Parte VI
A Música (Parte 1)
A Música (Parte 1)
(Julho de 1922)
A música é a voz dos céus profundos. No espaço tudo se traduz
em vibrações harmónicas e, certas classes de espíritos, se comunicam, entre si, apenas por meio de ondas sonoras.
Na Terra, a sinfonia e a melodia, não são mais que ecos
débeis e deformados dos concertos celestes. Os nossos instrumentos, mesmo os
mais perfeitos, têm sempre qualquer coisa de mecânico e de áspero, enquanto que
os sistemas de emissão do espaço, produzem os sons de uma delicadeza infinita.
Eis por que, em todos os graus da escala dos mundos e, da hierarquia
dos espíritos, a música tem um lugar importante nas manifestações do culto que
as almas rendem a Deus. Nas esferas superiores, ela se torna uma das formas
habituais da vida do ser, que se sente mergulhado em ondas de harmonia, de uma intensidade
e de uma suavidade, inexprimíveis.
Por ocasião das grandes festas no espaço, dizem os nossos
guias espirituais, quando as almas se reúnem aos milhões para prestar homenagem
ao Criador, na irradiação de sua fé e do seu amor, delas escapam eflúvios,
radiações luminosas, que se colorem de cores combinadas e se convertem em
vibrações melodiosas. As cores se transformam em sons e, dessa comunhão dos
fluidos, dos pensamentos e dos sentimentos, emana uma sinfonia sublime, à qual
respondem os acordes longínquos vindos das esferas, dos astros inumeráveis que
povoam a imensidão.
Então, do alto descem outros acordes, mais potentes ainda, e
um hino universal faz os céus e as terras estremecerem. Ao perceber esses acordes, o
espírito se desenvolve, se expande; ele sente que vive na comunhão divina e
entra em um arrebatamento que chega ao êxtase.
Sobre a Terra, a sinfonia é a forma mais alada da música.
Quando esta é aliada a palavras, ela parece a Vitória Áptera (i), que rastejava
sem poder levantar voo e planar no alto. A música ligada à palavras perde um
pouco do seu prestígio e da sua amplidão. No entanto, a melodia nos acalenta,
nos seduz, nos encanta; ela grava na nossa memória motivos que gostamos de
repetir e que nos consolam nas tristezas de cada dia. Essa música, porém,
parece muito pobre se a compararmos às harmonias do espaço; para entender e
apreciar estas harmonias, é preciso possuir sentidos psíquicos bastante
desenvolvidos.
Vimos mais de uma vez, nas sessões, carregadas lágrimas rolarem
sobre as faces de certos médiuns, que percebiam os ecos da sinfonia eterna.
O médium G. Aubert, ainda que ignorante em música, num
completo estado de automatismo, tocar no piano sonatas, árias inéditas e
variadas, nas quais se reconhece o estilo de Beethoven, o de Bach (ii), o de
Chopin (iii), o de Berlioz (iv), etc. A maior parte dos compositores célebres
afirma que, nas suas horas de recolhimento, ouvem vozes, sons, que não provêm da
Terra. (v)
Durante as famosas sessões dadas por Jesse Schefard, médium
escocês, em todas as grandes capitais e diante de várias cortes soberanas, bem
como nas sessões do Dr. San Ângelo, em Roma, ouviram-se coros celestes e acordes
de numerosos instrumentos invisíveis. Os solos (vi) permitiam reconhecer as
vozes dos cantores e cantoras falecidos.
A Sra. de Koning-Nierstrass relata uma de suas sessões,
(vii) nos seguintes termos:
“Jesse Schefard hospedou-se em minha casa, em Haye, por
cerca de seis semanas. Uma noite, eu e alguns amigos estávamos reunidos. O
médium, tendo se levantado em meio-transe, colocou-se ao piano. Batidas
ressoaram de todos os lados, luzes voltejavam no ambiente como borboletas... De
repente, vozes de homens e de mulheres encheram o ar. Era um coro que entoava
uma espécie de cântico; o Hosana e o Glória a Deus foram ouvidos por todos
nós. Ora era um coro, ora vozes de mulheres, o soprano dominando todo o canto.
Sentada perto do médium, constatei que ele não havia aberto a boca.
Dois dias depois, uma de minhas vizinhas me disse: ‘Ah! senhora
de Koning, desfrutei do belo concerto que houve na outra noite na vossa casa,
que músicos e que lindo coral se fizeram ouvir!’ E eu lhe perguntei: ‘A senhora
ouviu uma voz de cada vez ou todo um coro?’ ‘Um coro, respondeu a senhora, eu
percebia bem distintamente o soprano. Quem é que cantava tão maravilhosamente?’”
Esse testemunho espontâneo destruía qualquer hipótese de alucinação.
A respeito da música dos espíritos, lê-se na Introdução de Ensinamentos Espiritualistas, de
Stainton Moses, professor da Faculdade de Oxford, a descrição de fenómenos
obtidos em uma sala em que não havia piano, violino ou qualquer outro instrumento.
“Um som se produzia, excessivamente difícil de se descrever.
Ele se parecia com o suave som de um clarinete, aumentando de intensidade e
diminuindo de seguida, descendo até à primeira emissão abafada, por vezes também
se extinguindo em um longo lamento melancólico. Jamais tendo ouvido algo que se
aproxime desse som, verdadeiramente extraordinário, só posso dar-lhe uma
descrição muito imperfeita; é preciso observar que obtivemos dele apenas notas
isoladas e, no melhor dos casos, ritmos isolados. Os agentes invisíveis
atribuíam esse facto à organização anti-musical do médium.”
Aliás, lê-se em Light,
de 30 de Abril, as seguintes narrações, que mostram uma outra modalidade dessas
manifestações, obtidas à cabeceira de moribundos e percebidas por outras
pessoas presentes.
“Muitos livros foram escritos sobre as visões de moribundos
e os acontecimentos extra-normais observados no momento da morte. Entre os casos
mais interessantes, pode citar-se o do pequeno prisioneiro do Templo: Luís XVII
(viii). Beauchesne conta que poucos instantes antes da morte do jovem príncipe,
lhe perguntaram se sofria muito. Ele respondeu: ‘Sim, sofro, mas não muito, a
música é tão bela’. Fizeram-lhe perguntas referentes a essa música que pessoa
alguma ouvia, mas ele persistia em dizer: ‘É tão bela, eu a ouço’, e se
admirava que ninguém a ouvisse.”
Há, também, o caso de Jakob Böhme (ix), cuja partida da
Terra foi acompanhada da mais suave melodia, a qual ele foi o único a ouvir e a
proclamar divina. Para Goethe, ao contrário, os sons que ele percebia no seu
leito de morte, quando gritava; “Luz, mais luz ainda”, foram ouvidos por
aqueles que se encontravam perto dele.
Chegam-nos de todos os lados da Inglaterra narrações sobre
essas melodias do Alto, ouvidas pelos moribundos e frequentemente por aqueles
que os assistem.
“A Sra. Leaning nos escreve: ‘Quando Lily Sewell morreu,
sons harmoniosos foram ouvidos, pareciam proceder de um canto do quarto e isso
durante os dois dias que precederam a morte. A criança não ouviu nada, mas os
seus pais, a sua irmã e a empregada os perceberam, e no terceiro dia, quando a
criança morreu, o som se suavizou, tornou-se semelhante ao som de uma harpa eólica
(x), saiu do quarto, passou pela casa e se afastou gradualmente.”
Um professor de Eton (xi), em 1881, estando ao lado de sua
mãe, ouviu, alguns minutos após ela ter morrido, a suave música de três vozes
infantis, cantando um hino de uma forma tão penetrante que um ser humano não
poderia tê-lo feito. Duas pessoas presentes, e o médico que lá se encontrava,
também a ouviram e abriram uma janela para descobrir de onde vinham esses sons
maravilhosos.
O Dr. Kenealy conta, assim, a morte de seu jovem irmão: “O seu
quarto se abria para uma grande e bela paisagem, emoldurada por verdes colinas.
Perto do seu leito, várias pessoas da família estavam sentadas, assim como o
médico; era quase meio-dia, o Sol brilhante iluminava o quarto, o ar era puro e
transparente; de repente, ouvimos uma melodia divina elevar-se bem perto de
nós: era uma voz melancólica e celeste de mulher, voz cujas modulações não se podem
descrever. Isso durou alguns minutos, depois fundiu-se, como o encrespar das
ondas sobre a areia, ora ainda ressoando, ora apenas murmurando, depois fez-se
o silêncio. Quando o canto começou, a criança entrou em agonia e, ao último
murmúrio, a sua alma partiu.”
Por fim, anotamos este caso descrito por H. Rooske de Guilford:
“Há alguns anos, a minha irmã e eu tivemos uma experiência que foi uma grande
ajuda para nós na vida. A nossa mãe estava gravemente enferma, o médico e a
governanta sabiam que os seus sofrimentos chegavam ao fim. Uma noite em que a
minha irmã a velava com a governanta, ouviu, de repente, o mais belo, o mais
majestoso dos coros, cantado por vozes como jamais ela havia ouvido assim, tão
celestes. Virando-se para a governanta, ela lhe perguntou: ‘Estais ouvindo?’ E
ela respondeu: ‘Não ouço nada.’ Eu estava deitado no quarto vizinho, esgotado
por longas vigílias e cruéis inquietações; os sons celestes me despertaram de
um profundo sono, saltei da minha cama e corri para o quarto de minha mãe, perguntando:
‘De onde vem essa música maravilhosa?’ De repente, os sons cessaram e nos
aproximando da cama, vimos que a doce alma havia partido com a divina melodia.”
Vê-se, pelos factos acabados de narrar e pelo que as lições
de o Esteta afirmam, que o poder das
vibrações sonoras se revela sob mil formas. À medida que o homem penetra mais
no conhecimento do Universo e da sua estrutura íntima, a lei que o rege, que é
a da harmonia musical, aparece-lhe no seu princípio, assim como nos seus
maravilhosos efeitos. É por ela que se edificam e se perpetuam toda a arquitectura
dos mundos, todas as formas da vida universal. Pode perceber-se isso por uma
simples experiência. Não é curioso, por exemplo, seguir sobre a placa de vidro
ou de metal salpicada de areia e posta em contacto com um instrumento de
cordas, as formas geométricas, os desenhos delicados e complicados que resultam
de cada nota e de cada acorde?
No estudo da arte, não é preciso deixar-se desgostar por uma
aridez aparente e superficial. O exame atento, a análise constante de todo o
tema estético, revela-nos atractivos insuspeitáveis e contribui para nos iniciar
na lei geral do belo. Pode comparar-se esse exercício mental à subida de uma
montanha de aspecto áspero e escarpado, mas da qual cada depressão do terreno
contém maravilhas ocultas e que, do seu cume altivo, nos faz descobrir o conjunto
harmónico das coisas que se desenvolvem debaixo dos nossos olhos.
Todos os homens podem e devem interessar-se por essa questão,
porque ela lhes reserva alegrias intelectuais bem superiores a tudo o que os
prazeres mentirosos proporcionam.
O mais humilde operário tem no seu pensamento uma saída
possível em direcção à compreensão do Belo, e aí ele sempre encontrará novos
recursos para aperfeiçoar a sua própria obra. A arte dentro da profissão é um
encaminhamento à arte superior. Cada um trabalha com um género particular de
beleza mas, na sua finalidade ascensional, todas as almas se expandem numa
concepção radiosa da universal e eterna beleza.
A dissociação da matéria e a acção das forças intra-atómicas
dão nascimento a uma nova ciência que, ao desenvolver-se, abre, ao espírito
humano, perspectivas mais amplas sobre a obra do Cosmos.
Em breve se reconhecerá o misterioso laço que une o pensamento,
a vontade, à vibração, e que faz da vibração o agente do pensamento e da
vontade, a fim de se construírem as inumeráveis formas que povoam a imensidão.
Em resumo, o som, o ritmo, a harmonia, são forças criadoras.
Se nós pudéssemos calcular o poder das vibrações sonoras, avaliar a sua acção
sobre a matéria fluídica, a sua forma de agrupar os turbilhões de átomos,
chegaríamos a um dos segredos da energia espiritual.
No entanto, é suficiente observar, na experiência que acabamos
de citar, as figuras geométricas traçadas pela voz humana ou pelo arco de um
violino sobre a placa de vidro recoberta de areia fina, para compreender, por
comparação, como o pensamento divino, que é a vibração mestra e a suprema
harmonia, pode agir sobre todos os planos da substância e construir as formas
colossais das nebulosas, dos sóis, das esferas, e fixar a sua trajectória
através dos espaços.
O espectáculo da vida universal nos mostra, por toda a
parte, o esforço da inteligência para conquistar e realizar o belo. Do fundo do
abismo da vida, o ser aspira e sobe em direcção ao infinito das concepções
estéticas, à ciência divina, aos cumes eternos onde reina a beleza perfeita. O
esplendor do Universo revela a inteligência divina, assim como a beleza das
obras de arte terrestres revelam a inteligência humana.
/...
(i) Áptero: inseto sem asas (pulga, piolho, etc.);
diz-se de estátuas de certas divindades antigas que, por excepção, eram
representadas sem asas. Na Acrópole de Atenas, principal cidade grega, vêem-se
as ruínas de um templo da deusa Vitória Áptera. (N.T., segundo o Dicionário Lello Universal.)
(ii) Johann Sebastian Bach: o mais famoso de uma
célebre família de músicos alemães (Eisenach, 1685 - Leipzig, 1750). Foi
cantor, violinista, organista, chefe de orquestra e professor. Autor de obras
de música religiosa, vocal e instrumental que são admiráveis pela riqueza da
inspiração, a audácia da linguagem harmónica e a alta espiritualidade. Bach
trabalhou todos os géneros, com excepção da ópera, compôs cantatas, paixões,
missas, obras para o órgão, para o cravo, suítes, partitas, concertos, motetos,
prelúdios e fugas. Cego, morreu ditando os seus últimos corais ao genro e aluno
Altnikol. (N.T., segundo a Grande
Enciclopédia Larousse Cultural.)
(iii) Frédéric François Chopin: pianista e compositor
polaco, de origem francesa, nasceu perto de Varsóvia (Zelazowa-Wola, 1810 -
Paris, 1849). As suas composições para piano (mazurcas, valsas, nocturnos, polonaises, prelúdios, sonatas, baladas,
barcarolas, estudos e scherzos), de
carácter romântico, pessoal, penetrante e, quase sempre, melancólico, são obras
de um poeta; elas renovaram o estilo do piano. (N.T., segundo a Grande Enciclopédia Larousse Cultural.)
(iv) Hector Berlioz: compositor francês (La
Côte-Saint-André, Isère, 1803 - Paris, 1869). Autor de Os Troianos, A Danação de
Fausto, Benvenuto Cellini, Sinfonia Fantástica, Requiem, A Infância de Cristo, obras notáveis pelo poder do sentimento
dramático e sumptuosidade orquestral. Berlioz é um dos criadores da música de
programa, isto é, aquela que procura, por meio de elementos instrumentais,
descrever um assunto fixado em página literária que vem impressa no programa do
concerto. (N.T., segundo a Grande
Enciclopédia Larousse Cultural.)
(v) Ver em No
Invisível, Espiritismo e Mediunidade, Edições Léon Denis, o cap. XIV.
(N.A.)
(vi) Solo: trecho musical executado por uma só voz ou
um só instrumento, com acompanhamento ou sem ele. (N.T.)
(vii) Revue Scientifique et Morale du Spiritisme, de outubro de 1921, p. 303. (N.A.)
(viii) Luís XVII (Louis-Charles de França): segundo
filho de Louis XVI e Maria Antonieta; nasceu em Versailles em 1785. Prisioneiro
no Templo, ele foi, após a execução de seu pai, proclamado rei da França pelos
príncipes emigrados. Morreu na sua prisão em 1795. Certos autores afirmam que
Luís XVII escapou da prisão e foi substituído por um menino doente, porém
nenhuma prova séria veio abalar a convicção geral de que o príncipe realmente
morreu na prisão. (N.T., segundo o Dictionnaire
Nouveau Petit Larousse Illustré.)
(ix) Jakob Böhme: teósofo e místico alemão
(1575-1624), nasceu em Alt-Seidenberg. (N.T.)
(x) Harpa eólica: instrumento musical constituído por
uma caixa sonora com seis ou oito cordas, afinadas em um mesmo tom, e que soava
quando exposta a uma corrente de vento. A palavra eólio, ou eólico, provém de
Éolo, deus dos ventos nas mitologias grega e romana. (N.T.)
(xi) Eton: colégio fundado em 1440 por Henrique VI. O
mais célebre estabelecimento de ensino da Inglaterra, frequentado por meninos,
de doze a quinze anos, pertencentes às classes sociais mais elevadas (N.T.)
LÉON DENIS, O Espiritismo na Arte, Parte
VI A Música (Parte 1) – A
música nas esferas superiores – A percepção das harmonias do espaço – Melodias
ouvidas na hora da morte – O poder e a acção das vibrações sonoras, 24º
fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: Mona Lisa 1503-1507
– Louvre, pintura de Leonardo da Vinci)
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