Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

sexta-feira, 24 de agosto de 2018

Deus na Natureza ~


A Vida ~ Circulação da Matéria ~
(III)

  Se não houvesse em nós uma força directora, como explicar a formação e a sustentada construção do corpo, nos moldes do tipo orgânico, do berço ao túmulo? Porquê, depois dos 20 anos, esse corpo que absorve tanto ar e tanto alimento, como até então, pára de crescer?

  Quem lhe distribui harmonicamente todas as substâncias assimiladas? Depois do crescimento em altura, quem lhe limita a espessura? Quem dá força ao homem maduro, quem repara continuadamente as peças da máquina animada?

  Sem admitir uma força orgânica, típica, vital (não nos atenhamos à palavra), como explicar a construção do corpo? O Sr. Scheffer diz que são as forças física e químicas. “Cada qual – diz ele – exerce sobre as outras uma influência que dá ao organismo, em todas as suas peças, uma certa uniformidade de ordem mais elevada. As acções especiais das forças individuais se conjugam, a seguir, num efeito total e formam uma resistência coordenadora da multiplicidade das partes num todo unitário, em que se desenha o tipo fundamental de toda a propriedade individual.” Eis o que se pode chamar uma explicação luminosa. Somente resta explicar como se produziriam todas essas maravilhosas combinações, à revelia de uma unidade virtual, organizadora. Quem constrói esse organismo? Como podem as propriedades da matéria operar sobre um plano, em conformidade com uma ideia que, por si, não podem ter? Como sabe o organismo, tão seguramente, escolher os alimentos que lhe convêm? Quem determina a reprodução fiel da espécie? É, portanto, mais fácil admitir todos os acasos, como diz Tissot, do que supor um princípio essencialmente activo, dotado de potência organizadora e com faculdades de exercê-la no sentido de tal ou tal tipo específico? “No homem, respondem, no seu conteúdo material e nas substituições de substância que nele se operam, a função química tem o seu papel, produz as partículas corporais capacitadas a servirem de suporte, ou substrato, de todo o edifício. Organiza-o a força vital, resultante de todas as combinações e desta organização é que resulta a força espiritual.” Aqui temos, patente, mero palavreado que nada explica.

  Vários materialistas, e com eles Mulder, riem-se da doutrina da força vital e comparam essa força a “uma batalha travada por milhares de combatentes, como se não estivesse em jogo apenas uma força que dispara os canhões, maneja os sabres, etc. O conjunto dos resultados, acrescenta Mulder, não é o resultado de uma única força, de uma força de batalha, mas a soma das forças e combinações inúmeras, em actividade num tal acontecimento.” Concluem, assim, que a força vital não é causa, mas efeito.

  À comparação não falta justeza e, tem, ao demais, a inapreciável virtude de aproveitar mais a nós do que aos seus próprios imaginadores. De facto, é evidente, o que constitui a força de um exército e ganha a peleja não é tão-só o esforço particular de cada combatente, mas, sobretudo, a direcção global, a inteligência do generalíssimo, o plano da batalha, a ordem soberana que, do cérebro do organizador, se irradia aos subchefes e vai, através dos batalhões, até aos soldados, molas arregimentadas.

  Convencer-se-á alguém que não foi Napoleão quem venceu em Austerlitz? Perguntem a Thiers (que sabe mais do que o próprio Napoleão) se essas batalhas inolvidáveis, tanto quanto as ganhas e empenhadas de surpresa não revelam, acima do valor pessoal de cada combatente, o génio lugubremente célebre que vingava atirar ao túmulo, num relance de olhos, milhares de criaturas no apogeu de força e actividade.

  Se a um exército se impõe, imprescindível, o governo de um chefe e que uma severa disciplina o abranja na unidade de milhares de soldados, com maior soma de razão importa que uma força governe a matéria, reduzindo à unidade harmónica os milhões de moléculas que sucessivamente a conformam.

  Só mediante essa força é que existe o corpo, tal como se dá com o regimento, que, não sendo mais que uma entidade abstracta, existe por virtude de lei, antes que pelo valor de cada soldado. Chegam os conscritos novos, dá-se baixa dos velhos e de sete em sete anos está o regimento renovado. Nesse período, há licenças temporárias, engajamentos particulares e uma por outra modificação nas moléculas componentes do exército. Desculpem: cada oficial ou soldado não é mais que um número, a sua personalidade não entra em linha de conta. Podem os oficiais ser comparados aos zeros da ordem decimal, ou, por falar com mais elegância – chefes de dezenas ou centenas; mas, singularmente considerada, a sua personalidade pouco mais vale que a de um caçador. Os próprios coronéis mudam, sem que o regimento deixe de existir na sua forma idêntica. Sofrem os generais, igualmente, essas transições, que em nada prejudicam a existência das respectivas brigadas e divisões. A hierarquia militar é uma unidade e é nisso que reside a sua eficiência. Quanto às partes componentes da unidade, não são conhecidas. Indubitável, que um coronel à cabeça do seu regimento, ou um general no activo, têm mais importância, do ponto de vista do serviço, do que um simples granadeiroda mesma forma que um átomo de gordura cerebral tem maior importância do que um folículo de unha.

  Mas, o que constitui o tronco, ou o nó, de uma fonte de galhos extensos não é por si mesmo a fonte integral. Logo, a comparação dos adversos aproveita mais à nossa do que à sua tese.

  Qual o homem culto, o observador de boa fé, que ousará negar seja o nosso organismo engendrado por uma força especial? Qual a diferença de um cadáver para um corpo vivo? Há duas horas que o coração de tal homem deixou de bater; ei-lo estendido no leito fúnebre, a vida escapou-se-lhe independente de qualquer lesão, sem que houvesse distúrbio orgânico. O seu estado desafia autópsia minuciosa. Quimicamente falando, não há diferença alguma entre este e o corpo que vivia esta manhã. Em que diferem, repito, o corpo vivo e o cadavérico? Pela vossa teoria, eles não diferem, têm o mesmo peso, tamanho, forma. São os mesmos átomos, as mesmas moléculas, as mesmas propriedades físico-químicas. Chegais mesmo a ensinar que essas propriedades estão inviolavelmente ligadas aos átomos. Aí temos, portanto, o mesmo ser!

  Mas, não vedes que uma tal consequência vale por condenação formal do vosso sistema?

  Porque a verdade é que um ser vivo difere, evidentemente, de um morto. Isso é coisa tão vulgarmente sabida, que não podeis contestar. Confessai, pois, que uma hipótese que ensina não ser a vida senão um conjunto de propriedades químico-atómicas, cai pela base e pela cúpula, sendo que, nascimento e morte, alfa e ómega de toda a existência, protestam vitoriosamente contra as conclusões dessa hipótese.

  Chega a ser quase ultrajante para a inteligência humana a obrigação de sustentar que um corpo vivo difere de um morto e que neste já não existe força anímica. Afirmar que a vida é algo, é assim como afirmar que há luz em pleno dia. Devemos, porém, ensejar a que os antagonistas de além-Reno venham pôr os pontos nos is.

  Torna-se necessário que seja a força constitutiva da vida uma força muito especial, visto que, frente a ela, as moléculas corporais se distribuem harmónicas, numa unidade fecunda, ao passo que na sua ausência essas mesmas moléculas se separam, se desconhecem, se combatem e deixam logo cair em total dissolução esse organismo que se faz pó.

  Também é necessário que essa mesma força exista de uma forma particularíssima, pois que, de um lado, não sendo vivos todos os corpos da Natureza e, de outro lado, sendo os corpos vivos compostos com o mesmo material dos inorgânicos, diferem, contudo, dos primeiros, pelas especiais e admiráveis propriedades da vida.

  Ainda é necessário que seja a vida uma força soberana, visto não passar o corpo de um turbilhão de elementos transitórios, em mutação constante de todas as suas partes, persistindo ela, enquanto que a matéria passa.

  Concluir-se-á, daí, com Buffon, que haja no mundo duas espécies de moléculas, isto é: orgânicas e inorgânicas?

  Que as primeiras sejam células vivas, dotadas de sensibilidade e irritabilidade, a se passarem de um a outro ser vivo sem se imiscuírem nos corpos inorgânicos, enquanto que as segundas não entram na constituição geral da vida?

  Mas a Química orgânica demonstrou, à saciedade, que os elementos da matéria vivificada são os mesmos que os do mundo mineral, ou aéreo, o que vale dizer dos elementos oxigénio, hidrogénio, azoto, carbono, ferro, cal, etc.

  Dir-se-á, então, com o botânico Dutrochet e com o anatomista Bichat, que a vida seja uma excepção temporária às leis gerais da matéria, uma suspensão acidental das leis físico-químicas, que acabam sempre imolando o ser ao governo da matéria? Mas é uma ideia que não vacilamos em proclamar errónea, sendo que a vida é o alvo mais elevado e mais fulgurante da Criação, a perpetuar-se através das espécies, desde os primórdios do mundo.

  De resto, digam e pensem como entenderem, a vida não deixará de ser uma forçasuperior às afinidades elementares da matéria.

  O que caracteriza os seres vivos é a força orgânica que aglutina essas moléculas, segundo a conformação específica dos indivíduos e conforme o seu tipo específico. “As verdadeiras molas do nosso organismo – dizia Buffon – não são estes músculos, artérias e veias, mas forças interiores, que não obedecem de modo algum às leis da grosseira mecânica por nós imaginada e às quais tudo desejaríamos subordinar (*).” Em vez de procurarem conhecer as forças pelos seus efeitos, trataram de as afastar e até banir da Filosofia. Elas reapareceram, contudo, e mais imponentes que nunca.

  Cuvier, mais explícito, o declara, uma vez que observara directamente não passar a matéria de simples “depositária da força, por esta constrangida, de antemão, a caminhar no mesmo sentido que ela, bem como que a forma dos corpos lhe é mais essencial que a matéria, visto que esta transmuda, enquanto que aquela se conserva”.

  As experiências de Flourens, sobretudo, evidenciaram a mutabilidade da matéria, a contrastar com a permanência da força, que, a bem dizer, é o que tem de essencial o ser. Uma dessas experiências consiste em submeter um animal, durante trinta dias, ao regime da granza, que, sabemo-lo, é uma substância que tinge de vermelho os objectos dela impregnados. Ao fim de um mês o animal apresenta um esqueleto de cor vermelha. Em se lhe dando, a seguir, o alimento usual, os ossos passam a branquear, começando pelo centro, uma vez que a renovação incessante, dos ossos como da carne, se opera do interior para o exterior. Outra experiência consiste em descarnar um osso e rodeá-lo de um fio de platina. Pouco a pouco, o anel de platina se recobre de camadas sucessivamente formadas e acaba por ficar no interior do osso. Eis que assim se renovam os ossos. A carne e os tecidos moles sofrem uma acção mais rápida.

  Com Quatrefages verificamos “duas correntes contrárias a circularem nas profundezas do ser: uma extraindo incessantemente, molécula por molécula, alguma coisa do organismo, e outra reparando, relativamente, todas as brechas que, por mais extensas, acarretariam a morte”. A força orgânica, que constitui o nosso ser, oculta-se sob a vestimenta variável da carne, mas nós sentimo-la palpitante no seu ardente vigor. Ela nos conforma, dirige, governa. Atentai nesses representantes primitivos da escala zoológica, nesses crustáceos protegidos de uma couraça contra a subversão da crosta terrena; detende-vos nesses anelídeos, nesses vermes que, seccionados, continuam a viver. Arrancai à lagosta uma pata e esta lhe renascerá com todos os seus caracteres. Cortai a de uma salamandra e vê-la-eis integralmente reconstituída. Esmagai a cauda de um lagarto, ela lhe renascerá. Seccionai a minhoca em muitos pedaços e cada qual recuperará o que lhe falta. A flor de coral, destacada de sua matriz, vai, através das ondas, constituir nova árvore. Será a matéria, só por si, que opera tais coisas? Será que tais coisas não revelam a acção constante da força típica que modela os seres segundo a espécie, e que, sem dúvida, lhe é mais essencial do que as moléculas orgânicas com as suas propriedades químicas?

  E, que haveremos de concluir da metamorfose dos insectos, essas formas transitórias, nas quais só a força persiste, através das fases de letargia e ressurreição? A falena que esvoaça, no ar luminoso, não será o mesmo ser há pouco existente na larva ou na lagarta?

  Diante de tais factos, é claro, incontroverso, que uma força, seja qual for (o nome pouco importa), organiza a matéria, segundo a forma típica das espécies, animais e vegetais.

  Ora, os nossos contraditores não vacilam em afirmar que nada existe, absolutamente, e que tudo se pode explicar com as propriedades químicas das moléculas. Pretende, Moleschott, que “o conjunto das circunstâncias, esse estado mediante o qual a afinidade material engendra as mesmas formas persistentes, recebeu de Henle, a exemplo de Scheiling, o nome de força típica. Esta força típica é um pequeno passo precedente à força vital, visto comportar tantos estados de matéria quantos sejam os órgãos e as espécies. Mas, a força padronizadora de plantas e animais é uma ideia tão oca, tão pueril quanto à da força vital a que se radica.”

  O Sr. Wirchow chama-lhe pura superstição, incapaz de negar parentesco com a crença demoníaca e com a pesquisa da pedra filosofal.

  Quanto ao autor do Estudo de Filosofia Positiva, esse fecha os olhos e diz: – “de real só há corpos”.

  Bois-Reymond, a seu turno, declara, numa obra sobre a electricidade animal, que a pretensa força vital não passa de quimera.

  Se os nossos antagonistas se obstinam em sustentar que os organismos estão submetidos a forças intrínsecas, não têm mais do que afirmar o seguinte: – “a molécula material, entrando no turbilhão da vida, recebe por algum tempo o dom de novas forças e torna a perdê-las quando o turbilhão da vida, agastado, a rejeite definitivamente nas plagas da Natureza inanimada”.

  É um raciocínio falso, o desses senhores, uma vez que basta à molécula a só entrada no turbilhão da vida para que se comporte em conformidade com o tipo individual que momentaneamente a retém. Para conservar o cepticismo, são obrigados, como já vimos, a fazer vista grossa à diferença que distingue o corpo vivo do cadavérico. Não se pode ter mais por duvidosa, na opinião de Du Bois-Reymond, a questão de saber “se a diferença – única cuja possibilidade admitimos – entre os fenómenos da Natureza viva e morta, existe realmente. Uma diferença dessa espécie não existe. Nos organismos, forças novas não se agregam às moléculas materiais, nem força alguma que não esteja em actividade fora dos organismos. Portanto, não há forças que se possam chamar vitais. A separação entre supostas naturezas, orgânica e inorgânica, é absolutamente arbitrária. Os que teimam em mantê-la, os que pregam a heresia da força vital, seja com que rótulo for, fiquem certos de terem jamais atingido os limites do próprio raciocínio”.

  Notemos, de passagem, a firmeza e mais este leve tom de arrogância com que se referem aos que divergem das suas teorias. Veja-se como emitem as mais contestáveis proposições.

  “As propriedades do azoto, do carbono, do hidrogénio, do oxigénio, do enxofre, do fósforo – afirmam – existem de toda a eternidade. Provem-nos o contrário... Calam-se? É que não têm razão? E com isso, está ganha a partida. As propriedades da matéria não podem mudar, quando entram na composição de vegetais e animais. Logo, é evidente que a hipótese de uma força peculiar à vida é absolutamente quimérica!”

  Objectam, enfim, que essa força não existe, porque “força sem substrato material é ideia abstracta, desprovida de senso”.

  Por nós, não vemos necessidade de admitir que não exista uma força típica, ou que essa força seja extrínseca à matéria. Os nossos negativistas incidem, aqui, no mesmo erro de quando se trata da existência de Deus, que declaram só possível de conceber fora do mundo. É sempre o mesmo princípio que está em jogo. Ao demais, nos seria fácil demonstrar que todos os conhecimentos humanos se reduzem, último rácio, à noção da força e da extensão; poderíamos invocar o testemunho da Matemática, da Física, da Química, da História Natural nos seus três reinos: Mineralogia, Botânica, Zoologia; a ciência do homem: Psicologia, Estética, Moral, Teologia natural, Filosofia; ciências que, todas, iriam esbarrar no mesmo nó substancial, isto é, a força e a extensão. Não cabe, entretanto, fazer aqui um dicionário. Baste-nos considerar do ponto de vista da vida esta dupla questão e notar, igualmente, o predomínio da força sobre a extensão.

/…
(*) Buffon, que nunca foi mecânico, enganou-se neste ponto, pois hoje sabemos que a Mecânica, tanto como a Química, representa um grande papel na construção do corpo. Esse erro, porém, não impede que as palavras do grande naturalista exprimam a verdade no condizente à preponderância da Força.


Camille FlammarionDeus na Natureza, Segunda Parte – A Vida 1, Circulação da Matéria (3 de 5), 19º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: Jungle Tales (Contos da Selva) 1895, pintura de James Jebusa Shannon)

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