Universo

O Universo é uno, posto que triplo na aparência. Espírito, Força e Matéria não parecem ser mais que os modos, os três estados de uma substância imutável em seu princípio, variável ao infinito em suas manifestações.

O Universo vive e respira, animado por duas correntes poderosas: a absorção e a difusão.

Por essa expansão, por esse sopro imenso, Deus, o Ser dos seres, a Alma do Universo, cria. Por seu amor, atrai a si. As vibrações do seu pensamento e da sua vontade, fontes primeiras de todas as forças cósmicas, movem o Universo e geram a Vida.

A Matéria, dissemos, é um modo, uma forma transitória da substância universal. Ela escapa à análise e desaparece sob a objectiva dos microscópios, para se transmudar em radiações subtis. Não tem existência própria; as filosofias que a tomam por base repousam sobre uma aparência, uma espécie de ilusão. (I)

A unidade do Universo, por muito tempo negada ou incompreendida, começa a ser entrevista pela Ciência. Há duas décadas, W. Crookes, no curso de estudos sobre a materialização dos Espíritos, descobria o quarto estado da Matéria, o estado radiante, e essa descoberta, por suas consequências, ia destruir todas as velhas teorias clássicas sobre o assunto.

Estas estabeleciam distinção entre a Matéria e a Força. Sabemos agora que ambas se confundem. Sob a acção do calor, a matéria mais grosseira se transforma em fluidos; os fluidos, por sua vez, se reduzem a um elemento mais subtil, que escapa aos nossos sentidos. Toda matéria pode ser transformada em força e toda força se condensa em matéria, percorrendo assim um círculo incessante. (II)

As experiências de Crookes prosseguiram e foram confirmadas por uma legião de investigadores. O mais célebre, Roentgen, denominou raios X as irradiações emanadas das ampolas de vidro; têm eles a propriedade de atravessar a maior parte dos corpos opacos e permitem perceber e fotografar o invisível aos nossos olhos.

Pouco depois, o Sr. Becquerel demonstrava as propriedades que têm certos metais de emitir irradiações obscuras, que penetram a matéria mais densa, quais os raios Roentgen, e impressionam as placas fotográficas através das lâminas metálicas.

O rádium, descoberto pelo Sr. Curie, produz calor e luz, de maneira contínua, sem se esgotar de modo sensível. Os corpos submetidos à sua acção se tornam por sua vez irradiantes. Posto que a quantidade de energia irradiada por esse metal seja considerável, a perda de substância material que lhe corresponde é quase nula. W. Crookes calculou que um século seria necessário para a dissociação de um grama de rádium. (III) Mais ainda: as engenhosas descobertas de G. Le Bom (IV) provaram que as irradiações são uma propriedade geral de todos os corpos. A matéria pode dissociar-se indefinidamente; ela é energia concretizada. Assim, a teoria do átomo indivisível, que há dois milénios servia de base à Física e à Química, desmorona-se e, com ela, as distinções clássicas entre o ponderável e o imponderável. (V) A soberania da Matéria, que se dizia absoluta, eterna, teve fim.

É preciso, pois, reconhecer que o Universo não é tal como parecia aos nossos fracos sentidos. O mundo físico constitui ínfima parte dele. Fora do círculo de nossas percepções existe uma infinidade de forças e de formas subtis que a Ciência ignorou até hoje. O domínio do invisível é muito mais vasto e mais rico que o do mundo visível. Em sua análise dos elementos que constituem o Universo, a Ciência tem errado durante séculos, e agora lhe é necessário destruir o que tão penosamente edificou. O dogma científico da unidade irredutível do átomo, desmoronando-se, arrasta todas as teorias materialistas. A existência dos fluidos, afirmada pelos Espíritos há meio século – o que lhes valeu tantos sarcasmos da parte dos sábios oficiais –, está estabelecida, doravante, pela experimentação, de maneira rigorosa.

Os seres vivos, por sua parte, emitem irradiações de naturezas diferentes. Eflúvios humanos, variando de forma e de intensidade sob a acção da vontade, impregnam placas com misteriosa luz. Esses influxos, quer nervosos, quer psíquicos, conhecidos desde muito pelos magnetizadores e espíritas, mas negados pela Ciência, são autenticados hoje pelos fisiologistas, no grau de realidade irrecusável. Por esse caminho é encontrado o princípio da telepatia. As volições do pensamento, as projecções da vontade, transmitem-se através do Espaço, quais as vibrações do som e as ondulações da luz, e vão impressionar organismos em simpatia com o do emitente. As Almas em afinidade de pensamento e de sentimento podem trocar seus eflúvios, em todas as distâncias, de igual maneira que os astros permutam, através dos abismos do Espaço, seus raios trémulos. Descobrimos ainda aí o segredo das ardentes simpatias ou das invencíveis repulsões que certos homens sentem uns pelos outros, à primeira vista.

A maior parte dos problemas psicológicos – sugestão, comunicação à distância, acções e reacções ocultas, visão através de obstáculos – encontram aí a sua explicação. Estamos ainda na aurora do verdadeiro conhecimento, mas o campo das pesquisas se acha largamente aberto e a Ciência vai marchar, de conquista em conquista, em senda rica de surpresas. O mundo invisível se revela a própria base do Universo, a fonte eterna das energias físicas e vitais que animam o Cosmos.

Rui assim o principal argumento daqueles que negam a possibilidade da existência dos Espíritos, dos que não podiam conceber a vida invisível, por falta de um substrato, de uma substância que escapa aos nossos sentidos. Ora, nós encontramos, conjuntamente, no mundo dos imponderáveis, os elementos constitutivos da vida desses seres e as forças que lhes são necessárias para manifestar sua existência.

Os fenómenos espíritas, de toda ordem, explicam-se pelo facto de que um dispêndio considerável de energia pode produzir-se sem dispêndio aparente de matéria. Os transportes, a desagregação e a reconstituição espontâneos de objectos, em câmaras fechadas; os casos de levitação; a passagem dos Espíritos através dos corpos sólidos; aparições e materializações, que provocaram tanta admiração e suscitaram tantos sarcasmos; tudo isso se torna fácil de compreender, desde que se conheça o jogo das forças e dos elementos em acção nesses fenómenos. De tal dissociação de matéria, de que fala G. Le Bon e que o homem é ainda impotente para produzir, os Espíritos possuem, de há muito, as regras e as leis. A aplicação dos raios X não explica também o fenómeno da dupla vista dos médiuns e o da fotografia espírita? Com efeito, se as placas podem ser influenciadas por certos raios obscuros, por diversas irradiações de matéria imponderável, que penetram os corpos opacos, maior e mais forte razão existe para que os fluidos quintessenciados do envoltório dos Espíritos possam, em determinadas condições, impressionar a retina dos videntes, aparelho mais delicado e mais complexo que a placa de vidro.

É assim que o Espiritismo se fortalece cada dia, pela aquisição de argumentos tirados das descobertas da Ciência, e que acabarão por abalar os mais endurecidos cépticos.

/…

(I) “A matéria, diz W. Crookes, é um modo do movimento.” (Proc. Roy. Soc., nº 205, pág. 472.).
(II) “Toda matéria – diz Crookes – tornará a passar pelo estado etéreo de onde veio.” (Discurso no Congresso de Química, de Berlim, 1901).
(III) Vide G. Le Bon, Revue Scientifique, 24 de Outubro de 1903, pág. 518.
(IV) Vide Revue Scientifique, 17, 24 e 31 de Outubro de 1903.
(V) Desde séculos, afirmava-se e defendia-se a teoria dos átomos, sem que a conhecessem perfeitamente. Berthelot a qualifica de “romance engenhoso e subtil”. (Berthelot – La Synthese Chimique, 1876, p. 164.) Por aí se vê – diz Le Bon – que certos dogmas científicos não têm mais consistência que as divindades dos antigos tempos.



Léon Denis, O Grande Enigma, Primeira parte Deus e o Universo, II Unidade substancial do Universo 1 de 2, 9º fragmento da obra.
(imagem: As majestosas e violentas palavras dos poemas, pintura em acrílico de Costa Brites)

quinta-feira, 1 de agosto de 2013

Victor Hugo e o invisível ~


A EXPERIÊNCIA ESPÍRITA DE VICTOR HUGO

   Victor Hugo possuía fé no plano divino do Universo, razão porque baseava o seu lirismo sobre essa profunda convicção. Confiava na lei do progresso e admitia que tudo evolui apesar das incertezas humanas. Quando o homem, orgulhosamente, se considera "o fim e a meta do universo", o poeta exclama: ''Acreditas que esta vida universal, que vai da rosa à árvore, da árvore ao animal, que se eleva insensivelmente da pedra a ti, detem-se ante o declive do abismo do homem? Não, prossegue invencível e admirável, penetra no invisível e no imponderável, desvanece-se para ti, plena do azul de um mundo deslumbrante, penetra entre seres que estão em volta do homem e outros que estão longe dele, os espíritos puros, anjos, formados de raios, como o homem está formado de instintos. Prossegue através de céus sempre elevados, sobe escalando as estrelas; dos demónios desencadeados, sobe até aos seres alados, ao espírito astro como o sol arcanjo; une, estreitando milhões de léguas, os grupos de constelações com as legiões azuis; povoa o alto, as bordas e o centro, e em todas as profundezas está em Deus".

   A visão cósmica que possuía sobre o homem faz-nos recordar este maravilhoso texto mediúnico: "Habitante do espaço, fénix que renasce da matéria, peregrino dos mundos nos quais deixa um ser que foi e é, conta suas horas por períodos de vida. Guerreiro incansável, veste-se de organismo para lutar e acrescentar aos seus domínios mais verdade e ao seu poder mais luz" |*

   A primeira sessão mediúnica de Victor Hugo foi publicada por Gustavo Simón (ver o seu livro "Les tables tournantes de Jersey", editorial Louis Conard, Paris), na qual se manifestou a sua filha Leopoldina, há pouco falecida em naufrágio, e lavrou a correspondente acta o célebre poeta e dramaturgo Augusto Vacquerie. Eis o relato:

   "Quando se falava das mesas girantes nós duvidávamos. Havíamos feito experiências com elas, mas sem êxito certo. Víamos, sobretudo, na atenção que em todas as partes se dedicava a estes fenómenos uma armadilha da polícia francesa para distrair o espírito público das vergonhas do governo. Assim estávamos quando Mme. de Girardin veio a Jersey para visitar Victor Hugo. Chegou na terça-feira, 6 de setembro de 1853.

   "Falou-nos das mesas. Não giravam, apenas: falavam também. Convencionava-se com elas que as batidas que dessem seriam as letras do alfabeto e que se escreveria a letra na qual se detivessem. Assim se obtinham letra por letra e palavra por palavra, frases e páginas inteiras. Vimos nisto um paradoxo do génio encantador de Mme. de Girardin.

   Tanto é que, na quarta-feira, enquanto tratava de falar à mesa com Victor Hugo, na sala de jantar, nós permanecíamos no salão. A mesa não falou. Mme. de Girardin disse que o fracasso se devia a que a mesa era quadrada e que se precisava de uma redonda. Não a tínhamos. Na quinta, ela mesma trouxe uma pequena mesa de três pés que havia comprado em Saint Hélier, num bazar de jogos. No dia seguinte, voltou a experimentar sem êxito. Eu, particularmente, acreditava tão pouco nas mesas que fui deitar-me enquanto eles se punham a experimentar. No sábado, Victor Hugo e Mme. de Girardin jantaram na casa de um senhor de Jersey, M. Gordfray. Mme. de Girardin voltou a experimentar, inutilmente. No domingo à noite eis o que aconteceu.

ACTA

"Presentes Madame de Girardin, Madame Victor Hugo, Victor Hugo, Carlos Hugo, Francisco Victor Hugo, general Le Fló, M. de Trevenueu, Augusto Vacquerie.

"Mme. de Girardin e Augusto Vacquerie põem-se à mesa, colocando a mesinha redonda em cima de uma mesa grande quadrada. Ao fim de alguns minutos a mesa estremece.

"Mme. de Girardin: Quem és? (A mesa levanta um pé e não o abaixa.)

"Mme. de Girardin: Existe algo que te preocupa? Se for assim, dá uma batida, se não, duas batidas. (A mesa dá uma batida.)

"Mme. de Girardin: O quê?

"- Losango.

"(De facto, estávamos sentados formando um losango, sentados em ambos os lados de um ângulo da mesa grande.)

"(A mesa se agita, vai e vem, recusa-se a falar. Eu me separo dela. O general Le Fló ocupa meu lugar. Na mesa, Carlos Hugo e o general Le Fló.)

"General Le Fló: Diga em que penso.

"Mme. de Girardin, ao mesmo tempo: Quem és?

"- Filha.

"(O general Le Fló não pensava em sua filha. Eu penso em meu sobrinho Ernesto e pergunto:)

"- Em que penso?

"- Morta.

"Mme. de Girardin, bastante emocionada: -Filha morta?

"Eu volto a dizer:

''- Em que penso?

"- Morta.

"(Todos pensam na filha que Victor Hugo perdera.)

"Mme. de Girardin: Quem és?

''- Ame Soror.

"(Mme. de Girardin havia perdido a irmã. A mesa disse soror em latim para dizer que era irmã de um homem?)

"General Le Fló: Carlos Hugo e eu, que estamos à mesa, perdemos uma irmã cada um. De quem és irmã?

"- Dúvida.

"General Le Fló: Teu país?

"- França.

"General Le Fló: Tua cidade?

"(Nenhuma resposta. Todos sentimos a presença da morte. Todo mundo chora.)

"Victor Hugo: És feliz?

"- Sim.

"Victor Hugo: Onde estás?

"- Luz.

"Victor Hugo: O que se deve fazer para ir a ti?

''- Amar.

"(A partir deste momento, em que todos estamos emocionados, a mesa, como se se visse compreendida, já não vacila mais. Responde imediatamente ao ser interrogada. Quando demoramos para fazer-lhe uma pergunta, agita-se para a direita e esquerda.)

"Mme. de Girardin: Quem te envia?

''- Bom Deus.

"Mme. de Girardin, muito emocionada: Fala tu mesma, tens algo a dizer?

"- Sofri rumo ao outro mundo.

"Eu não estava absolutamente convencido. Não é que acreditasse precisamente que Mme. de Girardin nos enganava e dava os golpes voluntariamente. Mas eu me dizia que a força do desejo e a tensão do espírito podiam dar à sua mão uma pressão involuntária.

"Fomos buscar outra mesa, sobre a qual colocamos a pequena. Mme. de Girardin e Carlos Hugo colocam-se de maneira que cortam a mesa-suporte em ângulo recto. A mesa se agita.

"General Le Fló: Diz-me em que penso.

"- Fidelidade.

"(O general Le Fló pensava em sua mulher. Eu estava algo menos convencido. Parecia-me tão engenhoso e espiritual responder 'fidelidade' a um marido que pensa em sua mulher, que atribuía a resposta à Mme. de Girardin.)

"Victor Hugo escreve uma palavra em papel e o coloca, fechado, em cima da mesa.

"Augusto Vacquerie: Podes dizer-me o nome escrito aí dentro?

"- Não.

"Victor Hugo: Por quê?

"- Papel.

"Todas as respostas começavam a nos estranhar um pouco. Para estar mais seguro que não era Mme. de Girardin quem actuava, solicito colocar-me à mesa com Carlos Hugo. Ponho-me com ele. A mesa se move. Penso em um nome e digo:

"- Qual é o nome em que penso?

"- Hugo.

"De facto, este era o nome. Neste momento comecei a crer. Fazia alguns instantes que Mme. De Girardin estava emocionada e pedia-nos que não perdêssemos tempo com perguntas pueris. Pressentia uma grande aparição, mas nós, que duvidávamos, permanecíamos a desafiar a mesa a que respondesse a palavras escritas ou pensadas.

"Mme. de Girardin: Engana-nos?

"- Sim.

"Mme. de Girardin: Por quê?

"- Absurdo.

"Mme. de Girardin: Pois bem, fala tu mesmo.

"Importuna.

"Mme. de Girardin: Quem te importuna?

"- Um só.

"Mme. de Girardin: Aponte-o.

"- Ruivo.

"De facto, o Sr. de Trévenueu, muito ruivo, era o mais incrédulo de nós.

"Mme. de Girardin: Deseja que saia?

"- Não.

"Victor Hugo: Vês o sofrimento dos que te amam?

"- Sim.

"Mme. de Girardin: Sofrerão muito tempo?

"- Não.

"Mme. de Girardin: Voltarão rápido à França?

"(Não responde.)

"Victor Hugo: Depende deles para que possam voltar?

"- Não.

"Victor Hugo: Mas, voltarás?

"- Sim.

"Victor Hugo: Breve?

"- Sim.

"(Encerrado a uma e meia da madrugada.) Nota: Tudo o que antecede foi escrito imediatamente após a sessão por Augusto Vacquerie. A partir deste dia decidimos escrever as respostas da mesa no momento em que se produziam. Todas as actas seguintes foram recolhidas durante o transcurso das próprias sessões.''
/…

|* Daniel Suárez Artazu: Marietta y Estrella. Páginas de duas existências



Humberto MariottiVictor Hugo Espírita, A Experiência Espírita de Victor Hugo, 6º fragmento da obra
(imagem: Criança com uma boneca, pintura de Anne-Louis GIRODET-TRIOSON)