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sexta-feira, 16 de agosto de 2013

a pedra e o joio ~


Autocriação do Espírito

   O livro do confrade Guimarães Andrade, A Teoria Corpuscular do Espírito, vale como um exemplo da facilidade com que os críticos e reformadores de Allan Kardec se perdem nas próprias contradições. Além da premissa falsa em que se baseia, desenvolve o falso silogismo de que os conceitos espíritas, sendo mecanicistas, devem modificar-se, adaptando-se aos princípios quânticos e relativistas da física moderna. A conclusão não podia ser verdadeira, como não é, pois representa a própria negação do espírito.

   Acusando Kardec e os Espíritos que o orientaram de se utilizarem de conceitos antiquados, o Sr. Guimarães Andrade acaba fazendo a mesma coisa. Mas, se Kardec empregava os conceitos científicos da época num sentido analógico, apresentando-nos uma visão do mundo e da vida que nada tem de mecanicista, o autor de A Teoria Corpuscular do Espírito faz o contrário. Tenta servir-se de conceitos relativistas para nos oferecer uma concepção mecânica do universo, da vida, do pensamento e do próprio espírito.

   Em Kardec, como vemos em O Livro dos Espíritos, a natureza do espírito é definida como inteiramente diversa da natureza da matéria. O Universo se compõe de três elementos essenciais: Deus, Espírito e Matéria. Não é possível falar-se em mecanicismo, quando se apresenta essa trilogia. Na teoria corpuscular, pelo contrário, o Universo se compõe apenas de matéria. Deus está ausente, e o espírito não é mais do que uma consequência das acções e reacções materiais.

   Vejamos o que é o espírito na teoria corpuscular. O Sr. Guimarães Andrade refere-se a dois tipos de arranjos atómicos: as formações espirituais simples e as formações espirituais compostas. As primeiras se constituem da seguinte maneira: dois corpúsculos, o “mentalton” e o “intelecton”, se juntam, formando um núcleo que se denomina “mónaton”, e em torno dele gira um “bion”. As segundas, “pela combinação sucessiva de mónatons com mentaltons, formando átomos espirituais cada vez mais espiritualizados”. (Suprimimos os parênteses explicativos do texto, para maior clareza da nossa exposição. O leitor encontrará esse trecho nas paginas 43 e 44 do livro). Esclarece o autor: “Assim como os átomos materiais têm afinidade entre si, capacitando-os a se combinarem, a fim de formarem moléculas, as formações espirituais simples também poderão originar combinações, as quais levarão o nome de formações espirituais compostas”.

   Temos aí o segredo atómico da formação do espírito, segredo que os próprios Espíritos orientadores de Kardec declararam desconhecer. A seguir, o Sr. Guimarães Andrade completa o quadro, afirmando: “A evolução do espírito resulta do crescimento em complexidade de uma formação espiritual composta, e é processada, inicialmente, através da vida no mundo físico, onde as experiências adquiridas nos vários ciclos de reencarnações sucessivas tornam possível a constituição de formações espirituais cada vez mais complexas”. (Isso na página 45 do livro).

   Como vemos, o espírito se forma na matéria e nela se desenvolve, por um processo puramente mecânico. Depois do arranjo-atómico de que resultou a constituição do espírito, o autor explica o processo de desenvolvimento da inteligência. Esse processo é um novo arranjo mecânico. As sensações produzidas nos átomos pela vida material formam o que ele chama de “rudimentaríssimo rosário de percepções puntiformes”. São linhas de pontos sensoriais, que deverão juntar-se mais tarde para formarem tecidos sensoriais. Dessa tecelagem vai nascer a inteligência. O autor descobre que o homem é o mais perfeito psicossoma da terra, e que o espírito se cria a si mesmo.

   O problema da autocriação espiritual é proposto na página oitenta do livro, quando o autor afirma ser o espírito “causa e efeito de si mesmo”. Para que assim seja, é claro que só podemos estar no plano do mecanicismo, que ele condenou em Kardec, como um dos motivos fundamentais da sua tentativa de reforma doutrinária. Arranjo de átomos, quanto à estrutura, e arranjo de sensações e percepções, no plano mental, o espírito é uma construção casual, semelhante à do atomismo grego. E dois elementos antiquados aí se reúnem: o empirismo filosófico e o elementarismo psicológico, ambos superados, que o autor procura juntar ao relativismo científico da física einsteiniana.

   Feito esse arranjo, o Sr. Guimarães Andrade enquadra o psicossoma na teoria do “continuum espaço-tempo”, de Einstein. Refere-se à quarta-dimensão, chamando os espíritos, quando livres do corpo material, de criaturas quadridimensionais. Mas acontece que a quarta-dimensão, para Einstein, é o tempo, que nada mais é senão uma continuação do espaço. As criaturas quadridimensionais, portanto, não são espirituais, no sentido espírita do termo, mas espaço-temporais, ou mais simplesmente, materiais, no sentido físico do termo. O hiperespaço em que os espíritos vivem é o próprio mundo físico no seu aspecto quadridimensional.

   Longe, portanto, de representar uma superação conceptual da doutrina espírita, na sua formulação kardeciana, a teoria corpuscular do espírito representa um retrocesso. Reduz o espírito à matéria e condiciona o seu aparecimento e o seu desenvolvimento às influências materiais. Além disso, a teoria se apresenta como um arranjo sincrético, uma mistura de concepções diversas, às vezes até contraditórias. Falta-lhe orientação lógica. Empirismo filosófico, elementarismo psicológico, atomismo grego, monadismo leibniziano, misticismo induísta, espiritismo kardeciano e relativismo científico moderno, são misturados ao sabor das conveniências.

   Foi por isso que dissemos, na crónica anterior, que consideramos o livro do confrade Guimarães Andrade prejudicial ao movimento doutrinário. Dando-se ares de novidade, a teoria corpuscular do espírito pode impor-se aos confrades desprevenidos, e particularmente aos “novidadeiros”, como o último passo da ciência espírita. Entretanto, quando alguém melhor informado das questões científicas e filosóficas da actualidade examinar o assunto, terá forçosamente de concluir que os espíritas não conseguem acertar o passo com a evolução do conhecimento. Se ficarmos, porém, com Kardec, estaremos avançando além dessa evolução, pois O Livro dos Espíritos abre perspectivas para a ciência moderna, em vez de ter sido ultrapassado por ela.
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José Herculano Pires – A Pedra e o Joio, Crítica à Teoria Corpuscular do Espírito. Autocriação do Espírito, 14º fragmento da obra.
(imagem: As Colhedoras de Grãos, pintura a óleo por Jean-François Millet)

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