Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

domingo, 5 de abril de 2020

~~~Párias em Redenção~~~


~~ O JULGAMENTO
SOB O AÇODAR*
DA CONSCIÊNCIA
(II de III)

Girólamo reviu as cenas nas quais fora implacável com as vítimas que lhe estremeciam nas mãos convertidas em garras. Repassou o trágico incidente do solar, quando do trucidamento das crianças e Lúcia, e reviu-se na mente marcada indelevelmente pela tragédia. Os seus ouvidos agora registavam, na memória do remorso a manifestar-se, os ruídos das crianças indefesas e o gorgolejar do sangue na garganta de Lúcia.

Súbito horror dominou-o e, pela primeira vez, compreendeu a extensão dos seus delitos e excessos… Lembrou-se de Assunta, a comparsa, e nesse momento acompanhou-a na descrição da sua própria tragédia, também acusadora, diante do Magistrado, que parecia de pedra, com um semblante pálido, sem qualquer expressão de sentimento, desinteressado das desditas de cada um dos que ali vinham depor.

– Dei-lhe o meu amor – lamentou a inditosa –, e ele tomou a minha vida nas suas mãos, destroçando-me antes a honra e depois aniquilando-me o corpo. E eu que tanto o amei!...

A voz dolorida da compor antiga feria o verdugo impenitente. Só então pôde descobrir que também chegara quase a amá-la, mas resvalara pela rampa da ambição desmedida e selvagem, dos desejos infrenes em que se consumia.

Perante as acusações terríveis que lhe pesavam sobre a consciência, as outras dores, as agonias diversas pareceram ceder, para que tivesse ciência da enormidade dos seus desmandos e recebesse o castigo para o qual não se encontrava preparado…

Silenciando Assunta, o promotor acudiu relatando que as outras vítimas não foram encontradas, tendo desaparecido. (Ignoravam ou desejavam dar a impressão do desconhecimento do Divino Amparo que as recolhera, socorrendo-as em estância feliz, noutras regiões da Espiritualidade.)

Ergueu-se o Magistrado, obeso e mau, grunhindo entre os dentes, impassivelmente:

– Prisão perpétua! Que seja entregue ao prejudicado maior para que este o suplicie!

Munido de relho longo, cortante, Dom Giovanni acercou-se e, segurando o desgraçado, aplicou-lhe, ali mesmo no Tribunal – para escarmento dos outros que seriam julgados, aumentando neles o pavor a estampar-se-lhes nos rostos macerados –, as primeiras sevícias, enquanto Assunta, deformada no seu facies de louca, prorrompeu em sardónicas e longas gargalhadas.

Dobar-se-iam (i) os anos em decénios longos e sombrios, a partir de então, no estranho reino da impiedade e da loucura, resultado das mentes desarvoradas e satânicas, que mesmo da Terra elaboram o suplício que supõem merecer, acalentando nos painéis da alma as tramas infelizes em que caem mais tarde, quando cessa o pulsar da vida orgânica no sentimento atormentado e no corpo ultrajado.

Às religiões sempre coube o papel de esclarecer, ao invés de atemorizar e reunir mistérios desnecessários perante as leis do amor, simples e invioláveis, do Pai. Falindo nos objectivos elevados de conduzir o homem, conspurcaram as águas límpidas do Cristianismo, elaborando pelourinhos de urdidura múltipla para as mentes desataviadas ou tímidas que se lhes vinculam, impossibilitadas de libertação. Engendrando pavores e liberdade ao preço ignóbil das moedas que enferrujam, deixaram o espírito dos povos sem as necessárias quão valiosas ferramentas do equilíbrio, atrasando longamente o desenvolvimento das criaturas.

Com o advento do Espiritismo, porém, abrem-se os pórticos da luz total e as claridades do amor e da sabedoria penetram os umbrais sombrios do orbe, proclamando a vitória do Cristo sobre a ignorância e a dominação dos enganados-enganadores do poder temporal.

Vinculado pelos crimes ao duque tornado revel, o vampirismo pernicioso do ódio irracional imantou as duas entidades, fazendo que a vítima continuasse a sucumbir, cada vez mais inerme, na vingança produzida pelo desafecto, igualmente tresloucado…

Transcorriam os decénios na luta tiranizante do sofrimento. Nos intervalos do expurgo da consciência culpada. Girólamo passou a recordar as visões que tivera da duquesa, quando lembranças que pareciam luz frouxa que se acendesse para logo apagar, foi-se fixando, lentamente, no desejo da paz, evocando o amor que recebera e, em consequência, passou a situar o pensamento em outras faixas da esperança, conquanto não tivesse lucidez necessária para discernir ou aspirar à tranquilidade.

O ser tragado pelo simum do deserto não pensa: luta pela sobrevivência de forma animal, sem o uso da razão, à semelhança do afogado que braceja em terrível busca de qualquer meio de salvação.

A duquesa, a seu turno, desde a consumação do suicídio pelo sobrinho invigilante, não cessava de orar. Mais de uma vez, utilizando-se de recursos subtis, pudera visitar os dois espíritos queridos entregues à voragem da desgraça a que se arrojavam, desditosos, sem, contudo, poder interferir nos destinos que lhes comprazia experimentar, para não violar as Leis Supremas que dirigem a Vida.

Mediante o pensamento vigilante, porém, alongava-se até aos redutos do infortúnio e suplicava por eles, envolvendo-os, e aos demais supliciados, no lenitivo da sua oração de reconforto. Por obra de seres abnegados, aqueles sítios de sordidez e punição frequentemente são visitados por desconhecidas aragens que, por momentos, diminuem a agudeza das dores e renovam a atmosfera carregada.

/…
* priberam, dicionário: açodar (i). Adenda desta publicação.



VICTOR HUGO, Espírito “PÁRIAS EM REDENÇÃO” – LIVRO SEGUNDO, 2. O JULGAMENTO SOB O AÇODAR DA CONSCIÊNCIA (II de III), 38º fragmento desta obra. Texto mediúnico, ditado a DIVALDO PEREIRA FRANCO.
(imagem de contextualização: L’âme de la forêt | 1898, tempera e folha de ouro sobre painel de Edgard Maxence)

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