Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

sexta-feira, 24 de agosto de 2018

Deus na Natureza ~


A Vida ~ Circulação da Matéria ~
(III)

  Se não houvesse em nós uma força directora, como explicar a formação e a sustentada construção do corpo, nos moldes do tipo orgânico, do berço ao túmulo? Porquê, depois dos 20 anos, esse corpo que absorve tanto ar e tanto alimento, como até então, pára de crescer?

  Quem lhe distribui harmonicamente todas as substâncias assimiladas? Depois do crescimento em altura, quem lhe limita a espessura? Quem dá força ao homem maduro, quem repara continuadamente as peças da máquina animada?

  Sem admitir uma força orgânica, típica, vital (não nos atenhamos à palavra), como explicar a construção do corpo? O Sr. Scheffer diz que são as forças física e químicas. “Cada qual – diz ele – exerce sobre as outras uma influência que dá ao organismo, em todas as suas peças, uma certa uniformidade de ordem mais elevada. As acções especiais das forças individuais se conjugam, a seguir, num efeito total e formam uma resistência coordenadora da multiplicidade das partes num todo unitário, em que se desenha o tipo fundamental de toda a propriedade individual.” Eis o que se pode chamar uma explicação luminosa. Somente resta explicar como se produziriam todas essas maravilhosas combinações, à revelia de uma unidade virtual, organizadora. Quem constrói esse organismo? Como podem as propriedades da matéria operar sobre um plano, em conformidade com uma ideia que, por si, não podem ter? Como sabe o organismo, tão seguramente, escolher os alimentos que lhe convêm? Quem determina a reprodução fiel da espécie? É, portanto, mais fácil admitir todos os acasos, como diz Tissot, do que supor um princípio essencialmente activo, dotado de potência organizadora e com faculdades de exercê-la no sentido de tal ou tal tipo específico? “No homem, respondem, no seu conteúdo material e nas substituições de substância que nele se operam, a função química tem o seu papel, produz as partículas corporais capacitadas a servirem de suporte, ou substrato, de todo o edifício. Organiza-o a força vital, resultante de todas as combinações e desta organização é que resulta a força espiritual.” Aqui temos, patente, mero palavreado que nada explica.

  Vários materialistas, e com eles Mulder, riem-se da doutrina da força vital e comparam essa força a “uma batalha travada por milhares de combatentes, como se não estivesse em jogo apenas uma força que dispara os canhões, maneja os sabres, etc. O conjunto dos resultados, acrescenta Mulder, não é o resultado de uma única força, de uma força de batalha, mas a soma das forças e combinações inúmeras, em actividade num tal acontecimento.” Concluem, assim, que a força vital não é causa, mas efeito.

  À comparação não falta justeza e, tem, ao demais, a inapreciável virtude de aproveitar mais a nós do que aos seus próprios imaginadores. De facto, é evidente, o que constitui a força de um exército e ganha a peleja não é tão-só o esforço particular de cada combatente, mas, sobretudo, a direcção global, a inteligência do generalíssimo, o plano da batalha, a ordem soberana que, do cérebro do organizador, se irradia aos subchefes e vai, através dos batalhões, até aos soldados, molas arregimentadas.

  Convencer-se-á alguém que não foi Napoleão quem venceu em Austerlitz? Perguntem a Thiers (que sabe mais do que o próprio Napoleão) se essas batalhas inolvidáveis, tanto quanto as ganhas e empenhadas de surpresa não revelam, acima do valor pessoal de cada combatente, o génio lugubremente célebre que vingava atirar ao túmulo, num relance de olhos, milhares de criaturas no apogeu de força e actividade.

  Se a um exército se impõe, imprescindível, o governo de um chefe e que uma severa disciplina o abranja na unidade de milhares de soldados, com maior soma de razão importa que uma força governe a matéria, reduzindo à unidade harmónica os milhões de moléculas que sucessivamente a conformam.

  Só mediante essa força é que existe o corpo, tal como se dá com o regimento, que, não sendo mais que uma entidade abstracta, existe por virtude de lei, antes que pelo valor de cada soldado. Chegam os conscritos novos, dá-se baixa dos velhos e de sete em sete anos está o regimento renovado. Nesse período, há licenças temporárias, engajamentos particulares e uma por outra modificação nas moléculas componentes do exército. Desculpem: cada oficial ou soldado não é mais que um número, a sua personalidade não entra em linha de conta. Podem os oficiais ser comparados aos zeros da ordem decimal, ou, por falar com mais elegância – chefes de dezenas ou centenas; mas, singularmente considerada, a sua personalidade pouco mais vale que a de um caçador. Os próprios coronéis mudam, sem que o regimento deixe de existir na sua forma idêntica. Sofrem os generais, igualmente, essas transições, que em nada prejudicam a existência das respectivas brigadas e divisões. A hierarquia militar é uma unidade e é nisso que reside a sua eficiência. Quanto às partes componentes da unidade, não são conhecidas. Indubitável, que um coronel à cabeça do seu regimento, ou um general no activo, têm mais importância, do ponto de vista do serviço, do que um simples granadeiroda mesma forma que um átomo de gordura cerebral tem maior importância do que um folículo de unha.

  Mas, o que constitui o tronco, ou o nó, de uma fonte de galhos extensos não é por si mesmo a fonte integral. Logo, a comparação dos adversos aproveita mais à nossa do que à sua tese.

  Qual o homem culto, o observador de boa fé, que ousará negar seja o nosso organismo engendrado por uma força especial? Qual a diferença de um cadáver para um corpo vivo? Há duas horas que o coração de tal homem deixou de bater; ei-lo estendido no leito fúnebre, a vida escapou-se-lhe independente de qualquer lesão, sem que houvesse distúrbio orgânico. O seu estado desafia autópsia minuciosa. Quimicamente falando, não há diferença alguma entre este e o corpo que vivia esta manhã. Em que diferem, repito, o corpo vivo e o cadavérico? Pela vossa teoria, eles não diferem, têm o mesmo peso, tamanho, forma. São os mesmos átomos, as mesmas moléculas, as mesmas propriedades físico-químicas. Chegais mesmo a ensinar que essas propriedades estão inviolavelmente ligadas aos átomos. Aí temos, portanto, o mesmo ser!

  Mas, não vedes que uma tal consequência vale por condenação formal do vosso sistema?

  Porque a verdade é que um ser vivo difere, evidentemente, de um morto. Isso é coisa tão vulgarmente sabida, que não podeis contestar. Confessai, pois, que uma hipótese que ensina não ser a vida senão um conjunto de propriedades químico-atómicas, cai pela base e pela cúpula, sendo que, nascimento e morte, alfa e ómega de toda a existência, protestam vitoriosamente contra as conclusões dessa hipótese.

  Chega a ser quase ultrajante para a inteligência humana a obrigação de sustentar que um corpo vivo difere de um morto e que neste já não existe força anímica. Afirmar que a vida é algo, é assim como afirmar que há luz em pleno dia. Devemos, porém, ensejar a que os antagonistas de além-Reno venham pôr os pontos nos is.

  Torna-se necessário que seja a força constitutiva da vida uma força muito especial, visto que, frente a ela, as moléculas corporais se distribuem harmónicas, numa unidade fecunda, ao passo que na sua ausência essas mesmas moléculas se separam, se desconhecem, se combatem e deixam logo cair em total dissolução esse organismo que se faz pó.

  Também é necessário que essa mesma força exista de uma forma particularíssima, pois que, de um lado, não sendo vivos todos os corpos da Natureza e, de outro lado, sendo os corpos vivos compostos com o mesmo material dos inorgânicos, diferem, contudo, dos primeiros, pelas especiais e admiráveis propriedades da vida.

  Ainda é necessário que seja a vida uma força soberana, visto não passar o corpo de um turbilhão de elementos transitórios, em mutação constante de todas as suas partes, persistindo ela, enquanto que a matéria passa.

  Concluir-se-á, daí, com Buffon, que haja no mundo duas espécies de moléculas, isto é: orgânicas e inorgânicas?

  Que as primeiras sejam células vivas, dotadas de sensibilidade e irritabilidade, a se passarem de um a outro ser vivo sem se imiscuírem nos corpos inorgânicos, enquanto que as segundas não entram na constituição geral da vida?

  Mas a Química orgânica demonstrou, à saciedade, que os elementos da matéria vivificada são os mesmos que os do mundo mineral, ou aéreo, o que vale dizer dos elementos oxigénio, hidrogénio, azoto, carbono, ferro, cal, etc.

  Dir-se-á, então, com o botânico Dutrochet e com o anatomista Bichat, que a vida seja uma excepção temporária às leis gerais da matéria, uma suspensão acidental das leis físico-químicas, que acabam sempre imolando o ser ao governo da matéria? Mas é uma ideia que não vacilamos em proclamar errónea, sendo que a vida é o alvo mais elevado e mais fulgurante da Criação, a perpetuar-se através das espécies, desde os primórdios do mundo.

  De resto, digam e pensem como entenderem, a vida não deixará de ser uma forçasuperior às afinidades elementares da matéria.

  O que caracteriza os seres vivos é a força orgânica que aglutina essas moléculas, segundo a conformação específica dos indivíduos e conforme o seu tipo específico. “As verdadeiras molas do nosso organismo – dizia Buffon – não são estes músculos, artérias e veias, mas forças interiores, que não obedecem de modo algum às leis da grosseira mecânica por nós imaginada e às quais tudo desejaríamos subordinar (*).” Em vez de procurarem conhecer as forças pelos seus efeitos, trataram de as afastar e até banir da Filosofia. Elas reapareceram, contudo, e mais imponentes que nunca.

  Cuvier, mais explícito, o declara, uma vez que observara directamente não passar a matéria de simples “depositária da força, por esta constrangida, de antemão, a caminhar no mesmo sentido que ela, bem como que a forma dos corpos lhe é mais essencial que a matéria, visto que esta transmuda, enquanto que aquela se conserva”.

  As experiências de Flourens, sobretudo, evidenciaram a mutabilidade da matéria, a contrastar com a permanência da força, que, a bem dizer, é o que tem de essencial o ser. Uma dessas experiências consiste em submeter um animal, durante trinta dias, ao regime da granza, que, sabemo-lo, é uma substância que tinge de vermelho os objectos dela impregnados. Ao fim de um mês o animal apresenta um esqueleto de cor vermelha. Em se lhe dando, a seguir, o alimento usual, os ossos passam a branquear, começando pelo centro, uma vez que a renovação incessante, dos ossos como da carne, se opera do interior para o exterior. Outra experiência consiste em descarnar um osso e rodeá-lo de um fio de platina. Pouco a pouco, o anel de platina se recobre de camadas sucessivamente formadas e acaba por ficar no interior do osso. Eis que assim se renovam os ossos. A carne e os tecidos moles sofrem uma acção mais rápida.

  Com Quatrefages verificamos “duas correntes contrárias a circularem nas profundezas do ser: uma extraindo incessantemente, molécula por molécula, alguma coisa do organismo, e outra reparando, relativamente, todas as brechas que, por mais extensas, acarretariam a morte”. A força orgânica, que constitui o nosso ser, oculta-se sob a vestimenta variável da carne, mas nós sentimo-la palpitante no seu ardente vigor. Ela nos conforma, dirige, governa. Atentai nesses representantes primitivos da escala zoológica, nesses crustáceos protegidos de uma couraça contra a subversão da crosta terrena; detende-vos nesses anelídeos, nesses vermes que, seccionados, continuam a viver. Arrancai à lagosta uma pata e esta lhe renascerá com todos os seus caracteres. Cortai a de uma salamandra e vê-la-eis integralmente reconstituída. Esmagai a cauda de um lagarto, ela lhe renascerá. Seccionai a minhoca em muitos pedaços e cada qual recuperará o que lhe falta. A flor de coral, destacada de sua matriz, vai, através das ondas, constituir nova árvore. Será a matéria, só por si, que opera tais coisas? Será que tais coisas não revelam a acção constante da força típica que modela os seres segundo a espécie, e que, sem dúvida, lhe é mais essencial do que as moléculas orgânicas com as suas propriedades químicas?

  E, que haveremos de concluir da metamorfose dos insectos, essas formas transitórias, nas quais só a força persiste, através das fases de letargia e ressurreição? A falena que esvoaça, no ar luminoso, não será o mesmo ser há pouco existente na larva ou na lagarta?

  Diante de tais factos, é claro, incontroverso, que uma força, seja qual for (o nome pouco importa), organiza a matéria, segundo a forma típica das espécies, animais e vegetais.

  Ora, os nossos contraditores não vacilam em afirmar que nada existe, absolutamente, e que tudo se pode explicar com as propriedades químicas das moléculas. Pretende, Moleschott, que “o conjunto das circunstâncias, esse estado mediante o qual a afinidade material engendra as mesmas formas persistentes, recebeu de Henle, a exemplo de Scheiling, o nome de força típica. Esta força típica é um pequeno passo precedente à força vital, visto comportar tantos estados de matéria quantos sejam os órgãos e as espécies. Mas, a força padronizadora de plantas e animais é uma ideia tão oca, tão pueril quanto à da força vital a que se radica.”

  O Sr. Wirchow chama-lhe pura superstição, incapaz de negar parentesco com a crença demoníaca e com a pesquisa da pedra filosofal.

  Quanto ao autor do Estudo de Filosofia Positiva, esse fecha os olhos e diz: – “de real só há corpos”.

  Bois-Reymond, a seu turno, declara, numa obra sobre a electricidade animal, que a pretensa força vital não passa de quimera.

  Se os nossos antagonistas se obstinam em sustentar que os organismos estão submetidos a forças intrínsecas, não têm mais do que afirmar o seguinte: – “a molécula material, entrando no turbilhão da vida, recebe por algum tempo o dom de novas forças e torna a perdê-las quando o turbilhão da vida, agastado, a rejeite definitivamente nas plagas da Natureza inanimada”.

  É um raciocínio falso, o desses senhores, uma vez que basta à molécula a só entrada no turbilhão da vida para que se comporte em conformidade com o tipo individual que momentaneamente a retém. Para conservar o cepticismo, são obrigados, como já vimos, a fazer vista grossa à diferença que distingue o corpo vivo do cadavérico. Não se pode ter mais por duvidosa, na opinião de Du Bois-Reymond, a questão de saber “se a diferença – única cuja possibilidade admitimos – entre os fenómenos da Natureza viva e morta, existe realmente. Uma diferença dessa espécie não existe. Nos organismos, forças novas não se agregam às moléculas materiais, nem força alguma que não esteja em actividade fora dos organismos. Portanto, não há forças que se possam chamar vitais. A separação entre supostas naturezas, orgânica e inorgânica, é absolutamente arbitrária. Os que teimam em mantê-la, os que pregam a heresia da força vital, seja com que rótulo for, fiquem certos de terem jamais atingido os limites do próprio raciocínio”.

  Notemos, de passagem, a firmeza e mais este leve tom de arrogância com que se referem aos que divergem das suas teorias. Veja-se como emitem as mais contestáveis proposições.

  “As propriedades do azoto, do carbono, do hidrogénio, do oxigénio, do enxofre, do fósforo – afirmam – existem de toda a eternidade. Provem-nos o contrário... Calam-se? É que não têm razão? E com isso, está ganha a partida. As propriedades da matéria não podem mudar, quando entram na composição de vegetais e animais. Logo, é evidente que a hipótese de uma força peculiar à vida é absolutamente quimérica!”

  Objectam, enfim, que essa força não existe, porque “força sem substrato material é ideia abstracta, desprovida de senso”.

  Por nós, não vemos necessidade de admitir que não exista uma força típica, ou que essa força seja extrínseca à matéria. Os nossos negativistas incidem, aqui, no mesmo erro de quando se trata da existência de Deus, que declaram só possível de conceber fora do mundo. É sempre o mesmo princípio que está em jogo. Ao demais, nos seria fácil demonstrar que todos os conhecimentos humanos se reduzem, último rácio, à noção da força e da extensão; poderíamos invocar o testemunho da Matemática, da Física, da Química, da História Natural nos seus três reinos: Mineralogia, Botânica, Zoologia; a ciência do homem: Psicologia, Estética, Moral, Teologia natural, Filosofia; ciências que, todas, iriam esbarrar no mesmo nó substancial, isto é, a força e a extensão. Não cabe, entretanto, fazer aqui um dicionário. Baste-nos considerar do ponto de vista da vida esta dupla questão e notar, igualmente, o predomínio da força sobre a extensão.

/…
(*) Buffon, que nunca foi mecânico, enganou-se neste ponto, pois hoje sabemos que a Mecânica, tanto como a Química, representa um grande papel na construção do corpo. Esse erro, porém, não impede que as palavras do grande naturalista exprimam a verdade no condizente à preponderância da Força.


Camille FlammarionDeus na Natureza, Segunda Parte – A Vida 1, Circulação da Matéria (3 de 5), 19º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: Jungle Tales (Contos da Selva) 1895, pintura de James Jebusa Shannon)

sábado, 11 de agosto de 2018

agonia das religiões ~


A Criação do Homem |

Concedo-me o direito de me abstrair do problema de Deus para examinar a questão da criação do homem. Os cientistas colocaram-se precisamente nesta posição e admitiram a existência de um processo evolutivo no qual o homem aparece como resultado de uma filogénese fantástica. Dos animais inferiores até aos superiores, num desenvolvimento progressivo e complexo, as forças naturais modelaram formas sucessivas de vida que deram como resultado o aparecimento da espécie humana na Terra. A superioridade do homem perante as espécies animais de que ele procederia, suscitou dúvidas e debates que permanecem até hoje. Simone de Beauvoir, discípula e companheira de Sartre no campo da concepção existencialista sem Deus, admitiu que a palavra espécie não pode ser aplicada à humanidade, que não é uma espécie animal, mas um devir, algo em auto-evolução constante e irrefreável. Alfred Russell Wallace, adversário de Darwin no campo evolucionista, opôs-se ao seu materialismo biológico, sustentando uma posição espiritualista. De Spencer a Bergson a concepção evolucionista conseguiu firmar-se como a mais elevada interpretação da realidade, apesar da insistência das correntes dogmáticas-religiosas e das correntes irracionalistas em combatê-la, considerando-a simples teoria metafísica sem bases científicas.

Após a segunda guerra mundial e em consequência das atrocidades a que grandes nações civilizadas foram conduzidas, o pessimismo levou o homem a novas formas de dúvida. Passou a falar-se em mudanças, não em progresso ou em evolução. Produto do susto e da decepção, esse recuo está a ser superado pelo próprio avanço científico, em que os processos da evolução se confirmam continuamente. Kardec já advertia, no século passado, que o mal das interpretações humanas está na falta de uma visão mais ampla e profunda da realidade. Os homens vêem apenas um ângulo do quadro geral da Natureza e apegam-se a essa percepção restrita para a elaboração dos seus pensamentos. Exemplo típico dessa restrição mental é a tentativa, hoje renovada, de separar a evolução biológica, considerada inegável, dos demais aspectos do processo evolutivo universal. Uma restrição arbitrária, característica da orientação analítica da pesquisa científica e oposta à visão de conjunto dos métodos conclusivos da reflexão filosófica.

Na Ciência, como em tudo, temos de reconhecer a oposição dos contrários. O método analítico é uma faca de dois gumes. Por um lado faculta-nos a precisão objectiva no conhecimento de uma realidade específica, por outro lado impede-nos a visão de conjunto. Foi exactamente por isso que se tornou necessário, após o aparente desprestígio da Filosofia, perante as conquistas inegáveis da pesquisa científica, recorrer-se à Filosofia das Ciências para se evitar a fragmentação total do Conhecimento. Só no plano filosófico se tornou possível reajustar as conquistas científicas num quadro geral de interpretação da realidade. Mas existe outro factor determinante da desconfiança científica em relação aos princípios espíritas, que é o instinto de conservação, agente preservador da integridade do homem e das suas realizações. Esse instinto, bem manifesto no sócio-centrismo das instituições científicas ou de qualquer outra natureza, reage contra tudo o que possa modificar o saber já considerado como adquirido. Recentemente, o Prof. Remy Chauvin, do instituto de Altos Estudos de Paris, denunciou a existência no campo científico de uma alergia ao futuro, responsável pela rejeição liminar, sem exame, de toda a novidade, mesmo que sustentada por cientistas com mérito. Essa neofobia tem produzido muitos mártires no campo científico e cultural em geral.

Pouco a pouco, porém, e hoje mais rapidamente do que no passado, essa posição acomodatícia vai sendo vencida pelas próprias exigências do progresso, da evolução científica. Nos nossos dias, a descoberta da antimatéria, as pesquisas cósmicas, o reconhecimento dos fenómenos paranormais através da Parapsicologia, a recente descoberta do corpo-bioplásmico do homem e de todos os seres, o êxito, ainda incipiente mas já significativo, das pesquisas sobre a reencarnação, a constatação da existência de outras dimensões da realidade, a evolução do conceito de universos-paralelos para o de universos interpenetrados, a aceitação da pluralidade dos mundos habitados e da escala evolutiva dos mundos – proposta há mais de um século pelo Espiritismo – estão a arrancar as corporações científicas das suas cómodas poltronas académicas e lançando-as decisivamente em órbita, nas rotas giratórias do progresso.

Lembro-me de um poema de Rainer Maria Rilke, em que ele se compara a um falcão que gira em círculos crescentes em torno de uma torre secular, símbolo de Deus. É uma imagem feliz da evolução, que se processa em espiral. O retorno à barbárie na segunda guerra mundial não representa o retrocesso da evolução humana, mas apenas uma curva decrescente da espiral que tocou os resíduos bárbaros do homem – a região subterrânea dos instintos animais – para uma espécie de catarse colectiva. Mas tudo serve para a exploração dos que se entregam ao comodismo e aos que ainda não conseguiram desprender o seu pensamento dos objectos materiais. A História da Matemática mostra-nos que o pensamento dos primitivos era de tal maneira apegado ao concreto que, nas tribos selvagens, a contagem das coisas não excedia ao número de dedos das mãos, indo quando muito até à soma dos dedos dos pés. A posição dos anti-evolucionistas actuais assemelha-se, guardadas as distâncias culturais, à dos selvagens presos aos seus próprios dedos. Temos a prova da evolução em nós mesmos e em tudo o que nos rodeia, mas os espíritos sistemáticos e opiniáticos querem as favas contadas onde não há favas.

Espiritismo ensina que tudo se encadeia no Universo, numa sequência constante de relações. No item 540 de “O Livro dos Espíritos”, a obra fundamental da doutrina, encontramos esta proposição: Tudo se encadeia na Natureza, desde o átomo primitivo até ao Arcanjo, pois ele mesmo começou pelo átomo. Assim, do átomo nasce o minério, deste o vegetal, deste ao animal, deste ao homem e deste ao Anjo, ao Arcanjo e quantas criaturas espirituais quisermos enumerar. Por isso, o sobrenatural desaparece quando admitimos o processo contínuo da evolução. A Natureza mostra-nos as duas faces da concepção de Espinoza, com a sua teoria da Natureza naturata e da Natureza Naturans, equivalente ao conceito de um mundo sensível e um mundo inteligível, do pensamento de Platão, interligados e interatuantes. O que poderia existir fora da Natureza? Deus? Mas já vimos que a fonte originária, pelo facto mesmo de ser a origem de tudo está ligada ao Todo e nele se insere. Podemos, como os druidas (os sacerdotes celtas das Gálias) imaginar o Universo formado por três círculos: o de Gwinfidem que Deus permanece; o de Abred, em que vivemos as nossas vidas carnais; o de Anunf, correspondente às regiões inferiores do plano evolutivo. Mas na concepção materialista o círculo de Gwinfid não pode existir, uma vez que Deus foi excluído. Como podemos considerar a criação do homem sem a acção de Deus? É o que tentaremos expor agora.

A união de dois princípios fundamentais, força e matéria, existentes no caos primitivo, determina o aparecimento das estruturas atómicas. Os átomos aglutinam-se em formações diversas e produzem os elementos minerais. Mas estes elementos não estão mortos, não são estáticos. No seio da sua aparente placidez os átomos continuam em permanente agitação e produzem, quando as condições se tornam favoráveis, as primeiras formas vegetaisNestas formas temos o nascimento da sensibilidade rudimentar, que vai desenvolver-se até à produção das primeiras formas animais. A actividade atómica transmite-se a essas formas produzindo a motilidade, a capacidade de movimentação própria, que arranca os animais do solo e os submete às experiências vitais. A sensibilidade aguça-se e aprimora-se através dos milénios. Os cérebros rudimentares desenvolvem-se e enriquecem-se, o sistema nervoso (desenvolvimento do sistema fibroso vegetal) estrutura-se numa rede sensível, permitindo a organização de um aparelho cerebral que capta e reelabora os estímulos exteriores. Os animais evoluem até ao aparecimento dos primatas, que assinalam o salto qualitativo do cérebro animal para o cérebro humano.

Eis, em linhas gerais, neste esquema superficial, o processo de criação do homem. Quanto mais simples este esquema, mais fácil para compreendermos a lenta elaboração da criatura humana a partir da noite dos primórdios. Supor-se-á que essa criatura grosseira, elaborada a partir do mineral, não tenha qualquer outra experiência além das que enfrentou no processo de sua formação. Mas acontece que o homem se mostra dotado de uma inteligência criadora, capaz de desenvolvimento sem limites da sua imaginação e – o que mais assombra – dotada de um anseio crescente para elevar-se além da sua condição humana e atingir uma posição superior de que ele jamais podia ter tido algum vislumbre. Quanto mais se desenvolve, mais se acentua nele o contraste entre a sua condição primitiva – de bicho da Terra tão pequeno, como escreveu Camões – e os seus anseios incontidos de elevação e comunicação com os planos e os seres superiores, que ele nunca podia ter visto. De onde vem tudo isso? Supõem os materialistas que se trata de produto da imaginação excitada pelo medo, num desejo natural de alcançar a segurança através de criações imaginárias. Mas como explicar a coerência dessas criações arbitrárias com os fenómenos paranormais, cuja existência está hoje cientificamente provada? Que dizer de uma ideia primitiva, como a de uma duplicata do corpo material que pode projectar-se à distância, a que Spencer atribuiu simplesmente ao sonho, quando esse corpo hoje se confirma através das pesquisas cientificas no campo da Física e da Biologia, por pesquisadores materialistas?

Este é o momento em que temos de voltar à ideia de Deus inata na criatura humana – o Ser perfeito de Descartes encontrado no fundo da sua própria imperfeição – à lei de adoração assinalada por Kardec e que exerceu papel decisivo na orientação do homem para a sua humanização. O acaso da concepção materialista se transforma necessariamente numa inteligência cósmica a desafiar, pela sua grandeza e a sua inegável sabedoria na construção universal, a miserável inteligência humana, capaz de tudo atribuir a um jogo de forças cegas no seio de uma nebulosa. Não precisamos nem mesmo de pensar nas formações complexas do homem ou do anjo. Podemos ficar nos primórdios, a examinar apenas a estrutura do átomo, a construção infinitesimal desse universo microscópico, ou melhor, infra-microscópico. Mas se olharmos para cima e pensarmos nos sistemas solares, nas galáxias e nas super-galáxias, o absurdo da concepção materialista tornar-se-á simplesmente monstruoso. Sentiremos as orelhas de Midas substituírem, peludas e agudas, as nossas delicadas orelhas humanas.

E o que dizer da experiência de Deus procurada através de artifícios religiosos, depois dessa imensa extensão percorrida pela humanidade através dos milénios, numa experiência natural e vital em que as forças da vida vão brotando do chão do planeta e projectando-se às profundidades cósmicas? É como se milionários ensandecidos resolvessem juntar-se num quarto escuro, de portas e janelas fechadas, para contar os níqueis do bolso do colete a fim de avaliar quanto possuem, para terem a experiência do dinheiro. Basta isso para nos mostrar a razão da crise religiosa do presente. Os homens começaram a descobrir que possuem muito mais do que as igrejas lhes podem dar.

Criado do limo da terra, segundo a alegoria bíblica, arrancado das entranhas do reino mineral, segundo a teoria evolucionista espírita, o homem está ainda em formação, em desenvolvimento, amadurecendo nas experiências que enfrenta na existência corporal. O corpo é o seu instrumento de evolução. Um instrumento vivo e activo que ele precisa controlar pela força do espírito. Na proporção em que avança, o espírito se impõe ao corpo e o domina. A dialéctica da evolução torna-se nele um processo consciente. É o único responsável pelo sucesso ou fracasso do seu destino. Deus está nele como um poder de manutenção e orientação, mas não com poder punitivo. Ele mesmo se castiga ante o tribunal da sua consciência. Quando se dispõe a progredir, o prémio que recebe é a graça que o fortalece para que possa vencer o mal. Ninguém pode perdoar os seus erros, apagar as suas faltas. Dispõe da jurisdição de si mesmo e supera o seu condicionamento determinista pelas decisões do seu livre-arbítrio. Juiz e réu ao mesmo tempo, pode julgar-se com pleno conhecimento de causa.

/…


José Herculano Pires, Agonia das Religiões / Capítulo 6 – A Criação do Homem, 7º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: Paraíso Perdido, estudo do Anjo, lápis e giz de Alexandre Cabanel).