Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...
Mostrar mensagens com a etiqueta estações terrestres. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta estações terrestres. Mostrar todas as mensagens

domingo, 24 de setembro de 2023

Léon Denis e o Cristianismo ~


A Doutrina Secreta ~

 Qual é a verdadeira doutrina do Cristo? Os seus princípios essenciais encontram-se claramente enunciados no Evangelho. É a paternidade universal de Deus e a fraternidade dos homens, com as consequências morais que daí resultam; é a vida imortal a todos franqueada e que a cada um permite em si próprio realizar “o reino de Deus”, isto é, a perfeição, pelo desprendimento dos bens materiais, pelo perdão das injúrias e o amor ao próximo.

 Para Jesus, numa só palavra, toda a religião, toda a filosofia consiste no amor:

 “Amai os vossos inimigos; fazei o bem aos que vos odeiam e orai pelos que vos perseguem e caluniam; para serdes filhos de vosso Pai que está nos céus, o qual derrama o seu sol sobre os bons e os maus e, faz chover sobre os justos e os injustos. Porque, se não amais senão aos que vos amam, que recompensa deveis ter por isso?” (Mateus, V, 44 e seguintes.).

 Desse amor o próprio Deus nos dá o exemplo, porque os seus braços estão sempre abertos para o pecador:

 “Assim, o vosso Pai que está nos céus não quer que pereça um só desses pequeninos.”

 O sermão da montanha resume, em traços indeléveis, o ensino popular de Jesus. Nele está expressa a lei moral sob uma forma que nunca foi igualada.

 Os homens aí aprendem que não há mais seguros meios de elevação que as virtudes humildes e escondidas.

 “Bem-aventurados os pobres de espírito (isto é, os espíritos simples e rectos), porque deles é o reino dos céus. – Bem-aventurados os que choram, porque serão consolados. – Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque serão saciados. – Bem-aventurados os que são misericordiosos, porque alcançarão misericórdia. – Bem-aventurados os limpos de coração, porque esses virão a Deus.” (Mateus, V, 1 a 12; Lucas, VI, 20 a 25.)

 O que Jesus quer não é um culto faustoso, não são umas religiões sacerdotais, opulentas de cerimónias e práticas que sufocam o pensamento, não; é um culto simples e puro, todo de sentimento, consistindo na relação directa, sem intermediário, da consciência humana com Deus, que é o seu Pai:

 “É chegado o tempo em que os verdadeiros adoradores hão de adorar o Pai em espírito e verdade, porque tal quer, também, sejam os que o adorem. Deus é espírito e, em espírito e verdade é que devem adorar os que o adoram.”

 O ascetismo é coisa vã. Jesus limita-se a orar e a meditar, nos sítios solitários, nos templos naturais que têm por colunas as montanhas, por cúpula a abóbada dos céus e, de onde o pensamento mais livremente se eleva ao Criador.

 Aos que imaginam salvar-se por meio do jejum e da abstinência, diz:

 “Não é o que entra pela boca o que macula o homem, mas o que por ela sai.”

 Aos rezadores de longas orações:

 “O Vosso Pai sabe do que careceis, antes de lho pedirdes.”

 Ele não exige senão a caridade, a bondade, a simplicidade: “Não julgueis e não sereis julgados. Perdoai e sereis perdoados. Sede misericordiosos como o vosso Pai celeste é misericordioso. Dar é mais doce do que receber”.

 “Aquele que se humilha será exaltado; o que se exalta será humilhado”.

 “Que a tua mão esquerda ignore o que faz a direita, a fim de que a tua esmola fique em segredo; e então o teu Pai que vê em segredo, te retribuirá.”

 E tudo se resume nestas palavras de eloquente concisão:

 “Amai o vosso próximo como a vós mesmos e sede perfeitos como o vosso Pai celeste é perfeito. Nisso se encerram toda a lei e os profetas.

 Sob a suave e meiga palavra de Jesus, toda impregnada do sentimento da natureza, essa doutrina se reveste de um encanto irresistível, penetrante. Ela é saturada de terna solicitude pelos fracos e pelos deserdados. É a glorificação, a exaltação da pobreza e da simplicidade. Os bens materiais nos tornam escravos; agrilhoam o homem à Terra. A riqueza é um estorvo; impede o velo da alma e a retém longe do “reino de Deus”. A renúncia, a humildade, desatam esses laços e facilitam a ascensão para a luz.

 Por isso é que a doutrina evangélica permaneceu através dos séculos como a expressão máxima do espiritualismo, o supremo remédio aos males terrestres, a consolação das almas aflitas nesta travessia da vida, semeada de tantas lágrimas e angústias. É ainda ela que faz, a despeito dos elementos estranhos que lhe vieram misturar, toda a grandeza, todo o poder moral do Cristianismo.

 A doutrina secreta ia mais longe. Sob o véu das parábolas e das ficções, ocultava concepções profundas. No que se refere a essa imortalidade prometida a todos, definia-lhe as formas afirmando a sucessão das existências terrestres, nas quais a alma, reencarnada em novos corpos, sofreria as consequências de suas vidas anteriores e prepararia as condições do seu destino futuro. Ensinava a pluralidade dos mundos habitados, as alternâncias de vida de cada ser: no mundo terrestre, em que ele reaparece pelo nascimento, no mundo espiritual, ao qual regressa pela morte, colhendo num e noutro desses meios os frutos bons ou maus do seu passado. Ensinava a íntima ligação e a solidariedade desses dois mundos e, por conseguinte, a comunicação possível do homem com os espíritos dos mortos que povoam o espaço ilimitado.

 Daí o amor activo, não somente pelos que sofrem na esfera da existência terrestre, mas também pelas almas que em volta de nós vagueiam atormentadas por dolorosas recordações. Daí a dedicação que se devem às duas humanidades, a visível e a invisível, a lei de fraternidade na vida e na morte e a celebração do que chamavam “os mistérios”, a comunhão pelo pensamento e pelo coração com os que, Espíritos bons ou medíocres, inferiores ou elevados, compõem esse mundo invisível que nos rodeia e, sobre o qual se abrem esses dois pórticos por onde todos os seres alternativamente passam: o berço e o túmulo.

 A lei da reencarnação é indicada em muitas passagens do Evangelho e deve ser considerada sob dois aspectos diferentes: a volta à carne, para os Espíritos em via de aperfeiçoamento; a reencarnação dos Espíritos enviados em missão à Terra.

 No seu diálogo com Nicodemos, Jesus assim se exprime:

 “Em verdade te digo que, se alguém não renascer de novo, não poderá ver o reino de Deus.” Objecta-lhe Nicodemos: “Como pode um homem nascer, sendo já velho?” Jesus responde: “Em verdade te digo que, se um homem não renasce da água e do espírito, não pode entrar no reino de Deus. O que é nascido da carne é carne e, o que é nascido do espírito é espírito. Não te maravilhes de te dizer: importa-vos nascer outra vez. O vento sopra onde quer e tu ouves a sua voz, mas não sabes de onde vem nem para onde vai. Assim é todo aquele que é nascido do espírito.” (João, III, 3 a 8.)

 Jesus acrescenta estas palavras significativas: “Tu és mestre em Israel e não sabes estas coisas?”

 O que demonstra que não se tratava do baptismo, que era conhecido pelos judeus e por Nicodemos, mas precisamente da reencarnação já ensinada no “Zohar”, livro sagrado dos hebreus. (ii)

 Esse vento, ou esse espírito que sopra onde lhe apraz, é a alma que escolhe o novo corpo, a nova morada, sem que os homens saibam de onde vem, nem para onde vai. É a única explicação satisfatória.

 Na Cabala hebraica, a água era a matéria primordial, o elemento frutificado. Quanto à expressão Espírito Santo, que se encontra no texto e que o torna incompreensível, é preciso notar que a palavra santo nele não está na sua origem e que foi aí introduzida muito tempo depois, como se deu em vários outros casos. (iii) É preciso, por conseguinte, ler: renascer da matéria e do espírito.

 Noutra ocasião, a propósito de um cego de nascença, encontrado de passagem, os discípulos perguntam a Jesus:

 “Mestre, quem foi que pecou? Foi este homem, ou o seu pai, ou a sua mãe, para que ele tenha nascido cego?” (João, IX, 1 e 2).

 A pergunta indica, antes de tudo, que os discípulos atribuíam a enfermidade do cego a uma expiação (de uma vida anterior). No seu pensamento, a falta precedera a punição; tinha sido a sua causa primordial. É a lei da consequência dos actos, fixando as condições do destino. Trata-se aí de um cego de nascença; a falta não se pode explicar senão por uma existência anterior.

 Daí essa ideia da penitência, que reaparece a cada momento nas Escrituras: “Fazei penitência”, dizem elas constantemente, isto é, praticai a reparação, que é o fim da vossa nova existência; rectificai o vosso passado, espiritualizai-vos, porque não saireis do domínio terrestre, do círculo das provações, senão depois de “haverdes pagado até ao último ceitil.” (Mateus, V, 26).

 Em vão têm procurado os teólogos explicar doutro modo, que não é pela reencarnação, essa passagem do Evangelho. Chegaram a raciocínios, pelo menos, estranhos. Assim foi que o sínodo de Amsterdão não pôde sair-se da dificuldade senão com este dizer: “o cego de nascença havia pecado no seio de sua mãe”. (iv)

 Era também opinião corrente, nessa época, que Espíritos eminentes vinham, em novas encarnações, continuar, concluir missões interrompidas pela morte. Elias, por exemplo, voltara à Terra na pessoa de João Baptista. Jesus afirma-o nestes termos, dirigindo-se à multidão:

 “Que saíste a ver? Um profeta? Sim, eu vo-lo declaro e, mais que um profeta. E, se o quereis compreender, ele é o próprio Elias que devia vir. – O que tem ouvidos para ouvir, ouça.” (Mateus, XI, 9, 14 e 15)

 Mais tarde, depois da decapitação de João Baptista, ele repete-o aos discípulos:

 “E os seus discípulos o interrogam, dizendo: Porque, pois, dizem os escribas que importa vir primeiramente Elias? – Ele, respondendo, lhes disse:”

 “Elias, certamente, devia vir e restabelecer todas as coisas. Mas eu vo-lo digo: Elias já veio e eles não o conheceram, antes lhe fizeram quanto quiseram. – Então, conheceram os seus discípulos que de João Baptista é que ele lhes falara.” (Mateus, XVII, 10, 11, 12 e 15).

 Assim, para Jesus, como para os discípulos, Elias e João Baptista eram a mesma e uma única individualidade. Ora, tendo essa individualidade revestido sucessivamente dois corpos, semelhante facto não se pode explicar senão pela lei da reencarnação.

 Numa circunstância memorável, Jesus pergunta aos seus discípulos: “Que dizem do filho do homem?”

 E eles lhe respondem:

 “Uns dizem: é João Baptista; outros, Elias; outros, Jeremias ou um dos profetas.” (Mateus, XVI, 13, 14; Marcos, VIII, 28)

 Jesus não protesta contra essa opinião como doutrina, do mesmo modo que não protestara no caso do cego de nascença. Ao demais, a ideia da pluralidade das vidas, dos sucessivos graus a percorrer para se elevar à perfeição, não se encontra implicitamente contida nestas palavras memoráveis: “Sede perfeitos como o vosso Pai celeste é perfeito.” Como poderia a alma humana alcançar esse estado de perfeição em uma única existência?

 De novo encontramos a doutrina secreta, dissimulada sob os véus mais ou menos transparentes, nas obras dos apóstolos e dos padres da Igreja dos primeiros séculos. Não podiam estes dela falar abertamente. Daí as obscuridades da sua linguagem.

 Aos primeiros fiéis escrevia Barnabé:

 “Tanto quanto pude, acredito ter-me explicado com simplicidade e nada haver omitido do que pode contribuir para a vossa instrução e salvação, no que se refere às coisas presentes, porque, se vos escrevesse relativamente às coisas futuras, não compreenderíeis, porque elas se encontram expostas em parábolas.” (Epístola católica de São Barnabé, XVII, l, 5).

 Em observância a esta regra é que um discípulo de São PauloHermas, descreve a lei das reencarnações sob a figura de “pedras brancas, quadradas e lapidadas”, tiradas da água para servirem na construção de um edifício espiritual. (Livro do Pastor, III, XVI, 3, 5).

 “Porque foram essas pedras tiradas de um lugar profundo e em seguida empregadas na estrutura dessa torre, pois que já estavam animadas pelo espírito? – Era necessário, diz-me o senhor, que, antes de serem admitidas no edifício, fossem trabalhadas por meio da água. Não poderiam entrar no reino de Deus por outro modo que não fosse despojando-se da imperfeição da sua primeira vida.”

 Evidentemente essas pedras são as almas dos homens; as águas (v) são as regiões obscuras, inferiores, as vidas materiais, vidas de dor e provação, durante as quais as almas são lapidadas, polidas, lentamente preparadas, a fim de tomarem lugar um dia no edifício da vida superior, da vida celeste. Há nisso um símbolo perfeito da reencarnação, cuja ideia era ainda admitida no século III e divulgada entre os cristãos.

 Dentre os padres da Igreja, Orígenes é um dos que mais eloquentemente se pronunciaram a favor da pluralidade das existências. Respeitável a sua autoridade. São Jerónimo considera-o, “depois dos apóstolos, o grande mestre da Igreja, verdade – diz ele – que só a ignorância poderia negar”. S. Jerónimo vota tal admiração a Orígenes que assumiria, escreve, todas as calúnias de que ele foi alvo, uma vez que, por esse preço, ele, Jerónimo, pudesse ter a sua profunda ciência das Escrituras.

 No seu livro célebre, “Dos Princípios”, Orígenes desenvolve os mais vigorosos argumentos que mostram, na preexistência e sobrevivência das almas noutros corpos, numa palavra, na sucessão das vidas, o correctivo necessário à aparente desigualdade das condições humanas, uma compensação ao mal físico, como ao sofrimento moral que parece reinarem no mundo, se já não se admite uma única existência terrestre para cada alma. Orígenes erra, todavia, num ponto. É quando supõe que a união do espírito ao corpo é sempre uma punição. Ele perde de vista a necessidade da educação das almas e a laboriosa realização do progresso.

 Errónea opinião se introduziu em muitos centros, a respeito das doutrinas de Orígenes, em geral e, da pluralidade das existências em particular, que pretendem ter sido condenadas, primeiro pelo concílio de Calcedónia e mais tarde pelo quinto concílio de Constantinopla. Ora, se remontamos às fontes, (vi) reconhecemos que esses concílios repeliram, não a crença na pluralidade das existências, mas simplesmente a preexistência da alma, tal como a ensinava Orígenes, sob esta feição particular: que os homens eram anjos decaídos e que o ponto de partida tinha sido para todos a natureza angélica.

 Na realidade, a questão da pluralidade das existências da alma nunca foi resolvida pelos concílios. Permaneceu aberta às resoluções da Igreja no futuro e é esse um ponto que é necessário estabelecer.

 Como a lei dos renascimentos, a pluralidade dos mundos se encontra indicada no Evangelho, em forma de parábola:

 “Há muitas moradas na casa de meu Pai. Eu vou a preparar-vos o lugar e, depois que tiver ido e vos tiver preparado o lugar, voltarei e vos levarei comigo, a fim de que onde eu estiver, vós estejais também.” (João, XIV, 2 e 3)

 A casa do Pai é o céu infinito; as moradas prometidas são os mundos que percorrem o espaço, esferas de luz ao pé das quais a nossa pobre Terra não é mais que um mesquinho e obscuro planeta. É para esses mundos que Jesus guiará as almas que se ligarem a ele e à sua doutrina, mundos que lhe são familiares e onde nos saberá preparar um lugar, conforme os nossos méritos.

 Orígenes comenta essas palavras em termos positivos:

 “O Senhor faz alusão às diferentes estações que devem as almas ocupar, depois que se houverem despojado dos seus corpos actuais e se tiverem revestido de outros novos.”

/…
(ii) Ver a nota complementar nº 5. ( link para aceder à nota)
(iii) Ver Bellemare, "Espírita e Cristão", págs. 351 e seguintes.
(iv) Ver nota complementar n° 5. ( link para aceder...)
(v) Essa parábola adquire maior relevo pelo facto de ser a água, para os judeus cabalista, a representação da matéria, o elemento primitivo, o que chamaríamos hoje o éter cósmico.
(vi) Ver Pezzani, "A pluralidade das existências", páginas 187 e 190.


Léon Denis (1846-1927) (i)Cristianismo e Espiritismo, Título Original em Francês; Léon Denis - Christianisme et Spiritisme, Librairie des Sciences Psychiques, Paris (1898). – A Doutrina Secreta, 5º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: Paraíso Perdido, estudo do Anjo, lápis e giz de Alexandre Cabanel)

domingo, 26 de fevereiro de 2023

Diálogos de Kardec ~


~ o caminho da vida ~ 

A questão da pluralidade das existências, tem desde há muito tempo, preocupado os filósofos e, mais de um, reconheceu; na anterioridade da alma, a única solução possível para os mais importantes problemas da psicologia. Sem esse princípio, eles se encontram presos a cada passo, encurralados num beco sem saída, donde somente poderão escapar com o auxílio da pluralidade das existências. 

A maior objecção que podem fazer a esta teoria é a da ausência da lembrança das existências anteriores. Com efeito, uma sucessão de existências inconscientes, umas das outras; deixando um corpo, para ocupar outro, sem a memória do passado, equivaleria ao nada, visto que quanto ao pensamento seria o nada; seria uma multiplicidade de novos pontos de partida, sem ligação entre si; seria a ruptura incessante de todas as afeições que fazem o encanto da vida presente, a mais doce e consoladora esperança do futuro; seria, afinal, a negação de toda a responsabilidade moral. Semelhante doutrina seria tão inadmissível e tão incompatível com a justiça divina, quanto a de uma única existência com a perspectiva de uma eternidade de penas por algumas faltas temporárias. Compreende-se então que, os que fazem semelhante ideia da reencarnação a recusem; mas, não é assim que o Espiritismo no-la apresenta. 

A existência espiritual da alma, diz ele, é a sua existência normal com a lembrança retrospectiva indefinida. As existências corpóreas são apenas intervalos(curtas estações) na existência espiritual, sendo a soma de todas as estações, apenas uma parcela mínima da existência normal, absolutamente como se numa viagem de muitos anos, de tempos a tempos, o viajante parasse durante algumas horas. Embora pareça que, durante as existências corporais, haja solução de continuidade, por ausência de lembrança, a ligação efectivamente se estabelece no curso da vida espiritual, que não sofre interrupção. A solução de continuidade, realmente, só existe para a vida corpórea exterior e de relação e, a ausência, aí, da lembrança prova a sabedoria da Providência que assim evitou fosse o homem por demais desviado da vida real, onde ele tem deveres a cumprir; mas, quando o corpo se encontra em repouso, durante o sono, a alma levanta voo parcialmente e restabelece então a cadeia interrompida, apenas durante a vigília. 

A isto ainda se pode opor uma objecção, perguntando que proveito pode o homem tirar das suas existências anteriores, para se melhorar, dado que ele não se lembra das faltas que tenha cometido. O Espiritismo responde, primeiro, que a lembrança das existências infelizes, juntando-se às misérias da vida presente, ainda mais penosa tornaria esta última. Desse modo, poupou Deus às suas criaturas um acréscimo de sofrimentos. Se assim não fosse, qual não seria a nossa humilhação, ao pensarmos no que já fomos! Para o nosso melhoramento, aquela recordação seria inútil. Durante cada existência, damos sempre alguns passos para a frente, adquirimos algumas qualidades e nos despojamos de algumas imperfeições. Cada uma de tais existências é, portanto, um novo ponto de partida, em que somos aquilo em que nos tivermos feito, em que nos tomamos pelo que somos, sem nos preocuparmos com o que tivesse-mos sido. Se numa existência anterior, fomos antropófagos, que importa isso, uma vez que já o não somos? Se tínhamos um defeito qualquer, de que já não conservamos nenhum vestígio, aí está uma conta saldada, de que não mais nos cumpre cuidar. Suponhamos que, porém, se trate de um defeito apenas meio corrigido: o restante ficará para a vida seguinte e será nesta que dele devemos cuidar, corrigindo-o. 

Tomemos um exemplo: um homem foi assassino e ladrão e, foi punido, quer na vida corpórea, quer na vida espiritual; ele se arrepende e corrige do primeiro pendor, porém, não do segundo. Na existência seguinte, será apenas ladrão, talvez um grande ladrão, porém, não mais assassino. Mais um passo para diante e já não será mais que um ladrão vago; um pouco mais tarde já não roubará, mas poderá ter a tentação de roubar, mas que a sua consciência neutralizará. Depois, um esforço derradeiro e, tendo desaparecido todos os vestígios da enfermidade moral, será um modelo de probidade. Que lhe importa então o que ele foi? A lembrança de ter acabado no cadafalso não seria uma tortura e uma humilhação constantes? 

Aplicai este raciocínio a todos os vícios, a todos os desvios e, podereis ver como a alma se melhora, passando e voltando a passar pelos cadinhos da encarnação. Não terá sido Deus mais justo com o tornar o homem árbitro de sua própria sorte, pelos esforços que empregue para se melhorar, do que se fizesse que a sua alma nascesse ao mesmo tempo que o seu corpo e o condenasse a castigos perpétuos por erros passageiros, sem lhe conceder meios de purificar-se das suas imperfeições? Pela pluralidade das existências, o seu futuro está nas suas mãos. Se ele gasta muito tempo a melhorar-se, sofre as consequências dessa maneira de proceder: é a suprema justiça; a esperança, porém, jamais lhe é interdita. 

A seguinte comparação é de molde a tornar compreensíveis as peripécias da vida da alma: 

Suponhamos uma estrada longa, em cuja extensão se encontram – de distância em distância – mas com intervalos desiguais, florestas que se tem de atravessar e, à entrada de cada uma, a estrada larga e magnífica, se interrompe, para só continuar à saída. O viajante segue por essa estrada e penetra na primeira floresta. Aí, porém, não dá com caminho aberto; depara-se-lhe, ao contrário, um labirinto indestrinçável em que ele se perde. A claridade do Sol desapareceu sob a espessa ramagem das árvores. Ele vagueia, sem saber para onde se dirige. Afinal, depois de inauditas fadigas, chega aos confins da floresta, mas extenuado, dilacerado pelos espinhos, amachucado pelos montes de pedras. Lá, descobre de novo a estrada e prossegue a sua jornada, procurando curar-se das feridas. Mais adiante, segunda floresta se lhe afigura, onde o esperam as mesmas dificuldades. Mas, ele já possui um pouco de experiência e dela sai menos molestado. Noutra, cruza-se com um lenhador que lhe indica a direcção que deve seguir para se não transviar. A cada nova travessia, aumenta a sua sagacidade, de maneira que transpõe cada vez mais facilmente os obstáculos. Certo de que à saída encontrará de novo a boa estrada, fixa-se nessa certeza; depois, já sabe orientar-se para encontrá-la com mais facilidade. A estrada termina no cume de uma montanha elevadíssima, donde ele descortina todo o caminho que percorreu desde o ponto de partida. Vê também as diferentes florestas que atravessou e se lembra das vicissitudes por que passou, mas essa lembrança não lhe é penosa, porque chegou ao fim da caminhada. É como o velho soldado que, então na calma do lar, recorda as batalhas que vivenciou. Aquelas florestas que lhe pontilhavam a estrada, são como que pontos negros sobre uma fita branca e, ele diz a si mesmo: “Quando eu estava naquelas florestas, nas primeiras, sobretudo, como me pareciam imensas de atravessar! Afigurava-se-me que nunca chegaria ao fim; tudo à minha volta me parecia gigantesco e intransponível. E quando penso que, sem aquele bondoso lenhador que me pôs no bom caminho, talvez eu ainda lá estivesse! Agora, que contemplo essas mesmas florestas do ponto onde me encontro, como se me apresentam pequeninas! Afigura-se-me, que de um passo, teria podido transpô-las; ainda mais, a minha vista as penetra e lhes distingue os menores detalhes; percebo até os passos em falso que dei.” 

Diz-lhe então um ancião: – “Meu filho, eis-te chegado ao termo da viagem; mas, um repouso indefinido causar-te-ia tédio mortal e tu tenderias a ter saudades das vicissitudes que experimentaste e que te davam actividade ao corpo e ao Espírito. Vês daqui grande número de viajantes na estrada que percorreste e que, como tu, correm o risco de perder-se; tens agora a experiência, nada mais temas: vai-lhes no encalço e procura com os teus conselhos guiá-los, a fim de que cheguem depressa.” 

– Irei com alegria, responde o nosso homem; entretanto, pergunto: por que não há uma estrada directa desde o ponto de partida até aqui? Isso pouparia aos viajantes o terem de atravessar aquelas abomináveis florestas. 

– Meu filho, novato ou mais experiente, atenta bem e verás que muitos evitam a travessia de algumas delas: são os que, tendo adquirido mais rapidamente a experiência necessária, sabem seguir um caminho mais directo e mais curto para chegarem aqui. Essa experiência, porém, é fruto do trabalho que as primeiras travessias lhes impuseram, de sorte que eles aqui chegam em virtude do próprio mérito. Que saberias, se por lá não tivesses passado? A actividade que tiveste de desenvolver, os recursos de imaginação que precisaste empregar para abrir caminho, aumentaram os teus conhecimentos e desenvolveram a tua inteligência. Sem que tal se desse, serias tão noviço quanto o eras à partida. Ao demais, procurando livrar-te dos obstáculos, contribuíste para o melhoramento das florestas que atravessaste. O que fizeste foi pouca coisa, imperceptível mesmo; pensa, contudo, nos milhares de viajantes que fazem outro tanto e que, trabalhando para si mesmos, trabalham, sem o perceberem, para o bem comum. Não será justo que recebam o salário de suas penas no repouso de que gozam aqui? Que direito teriam a esse repouso, se nada tivessem feito? 

– Meu pai, responde o viajante, numa das florestas, encontrei um homem que me disse: “Na orla há um imenso abismo a ser transposto de um salto; mas, de mil, apenas um só o consegue; todos os outros lhe caem no fundo, numa fornalha ardente e ficam perdidos sem remissão. Esse abismo, eu não vi.” 

– Meu filho, é que ele não existe, pois, de contrário, seria uma cilada abominável, armada a todos os que para cá se dirigem. Bem sei que lhes cabe vencer dificuldades, mas igualmente sei que cedo ou tarde as vencerão. Se eu tivesse criado impossibilidades para um só que fosse, sabendo que esse sucumbiria, teria praticado uma crueldade, que dificultaria imenso, a atingissem a maioria dos viajantes. Esse abismo é uma alegoria, cuja explicação vais receber. Olha para a estrada e observa os intervalos das florestas. Entre os viajantes, alguns vês que caminham com passo lento e semblante jovial; vê aqueles amigos, que se tinham perdido de vista nos labirintos da floresta, como se sentem ditosos, por se terem de novo encontrado ao deixarem-na. Mas, a par deles, outros há que se arrastam penosamente; estão estropiados e imploram a compaixão dos que passam, pois que sofrem atrozmente das feridas de que, por culpa própria, se cobriram, atravessando os espinheiros. Curar-se-ão, no entanto e, isso lhes constituirá uma lição da qual tirarão proveito na floresta seguinte, donde sairão menos estropiados. O abismo simboliza os males que eles experimentam e, dizendo que de mil apenas um o transpõe, aquele homem teve razão, porquanto enorme é o número dos imprudentes; errou, porém, quando disse que aquele que ali cair não mais sairá. Para chegar a mim, o que tombou encontra sempre uma saída. Vai, meu filho, vai mostrar essa saída aos que estão no fundo do abismo; vai amparar os feridos que se arrastam pela estrada e mostrar o caminho aos que se embrenharam pelas florestas. 

A estrada é a imagem da vida espiritual da alma e em cujo percurso esta é mais ou menos feliz. As florestas são as existências corpóreas, em que elas trabalham pelo seu adiantamento, ao mesmo tempo que para a obra geral. O caminheiro que chega ao fim e que volta para ajudar os que vêm atrasados, representa os anjos guardiães, os missionários de Deus, que se sentem venturosos em vê-lo, como, também, no desdobrarem as suas actividades para fazer o bem e obedecer ao supremo Senhor. 

/... 


ALLAN KARDEC, Obras Póstumas, Primeira Parte – O caminho da vida, 22º fragmento desta obra. 
(imagem de contextualização: Dança rebelde, 1965 – Óleo sobre tela, de Noêmia Guerra)