~~ O JULGAMENTO
SOB O AÇODAR*
DA CONSCIÊNCIA
(II de III)
Girólamo reviu as cenas nas quais fora implacável com as vítimas
que lhe estremeciam nas mãos convertidas em garras. Repassou o trágico
incidente do solar, quando do trucidamento das crianças e Lúcia, e reviu-se na
mente marcada indelevelmente pela tragédia. Os seus ouvidos agora registavam,
na memória do remorso a manifestar-se, os ruídos das crianças indefesas e o
gorgolejar do sangue na garganta de Lúcia.
Súbito horror dominou-o e, pela primeira vez, compreendeu a
extensão dos seus delitos e excessos… Lembrou-se de Assunta, a comparsa, e
nesse momento acompanhou-a na descrição da sua própria tragédia, também
acusadora, diante do Magistrado, que
parecia de pedra, com um semblante pálido, sem qualquer expressão de
sentimento, desinteressado das desditas de cada um dos que ali vinham depor.
– Dei-lhe o meu amor – lamentou a inditosa –, e ele tomou a
minha vida nas suas mãos, destroçando-me antes a honra e depois aniquilando-me
o corpo. E eu que tanto o amei!...
A voz dolorida da compor
antiga feria o verdugo impenitente. Só então pôde descobrir que também chegara
quase a amá-la, mas resvalara pela rampa da ambição desmedida e selvagem, dos
desejos infrenes em que se consumia.
Perante as acusações terríveis que lhe pesavam sobre a consciência,
as outras dores, as agonias diversas pareceram ceder, para que tivesse ciência
da enormidade dos seus desmandos e recebesse o castigo para o qual não se
encontrava preparado…
Silenciando Assunta, o promotor
acudiu relatando que as outras vítimas não foram encontradas, tendo
desaparecido. (Ignoravam ou desejavam dar a impressão do desconhecimento do
Divino Amparo que as recolhera, socorrendo-as em estância feliz, noutras regiões
da Espiritualidade.)
Ergueu-se o Magistrado,
obeso e mau, grunhindo entre os dentes, impassivelmente:
– Prisão perpétua! Que seja entregue ao prejudicado maior
para que este o suplicie!
Munido de relho longo, cortante, Dom Giovanni acercou-se e,
segurando o desgraçado, aplicou-lhe, ali mesmo no Tribunal – para escarmento dos outros que seriam julgados,
aumentando neles o pavor a estampar-se-lhes nos rostos macerados –, as
primeiras sevícias, enquanto Assunta, deformada no seu facies de louca, prorrompeu em sardónicas e longas gargalhadas.
Dobar-se-iam (i) os anos em decénios longos e sombrios, a partir
de então, no estranho reino da impiedade e da loucura, resultado das mentes
desarvoradas e satânicas, que mesmo da Terra elaboram o suplício que supõem
merecer, acalentando nos painéis da alma as tramas infelizes em que caem mais
tarde, quando cessa o pulsar da vida orgânica no sentimento atormentado e no
corpo ultrajado.
Às religiões sempre coube o papel de esclarecer, ao invés de
atemorizar e reunir mistérios desnecessários perante as leis do amor, simples e
invioláveis, do Pai. Falindo nos objectivos elevados de conduzir o homem,
conspurcaram as águas límpidas do Cristianismo, elaborando pelourinhos de
urdidura múltipla para as mentes desataviadas ou tímidas que se lhes vinculam,
impossibilitadas de libertação. Engendrando pavores e liberdade ao preço ignóbil
das moedas que enferrujam, deixaram o espírito dos povos sem as necessárias quão
valiosas ferramentas do equilíbrio, atrasando longamente o desenvolvimento das
criaturas.
Com o advento do Espiritismo, porém, abrem-se os pórticos da
luz total e as claridades do amor e da sabedoria penetram os umbrais sombrios
do orbe, proclamando a vitória do Cristo sobre a ignorância e a dominação dos
enganados-enganadores do poder temporal.
Vinculado pelos crimes ao duque tornado revel, o vampirismo pernicioso do ódio irracional
imantou as duas entidades, fazendo que a vítima continuasse a sucumbir, cada
vez mais inerme, na vingança produzida pelo desafecto, igualmente tresloucado…
Transcorriam os decénios na luta tiranizante do sofrimento. Nos
intervalos do expurgo da consciência culpada. Girólamo passou a recordar as visões
que tivera da duquesa, quando
lembranças que pareciam luz frouxa que se acendesse para logo apagar, foi-se
fixando, lentamente, no desejo da paz, evocando o amor que recebera e, em
consequência, passou a situar o pensamento em outras faixas da esperança,
conquanto não tivesse lucidez necessária para discernir ou aspirar à
tranquilidade.
O ser tragado pelo simum
do deserto não pensa: luta pela sobrevivência de forma animal, sem o uso da razão,
à semelhança do afogado que braceja em terrível busca de qualquer meio de
salvação.
A duquesa, a seu
turno, desde a consumação do suicídio pelo sobrinho invigilante, não cessava de
orar. Mais de uma vez, utilizando-se de recursos subtis, pudera visitar os dois
espíritos queridos entregues à voragem da desgraça a que se arrojavam,
desditosos, sem, contudo, poder interferir nos destinos que lhes comprazia
experimentar, para não violar as Leis Supremas que dirigem a Vida.
Mediante o pensamento vigilante, porém, alongava-se até aos
redutos do infortúnio e suplicava por eles, envolvendo-os, e aos demais
supliciados, no lenitivo da sua oração de reconforto. Por obra de seres
abnegados, aqueles sítios de sordidez e punição frequentemente são visitados
por desconhecidas aragens que, por momentos, diminuem a agudeza das dores e
renovam a atmosfera carregada.
/…
* priberam, dicionário: açodar (i). Adenda desta publicação.
* priberam, dicionário: açodar (i). Adenda desta publicação.
VICTOR HUGO, Espírito “PÁRIAS EM REDENÇÃO” – LIVRO SEGUNDO, 2. O JULGAMENTO SOB O AÇODAR DA CONSCIÊNCIA (II de III), 38º fragmento desta obra. Texto mediúnico, ditado a DIVALDO PEREIRA FRANCO.
(imagem de contextualização: L’âme de la forêt
| 1898, tempera e folha de ouro sobre painel de Edgard Maxence)
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