Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

sábado, 12 de novembro de 2022

o grande desconhecido ~


Amor, sexualidade e casamento ~ 

No Espiritismo o problema do amor implica a relação directa do homem com Deus. O Criador e a criatura religam-se no desenvolvimento humano da lei de adoração. Quanto mais o homem desenvolve as suas potencialidades existenciais, mais o seu potencial ôntico se aproxima de Deus, mais o sente e mais o compreende. Nunca houve nem poderia haver um rompimento total e definitivo entre O Criador e a criatura. No próprio dogma da queda a expulsão do homem da face de Deus é apenas temporária. Por isso o Espiritismo é Religião, mas não é igreja. A diferença entre Igreja e Religião é a mesma que existe entre a alma e o corpo. O homem perde o corpo na morte, mas não perde a alma. A Religião anunciada por Jesus por não possui corpo, é alma pura, que sobrevive por si mesma. No diálogo com a Mulher Samaritana, Jesus desprezou o Templo de Jerusalém e o Templo do Monte Gerasin, referindo-se apenas à Religião Livre do Futuro. Porque a relação religiosa é puramente espiritual. A Religião não depende de formalismos, sacramentos, instituições e órgãos. É subjectiva e define-se como o Amor a Deus. Essa relação directa exclui naturalmente todas as formas de discriminação, pois o seu objectivo é a unidade. Quando uma criatura se liga a Deus, liga-se ao mesmo tempo a todas as criaturas e a todo o Universo, integra-se na realidade absoluta. Tudo o mais são coisas humanas, pertence à diáspora, ou seja, ao tempo do exílio, em que o homem se afastou de Deus. Esta simplificação da Religião só acontece na máxima complexidade, que é o mergulho do homem na sua essência, proveniente de Deus e que é o próprio Deus em nós. Exemplifiquemos humanamente esta questão. Conta-se que um sábio indiano mandou três filhos seus estudar na Inglaterra. Quando voltaram diplomados perguntou ao primeiro: “O que é Deus”? O rapaz fez uma longa e confusa digressão a respeito. O segundo vacilou na sua explicação e disse que precisava estudar melhor o assunto. O terceiro calou-se e os seus olhos se encheram de estranha névoa luminosa. Disse o pai aos três; por ordem das perguntas: “Você, meu filho, procurou Deus nas teologias e não conseguiu encontrá-lo; você, meu segundo filho, está tateando no escuro como um cego; e por último você, meu filho, que não me respondeu, encontrou Deus e nele mergulhou de tal maneira que não pode traduzi-lo por palavras. Você não perdeu tempo com as coisas exteriores e por isso foi o único que realmente aprendeu o que é Deus.” 

A contradição máxima complexidade e máxima simplicidade não é contradição, mas fusão. A complexidade infinita das coisas e dos seres no Universo aturde o homem que busca Deus, mas ao encontrá-lo o homem percebe, logo, que toda a complexidade se funde na Existência Única de Deus. É como o marinheiro que navegou por muitos mares, surpreendido com a variedade e as diferenciações formais de todos eles, mas ao terminar a sua navegação constata que todos os mares não são mais do que o Grande Mar. 

A religião em Espírito e Verdade é esse Mar Total em que todos os mares e todas as águas se reúnem numa só coisa. 

Todas as religiões nasceram da mediunidade, que é o fundamento de todas as religiões, que por sua vez se fundem na Religião em essência que é a Religião do Espírito ou o Espiritismo. Nela não se precisa de coisas específicas, pois todas as coisas se fundem numa só – o Amor a Deus. 

Um jovem e uma jovem se amam e o amor que os atrai é o Amor de Deus nas criaturas. A bênção do amor já os ligou e eles não necessitam de palavras, ritos ou sacramentos para se unirem, pois já estão unidos. Se não houver amor entre eles, não estão unidos e de nada valerá a união formal por meios sacramentais. É por isso que no Espiritismo não há sacramentos nem formalismo algum, pois tudo depende, em todas as circunstâncias, da essência única – e única verdadeira – que é o Amor. 

Mas o Espiritismo reconhece a necessidade humana de disciplinação social e, por isso recomenda apenas o casamento civil. Ainda por isso o Espiritismo reconhece a necessidade do divórcio, pois no plano ilusório da matéria as criaturas confundem-se e misturam sexualidade e desejo com o Amor. Jesus, respondendo aos judeus por que motivo Moisés permitia o divórcio, disse-lhes: “Por causa da dureza dos corações, mas no princípio não foi assim.” Kardec explica que no princípio da humanidade o amor era espontâneo, livre de injunções estranhas e, então não era necessário o divórcio. O Espiritismo não faz casamentos nem divórcios, nem a anulação de casamentos que a Igreja faz, pois esses problemas pertencem às leis humanas. Da mesma maneira o Espiritismo não faz baptizados – pois o baptismo é do espírito – nem recomenda defuntos ou distribui bênçãos, pois que todas essas coisas não são feitas pelos homens e sim por Deus. Todos os sacramentos e formalismos são substituídos no Espiritismo pela prece, que serve em todas as ocasiões da vida e da morte, pois é um momento de ligação do homem com Deus, o diálogo com o Outro, como queria Kierkegaard. Toda intervenção humana interesseira e venal é substituída pela serena confiança nas bênçãos gratuitas do Céu. Nesse acto humano de louvor ou de súplica, desprovido de aparatos exteriores, a presença da Divindade é o cumprimento da promessa de Jesus, sem nenhuma evocação formal. A solidariedade espiritual revela-se no esforço de transcendência vertical das criaturas, conscientes da lei da sublimação. Não há fórmulas orais nem gestos, nem signos ou mitos na tranquila vibração das consciências na intimidade de todos e de cada um. 

A prece espontânea brota das profundezas do ser com a naturalidade de uma flor que desabrocha. Não é um acto de vontade, mas um aflorar do espírito. Não é uma ficha arrancada do arquivo da memória, mas um impulso do coração. As raízes latinas: prex, precis, determinaram no tempo, através dos séculos e dos milénios, a forma leve e suave da palavra portuguesa prece, que soa nos lábios como um bater secreto de asas minúsculas. Prefere-se prece à oração, porque a primeira condiz e harmoniza-se com o acto interior e invisível com que a alma se lança na transcendência. Há um mistério subtil nessa escolha intuitiva desse par de sílabas poéticas que repercutem nos corações como o perpassar da brisa por entre as pétalas. Não tentamos fazer poesia nem divagar, mas descobrir pelas imagens e as palavras, o imponderável do instante da prece. 

Os que não se contentam com esse sopro do espírito, esse pneuma grego, esse frémito inaudível, captado mais pela alma do que pelos ouvidos, preferindo orações extensas e grandíloquas, estão ainda imantados dos formalismos sacramentais. Nada revela mais claramente a natureza intimista da religião espiritual do que essa preferência espírita pela prece. Livrar a criatura do peso da matéria, para que ela possa elevar-se a Deus no silêncio de si mesma é a finalidade da prece. 

Do problema da prece temos de passar à questão sexual, o que não seria recomendável ainda há pouco tempo. O tabu sexual fechava todas as passagens a atrevimentos dessa espécie. As marcas da era fálica haviam aterrorizado o Cristianismo Primitivo, que teve de lutar tenazmente contra a depravação romana e o paganismo em geral. As epístolas de Paulo mostram-nos o desespero do Apóstolo perante o comportamento animal dos conversos em certas igrejas, particularmente na de Corinto. Isso impediu o Apóstolo, já assustado com a corrupção grega e romana no próprio Judaísmo, a tomar uma atitude radical no tocante ao sexo. O falso conceito judeu da pureza (mais racial e religioso do que moral), provocava os seus brios de antigo Doutor da Lei contra o perigo da época. Das reacções de Paulo e do puritanismo hipócrita dos fariseus teria de nascer uma era anti-fálica e anti-sensual, voltada para o extremo oposto da castidade forçada e do celibato sacrificial. Foi tão violenta essa reacção que nem mesmo os exemplos de mentalidade aberta do Cristo puderam atenuá-la. Não somente o sexo, como instrumento de perdição, mas a própria sexualidade foram condenadas sumariamente. Por pouco a prática judaica da circuncisão, que alguns apóstolos mais afoitos, como Pedro, exigiam dos conversos pagãos, não se transformou na castração árabe dos haréns. É significativo o facto de Paulo, depois da circuncisão que praticou se recusar a continuar circuncidado e até mesmo a baptizar com água. 

Houve também, como teria de haver, reacções contrárias a essa posição extremada, com liberalidades também extremadas, que mais tarde resultariam no episódio dos Libertinos do Século XX, católicos e protestantes rejeitados pelas ideias renascentistas, precursores da fase actual de libertinagem que abalaram o mundo. A pornografia assustadora de hoje, que fomenta a indústria das perversões sexuais em revistas, jornais, cinema e televisão, é por sua vez um novo eclodir da sensualidade sem freio, desvirtuando o sentido natural da sexualidade. São esses os balanços de um barco de loucos atirado à fúria de tempestades marítimas, à semelhança do Barco dos Mortos de B. Traven. A contra-reacção da moral vitoriana inglesa não fez mais do que preparar a sua própria explosão, na fase actual do homossexualismo europeu desenfreado, que parece vingar a prisão de Oscar Wilde em Reading. 

A sexualidade afrontada encontrou em Marcuse o seu filosófico defensor, mas em termos exagerados. Desde o século passado o Espiritismo colocou nos fundamentos de toda a realidade terrena a questão do princípio vital, elemento mantenedor de toda a vida planetária. A sexualidade, que não é o sexo, mas a potência sexual geradora e mantenedora de vida, é a carga de energia vital do planeta, distribuída nos indivíduos de todas as espécies. Na era fálica essa força era cultuada mas não havia libertinagem nem pornografia nesse culto, pois não se considerava o sexo como pecado, mas como instrumento sagrado de reprodução da espécie. Na Suméria os casais uniam-se nos altares dos templos, na presença de sacerdotes que os abençoavam para a fecundação. Esse senso de dignidade do sexo perdeu-se nas civilizações teocráticas, esmagado sob as condenações do gozo, que impediam a alma de alcançar a salvação. Marcuse tem razão ao defender a teoria das civilizações suicidas, que condenam o sexo e a ele se entregam na exclusiva busca do prazer, desenvolvendo a indústria aviltante do gozo sexual, que reduz o sexo a instrumento de loucura e perversão. A colocação espírita desse problema é clara e precisa como vemos no capítulo sobre a Lei de Reprodução, de O Livro dos Espíritos

“As leis e costumes humanos que objectivam ou têm por efeito obstar à reprodução são contrários à lei natural?: Tudo o que entrava a marcha da Natureza é contrário à lei geral”. 

Todas as espécies devem reproduzir-se, mesmo as que parecem daninhas. O equilíbrio mesológico faz-se segundo as leis biomesológicas de cada área específica: o campo, o cerrado, a floresta, as águas, as cidades e assim por diante. Há espécies daninhas que são a sobrevivência de formas em extinção ou mutação, para adaptação a condições novas que estão a surgir. Como Kardec adverte: o homem, que só vê um canto do quadro geral da Natureza, não pode julgar o todo e confunde-se nas suas apreciações da harmonia natural. No tocante à população humana do planeta, que hoje preocupa os homens e os governos, o Espiritismo sustenta a tese do equilíbrio natural, governado pelas leis naturais. Afirma que a Terra está longe de possuir a população a ela destinada e que o homem não tem capacidade para impedir a progressão populacional. O recente Congresso Demográfico Mundial da ONU provou isso. Depois de vários dias de debates e da defesa de teses absurdas, o Secretário Geral da ONU advertiu os congressistas de que, durante as discussões, milhões de crianças haviam nascido em todo o mundo. Era impossível deter o aumento populacional através das medidas propostas, algumas delas ridículas, como a de um cientista inglês que propunha medidas para reduzir o tamanho actual dos homens, reduzindo-os a homúnculos, para se conseguir mais espaço e diminuir a necessidade de alimentos. Por outro lado, vários cientistas colocaram o problema da chamada explosão demográfica e a falta de alimentos em termos de crescimento local dos grandes centros urbanos e a falta de controlo da produção alimentícia, com o esbanjamento de grandes produções por falta de transportes, ganância exagerada de lucros e os transportes excessivamente caros de regiões produtoras distantes para as zonas consumidoras. Resta ainda considerar que todo o crescimento populacional não é permanente, seguindo uma curva estatística de ascensão que depois decai, ajusta-se em linha regular ou entra em declínio. Tudo isso confirma a posição espírita. Escapa ao homem o controle biomesológico em todo o conjunto de áreas populacionais animais e humanas, de maneira que as intervenções humanas só servem para provocar desequilíbrios perigosos. 

Passando desse problema para o da abstenção sexual e o do casamento e do celibato, vamos novamente verificar o acerto do Espiritismo na sua posição firmada desde meados do século passado. O casamento representa uma conquista na evolução social, disciplinando as relações humanas com vista à organização da família na estrutura mais ampla da sociedade. Se a maioria dos casamentos na Terra apresenta dificuldades e desajustes, isso decorre das condições inferiores do nosso mundo. O casal é uma unidade biológica que se forma por atracção afectiva recíproca desenvolvida em vidas sucessivas ao longo da temporalidade, que é a larga e profunda esteira dos tempos sucessivos. A afectividade que o liga no presente é positiva, mas está geralmente carregada de cargas negativas, provenientes de situações não resolvidas, de compromissos e dívidas morais recíprocas. Formada a unidade, ela funciona como um dínamo-psiquismo que atrai as entidades comprometidas com o par nas existências anteriores. O par sozinho enleia-se nos sonhos de felicidade dos anseios de amor. Mas as interferências dos comparsas causa disritmias e atritos na harmonia do dínamo, muitas vezes desde o namoro e o noivado, prenunciando tempestades magnéticas. São os filhos que procuram a reencarnação e os parentes do par e outros compromissados que chegam, cobradores de dívidas afectivas e de compromissos rompidos. Não é Deus que determina essas situações embaraçosas, mas os próprios envolvidos em complôs remotos e o próprio par, motivo de acções negativas anteriores que, segundo a lei de acção e reacção, formam o karma do grupo, ou seja, o conjunto de insolvências passadas, agora postas em resgate comum. (A palavra karma, de origem sânscrita, vem de arcaicas religiões indianas reencarnacionistas, mas é empregada no meio espírita pelo seu sentido prático e preciso). Se o casal se recusa a ter filhos, os compromissados reagem com vibrações mentais e psíquicas negativas, quebrando a harmonia do dínamo e provocando distúrbios biopsíquicos no casal e até mesmo ocasionando a interferência de reencarnados compromissados com o par. São essas as causas da maioria das situações difíceis resultantes de casamentos felizes. Os casos de aborto provocados no passado constituem pesados compromissos a resgatar e, os casos de aborto recentes (sem necessidade clínica real), vão acumular-se aos anteriores ou passam para débitos futuros. É por isso que os sentimentos de amor e o respeito ao próximo constituem elementos defensivos da felicidade futura de todos nós. A partir deste quadro podemos compreender com mais clareza as situações dolorosas em que se precipitam muitos casamentos felizes e, que as religiões explicam assustadoramente como castigos divinos ou influências diabólicas. Todas essas situações dependem exclusivamente das nossas relações humanas no passado e no presente. A consciência humana dispõe, em todos nós, dos recursos preventivos dessas situações. A nossa falta leviana de atenção às exigências e advertências da consciência respondem pelas situações negativas que criamos por nós próprios, contra os nossos interesses evolutivos. 


O problema do celibato ~ 

No tocante ao celibato a posição espírita é decisivamente contrária, considerando-o como fuga ao dever humano da reprodução da espécie, determinada por egoísmo. O celibato religioso, imposto pelas igrejas, vai além disso, pois representa uma violação consciente das leis divinas, sob o pretexto de dedicação exclusiva a Deus. Só é justificável o celibato obrigatório, motivado por questões orgânicas ou impedimentos decorrentes de doença ou mutilações. Admite-se o celibato por devotamento integral a uma causa social absorvente. Nestes casos o egoísmo está naturalmente excluído. No caso do sacerdócio e votos de castidade, o egoísmo reponta da pretensão de agradar a Deus violando as suas leis. Há mesmo, da parte do sacerdócio, como o demonstram as religiões em geral, conveniência no casamento dos sacerdotes, que não se vêem forçados à hipocrisia perante as exigências vitais do homem e da mulher. Uma grande causa pode levar uma criatura abnegada a não se casar para não causar sacrifícios à família que iria constituir. Essa é uma questão de consciência pela qual cada um responde individualmente. Mas o Espiritismo não o determina, pois não é uma igreja nem uma instituição secreta. A atitude espírita refere-se apenas aos deveres conscienciais da criatura perante as exigências da evolução humana. 

Há ainda o problema da poligamia, que o Espiritismo encara historicamente, lembrando que o casamento, com responsabilidades sociais definidas, superou as experiências poligâmicas do passado. Toda essa posição espírita está perfeitamente de acordo com as leis vigentes no mundo actual. Os movimentos actuais do próprio clero católico pela abolição do celibato sacerdotal e as concessões feitas pela Igreja em numerosos casos, confirmam a necessidade crescente de uma revisão pela Igreja dessa instituição contraditória em que se colocou, dividindo a sua posição em duas medidas antagónicas: o casamento de clérigos na Igreja do Oriente e o celibato obrigatório no Ocidente. O celibato das freiras é uma herança da castidade obrigatória das vestais romanas, sujeitas a serem enterradas vivas se violassem o voto. É interessante lembrar que as vestais, que mantinham o fogo da deusa Vesta nos templos, podiam casar-se sem problemas ao completarem 30 anos de idade. As medidas contrárias às leis naturais, que são as leis de Deus, tendem a desaparecer com a evolução cultural, moral e espiritual da Humanidade. 

Dizia o Apóstolo Paulo que há eunucos feitos pelos homens e os que se fazem eunucos por amor ao Reino de Deus. Há também os que nascem eunucos. Aplicando-se isso nos nossos dias, podemos dizer que há celibato forçado por deficiências orgânicas congénitas, por acidentes mutiladores e pelo desejo de servir a Deus. Mas o Espiritismo, colocando os antigos problemas místicos e as velhas superstições religiosas à luz da razão, mostra-nos a contradição da suposta dedicação a Deus através de violações egoístas das leis naturais. Se há, por assim dizer, todo um dispositivo natural de desenvolvimento das potencialidades humanas através de lento e complexo processo evolutivo, como pode o homem, sujeito a esse processo, fechado nas suas exigências condicionantes, querer modificá-lo, corrigindo Deus? A quem aproveita o sacrifício de uma jovem saudável na cela de um convento ou a negação por um jovem da sua própria virilidade? O móbil dessas atitudes revela-se na ambição egoísta de conquistar o céu para gozo próprio, adiantando-se aos demais e escapando às leis do processo evolutivo natural. Todas as formas de auto-flagelação, cilícios, abstenção exagerada, isolamento e quietismo são fugas à realidade que todos devem enfrentar, no cumprimento dos deveres inalienáveis de solidariedade humana e o amor ao próximo. E toda a fuga é um acto de desobediência à vontade divina. 

O mito de Adão e Eva tem a beleza poética do acto criador, mas a presença da serpente no Éden é uma advertência às pretensões humanas. Se não fosse a astúcia desse animal rastejante, a Obra de Deus ficaria reduzida, pela timidez do primeiro casal, a uma tentativa frustrada no meio do deserto. 

Desde que o homem atingiu, no processo da evolução criadora, segundo a tese de Bergson, a capacidade de pensar e julgar, o seu primeiro julgamento foi favorável a si mesmo, pois se julgou capaz de corrigir os erros de Deus. O despertar da inteligência faz o vinho subir à cabeça, mas é bom não esquecermos que a bebedeira de Noé depois do dilúvio atirou-o nu no fundo da tenda, escandalizando os seus próprios filhos. 

Por isso o Espiritismo adoptou os ensinamentos de Paulo, sobre a maior virtude, o seu lema de redenção racional: Fora da caridade não há salvação. As igrejas cristãs clamam até hoje que a salvação pela caridade excita a vaidade humana. Se ajudar os que sofrem e amar o próximo é um acto de orgulho, então a humildade deve estar como os que se entregam à ambição da fortuna pessoal e do poder, a tirar as suas correias das costas do próximo. 

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José Herculano Pires, Curso Dinâmico de Espiritismo, XIX – Amor, sexualidade e casamento / O problema do celibato21º fragmento desta obra. 
(imagem de contextualização: Somos as aves de fogo por sobre os campos celestes, acrílico de Costa Brites)

quinta-feira, 3 de novembro de 2022

Léon Denis e o Cristianismo ~


Autenticidade dos Evangelhos ~

  Nos tempos afastados, muito antes da vinda de Jesus, a palavra dos profetas, qual raio velado da verdade, preparava os homens para os ensinos mais profundos do Evangelho.

  Mas, já desvirtuado pela Versão dos Setenta (i), o Antigo Testamento não reflectia, nos últimos séculos antes do Cristo, mais que uma intuição das verdades superiores (2).

  “As eternas verdades, que são os pensamentos de Deus – diz eminente individualidade do espaço – foram comunicadas ao mundo em todas as épocas, levadas a todos os lugares, postas ao alcance das inteligências, com paternal bondade. O homem, porém, as tem ignorado muitas vezes. Desdenhoso dos princípios ensinados, arrastado pelas suas paixões, em todos os tempos passou ele ao pé de grandes coisas sem as ver. Essa negligência do moral belo, causa de decadência e corrupção, impeliria as nações à própria perda, se o guante (i) da adversidade e as grandes comoções da História, abalando profundamente as almas, não as reconduzissem a essas verdades.”

  Veio, Jesus de Nazaré (i), espírito poderoso, divino missionário, médium (i) inspirado. Veio, encarnando-se (i) entre os humildes, a fim de dar a todos o exemplo de uma vida simples e, entretanto, cheia de grandeza – vida de abnegação e sacrifício, que devia deixar na Terra indeléveis traços.

  A grande figura de Jesus ultrapassa todas as concepções do pensamento. Eis por que não pode ter sido criada pela imaginação. Nessa alma, de uma serenidade celeste, não se nota mácula nenhuma, nenhuma sombra. Todas as perfeições nela se fundem, com uma harmonia tão perfeita que se nos afigura o ideal realizado.

  A sua doutrina, toda ela de luz e amor, dirige-se sobretudo aos humildes e aos pobres, a essas mulheres, a esses homens do povo curvados sobre a terra, a essas inteligências esmagadas ao peso da matéria e que aguardam, na provação e no sofrimento, a palavra de vida que as deve reanimar e consolar.

  E essa palavra é-lhes prodigalizada com tão penetrante doçura, exprime uma fé tão comunicativa, que lhes dissipa todas as dúvidas e os arrasta a seguir as pegadas do Cristo.

  O que Jesus chamava pregar aos simples “o evangelho do reino dos céus”, era pôr ao alcance de todos o conhecimento da imortalidade e do Pai comum, do Pai cuja voz se faz ouvir na serenidade da consciência e na paz do coração.

  Pouco a pouco essa doutrina, transmitida verbalmente nos primeiros tempos do Cristianismo, se altera e complica sob a influência das correntes opostas, que agitam a sociedade cristã.

  Os apóstolos, escolhidos por Jesus para lhe continuarem a missão, muito bem o tinham sabido compreender; haviam recebido o impulso da sua vontade e da sua fé. Mas os seus conhecimentos eram restritos e eles não puderam senão conservar piedosamente, pela memória do coração, as tradições, os pensamentos morais e o desejo de regeneração que lhes havia ele depositado no íntimo.

  Na sua jornada pelo mundo os apóstolos se limitam, pois, a formar, de cidade em cidade, grupos de cristãos, aos quais revelam os princípios essenciais; depois, vão intrepidamente levar a “boa nova” a outras regiões.

  Os Evangelhos, escritos no meio das convulsões que assinalam a agonia do mundo judaico (i), depois sob a influência das discussões que caracterizam os primeiros tempos do Cristianismo, ressentem-se das paixões, dos preconceitos da época e da perturbação dos espíritos. Cada grupo de fiéis, cada comunidade, tem os seus evangelhos, que diferem mais ou menos dos outros (3). Grandes querelas dogmáticas agitam o mundo cristão e provocam sanguinolentas perturbações no Império, até que Teodósio, conferindo a supremacia ao papado, impõe a opinião do bispo de Roma à cristandade. A partir daí, o pensamento, criador demasiado fecundo de sistemas diferentes, há de ser reprimido.

  A fim de pôr termo a essas divergências de opinião, no próprio momento em que vários concílios acabam de discutir acerca da natureza de Jesus, uns admitindo, outros rejeitando a sua divindade, o papa Damaso confia a São Jerónimo, em 384, a missão de redigir uma tradução latina do Antigo e do Novo Testamento. Essa tradução deverá ser, daí por diante, a única reputada ortodoxa e tornar-se-á a norma das doutrinas da Igreja: foi o que se denominou a “Vulgata”.

  Esse trabalho oferecia enormes dificuldades. São Jerónimo encontrava-se, como ele próprio o disse, na presença de tantos exemplares quantas cópias. Essa variedade infinita dos textos obrigava-o a uma escolha e a retoques profundos. É o que, assustado com as responsabilidades incorridas, ele expõe nos prefácios da sua obra, prefácios reunidos num livro célebre. Eis aqui, a exemplo, o que ele dirigiu ao papa Damaso, encabeçando a sua tradução latina dos Evangelhos:

  “De velha obra me obrigais a fazer obra nova. Quereis que, de alguma sorte, me coloque como árbitro entre os exemplares das Escrituras que estão dispersos por todo o mundo e, como diferem entre si, que eu distinga os que estão de acordo com o verdadeiro texto grego. É um piedoso trabalho, mas é também um perigoso arrojo, da parte de quem deve ser por todos julgado, julgar ele mesmo os outros, querer mudar a língua de um velho e conduzir à infância o mundo já envelhecido.

  “De facto, qual o sábio e mesmo o ignorante que, a partir do momento que tiver nas mãos um exemplar (novo), depois de o haver percorrido apenas uma vez, vendo que se encontra em desacordo com o que está habituado a ler, não se ponha imediatamente a exclamar que eu sou um sacrílego, um falsário, porque terei tido a audácia de acrescentar, substituir, corrigir alguma coisa nos antigos livros? Meclamitans esse sacrilegum qui audeam aliquid in veteribus libris addere, mutare, corrigere(4)

  “Um duplo motivo me consola desta acusação. O primeiro é que vós, que sois o soberano pontífice, me ordenais que o faça; o segundo é que a verdade não poderia existir em coisas que divergem, mesmo quando tivessem elas por si a aprovação dos maus.”

  São Jerónimo termina assim:

  “Este curto prefácio tão-somente se aplica aos quatro Evangelhos, cuja ordem é a seguinte: Mateus, Marcos, Lucas e João. Depois de haver comparado certo número de exemplares gregos, mas dos antigos, que se não afastam muito da versão itálica, combinamo-los de tal modo (ita calamo temperavimus) que, corrigindo unicamente o que nos parecia alterar o sentido, conservamos o resto tal qual estava.” (Obras de São Jerónimo, edição dos Beneditinos, 1693, t. I, col. 1425.)

  Assim, é conforme uma primeira tradução do hebraico (i) para o grego, por cópias com os nomes de Marcos e Mateus; é, num ponto de vista mais geral, conforme numerosos textos, cada um dos quais difere dos outros (tot sunt enim exemplaria quot codices) que se constitui a Vulgata, tradução corrigida, aumentada, modificada, como o confessa o autor, de antigos manuscritos.

  Essa tradução oficial, que devia ser definitiva segundo o pensamento de quem ordenara a sua execução, foi, entretanto, retocada em diferentes épocas, por ordem dos pontífices romanos. O que havia parecido bom, do ano 386 ao de 1586, o que fora aprovado em 1546 pelo concílio ecuménico de Trento (i), foi declarado insuficiente e erróneo por Sixto V, em 1590. Fez-se nova revisão por sua ordem; mas a própria edição que daí resultou e, que trazia o seu nome, foi modificada por Clemente VIII numa nova edição, que é a que hoje está em vigor e pela qual têm sido feitas as traduções francesas dos livros canónicos, submetidos a tantas rectificações através dos séculos.

  Entretanto, a despeito de todas estas vicissitudes, não hesitamos em admitir a autenticidade dos Evangelhos nos seus textos primitivosA palavra do Cristo aí se ostenta poderosa; toda a dúvida se desvanece à fulguração da sua personalidade sublime. Sob o sentido adulterado, ou oculto, sente-se palpitar a força da ideia primitiva. Aí se revela a mão do grande semeador. Na profundeza desses ensinos, unidos à beleza moral e ao amor, sente-se a obra de um enviado celeste.

  Ao lado, porém, dessa potente destraa frágil mão do homem se introduziu nessas páginas, nelas enxertando débeis concepções, muito mal ligadas aos primeiros pensamentos e que, a par dos arroubos da alma, provocam a incredulidade.

  Se os Evangelhos são aceitáveis em muitos pontos, é, todavia, necessário submeter o seu conjunto à inspecção do raciocínio. Todas as palavras, todos os factos que neles estão consignados não poderiam ser atribuídos ao Cristo.

  Através dos tempos que separam a morte de Jesus da redacção definitiva dos Evangelhos, muitos pensamentos sublimes foram esquecidos, muitos factos contestáveis aceites como reais, muitos preceitos, mal interpretados, desnaturaram o ensino primitivo. Para servir às conveniências de uma causa, foram decotados os mais belos, os mais opulentos ramos dessa árvore de vida. Sufocaram, antes do seu desabrochar, os fortalecedores princípios que teriam conduzido os povos à verdadeira crença, à que eles hoje em dia ainda visam.

  O pensamento do Cristo subsiste no ensino da Igreja e nos textos sagrados, mesclado, porém, de vários elementos, de opiniões ulteriores, introduzidos pelos papas e concílios, cujo intuito era assegurar, fortalecer, tornar inabalável a autoridade da Igreja. Tal foi o objectivo colimado através dos séculos, o pensamento que inspirou todos os retoques feitos nos documentos primitivos. A despeito de tudo o que na Igreja resta de espírito evangélico, verdadeiramente cristão, foi o suficiente para produzir admiráveis obras, obras de caridade que fizeram a glória das igrejas cristãs e que protestam contra o facto de se encontrarem associadas a tantos empreendimentos ambiciosos, inspirados no apego ao domínio e aos bens materiais.

  Seria preciso um grande trabalho para destacar o verdadeiro pensamento do Cristo do conjunto dos Evangelhos, tarefa possível, ainda que árdua para os inspirados, guiados por direcção segura, mas um labor impossível para os que só pelas suas próprias faculdades se dirigem nesse Labirinto em que com as realidades se misturam as ficções, com o sagrado o profano, com a verdade o erro.

  Em todos os séculos, impelidos por uma força superior, certos homens se aplicaram a essa tarefa, procurando desembaraçar o supremo pensamento das sombras em torno dele acumuladas.

  Amparados, esclarecidos por essa centelha divina que para os homens apenas brilha de um modo intermitente, mas cujo foco nunca se extingue, eles afrontaram todas as acusações, todos os suplícios, para afirmar o que acreditavam ser a verdade. Tais foram os apóstolos da Reforma.

  Na sua tarefa, eles foram interrompidos pela morte; mas do seio do espaço ainda sustentam e inspiram os que se batem por essa grande causa. Graças aos seus esforços, a noite que pesa sobre as almas começa a dissipar-se; raiou a aurora de uma revelação muito mais vasta.

  É com o auxílio dos esclarecimentos trazidos por essa nova revelação, científica e, ao mesmo tempo, filosófica, já espalhada em todo o mundo sob o nome de Espiritismo, ou moderno Espiritualismo, que procuraremos livrar a doutrina de Jesus das obscuridades em que o trabalho dos séculos a envolveu. Chegaremos, assim, à conclusão de que esta doutrina é simplesmente a volta ao Cristianismo primitivo, sob formas mais precisas, com um imponente cortejo de provas experimentais, que tornará impossível todo o monopólio, toda a reincidência nas causas que desnaturaram o pensamento de Jesus.

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(2) Ver nota complementar nº 1. ( link para aceder à nota), no fim do volume.
(3) Ver nota complementar n° 3. ( link para aceder...)
(4) A obra de S. Jerónimo foi, efectivamente, mesmo na sua vida, objecto das mais vivas críticas; polémicas injuriosas se travaram entre ele e os seus detractores.


Léon Denis (1846-1927) (i)Cristianismo e Espiritismo, Título Original em Francês; Léon Denis - Christianisme et Spiritisme, Librairie des Sciences Psychiques, Paris (1898). – Autenticidade dos Evangelhos, 3º fragmento desta obra. 
(imagem de contextualização: Paraíso Perdido, estudo do Anjo, lápis e giz de Alexandre Cabanel)