Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

segunda-feira, 29 de dezembro de 2014

Da sombra do dogma à luz da razão ~


Natureza da Revelação Espírita (VIII)

"Anúncio do Consolador"

   Retira ao homem o espírito livre, independen-te, sobrevi-vendo à matéria, e farás dele uma máquina organizada, sem objectivo, sem responsabili-dade, sem outro travão para além da lei civil e boa para ser explorada como animal inteligente. Nada esperando depois da morte, nada o impede de aumentar os prazeres do presente; se sofre, só tem como perspectiva o desespero e o nada como refúgio. Tendo a certeza do futuro, a de reencontrar os que amou, o receio de rever os que ofendeu, todas as suas ideias se modificam. Se o Espiritismo não tivesse feito mais do que retirar ao homem a dúvida quanto à vida futura, teria contribuído para o seu aperfeiçoamento moral mais que todas as leis disciplinares que por vezes o peiam mas não modificam.

  Sem a pré-existência da alma, a doutrina do pecado original não seria só irreconciliável com a justiça de Deus, que tornaria todos os homens responsáveis pelo erro de um único: seria um contra-senso, tanto mais injustificável quanto, segundo esta doutrina, a alma não existiria na época a que se pretende remontar a sua responsabilidade. Com a pré-existência, o homem traz ao renascer o germe das suas imperfeições, dos defeitos que não corrigiu e que se traduzem nos seus instintos inatos, nas suas propensões para tal ou tal vício. Reside aí o verdadeiro pecado original de que sofre muito naturalmente as consequências, mas com a diferença capital de que sofre o castigo dos seus próprios pecados e não o de um pecado de outro. E há outra diferença, simultaneamente consoladora, encorajadora e soberanamente equitativa: a de que cada existência lhe oferece os meios para se redimir através da reparação e para evoluir, quer despojando-se de alguma imperfeição, quer adquirindo novos conhecimentos, e isto até que, ao estar suficientemente purificado, deixe de necessitar da vida corporal e possa viver exclusivamente da vida espiritual, eterna e bem-aventurada.

  Pelo mesmo motivo, o que evoluiu moralmente traz, ao renascer, qualidades inatas, tal como o que evoluiu intelectualmente traz ideias inatas; identifica-se com o bem, pratica-o sem esforço, sem cálculo e, por assim dizer, sem pensar. O que é obrigado a combater as suas más tendências está ainda a lutar: o primeiro já venceu, o segundo vai a caminho de vencer. Existe, portanto, virtude original tal como há saber original e pecado ou, melhor vício original.

  O Espiritismo experimental estudou as propriedades dos fluidos espirituais e a sua acção sobre a matéria. Demonstrou a existência do perespírito, presumido desde a antiguidade e designado por São Paulo sob o nome de Corpo espiritual, isto é, corpo fluídico da alma após destruição do corpo tangível. Sabemos hoje que esse invólucro é indissociável da alma; que é um dos elementos constituintes do ser humano; que é o veículo de transmissão do pensamento e que, durante a vida do corpo, serve de ligação entre o Espírito e a matéria. O perespírito representa um papel tão importante no organismo e numa quantidade de afecções, que se aproxima da fisiologia tão bem como da psicologia.

  O estudo das propriedades do perespírito, dos fluidos espirituais e dos atributos psicológicos da alma, abre novos horizontes à ciência e fornece a chave de um conjunto de fenómenos até então incompreendidos por não se conhecer a lei que os rege; fenómenos negados pelo materialismo porque se prendem à espiritualidade, qualificados por outros como milagres ou sortilégios, consoante as crenças. São assim, entre outros, os fenómenos da dupla visão, da visão à distância, do sonambulismo natural ou artificial, dos efeitos psíquicos da catalepsia e da letargia, da presciência, dos pressentimentos, das aparições, das transfigurações, da transmissão de pensamento, do fascínio, das curas instantâneas, das obsessões e possessões, etc. Ao demonstrar que estes fenómenos assentam sobre leis tão naturais como os fenómenos eléctricos e as condições normais em que se podem produzir, o Espiritismo destruiu o império do maravilhoso e do sobrenatural e, por consequência, a fonte da maior parte das superstições. Se faz com que se acredite em certas coisas consideradas por alguns como quiméricas, impede que se acredite em muitas outras de que demonstra a impossibilidade e a irracionalidade.

  O Espiritismo, muito longe de negar ou de destruir o Evangelho, vem antes pelo contrário confirmar, explicar e desenvolver, através das novas leis da natureza que revelam tudo o que Cristo fez e disse; traz luz aos pontos obscuros do seu ensino, de tal modo que alguns daqueles para quem certas partes do Evangelho eram ininteligíveis, ou pareciam ser inadmissíveis, as compreendem e as admitem sem dificuldade com a ajuda do Espiritismo; entendem-lhe melhor o alcance e podem separar a realidade da alegoria; Cristo parece-lhes maior: já não é simplesmente um filósofo, mas sim um Messias divino.

  Se, além disso, considerarmos o poder do Espiritismo pelo objectivo que confere a todas as acções da vida, pelas consequências do bem e do mal que deixa bem claras, a força moral, a coragem, os consolos que confere nas aflições através da ideia de termos perto de nós os entes que amámos, a garantia de os revermos, a possibilidade de conversar com eles, enfim, pela certeza de que de tudo o que fazemos, de que de tudo o que adquirimos em inteligência, em ciência, em moralidade, até ao derradeiro momento da vida, nada está perdido, que tudo aproveita à evolução, reconhecemos que o Espiritismo realiza todas as promessas de Cristo relativamente ao Consolador anunciado. Ora, como é o Espírito de Verdade que preside ao grande movimento da regeneração, a promessa do seu advento encontra-se igualmente realizada, pois, de facto, é ele o verdadeiro Consolador (*).

  (*) Muitos pais de família deploram a morte prematura de crianças, pela educação das quais fizeram grandes sacrifícios, e dizem para consigo que tudo isso foi uma pura perda. Com o Espiritismo não lamentam estes sacrifícios e estariam prontos a fazê-los, mesmo tendo a certeza de verem morrer os filhos, pois sabem que, se estes não beneficiam dessa educação no presente, ela servirá primeiro para a sua evolução como Espíritos; depois, que será um conhecimento adquirido para uma nova existência e que, quando regressarem, possuirão uma bagagem intelectual que os tornará mais aptos a adquirir novos conhecimentos. São as crianças que ao nascer trazem ideias inatas, que sabem sem, por assim dizer, terem necessidade de aprender. Se os pais não têm a satisfação imediata de verem os filhos usufruírem dessa educação, certamente gozá-la-ão mais tarde, quer como Espíritos, quer como homens. Talvez venham a ser novamente os pais dessas mesmas crianças que consideramos afortunadamente dotadas pela natureza e que devem as suas aptidões a uma anterior educação; assim como também, se as crianças se desencaminham por negligência dos pais, estes podem vir a sofrer mais tarde com isso, devido aos aborrecimentos e desgostos dos pais, estes podem vir a sofrer mais tarde com isso, devido aos aborrecimentos e desgostos que provocarão numa nova existência. (Evangelho Segundo o Espiritismo, Capítulo V, n.º 21: Perdas de Pessoas Amadas e Mortes Prematuras.)

  Se a estes resultados acrescentarmos a rapidez inerente à propagação do espiritismo, apesar de tudo o que foi feito para o abater, não poderemos sequer pensar que o seu advento não seja outra coisa que não providencial, na medida em que triunfa sobre todas as forças e sobre todas as más vontades humanas. A facilidade com que é aceite por um grande número de pessoas, e isso sem constrangimentos, sem outros meios de que o poder da ideia, prova que ele responde a uma necessidade: a de acreditar em qualquer coisa, após o vazio cavado pela incredulidade. Consequentemente, chegou no momento exacto.

 Os aflitos são em grande número: não é então surpreendente que tantas pessoas acolham uma doutrina consoladora, de preferência a doutrinas que desesperam, na medida em que é mais aos deserdados da sorte do que aos felizes que se dirige o Espiritismo. O doente vê chegar o médico com mais alegria do que aquele que não costuma ter problemas de saúde; ora, os aflitos são os doentes e o Consolador é o Médico.

  Vós que combates o Espiritismo, se queres que o deixem para vos seguirem, dá então mais e melhor que ele; cura mais garantidamente as feridas da alma. Dá mais consolações, mais satisfações ao coração, esperanças mais legítimas, certezas maiores; faz do futuro um quadro mais racional, mais sedutor; mas não penses em vencê-lo com a perspectiva do vazio; com a alternativa das chamas do Inferno ou da beata e inútil contemplação perpétua.

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ALLAN KARDEC, A GÉNESE – Os Milagres e as Profecias Segundo o Espiritismo, Capítulo I NATUREZA DA REVELAÇÃO ESPÍRITA números de 37 a 44 (VIII), 10º fragmento da obra. Tradução portuguesa de Maria Manuel Tinoco, Editores Livros de Vida.
(imagem de contextualização: Diógenes e os pássaros de pedra, pintura em acrílico de Costa Brites)

sábado, 20 de dezembro de 2014

Inquietações Primaveris ~


A Consciência da Morte

Todos sabemos que morremos, que a morte é inevitável, mas estamos tão apegados à vida e fazemos uma ideia tão negativa e temerosa da morte que a rejeitamos na nossa consciência e a transformamos num mito, afastando-a para o Fim dos Tempos. Mito assustador, ela permanece à distância, envolta em névoas, de maneira que só a vemos como figura trágica de um conto de terror. Heideggard observou que só a aceitamos, para os outros, na expressão aleatória morre-se, que nunca se refere a nós. Fascinados pelo fluxo incessante da vida, mergulhados no torvelinho das nossas preocupações do dia a dia, temos a sensação inconsciente e agradável de que ela sempre se distancia de nós. Mesmo quando, conscientemente, pensamos na morte, o fazemos com a ilusão de que ela não chegará tão cedo, pois temos ainda muita coisa a fazer e sentimos que a vida borbulha em torno de nós sem permitir a entrada da morte no nosso meio. Essa é uma forma ingénua de protelarmos a nossa morte, segundo as exigências do instinto de conservação. Assim aliviamos o medo da morte, confiantes no poder da vida.

De nada valem essas pequenas trapaças. A morte chega quando menos o esperamos e não raro nos leva para a outra vida sem nos dar tempo para compreender o que aconteceu. As pesquisas psíquicas, em mais de dois séculos, mostraram o curioso espectáculo de muitas criaturas mortas que não sabem que morreram. Continuam vivas na matéria por conta das suas próprias ilusões e passam a assombrar sem querer e sem o saber os lugares em que viviam ou frequentavam. É claro que permanecem desajustadas no mundo espiritual.

Para evitar esses e outros inconvenientes, devemos desenvolver em nós a consciência da morte, sabendo positivamente que ela existe e é inevitável, sendo inútil qualquer ilusão nesse sentido, que só poderá prejudicar-nos. Temos de nos familiarizar com a morte, considerando-a com naturalidade, não a transformando em tragédia ou em espectáculos inúteis de desespero. Nas sessões espíritas cuida-se muito desses casos, procurando-se despertar os mortos de suas confusões produzidas pelo apego à Terra e integrá-los na nova forma de vida para a qual passaram. Eles não são tratados como almas do outro mundo, mas como companheiros da vida terrena que se libertaram do condicionamento animal por retornarem ao seu mundo de origem, que é o espiritual. Os adversários da doutrina criticam esse processo mediúnico, alegando que criaturas ainda encarnadas nada têm para ensinar às que já se livraram do corpo material. Mas desde as pesquisas de Kardec até aos nossos dias o processo de doutrinação tem dado os melhores resultados, tanto em favor de espíritos perturbados pela passagem súbita ao plano espiritual, quanto no esclarecimento de pessoas que sofrem as influências dessas entidades. Isso se explica por duas razões fundamentais:

1) A doutrinação é a transmissão de ensinos dos desencarnados superiores dados a Kardec, através da mediunidade, para a renovação moral e espiritual da Humanidade. Apoiados no conhecimento desses ensinos é que os médiuns e os doutrinadores atendem as entidades desencarnadas.

2) As pesquisas de cientistas eminentes como Richet, Crookes e Zöllner, no século passado, e Geley, Osty, Crawford, Soal, Carington, Pratt e Price, na actualidade, provaram que nos ambientes mediúnicos a emanação do ectoplasma ampara os espíritos desencarnados e inseguros no plano espiritual, dando-lhes a sensação de segurança física necessária para conversarem com os doutrinadores como se estivessem encarnados. A situação dos espíritos recém-desencarnados, no plano espiritual, não lhes permite a lucidez necessária para compreender facilmente os ensinos que recebem das pessoas que dirigem o trabalho mediúnico.

Esse intercâmbio processa-se em benefício dos espíritos e dos homens, sem nenhum sistema de evocações e rituais. Os espíritos manifestam-se por sua livre vontade, desejosos de comunicar-se após a morte do corpo físico, com familiares e amigos que deixaram na vida terrena. Essas manifestações naturais marcam toda a história da Humanidade, em todo o mundo e em todos os tempos, sem nenhuma interrupção. Não são descobertas modernas nem invenções de qualquer investigador; figuram nos livros sagrados de todas as religiões, na cultura de todos os povos e nas grandes obras literárias, filosóficas e científicas das grandes civilizações. Constituem, portanto, uma fenomenologia ao mesmo tempo arcaica e moderna, actualmente comprovada pelas pesquisas tecnológicas, tanto nas áreas espiritualistas como nas materialistas do mundo actual. Não se trata do produto de crenças ou superstições, mas de uma realidade fenoménica cientificamente provada e comprovada. As interpretações pessoais desses fenómenos, formuladas por clérigos interessados em negá-los ou subordiná-los a processos puramente psicológicos, nada representam, são apenas palpites ingénuos ou interesseiros, fartamente negados pelas grandes pesquisas científicas do passado e do presente.

A morte é um fenómeno natural, de natureza biológica, no qual se verifica o esgotamento da vitalidade nos seres pela velhice ou por acidente fisiológico. Não atinge a essência do ser, que é sempre de natureza espiritual, referindo-se apenas ao corpo material, o que vale dizer que ela não existe como extinção das formas de ser das plantas, dos animais e dos homens. Falar da morte como a nadificação, como faz Sartre, é simples ilogismo, tanto do ponto de vista puramente racional, quanto do científico. As condições actuais do desenvolvimento científico eliminaram totalmente qualquer possibilidade de sustentação da teoria do Nada, esse conceito vazio, como Kant o considerou. Os que insistem na destruição total do homem pela morte revelam ignorância do avanço das Ciências nos nossos dias. O que se fez neste século na investigação desse problema, directa ou indirectamente, liquidou as últimas esperanças dos que sonharam com a irresponsabilidade do nada, de um Universo inconsequente e sem finalidade. Indirectamente, a Física revelou as potencialidades ônticas da matéria e, nas suas entranhas, a eterna dinâmica dos átomos e as suas partículas, sendo que estas, mesmo quando livres, tendem sempre a formar estruturas atómicas definidas e plasmas orgânicos. As pesquisas da antimatéria revelaram a mesma tendência nos antiátomos, criadores de espaços novos e antiestruturas materiais. Os vazios espaciais mostraram-se carregados de campos de força que escapam ao nosso sensório, à precariedade dos sistemas de percepção humana, não raro superadas pela percepção animal. E, directamente, o avanço das pesquisas psicológicas, aprofundadas pela Parapsicologia, confirmaram a tese do avanço constante do inconsciente para o consciente, de Gustav Geley, confirmando a teoria da evolução criadora de Bergson. Cientistas soviéticos voltaram, nas pesquisas astronáuticas, a desvendar os mistérios dos sete véus de Ísis, como o fizeram M. Vassiliev e Sianiukovch, em Os Sete Estados do Cosmos. Nas captações e gravações do inaudível por Raudive, na Alemanha, nas pesquisas de Pratt sobre os fenómenos teta (avisos de morte e comunicações de espíritos de pessoas mortas) e nas pesquisas sobre a reencarnação por Ian Stevenson, Wladimir Raikov (este na Universidade de Moscovo) e por Barnejee na Universidade de Rajastam, temos uma constelação imponente de factos e dados positivos sobre a realidade, hoje inegável, da transitoriedade da morte. Ao mesmo tempo, ante esse panorama de revelações científicas, a morte adquire uma importância gigantesca na construção da génese moderna. Tornou-se impossível a sustentação lírica das teses materialistas dos nossos dias.

A necessidade de uma tomada universal de consciência sobre o sentido, o significado e o valor da morte, tornou-se imperiosa. É simplesmente inadmissível, neste século, qualquer doutrina que pretenda sustentar por simples argumentos que a morte é o fim e a frustração total dos seres vivos e especialmente da criatura humana. O panorama científico actual exige de todos nós o desenvolvimento da consciência da morte, cuja fatalidade inegável se explica pela necessidade de renovação das estruturas da vida em todos os planos da natureza. Em consequência, a presença de Deus, como Consciência Suprema que rege a toda a realidade, numa estrutura lógica, teleológica e antiteológica, firma-se como o imperativo categórico da compreensão do mundo, do homem e da vida. Os teólogos que proclamaram, ante a tragédia nazi num exíguo espaço-tempo do nosso pequenino planeta, a Morte de Deus, mataram a Teologia em que se amamentaram durante séculos, praticamente um matricídio vergonhoso e estúpido. Em última instância, suicidaram-se na porta do Céu, no momento exacto em que o Céu era conquistado pela Ciência mundial. Nunca se viu maior fiasco do que esse, que reduz a simples opereta a façanha de Prometeu e a sua morte no Cáucaso. Soou a hora final das Igrejas, o instante fatal da falência eclesiástica, transformada em toda a parte numa nova morte de Pã. A grande Deusa morreu aos nossos olhos, como já havia morrido o Deus Pã nos fiordes da Noruega, ante a capitulação dolorosa de Knut Hamsun. As Igrejas, universalmente transformadas em supermercados de quinquilharias sagradas, estão agora vendendo os seus saldos das existências aos missionários por conta própria que invadiram as nações para vender, nos submundos da ignorância falsamente ilustrada e do populacho ansioso por um céu de delícias pasmáticas made in Bizâncio. Porque Bizâncio foi o fim esquizofrénico do Mundo Antigo após a queda de Roma e hoje a Nova Roma, já também esclerosada, parece destinada a selar o fim do mundo do arbítrio e da violência em que vivemos.

Esse rápido olhar pelo passado de tentativas frustradas da implantação do Cristianismo na Terra basta para nos mostrar que precisamos de desenvolver em nós a consciência da morte, para aprendermos a morrer com decência e dignidade. Se esta civilização apoiada em arsenais atómicos nada mais pode esperar do que a sua própria explosão, que ao menos nos preparemos para morrer de mãos limpas, sem manchas de sangue e de roubo, a fim de podermos voltar nas futuras reencarnações, em condições de consciência que nos permitam realizar uma nova tentativa de cristianização do Planeta. Sem uma tomada de consciência do sentido e do valor da morte estaremos arriscados a continuar indefinidamente no círculo vicioso das vidas repetitivas e sem sentido. A vida só tem sentido quando serve de preparação para vidas melhores. O destino não é viver como as feras, mas viver para transcender-se, numa escalada do Infinito em busca das constelações superiores. Os segredos da morte nos são agora racionalmente acessíveis para podermos aprender a perder a nossa vida para reencontrar o Cristo.

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José Herculano Pires – Educação para a Morte, A Consciência da Morte, 18º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: O caranguejo, pintura de William-Adolphe Bouguereau)

quinta-feira, 11 de dezembro de 2014

O Mundo Invisível e a Guerra ~


IX
O Espiritismo e as Religiões

|Fevereiro de 1917|

   O Espiritismo não é inimigo das religiões; ao contrário, fornece-lhe poderosos elementos de valor e de regeneração.

   Os conhecimentos que ele nos proporciona sobre a vida no Além e as condições em que se desenvolve a nossa existência após a morte, a certeza de leis justas e equitativas regendo o mundo invisível, formam outros tantos meios de análise e exame crítico, permitindo separar, nas religiões, o que é artificial e ilusório do que é real e imperecível.

   Não há dúvida de que os fenómenos do Espiritismo se encontram na origem de todas as religiões, porém estas lhes emprestam um carácter sobrenatural e milagroso, transferindo-os para um passado remoto e fazendo-os perder toda a importância sobre a vida moral e social.

   O intercâmbio com o invisível era apenas uma hipótese, uma vaga esperança; com o Espiritismo, torna-se certo e permanente.

   Estamos vivendo uma das maiores épocas de transição da História. Os factos que se estão desenrolando, as cruentas lutas dos povos e as subversões sociais são o começo, a preparação de uma nova ordem das coisas.

   Quando terminar a guerra (*), a mente humana analisará todos os seus aspectos e procederá a um exame profundo de todas as forças que agiram no decorrer desses trágicos anos. Então comprovaremos que são as ideias que conduzem o mundo. O patriotismo, ao unir os corações dos franceses, conteve a invasão, limitando os seus estragos.

   O amor pela terra natal acordou o heroísmo que, apoiado pelos auxílios poderosos do mundo oculto, salvou a França.

   Por isso a ideia de pátria terá que ocupar um lugar especial no ensino da educação popular. Entretanto, isso não será o bastante: para terminar com as nossas desavenças, as nossas rivalidades, as lutas de classes e de interesses é preciso, antes de tudo, unir inteligências e consciências, pois sem a harmonia das almas não poderá haver a harmonia social.

   Todavia, como se poderá preparar tal união? Trabalhe-se com ardor, com espírito de tolerância e concórdia, para aproximar os objectivos, as aspirações e as crenças. Dois poderosos meios se apresentam: A ciência e a fé.

   Antagónicos na aparência, essas tendências se conciliam e se completam mutuamente, como veremos no decurso deste livro. Elas podem fornecer facilmente uma concepção da vida e do destino, uma noção das leis superiores e uma base moral, estas coisas que são indispensáveis à nossa perturbada sociedade e sem as quais a existência seria vazia de sentido, sem finalidade e sem sanção.

   Dentro de toda a alma humana há um retiro, um ponto secreto, onde se instala a centelha divina, a parte do Infinito que garante a cada um de nós a indestrutibilidade do seu eu. Ali dormitam as forças invisíveis, os recursos psíquicos cujo desenvolvimento fará, mais tarde, do ser mesquinho, frágil e ignorante que somos no princípio de nossa evolução, um génio preparado para as grandes empresas e capaz de desempenhar um papel notável no Universo.

   A verdadeira religião consiste em utilizar esses recursos ocultos e valorizá-los. Ela tem que nos ensinar a colocar o ser interior em comunhão com o divino, expandindo-o, libertando-o de influências inferiores, fazendo-o adquirir a plenitude de sua irradiação.

   Conseguido esse estado espiritual, a alma humana poderá realizar as suas mais árduas missões e aceitar com alegria as provações mais duras. Saberá conservar nos dias mais difíceis um optimismo e uma confiança inquebrantáveis.

   Esse estado de espírito pode ser encontrado em todas as religiões, bem como fora delas. Atendo-se às práticas rituais da liturgia e aos diversos dogmas existentes dentro dos limites em que comummente se encontra a ideia religiosa, com frequência esquece-se da fé independente que paira acima de todos os cultos e não se sujeita ao “credo” de nenhuma igreja.

   Essa religião, pessoal e livre, talvez conte com maior número de membros do que as religiões reconhecidas, porém o número exacto de seus adeptos foge a todos cálculos.

   As descobertas científicas nos deram uma concepção do Universo vasta e grandiosa, mas diferente daquela que tínhamos na Idade Média e na antiguidade.

   A experimentação psíquica e o estudo do mundo invisível abriram perspectivas ilimitadas para a vida e para o destino do ser; o homem se sentiu ligado a todos os que pensam, amam e sofrem, na imensidão dos espaços.

   Os modelos das religiões caducas se romperam com o impulso triunfante do espírito, sequioso para conquistar a sua legítima parte de verdade e de luz. Quase não existem intelectuais que não tenham criado uma crença inspirada na observação directa da natureza, isenta das rotinas seculares, baseada na ciência e na razão.

   Os partidários dos dogmas não pretendem ver nesse sentimento senão o que denominam ironicamente de “religiosidade”. Realmente, ele possui em gérmen os elementos dessa religião universal, simples e natural que haverá, um dia, de reunir todos os povos do planeta e fundir as igrejas particulares, assim como os rios se fundem no oceano.

   Os actuais acontecimentos repercutirão profundamente por todas as formas da actividade social e, assim que a paz reinar novamente no mundo, haverá uma revisão de todas as causas que contribuem para o progresso humano, não escapando as religiões a uma análise crítica e rigorosa.

   Os terríveis factos que estão acontecendo darão a medida que permitirá calcular o poder ou a fraqueza moral das religiões.

   Verificar-se-à, não sem certo espanto, que a educação religiosa de povos que se intitulam cristãos, como a Alemanha e a Áustria, nada conseguiu fazer para impedir os mais condenáveis crimes que fazem a civilização se envergonhar.

   Ver-se-à com tristeza que, nestas horas cruéis, a Igreja Romana quase sempre colocou os seus interesses políticos acima das recomendações do Evangelho e dos sagrados direitos da consciência. Não foram melhores os adeptos do Islamismo e foi mais clara do que nunca a falência das religiões.

   No início da guerra a França foi sacudida por um grande movimento religioso e, após as nossas primeiras derrotas, as aspirações que moram no fundo de sua natureza lhe despertaram uma necessidade de crença, de saber que a morte não equivale ao nada e que, acima de tudo, existe um poder soberano, uma força inteligente e consciente, capaz de nos amparar e socorrer na provação e fazer prevalecer a justiça em um mundo de paixões descontroláveis.

   Se tal sentimento houvesse podido alcançar o ideal sonhado, seria o começo de uma renovação nacional, todavia as soluções apresentadas pelas igrejas, as poucas consolações que elas ofereciam aos corações dilacerados, as práticas ritualísticas impostas aos seus fiéis já não satisfaziam às necessidades do tempo e do meio. Foram julgadas insuficientes e assim, pouco a pouco, o movimento religioso se enfraqueceu.

   Todavia, o pensamento segue firme, voltado para o Além. Diante do perigo e do dilúvio de sofrimentos que nos ameaçam, no meio das ruínas e das mortes que se acumulam, a alma francesa procura sempre uma base sólida, uma certeza onde apoiar a sua fé e só as encontrará no moderno espiritualismo, o que equivale dizer no Espiritismo.

   A religião do futuro se apoiará na prova científica da sobrevivência, nas demonstrações experimentais e no testemunho dos sábios que estudaram os problemas da vida invisível.

   No decorrer desta guerra, o antropomorfismo das religiões se apresentou no seu aspecto mais monstruoso e o velho deus alemão não é mais do que uma evocação dos bárbaros deuses do paganismo germânico. Sob a máscara cristã mal ajustada, Odin, que comanda as cenas de carnificina, deixa entrever as suas feições.

   Esta noção da divindade é muito próxima do mais baixo materialismo e repugna às almas delicadas e aos espíritos refinados. Não se trata apenas das acções de um monarca ávido em dominar o mundo e dos chefes militares que o rodeiam; essa concepção é também encontrada nas obras dos pensadores alemães; professores, pastores e escritores a proclamam abertamente em discursos e publicações.

   Semelhante ao Jeová, do Antigo Testamento, o velho deus alemão protege somente uma raça, vendo nas outras apenas um rebanho de povos vis e corruptos, destinados à ruína e à morte.

   Esta feroz mentalidade faz dos alemães os pretensos instrumentos da vingança divina, impelindo-os a uma obra de destruição que eles continuam metodicamente.

   Essa grosseira mística aproxima-se das teorias de Nietzsche, relativas ao super-homem, tão difundidas na Alemanha, e podemos medir as funestas consequências de uma falsa religião unida a uma não menos falsa filosofia.

   É bom, sem dúvida, desenvolver a vontade de poder, segundo a expressão de Nietzsche, porém com a condição de se desenvolverem, ao mesmo tempo, a consciência e as outras faculdades do espírito e do coração: a piedade e a bondade, o respeito à verdade, ao direito e à justiça. Sem isto rompe-se todo o equilíbrio moral no ser humano e só se logrará produzir homens orgulhosos, déspotas, monstros que, para triunfarem, não vacilarão no emprego de todos os meios, mesmo os mais criminosos e odiosos.

   Daí essa terrível luta que se desenvolve à nossa volta, onde a Alemanha, em razão do seu feroz egoísmo, se desacredita e se desonra aos olhos do mundo e da História.

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(*) Primeira Guerra Mundial 1914-1918.


LÉON DENIS, O Mundo Invisível e a Guerra, IX O Espiritismo e as Religiões 1, Fevereiro de 1917, (1 de 2), 24º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: Tanque de guerra britânico capturado pelos Alemães, durante a Primeira Guerra Mundial)