Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...
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terça-feira, 2 de setembro de 2025

metapsíquica | e depois



~~~ Terceiro Caso ~~~


(A Crise da Morte)

Reproduzo um último caso antigo, que extrai do livro do Doutor Wolfe: Starling Facts in Modern Spiritualism (pág. 388)*. Jim Nolan, o Espírito-guia da célebre médium Sra. Hollis, que disse e demonstrou ter sido soldado durante a Guerra de Secessão da América e haver morrido de tifo num hospital militar, responde da seguinte maneira às perguntas de um experimentador:

P. — Que impressão tiveste à tua primeira entrada no mundo espiritual?

R. — Parecia-me que despertava de um sono, com um pouco de atordoamento a mais. Já não me sentia doente e isso espantava-me grandemente. Tinha uma vaga impressão de que alguma coisa estranha se passara, todavia, não sabia definir o quê. O meu corpo encontrava-se estendido numa cama de campanha e eu o via. Dizia para mim próprio: Que estranho fenómeno! Olhei à minha volta e, vi três dos meus camaradas mortos nas trincheiras diante de Vicksburg e que eu enterrara. No entanto, ali estavam na minha presença! Olhavam a rir. Então, um dos três me saudou e disse:

— Bom-dia, Jim; também és dos nossos?

— Sou dos vossos? Que queres dizer com isso?

— Mas... que te encontras aqui, connosco, no mundo dos Espíritos. Não te apercebeste disso? É um meio onde se está bem.

Estas palavras eram muito fortes para mim. Fui tomado de violenta emoção e exclamei:

— Meu Deus! Que dizes! Estou morto?

— Não; estás mais vivo do que nunca, Jim; porém encontras-te no mundo dos Espíritos. Para te convenceres, não tens mais do que atentar no teu corpo.

Com efeito, o meu corpo jazia, inanimado, diante de mim, sobre aquela tarimba. Como, pois, contestar o facto? Pouco depois, chegaram dois homens que colocaram o meu cadáver numa prancha e o transportaram para junto de um carro; nele o meteram, subiram e à boleia partiram. Acompanhei então o carro, que parou junto de um fosso, onde o meu cadáver foi descarregado e enterrado. Fora eu o único a assistir ao meu enterro...

P. — Quais as sensações que experimentaste na crise da morte?

R. — A que se experimenta quando o sono se apodera da gente, mas deixando que ainda se possa lembrar de alguma ideia que tenha tido antes do sono. A gente, porém, não se lembra do momento exacto em que foi tomado pelo sono. É o que acontece por ocasião da morte. Mas, um pouco antes da crise fatal, a minha mentalidade se tornara muito activa; lembrei-me subitamente de todos os acontecimentos da minha vida; vi e ouvi tudo o que fizera, dissera, pensara, todas as coisas a que estivera associado. Lembrei-me até dos jogos e brincadeiras do campo militar; gozei-os, como quando deles participei.

P. — Conta-nos as tuas primeiras impressões no mundo espiritual.

R. — Ia dizer-vos que os meus bons amigos soldados já não me abandonaram, desde logo que desencarnei (morri) até ao momento em que fiz a minha entrada no mundo espiritual; lá, tinha eu os avós, os irmãos e as irmãs, que, entretanto, não me vieram receber quando desencarnei. Ao entrar no mundo espiritual, parecia-me caminhar sobre um terreno sólido e vi que ao meu encontro vinha uma velhinha, que me disse assim: — Jim, então vieste para onde estávamos?

Olhei-a atentamente e exclamei: — Ó, avozinha, és tu? — Sou eu mesma, meu querido Jim. Vem comigo.

E me levou para longe dali, para a sua morada. Uma vez lá, disse-me ser necessário que eu repousasse e dormisse. Deitei-me e dormi longamente...

P. — A morada de que falas tinha o aspecto de uma casa?

R. — Certamente. No mundo dos Espíritos, há a força do pensamento, por meio do qual se podem criar todas as comodidades desejáveis...

Esta última informação que, no caso de que se trata, remonta a setenta anos atrás, não é apenas um dos detalhes fundamentais a cujo respeito todos os Espíritos estão de acordo; é também a chave de abóbada que permite explicar, resolver, justificar todas as informações e descrições aparentemente absurdas, incríveis, ridículas, dadas pelos Espíritos que se comunicam, a propósito da vida espiritual. Em outras obras, já por mim publicadas, tive que me deter longamente sobre este tema muito importante; limitar-me-ei desta vez, pois, a nele tocar, na medida do estritamente necessário.

Esta grande verdade, que nos foi comunicada pelos Espíritos, permite resolvamos uma imensidade de questões teóricas, obscuras, determinadas pelas informações que hão dado as personalidades mediúnicas, relativamente ao meio espiritual, às formas que os Espíritos revestem, às modalidades da existência deles; todas as informações que constituem uma reprodução exacta, ainda que espiritualizada, do meio terrestre, da humanidade, das modalidades da existência neste mundo. Essa grande verdade, que resolve todos os enigmas teóricos em questão e que se funda no poder criador do pensamento no meio espiritual, é confirmada de modo impressionante por factos que se desenrolam no meio terrestre. Trata-se, com efeito, do seguinte: o pensamento e a vontade, mesmo na existência encarnada (na Terra), são susceptíveis de criar e de objectivar as formas concretas das coisas pensadas e desejadas, do mesmo modo que este fenómeno se realiza no meio espiritual, embora no meio terrestre semelhante criação não se dê senão por intermédio de alguns sensitivos especiais (médiuns). Aludo aos fenómenos de fotografia do pensamento ou de ideoplastia, fenómenos maravilhosos, aos quais consagrei recentemente um longo estudo, em que demonstrava, citando factos, a realidade incontestável e o seu desenvolvimento prodigioso.

Vemos, pois, que, já no mundo dos vivos, o pensamento e a vontade manifestam o poder de se objectivarem e concretizarem numa forma mais ou menos substancial e permanente, ainda que, na existência encarnada, isso se produza sem objectivo e unicamente com o concurso de sensitivos (médiuns) que se encontrem em condições fisiológicas mais ou menos anormais, correspondendo a estados mais ou menos adiantados de desencarnação parcial do Espírito.

Sendo assim, dever-se-ia logicamente concluir daí que, quando a desencarnação do Espírito já não estiver apenas em início e não for transitória, mas total e definitiva (na morte), só então as faculdades de que se trata chegarão a manifestar-se no seu completo desdobramento e, desta vez, normal, prática e utilmente. Ora, é precisamente o que afirmam as personalidades mediúnicas que se comunicam. Cumpre, portanto, se reconheça que as revelações transcendentais, concernentes às modalidades da existência espiritual, confirmam a posterior o que se devera logicamente inferir a priori, em consequência da descoberta de que o pensamento e a vontade são forças que possuem o poder maravilhoso de modelar e organizar, faculdades que, todavia, não se manifestam, senão de maneira esporádica e sem objectivo, no meio terrestre.

Duas palavras ainda acerca de outra circunstância, a de personalidades mediúnicas afirmarem que essas condições de existência espiritual são transitórias e se entendem exclusivamente com a esfera mais próxima do mundo terrestre, isto é, com a que se destina aos Espíritos recém-chegados. Esta circunstância não serve só para justificar inteiramente aquelas condições de existência; prova também a razão de ser providencial de tais condições.

Imagine-se, com efeito, que sensação de desolação e de desorientação não experimentariam a maior parte dos mortos se, logo depois do momento da morte, houvessem de ver-se bruscamente despojados da forma humana e lançados num meio espiritual essencialmente diverso daquele onde se lhes formaram as individualidades, a que ainda se encontram ligados por uma delicada trama de sentimentos afectivos, de paixões, de aspirações, que se não poderiam romper de súbito, sem os levar ao desespero e, onde, sobretudo, se encontra o meio doméstico que lhes é próprio, constituído por um mundo de satisfações temporais e espirituais, de todas as espécies, que contribuem cumulativamente para criar o que se chama a alegria de viver. Se imaginarmos tudo isso, teremos de reconhecer racional e providencialmente que um ciclo de existência preparatória passe entre a existência encarnada e a de Espírito puro, de maneira a conciliar a natureza, por demais terrestre, do Espírito desencarnado, com a natureza, por demais transcendental, da existência espiritual propriamente dita.

O poder criador do pensamento seria de molde a obviar maravilhosamente a este inconveniente; o Espírito, pensando numa forma humana, encontrar-se-ia de novo em forma humana; pensando em estar vestido, encontrar-se-ia coberto das vestes que, sendo tão etéreas como o seu próprio corpo, lhe pareceriam tão substanciais como as roupas terrenas. É assim que o Espírito encontraria novamente, no mundo espiritual, um meio e uma morada correspondentes aos seus hábitos terrestres, morada que lhe preparariam os seus familiares, tornados antes dele á existência espiritual. Como se há podido ver no caso que acabo de referir, é a avó do defunto que estaria encarregue de conduzir o neto à morada que o havia de receber. A este respeito, deve notar-se que, quando o Espírito Jim Nolan narra ter visto que uma velhinha vinha ao seu encontro, fora preciso subentender-se que a avó revestira temporariamente a sua antiga forma terrena, para ser reconhecida.

Deter-me-ei aí, para me não estender demais nos comentários deste facto; os pontos obscuros, de importância secundária, que ficam sem solução nas considerações precedentes, serão sucessivamente assinalados e explicados, à medida que, nos casos que ainda vão ser citados, se oferecer oportunidade.

Com relação ao incidente da visão panorâmica que o Espírito Jim Nolan relata, observarei que, desta vez, o fenómeno se desdobrou sob a forma de recapitulação de lembranças, mais do que sob a de uma visão panorâmica propriamente dita. Isto, naturalmente, em nada muda os termos do problema psicológico a ser resolvido. Daí apenas resultaria que o morto, em vez de pertencer ao que se chama em linguagem psicológica ao tipo visual, pertencia ao tipo especialmente mental-auditivo.

/...

Ernesto Bozzano (1862-1943) (i)A Crise da Morte, Publicação original (1930), "La Crisi Della Morte"; Terceiro Caso. 3º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: Puro aire, uma pintura de Josefina Robirosa)

quinta-feira, 19 de junho de 2025

literatura do além-túmulo ~


Capítulo II

  Passo a analisar um segundo caso do mesmo género, o qual ocorreu em Itália, há vários anos. É um caso que não pode ser chamado de transição como o anterior, especialmente porque nele não se encontra a incerteza teórica proveniente do facto de não ter a personalidade comunicante se desvendado. Neste outro episódio, ao contrário, as personalidades mediúnicas declaram, explicitamente, quem são. Infelizmente, do ponto de vista demonstrativo, as modalidades nas quais se produzem aqui os ditados mediúnicos escasseiam em tal medida que este facto suscita perplexidades muito mais fortes que as do caso precedente. – O prof. Francesco Scaramuzza era director da Academia de Belas Artes de Parma, onde ensinava pintura, arte na qual atingira notável excelência.

  Faltava-lhe, todavia, cultura literária, dado o facto de ter deixado de frequentar a escola desde a idade dos 14 anos a fim de garantir a sua subsistência. Durante a mocidade, ocupou-se, por muito tempo, de experiências de magnetismo animal, que praticara com sucesso. Tornou-se espírita quando já atingira uma idade bastante avançada e, aos 64 anos, as faculdades de médium escrevente nele se manifestaram, mas durante apenas 3 anos (1867-1869). Durante esse curto espaço de tempo, escreveu, com vertiginosa rapidez, enorme quantidade de obras poéticas de todas as espécies.

  Entre elas, relevante se faz assinalar, um volumoso poema em oitavas (29 cantos, 3.000 oitavas) intitulado Poema Sacro, assim como duas comédias em verso, das quais o espírito de Carlo Goldoni seria o autor. Essas comédias são vivas, brilhantes, muito bem concebidas e finamente urdidas, com todo o sabor da arte goldoniana.

  Outro tanto, porém, não se poderia dizer do Poema Sacroque foi ditado pelo espírito do grande poeta Ludovico Ariosto. Trata-se, nesse poema, de assuntos muito elevados, tais como a natureza de Deus, a génese do universo, a criação dos sóis e dos mundos, a origem da vida cósmica, os fins da vida, os destinos do espírito individualizado graças à passagem pela vida na carne. Encontram-se, aqui e acolá, imagens magníficas, compreensíveis, grandiosas, mas quase sempre expressas em linguagem pobre e em versos fracos e vulgares. Os conceitos cosmogónicos que aí se encontram parecem racionais e aceitáveis; eles se elevam, por vezes, a uma real altura filosófica, por exemplo, quando tratam da imanência de Deus no universo, revelando-se aos mortais sob a forma de movimento e quando se analisam o tempo e o espaço, “atributos de Deus”, pois que eles são infinitos como Deus o é, o que, passando de uma dedução à outra, leva a personalidade mediúnica comunicante a tender para uma concepção idêntica à hipótese do “Éter-Deus”. Experimenta-se quase um sentimento de tristeza, vendo-se que pensamentos filosoficamente sublimes são expressos em versos tão banais e sob uma forma tão vulgar. Entretanto os versos são justos e fáceis, as rimas quase sempre espontâneas, o que revela uma familiaridade indiscutível com a técnica do verso por parte da entidade que se comunicava. Esta se lastima, muitas vezes, de que o seu médium revista as ideias que lhe transmite sob uma forma poética descuidada, observando, porém, que não o pode impedir. É preciso reconhecer que existe um fundo de verdade nestas afirmativas da personalidade em questão, pois que elas concordam com os conhecimentos que se possuem, actualmente, sobre o assunto, graças a experiências de transmissão telepática do pensamento tendentes a demonstrar que o pensamento só pertence à mentalidade do agente, ao passo que a forma com a qual ele é revestido pertence à elaboração subconsciente do percipiente. É então necessário deduzir daí que, se, como acontece neste caso, o médium é um homem desprovido de cultura literária, ele só poderia expressar de forma empobrecida as ideias que lhe seriam transmitidas, telepaticamente, pela personalidade mediúnica de quem provém a comunicação.

  É o que se pode invocar, em favor da origem estranha ao médium, desse Poema SacroSe ele nos surpreende, isto se deve à elevação filosófica de algumas de suas partes; porém, com relação à identificação pessoal do suposto espírito que se comunicava, é preciso reconhecer que aí nada se encontra que seja de molde a reforçar, directamente, a presunção de que possa, efectivamente, tratar-se de Ariosto, salvo a beleza de algumas imagens, ainda que estejam constantemente molestadas pela vulgaridade da forma. Ao mesmo tempo, é preciso reconhecer, não menos francamente, que, se se quer tudo atribuir às faculdades de elucubração artística inerentes à subconsciência do médium, fica o problema bastante obscuro e embaraçoso.

  De facto, o médium não só não tinha cultura literária, como nada conhecia de ciência e filosofia. Donde brotaria, então, a inspiração grandiosa de certas partes de seu sistema cosmogónico? Forçoso se faz não esquecer o facto surpreendente de o médium ter, em três anos apenas, além do Poema Sacro, em 29 cantos e 3.000 oitavas – um volume de 915 páginas –, escrito duas comédias em verso atribuídas a Carlo Goldoni, treze longos contos, igualmente em versos, dois cantos em estâncias de três versos, um melodrama, uma tragédia, cinco poesias cómicas assinadas pelo seu falecido tio, que escrevera, efectivamente, versos dessa espécie durante a sua vida, e, enfim, um grosso volume de poesias líricas. Trata-se de uma produção literária colossal, sempre fraca do ponto de vista da forma, porém muitas vezes boa, algumas vezes mesmo excelente, do ponto de vista da substância, imagens e profundeza de pensamento filosófico.

  De qualquer forma, concordo plenamente que não é de se parar, ulteriormente, na análise da produção mediúnica de Scaramuzza, embora não apresente dados suficientes para dela tirar deduções mais ou menos legítimas em favor de uma ou de outra das hipóteses explicativas antagónicas, que dividem o campo da metapsíquica.

  Provavelmente, nem uma nem a outra das hipóteses em questão poderia bastar para explicar essa produção literária, se a considerarmos isoladamente. Seríamos, então, levados a concluir que, nesses casos, as interferências subconscientes poderiam alternar-se, de maneira inexplicável, como irrupções fugazes de inspiração supranormal, cuja natureza ainda não está definida.

/...

Ernesto Bozzano, Literatura do Além-túmulo  Capítulo II, 3º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: Les Fleurs du Lac | 1900, tempera no painel de Edgard Maxence)

quinta-feira, 20 de março de 2025

O Homem e a Sociedade ~


Capítulo IX

A Imagem do Homem no Fenómeno Metapsíquico ~

  Na ocorrência matapsíquica chamada materialização existe algo mais do que um fenómeno: temos a imagem do homem e a face espiritual de sua individualidade. Não esqueçamos que se esse fenómeno não tivesse uma raiz que mergulha no eterno, não revelaria, como sempre o faz, uma imagem e uma face espiritual. Seria constituído apenas de representações amorfas ou na formação de figuras caprichosas, alheias à representação humana. Entretanto, no fenómeno metapsíquico, manifesta-se sempre a imagem do homem, tão real e viva, que fala, sente e ama.

  Que demiurgo caprichoso se compraz em manifestar-se nesse fenómeno, não através de loucas fantasmagorias, mas revelando-nos um homem vivo, com a sua própria imagem e natureza? A esta pergunta podemos responder que: se na materialização metapsíquica se apresenta a imagem humana, isso nos fornece a razão para repelirmos as doutrinas do materialismo e estabelecermos os lineamentos de uma biologia da alma, de uma nova concepção filosófica sobre o destino do Ser e da existência.

  O fenómeno de materialização metapsíquica representa um chamado ao sentido metafísico dos novos tempos. Omitir essa manifestação seria retardar o progresso da antropologia, de maneira que os interesses de sistemas ou de seitas não deveriam prevalecer frente a um fenómeno que tão fielmente nos revela a imagem do homem e de seu espírito. Entretanto, essa espécie de traição ao homem espiritual foi consumada pelos próprios “estudiosos” da metapsíquica, temerosos de serem considerados espíritas.

  Não obstante, fenomenologia metapsíquica exige do filósofo uma nova definição do homem, pois a sua inegável realidade nos permite afirmar que o ser humano é algo mais que um facto fisiológico. Para a filosofia espírita e o realismo metapsíquico, o homem é um dínamopsiquismo que ultrapassa a representação física do organismo, ainda que a idiossincrasia universitária, de carácter acomodatício, prefira uma metapsíquica fisiológica, como a de René Sudre. (i)

  Mas não é para isso que o fenómeno metapsíquico nos mostra o seu mundo de aparições e desaparições, esse conjunto de factos que estão revelando, com toda a clareza, que o Espírito ultrapassa os centros nervosos e que possui um mundo espiritual independente das circunvoluções cerebrais.

  Onde a metapsíquica se mostra grandiosa e comovedora é precisamente quando nos revela a imagem do homem, viva e materializada, como se regressasse de um longínquo país. É então que se evidencia, num facto supranormal que revoluciona todo o mundo conhecido da natureza, que a sua origem não é natural, como à força o querem biólogos, filósofos materialistas, e até certas correntes espiritualistas. Esquece-se que a metapsíquica nos oferece uma visão nova do homem e do Universo, apresentando-nos ainda outras conclusões metafísicas e com esta visão, o homem se nos apresenta como um poder psíquico que incide sobre a sua própria morte, para superá-la, como um ser dotado da natureza imortal. Esta superação espiritual da morte, pelo homem, é a razão fundamental do fenómeno metapsíquico; por isso, a imagem do homem está presente na sua manifestação. Não esqueçamos que a fisionomia humana não se manifesta em nenhum outro facto da natureza. Assim, se a metapsíquica no-la revela, é porque persegue algum propósito extraordinário, através do númeno que a conduz e a determina.

  William Crookes viu um espírito em carne e osso; viu um Ser quase ressuscitado, que falava com os vivos e se dava o nome de Katie King. O sábio inglês tocou a sua carne e sentiu que era viva, real e quente, o que levou o grande fisiólogo espanhol Jaume Ferran a dizer, referindo-se às materializações“Temos de confessar que estas materializações constituem o grande enigma da metapsíquica. O facto de aparecerem formas de contornos vagos, dotadas de uma luminosidade especial, que acabam por adquirir o aspecto de órgãos, membros e até de figuras humanas completas, que falam, se movimentam e respiram, exalando ácido carbónico; que têm pulsações arteriais, um coração que bate e a temperatura normal; que se desvanecem na presença dos espectadores e que, ainda quando seguradas firmemente, se esvaem sem deixar o menor vestígio; ninguém poderá negar que realmente constitui um grande mistério.” (ii)

  Crookes comprovou também que essa materialização metapsíquica tinha sangue de imortalidade, (iii) e que a imagem humana de Katie King era tão positiva e real como se não procedesse do outro mundo.

  Mas porque é que a teologia, a teosofia hindu e os sistemas espiritualistas negaram a espiritualidade e a realidade desse assombroso fenómeno? Porque é que negaram a prova da existência imortal do Espírito, quando a tiveram diante dos olhos?

  Acreditamos que a negaram porque se haviam esquecido das próprias aparições de Cristo depois da morte, essas divinas manifestações do Espírito de Jesus, que inauguraram para sempre, diante da humanidade e da história, a relação permanente entre os vivos e os mortos, como um prenúncio do que seria a ciência espírita do futuro. Assim, as ciências espirituais que não aprovam as manifestações de entidades invisíveis tornam-se superficiais e falíveis, divorciam-se das antigas modalidades do cristianismo.

  A investigação metapsíquica racionalizou a busca da imortalidade da alma. Aplicando-lhe o método científico, transformou em matéria experimental o que antes se considerava exclusivamente como sobrenatural ou pertencente à especulação teológica. Deste modo, o que se acreditava ser do domínio religioso passou para o domínio científico; consequentemente, a razão pode agora buscar uma nova fé, através dessa “teologia experimental” a que se referiu Jaume Ferran, ao tratar da obra metapsíquica do professor Charles Richet.

  O organismo humano, segundo a metapsíquica, possui um dinamopsiquismo que não depende dos centros nervosos. É por isso que a velha teoria do paralelismo psicofisiológico se desmorona ante a terrível metapsíquica, pois esta revela fenómenos decisivos a respeito, que constituem verdadeira contribuição de um grande númeno espiritual, encarregado de espiritualizar o conhecimento humano. Segundo as provas metapsíquicas, o Ser é uma força divina que dirige e condiciona o seu próprio desenvolvimento orgânico e espiritual, submetendo-se para isso à maravilhosa lei dos renascimentos.

  As teorias puramente naturalistas passam assim a ocupar um lugar secundário, já que o conhecimento metapsíquico dota o homem de um novo sentido filosófico e religioso. A ideia está recobrando a sua primazia na ordem do conhecimento, mas com acento revolucionário, pois o idealismo da metapsíquica não se parece em nada com o velho idealismo escolástico. A filosofia idealista que emerge dos factos sobrenaturais vem confirmar o carácter dinâmico e revolucionário do espiritismoEm consequência, o homem metapsíquico é totalmente diferente do homem materialista, tendo possibilidades de ampliar os sentidos humanos e até mesmo de dotar a espécie de órgãos psíquicos que modificarão as actuais noções de tempo e espaço. Os cinco sentidos do homem comum poderão ser ampliados por um sexto sentido, nexo psíquico que conectará a espécie com as realidades do mundo espiritual.

  De acordo com a filosofia espírita, a imagem do homem mudará, porque tudo está destinado a renovar-se. Deus não deu à criatura humana uma imagem definitiva, mas uma face espiritual que se irá transformando com a evolução. Porque o Ser é uma entidade que avança para a imagem de Deus, através do grande processo palingenésico a que está sujeito, adentrando-se cada vez mais no Divino Plano do Universo.

  À luz da filosofia espírita podemos dizer que a metapsíquica é a ciência dos fenómenos espirituais. Por esta ciência da Alma, como a chamaram Ernesto Bozzano e Charles Richet, a humanidade conhecerá a verdadeira senda espiritual que deve percorrer. Mas isto só acontecerá quando cessarem as rivalidades religiosas e ideológicas. Então se reconhecerá, para o bem da espécie, que no fenómeno metapsíquico está presente à imagem do homem desencarnado e que o espiritismo será o traço de união entre o materialismo e o espiritualismo clássicos.

  O espiritualismo kardecista guarda esse elo perdido, o nexo que reconciliará o pensamento materialista com o espiritualista. A tese de Gustave Geley, que sustenta não haver matéria sem espírito, nem espírito sem matéria, mostra-nos o enlace do elemento material com o elemento espiritual. Reconhecido o fenómeno metapsíquico como uma manifestação da substância ectoplásmica, será fácil compreender que matéria e espírito “são duas realidades que se conjugam, já que o desenvolvimento espiritual e físico resulta da união entre o corpo e a ideia. Assim se reconhecerá que não existe materialismo nem espiritualismo puros. Ambos os sistemas participarão reciprocamente dos seus respectivos elementos e o que antes os separava, agora os aproximará, demonstrando que o materialismo possui valores para o espiritualismo e o espiritualismo valores para o materialismo. (iv)

  A metapsíquica contribuirá enormemente para esta inter-relação de ambos os sistemas, devido à realidade biológica e espiritual revelada pelos seus fenómenos de materialização, que vieram confirmar a tese de que uma essência una anima e movimenta a vida de todo o Universo. (v)

/...
(i) A posição metapsíquica de Sudre, vigorosamente refutada por Ernesto Bozzano, renova-se actualmente na parapsicologia, Os próprios trabalhos de Sudre estão sendo reeditados, no interesse de refutar as conclusões extrafísicas de Rhine. (Nota de J.H. Pires).
(ii) Do prólogo ao Tratado de Metapsíquica, de Charles Richet, edição espanhola.
(iii) “Sangue de imortalidade”, expressão vigorosa com que o autor se refere à natureza humana do fenómeno. (Nota de J.H. Pires).
(iv) Kardec afirmou que o espiritismo e as ciências devem avançar juntos, porque tratam respectivamente dos dois aspectos fundamentais do Universo: o espírito e a matéria. (Ver a introdução de O Livro dos Espíritos e A Génese) Léon Denis, em O Génio Céltico e o Mundo Invisível, declara que o espiritismo avança para a realização da síntese do conhecimento, reunindo o saber espiritual e o material. Mariotti reafirma essa tese epistemológica da filosofia espírita. (Nota de J.H. Pires).
(v) A metapsíquica é considerada pelo autor como uma espécie de campo científico do espiritismo, uma zona intermediária em que o biológico e o anímico se encontram, dando lugar às manifestações ectoplásmicas que sintetizam espírito e matéria. (Nota de J.H. Pires).


Humberto MariottiO Homem e a Sociedade numa Nova Civilização, Do Materialismo Histórico a uma Dialéctica do Espírito, 1ª PARTE O NÚMENO ESPIRITUAL NOS FENÓMENOS SOCIAIS, Capítulo IX A Imagem do Homem no Fenómeno Metapsíquico, 14º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: Alrededores de la ciudad paranóico-crítica: tarde al borde de la historia europea
1936, Salvador Dali).

sexta-feira, 17 de janeiro de 2025

metapsíquica | humana


~~~ análise crítica de uma alínea sofística

Lamento sinceramente ter de interromper aqui o exame dos argumentos que o nosso autor, profusamente, espalha em volta das experiências feitas com a Sra. Piper. Se me fosse dado continuar esse exame, dele resultaria uma crítica bastante instrutiva, pois teria de continuar, através dos factos, a demonstrar que, na sua maioria, os incidentes verificados com esta médium são inexplicáveis pelas hipóteses da “prosopopese-metagnomia (clarividência, *)”, embora não seja necessário mais do que ficou dito para fazer ruir, nesse primeiro embate, o castelo de sofismas e paralogismos, tão laboriosamente edificado por Sudre. Impus-me, entretanto, o dever de analisar todos os pontos abordados por ele num livro exageradamente parcial; longo, portanto, é o percurso a cobrir e minguado o espaço para refutar as inexactidões, as afirmações gratuitas, os paralogismos e os sofismas que como serpentes se entrelaçam uns nos outros, não raro amontoando-se às dezenas numa só página. A maior dificuldade está na escolha. Eis uma pequena amostra. Na página 338, apresenta-nos ele este parágrafo surpreendente:

“Hoje os espíritas foram compelidos a reconhecer, de um lado, que a metagnomia, a telergia e a teleplastia se podem exercer sem terem de apelar para a intervenção dos mortos e, de outro, que no fenómeno espírita transborda sempre o animismo, isto é, os elementos tirados do subconsciente dos vivos. Discutem então sobre algumas categorias de fenómenos, em que se entrincheiraram e que declaram inexplicáveis pelas teorias metapsíquicas, quando não se vêm apoiar audaciosamente no animismo, para provar o Espiritismo, sem a necessária preparação para distinguirem um do outro. Mas os espíritas que o fanatismo não cega desistem de encontrar nos factos provas cruciais. Sabem que as suas presunções serão aceites como provas, segundo a concepção que cada um tem “das probabilidades dramáticas da Natureza” (para usar a expressão original de William James). Como Myers, como Geley, eles pedem o acto de fé necessário a um sistema metafísico, fundado noutras ciências, que não a Metafísica, quando não sobre postulados morais. Assim o Espiritismo dito “científico”, inaugurado por Delanne, parece haver entrado em falência, nada mais sobrando para a grande massa do que o velho Espiritismo moral de Allan Kardec (i) que, em si, não é, de todo, mau e que serve para levar aos aflitos ilusões consoladoras.”

Não existe no trecho acima uma única afirmação que não seja errónea, gratuita, insidiosa ou sofística. Sudre começa dizendo: “Hoje os espíritas foram compelidos a reconhecer que a metagnomia, a telergia e a teleplastia se podem exercer sem terem de apelar para a intervenção dos mortos.” Ora, os espíritas sempre o reconheceram; foi justamente um espírita, Alexandre Aksakof, que, há quarenta anos, classificou os fenómenos medianímicos em três categorias; fenómenos de Personismo, de Animismo e de Espiritismo, demonstrando que as duas primeiras categorias provinham das faculdades supranormais inerentes à subconsciência humana, sem qualquer intervenção do Espírito dos mortos.

Com que direito, pois, dizer que os espíritas foram “hoje” compelidos a reconhecer esse facto?

Continua Sudre afirmando que (“hoje” sempre) os espíritas foram obrigados a concordar que no “fenómeno espírita transborda sempre o animismo, isto é, os elementos tirados do subconsciente dos vivos”. Abstracção feita do “sempre”, que é aí demasiado, posso afirmar que os espíritas, pelo contrário, reconheceram o facto desde a alvorada do movimento espírita. Eis, por exemplo, como se exprime um espírita, de primeira, Adin Ballou, na página 67 do seu livro Spirit Manifestation, vindo à luz em 1852:

“O que se passa através do médium deve, em verdade, estar sujeito à influência do espírito dos vivos. As ideias preconcebidas, a vontade, a imaginação, os sentimentos, os pontos de vista particulares não podem deixar de exercer uma influência, mais ou menos acentuada, sobre as comunicações que os Espíritos dos mortos procuram transmitir, por intermédio de um cérebro alheio. Além disso, as influências mesméricas e psicológicas da parte da mentalidade dos experimentadores, que podem dominar a do médium, devem igualmente produzir um efeito perturbador análogo. Segue-se que certas comunicações provenientes de Espíritos elevados são transmitidas ou, mais acertadamente, são traduzidas de um modo vulgar, não raro completamente diferentes, daquilo que foi ouvido pelo Espírito comunicante. É como se um francês se comunicasse com um inglês por intermédio de um dinamarquês, pouco familiarizado com aqueles dois idiomas. O interlocutor inglês teria não pequena dificuldade de apreender o sentido do recado transmitido. Nos casos desta natureza, nunca podemos estar certos de ser a comunicação recebida uma tradução perfeita do que tinha o Espírito comunicante intuito de transmitir.”

Eis o raciocínio de Adin Ballou, há setenta e cinco anos e, esta sua opinião encontra-se transcrita nas obras de Capron (1858), do professor Robert Hare (1855), do Dr. Wolfe (1869), de Alexandre Aksakof (1889); mas para Sudre só “hoje” os espíritas foram obrigados a reconhecê-lo e, isso mesmo, graças à força esclarecedora das pesquisas dos metapsiquicos destes últimos tempos.

Mas continuemos. O nosso autor ainda assim se exprime: “Então discutem (os espíritas) sobre algumas categorias de fenómenos, em que se entrincheiraram e que declaram inexplicáveis pela teoria metapsíquica.” Estas “algumas” categorias de fenómenos inexplicáveis pela teoria metapsíquica” são antes numerosas e nada mais natural que os espíritas as declarem inexplicáveis pela hipótese naturalista, pois, de facto, o são. Os próprios metapsiquistas anti-espíritas de tal forma o compreendem e, com isso, tal embaraço experimentam, que evitam prudentemente discuti-las, contentando-se de apenas a elas aludir, de modo geral, em nada concludente ou a elas não se referindo de modo algum, o que ainda é mais cómodo. Isso não impede, porém, que esses mesmos metapsiquistas continuem a inculcar a sua argumentação anti-espírita, como se houvessem respondido, refutado, destruído a dos seus opositores. Mais tarde voltaremos a este ponto, particularmente importante.

A continuação do trecho, cujo exame empreendemos, é curiosíssima. Com efeito, ele faz-nos saber que os espíritas “se apoiam audaciosamente no animismo para provar o Espiritismo, sem terem a necessária preparação para distinguir um do outro”. A primeira parte desta objecção é estupenda e, a segunda completamente falsa. Estou eu entre aqueles que, de há trinta anos para cá, se apoiam “audaciosamente” no animismo para provar o Espiritismo; nos números de Novembro-Dezembro de 1925 e de Janeiro-Fevereiro de 1926, da Revue Spirite fiz sair um longo artigo, rigorosamente documentado, com o fim de demonstrar que o Animismo, sob o ponto de vista de demonstração científica da existência e da sobrevivência da alma, era mais importante e decisivo do que o próprio Espiritismo; e nesse artigo fiz ressaltar a circunstância, altamente eloquente, de Frank Podmore, isto é, o adversário mais encarniçado da hipótese espírita, haver, mesmo ele, reconhecido essa verdade, nos termos que se seguem:

“Seja ou não verdade que as condições do além permitem, às vezes, aos que lá se encontram, entrar em comunicação com os vivos, é, em todo o caso, claro que essa questão se tornaria de importância secundária se se chegasse a demonstrar, sobre a base das faculdades inerentes ao espírito, que a vida da alma não está ligada à vida do corpo. Noutros termos, deve necessariamente admitir-se que, se é verdade que no sono medianímico ou extático, o Espírito conhece o que, à distância, se passa, percebe coisas escondidas, prevê o futuro e lê no passado, como num livro aberto, então – considerando que estas faculdades não foram certamente adquiridas no processo de evolução terrena, cujo meio lhes não é próprio nem lhes justifica a emergência – então, dizia, parece que se poderá inferir que estas faculdades demonstram a existência de um outro mundo mais elevado, no qual elas se deverão exercer livremente, em harmonia com outro ciclo evolutivo, que já não seria regido pelo nosso meio terreno. É importante acrescentar que a teoria aqui esboçada não é nenhuma especulação filosófica, fundada em suposições não verificáveis; é uma hipótese científica, baseada na interpretação de uma categoria precisa de factos... Seria inútil contestar que, se se pudesse provar a autenticidade dos fenómenos de premonição, de clarividência e tantos outros que testemunhassem que no nosso espírito se encontram faculdades psíquico-sensoriais transcendentais, então o facto da independência do espírito do corpo seria manifesta.”

Por conseguinte, segundo Podmore “seria inútil contestar” a sobrevivência da alma, desde que se provasse a existência de fenómenos de “metagnomia”. E não é outra coisa o que, por minha vez, tenho sustentado desde sempre. O que pensa disto Sudre? Amarga decepção deve ter sido a sua, quando viu, pelo meu artigo anterior, que o próprio Podmore, audaciosamente, pensava que o Animismo constituía prova para o Espiritismo! E o que de mais “trágico” se verifica na situação de Sudre é que Podmore pelo menos se mantinha dentro da ilusão de poder reduzir todos os fenómenos metapsíquicos exclusivamente à telepatia e de, consequentemente, poder negar os fenómenos de metagnomia propriamente dita. Com isto ele se sentia garantido na sua qualidade de campeão mundial do anti-espiritismo; enquanto que Sudre não deve ter fácil a porta de saída, ele que está firmemente convencido da existência das faculdades supranormais em questão.

Como, pois, salvar do naufrágio inevitável o frágil barquinho do seu anti-espiritismo materialista? Com as “bolsas de vento” que lhe prende às bordas? Não; nem será com as frases ocas e retumbantes, das que lança mão nos momentos críticos, que poderá enfrentar a argumentação que, intimamente, reconhecendo invulnerável, não ousa atacar de frente. É o que ainda agora se dá ao ter de enfrentar o caso da demonstração irrefutável do Espiritismo pelo Animismo; interpõe no período a palavra audaciosamente, com a qual pretende insinuar que as pretensões dos espíritas a esse respeito são injustificáveis e temerárias.

Deve ele compreender bem que as frases apenas para armar não produzem refutação, não constituem provas e são de duração efémera; mas ele se dá por satisfeito, desde que elas produzam pelo menos uma pequena impressão deletéria no espírito dos leitores menos prudentes e pouco ao corrente da discussão. É possível que consiga isso algumas vezes, o que não impede, entretanto, que, demonstrando não poder responder à argumentação firme e lógica dos espiritualistas, ele vote a sua causa a irremediável desastre. E o seu livro transborda dessas frases, do mesmo modo que os seus artigos delas vêm salpicados. Por mais de uma vez fui visado pelos rasgos, um tanto embotados, dessa fraseologia, rasgos que, antes, me divertiram, porque, nas circunstâncias em que me procuraram atingir, não representaram para o seu autor mais do que uma satisfação demasiado efémera. O meu contraditor não havia conseguido responder à refutação de uma das suas teses, apesar de imprudentemente haver prometido pronta resposta que, a seu ver, não poderia deixar mesmo de ser “muito fácil”. Chegado, porém, o momento, a coisa lhe pareceu, ao contrário, bem difícil, ou, para ser mais claro, só então se convenceu de ser logicamente impossível refutar aqueles argumentos.

Mesmo assim, Sudre continua a servir-se da hipótese reduzida a zero, tal como se a houvesse vitoriosamente defendido, ou pelo menos refutado com algum êxito a minha argumentação.

Voltando ao assunto, deixo aqui consignado que se Sudre lançar uma das suas frases habituais, a propósito da afirmação irrefutável de que o Animismo constitui uma prova para o Espiritismo, não me hei de assustar, antes farei ao meu antagonista um apelo formal – em nome da investigação sincera e apaixonada da Verdade pela Verdade – para que nos oriente do modo pelo qual explica a existência, na subconsciência humana, de faculdades e sentidos supranormais, independentes da lei da evolução biológica.

O que peço a Sudre é que, ao elucidar-nos, o faça do único modo plausível, isto é, destruindo com lógica os argumentos por mim, nesse sentido, expostos no artigo, cujo texto já dei e que pode ser por ele encontrado na Revue Spirite, artigo em que eu demonstrava, de modo decisivo, que sempre que os nossos antagonistas pensam combater a hipótese espírita, recorrendo aos poderes da metagnomia, nada mais fazem, na realidade, do que demonstrar a existência e a sobrevivência da alma, apenas colocando a questão, antes, sob o ponto de vista do Animismo que do Espiritismo, o que, em suma, vem a ser uma e a mesma coisa.

Espero o meu contraditor no terreno da prova; mas sinceramente digo estar, de antemão, convencido de que ele terá o cuidado de não responder a esta questão de valor decisivo para o ponto de vista espiritualista. Não impedirá isso, no entanto, de continuar a fazer prevalecer imperturbável a sua opinião contrária à sobrevivência da alma e a tachar de audaciosos os argumentos que ele é incapaz de demonstrar que sejam falsos. São inconsequências fatais naqueles que têm o espírito obscurecido por irredutíveis preconceitos.

Poderiam objectar-me ser inútil a minha insistência em procurar convencer os que se obstinam em não querer compreender, mas a minha insistência não visa convencer o meu competidor e tão-somente a levar a tranquilidade de espírito àqueles poucos que, por acaso, se tenham deixado perturbar pelas suas insinuações sofísticas.

Abro aqui um parêntesis para tratar com o professor Charles Richet.

Havia acabado de escrever as páginas acima, quando recebi o número de Janeiro-Fevereiro da Revue Metapsychique, 1926, onde, num breve artigo, o Prof.Richet, fazendo notar a existência, nos nossos dias, de um certo número de sensitivos clarividentes, pensa que pode isto traduzir o prelúdio do próximo aparecimento, no homem, de um “sexto sentido”. Passando a examinar cientificamente a origem presumível desse novo sentido, procura explicar o facto pela teoria muito conhecida do Dr. Vries, sobre as “mutações bruscas” transmissíveis à descendência, tal como se observa no reino vegetal.

Ouso lembrar ao Prof. Richet que a frequência actual de sensitivos clarividentes – frequência aliás muito relativa – decorre exclusivamente do facto de, nestes últimos anos, entre os povos civilizados, serem esses indivíduos muito procurados e observados, ao passo que antigamente eram em geral conduzidos à fogueira, o que, em muito, lhes reduzia o número. Nada, entretanto, de novo sobre o caso. Se interrogarmos a respeito a história da antiguidade clássica, bíblica, egípcia, babilónica, se ascendermos a eras mais remotas, até às crónicas sagradas dos povos do Oriente, encontraremos os melhores elementos para nos provar que as faculdades de clarividência permanecem em estado absolutamente estacionário, através dos séculos, não obstante as civilizações e as raças, o que já não é pouco para condenar aquela hipótese.

Mas outra circunstância de facto, que contradiz a tese do Prof. Richet, de modo decisivo, é a frequência de fenómenos de clarividência, sob as suas múltiplas formas, no meio dos povos selvagens.

Pessoalmente estudei o assunto, em longa monografia que, como todas que a precederam, não é fruto de pesquisas superficiais, mas de acurado estudo, em longo período de 35 anos. Adquiri, portanto, certa competência no assunto e posso afirmar não existir tribo selvagem que não tenha o seu feiticeiro-curador, com predicados absolutamente análogos aos dos clarividentes, entre os povos civilizados.

Os relatórios dos exploradores e dos missionários estão repletos de casos dessa natureza, que se contam por centenas. Daí podermos concluir em sentido diametralmente oposto ao que nos sugere o Prof. Charles Richet, isto é, que, se as faculdades de clarividência sob todas as formas são mais frequentes entre os povos primitivos que entre os civilizados, não há razão para admitirmos a hipótese do aparecimento, no homem, de um “sexto sentido” graças à lei biológica das “mutações bruscas”.

Devemos, além disso, ter presente uma outra consideração, teoricamente de grande importância, qual a do Prof. Richet se não haver lembrado da impossibilidade de se tratar de um “sexto sentido” em gestação, por isso que os fenómenos de clarividência se produzem pela utilização dos sentidos existentes: visão, audição e tacto. Acrescentaremos que, por outro lado, deixou ele de considerar que esses fenómenos, ao contrário de serem determinados pela percepção directa, isto é, da periferia para o cérebro, como se deveriam produzir para todo e qualquer sentido biológico passado, presente ou futuro, eles se determinam por percepção inversa, ou seja, do cérebro para a periferia, sob a forma de visões ou audições subjectivas, projectadas fora e quase sempre de natureza simbólica, mais ou menos manifesta. Ora, a natureza simbólica de quase todas as percepções supranormais reveste-se de alto valor teórico, porque mostra que essas percepções independem, não somente dos sentidos periféricos, mas também dos centros cerebrais correspondentes. Com efeito, o simbolismo das percepções prova que os centros cerebrais não percebem activamente, mas registam passivamente o que lhes é transmitido, por um terceiro agente a elas estranho, único a perceber directamente, para depois transmitir os seus conhecimentos ao sensitivo, sob a forma de representações simbólicas. Isto, evidentemente, porque sendo as suas percepções qualitativamente diferentes das que podem assimilar os centros cerebrais do sensitivo, ele é obrigado a transmiti-las sob a forma de objectivações alucinatórias, que o sensitivo ou os interessados podem, facilmente, interpretar. E como esse terceiro agente estranho ao cérebro, outro não pode ser senão a personalidade integral subconsciente do sensitivo, conclui-se que, baseando-se nas circunstâncias expostas, nós veremos emergir, manifesta e incontestável, a contraprova de que a “personalidade integral subconsciente” é uma “entidade espiritual” independente de toda a ingerência funcional, directa ou indirecta, do órgão cerebral. Resulta ainda, disso, que as faculdades supranormais, esporadicamente assinaladas, de todos os tempos e em todos os lugares, na Humanidade são, na realidade, as faculdades de sentidos espirituais da personalidade integral subconsciente, em estado latente, na subconsciência humana, para emergir e se exercer num meio espiritual, após a crise da morte; do mesmo modo que no embrião se encontram formadas, de antemão e em estado latente, as faculdades de sentidos terrenos, à espera do momento que lhes há de permitir se exerçam no seio do meio terrestre, após a crise do nascimento.

Como se pode verificar, as induções sobre a base dos factos nos arrastam para longe da hipótese aventada pelo Prof. Richet, hipótese que aparece insustentável, sob o ponto de vista biológico, psicológico e metapsíquico.

Dito isto, devo confessar sinceramente que o artigo do Prof. Richet me produziu, pessoalmente, uma impressão dolorosa, de profundo desalento. Revela-me a inutilidade dos esforços intelectuais, a que me submeto há trinta e cinco anos, com o fim de dar a minha contribuição à investigação da ciência metafísica. Se o Prof. Richet, antes de expor a sua hipótese, houvesse demonstrado o erro da minha argumentação, eu teria testemunhado o meu reconhecimento àquele que assim me houvesse esclarecido sobre problema do mais alto valor científico. Mas o Prof. Richet enuncia a sua hipótese sem fazer a mínima alusão à existência de um estudo recente sobre o assunto, estudo que o contradiz no terreno dos factos. Ora, como do choque das ideias é que ressalta a centelha da Verdade, se no meio metapsíquico, uma das partes segue o seu caminho sem se preocupar com o que faz a outra, não se chegará, nesse ramo de ciência, a qualquer conclusão. Nessas condições, tanto vale não escrever coisa alguma, cada um se limitando egoisticamente a estudar apenas para si, deixando que os demais pensem como melhor lhes parecer.

Agora que já me expliquei com o Prof. Richet, fecho o longo parêntesis e retomo a discussão com o Sr. René Sudre, examinando a segunda parte do curto mas virulento trecho do seu trabalho, em cuja análise me detive.

Havia eu dito que a primeira parte deste trecho era estupenda e a segunda inteiramente falsa. Com efeito, nesta segunda parte, o autor tem a “audácia” (para usar-lhe do termo) de escrever que os espíritas afirmam que o Animismo prova o Espiritismo “sem estarem preparados para entre os dois poderem discernir”. Para colocar logo as coisas nos seus lugares (pois a insinuação de Sudre tem por fim apenas embaralhar), devo lembrar que a questão que acabamos de tratar, relativamente aos fenómenos anímicos, que só por eles demonstram a sobrevivência da alma, nada tem de comum com aquela que distingue os casos de animismo dos de Espiritismo. Referindo-se, agora, de um modo directo, à objecção formulada e, segundo a qual, os espíritas não estão em condições de poder distinguir os fenómenos anímicos dos espíritas, lembro ao meu opositor que toda a discussão, que vimos de sustentar a propósito da Sra. Piper, prova, ao contrário, a existência de critérios analíticos capazes de permitir fácil distinção entre os fenómenos positivamente espíritas e aqueles que não o são ou, mais precisamente, aqueles que não apresentam suficientes garantias científicas nesse sentido.

Reservo-me a voltar posteriormente ao assunto, trazendo novos factos e novos argumentos. Convido, pois, o meu contraditor a me responder também sobre este ponto, refutando toda a argumentação que a precede e a que se vai seguir. Se, porém, ele preferir o meio mais cómodo do silêncio, isto quererá dizer que ele reconhece não poder responder. Quanto a mim, pelo contrário, reconheço estar em condições de responder em todas as circunstâncias – graças, é certo, não ao meu mérito, mas à qualidade da causa que defendo. Assim, não deixarei passar uma só objecção contrária sem convenientemente a refutar.

Continuando a análise do trecho referido, vemos que Sudre diz: “Mas os espíritas que o fanatismo não cega e, que têm uma cultura científica suficiente, renunciam a encontrar nos factos provas cruciais.”

Se se trata de “provas cruciais”, no sentido de “provas absolutas”, a renúncia, de facto, existe, por isso que não há quem ignore ser absurdo e impossível pretender uma “prova absoluta” num ramo de saber qualquer ou numa circunstância da vida, seja ela qual for. Esperamos que os nossos contraditores comecem por nos fornecer a “prova absoluta” daquilo que adiantam, em sentido negativo. Não o podem fazer, assim como também nós, porque nenhum representante da ciência oficial nunca poderá fornecer a “prova absoluta” de qualquer coisa. E isso pela simples razão de que nós mesmos, pobres individualidades condicionadas, vivemos no “relativo”, não podendo, por isso, jamais afirmar uma coisa em termos de certeza absoluta. Mas se Sudre, ao contrário, pela expressão de que faz uso, quer aludir às provas científicas suficientes para legitimar uma hipótese, então labora em grande erro, pois os espíritas de “cultura científica” são da opinião do professor Hyslop, que tinha essa cultura e que solenemente afirmou esta verdade nos seguintes termos:

“Não existe outra explicação racional dos factos senão a hipótese da sobrevivência da alma; as provas cumulativas, que convergem em seu favor, são por tal forma peremptórias que não hesito em declará-las em tudo equivalentes, senão mesmo superiores, àquelas que confirmam a teoria da evolução.” (Contacts with the other world, pág. 328.)

Acrescenta, afinal, Sudre: “Como Myers e Geley, eles pedem o acto de fé necessário a um sistema metafísico edificado sobre outras ciências que não a metafísica, quando não sobre postulados morais.” Ignoro a que se quer referir o nosso autor quando cita Myers e Geley, mesmo porque, ao se citarem autoridades deste valor em defesa de uma tese, tem-se por dever reproduzir as opiniões para as quais se apela, sem o que os nomes invocados não representam mais do que simples expediente de retórica.

Em todo o caso, afirmo, por meu lado, que nada pode haver de tão contrário à verdade, como de supor que os defensores da hipótese espírita firmem o seu ponto de vista sobre a base de um “acto de fé”. É justamente o contrário que se verifica. A força de expansão do Espiritismo, precisamente, reside no facto de haver ele banido para sempre os “actos de fé”, baseando-se exclusivamente nas induções e nas deduções dos factos, do mesmo modo que sobre a convergência das provas, tudo exactamente como em todo o outro departamento do saber humano. Quanto a mim, posso mesmo acrescentar que sempre tive pelos actos de fé uma espécie de “fobia”, que ressalta em todos os meus escritos, baseados sempre nos factos e na dedução dos factos.

Eis-nos, enfim, diante das conclusões a que chega Sudre, no trecho em análise. Elas valem o resto. Com efeito, ele conclui: “Assim, o Espiritismo dito científico e, inaugurado por Delanne, parece haver entrado em falência, nada mais sobrando para a grande massa que o velho Espiritismo moral de Allan Kardec que, em si, não é de todo mau e que serve para levar aos aflitos ilusões consoladoras.”

É de supor que as vãs ilusões, de que fala Sudre, devam referir-se às próprias esperanças iludidas, no que se prende ao Espiritismo científico, cuja falência esperava, mas que, na realidade, nunca teve vitalidade e pujança como actualmente.

É que ele contempla as fases evolutivas da nova Ciência da Alma do cimo do observatório nebuloso dos seus preconceitos.

E basta para este parágrafo.

/…
(*) metagnomia – em metapsíquica (ver fonte ), termo usado por alguns autores para indicar o que hoje se chama comummente; conhecimento paranormal ou percepção extra-sensorial e, também como sinónimo do termo tradicional de clarividênciaNota desta publicação.

(Nesta obra, de natureza puramente científica, Bozzano faz uma minuciosa análise com o objectivo de refutar a obra anti-espírita de René Sudre, “Introdução ao Estudo da Metapsíquica". Desenvolvendo argumentação insofismável sobre aparições junto do leito de morte, fenómenos de materialização e outros, o autor demonstra que a “prosopopese-metagnomia”, hipótese fundamental sustentada por Sudre, para explicar as manifestações metapsíquicas de efeitos inteligentes, de modo algum atinge o fim que teve em vista o autor.)


Ernesto Bozzano (1862-1943) (i)A propósito da Introdução à Metapsíquica Humana, Refutação do livro de René Sudre  Título Original em Italiano; Ernesto Bozzano - Per la difesa dello spiritismo (A proposito della "Introduction à la Métapsychique Humaine" di René Sudre) Società Editrice Partenopea, Napoli (1927); III – Análise crítica de uma alínea sofística, 3º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: Puro aire, uma pintura de JosefinaRobirosa)

sábado, 26 de outubro de 2024

metapsíquica | e depois


~~~ Segundo Caso ~~~

(A Crise da Morte)

Tiro este segundo facto do volume De MorganFrom Matter to Spirit (i(pág. 149). (*) A personalidade mediúnica do Doutor Horace Abraham Ackley descreve, nestes termos, a maneira como o seu Espírito se separou do organismo somático:

Como acontece em muito elevado número de humanos, o meu espírito não se libertou facilmente do corpo. Eu sentia que me desprendia gradualmente dos laços orgânicos, mas encontrava-me em condições pouco lúcidas de existência, afigurando-se-me que sonhava. Sentia a minha personalidade como que dividida em muitas partes, que, todavia, permaneciam ligadas por um laço indissolúvel. Quando o organismo corpóreo deixou de funcionar, pode o meu espírito despojar-se dele inteiramente. Pareceu-me então que as partes destacadas da minha personalidade se reuniam numa só. Senti-me, ao mesmo tempo, levantado acima do meu cadáver, a pequena distância dele, donde eu via distintamente as pessoas que me cercavam o corpo.

Não saberia dizer por que poder cheguei a me desprender e a me elevar no ar. Depois desse acontecimento, suponho ter passado por um período bastante longo em estado de inconsciência, ou de sono (o que, aliás, acontece frequentemente, se bem que isso não sucede em todos os casos); deduzo-o do facto que, quando tornei a ver o meu cadáver, estava ele em estado de adiantada decomposição.

Logo que voltei a mim, todos os acontecimentos da minha vida desfilaram aos meus olhos, como que em panorama; eram visões vivas, muito reais, em dimensões naturais, como se o meu passado se tivesse tornado o presente. Revi todo o meu passado, tendo compreendido o último episódio: o da minha desencarnação. A visão passou diante de mim com tal rapidez, que quase não tive tempo de reflectir, tendo ficado como que arrebatado por um turbilhão de emoções. A visão, em seguida, desapareceu com a mesma instantaneidade com que se mostrara; as meditações sobre o passado e o futuro, provocaram vivo interesse em mim pelas condições actuais.

Eu ouvira dizer aos espíritas que os Espíritos desencarnados eram acolhidos no mundo espiritual pelos seus parentes, ou pelos seus Espíritos-guardiães. Não vendo ninguém perto de mim, conclui que os espíritas se tinham enganado. Mas, logo que este pensamento me atravessou o espírito, vi dois Espíritos que me eram desconhecidos e para os quais me senti atraído por um sentimento de afinidade. Soube que tinham sido homens muito instruídos e inteligentes, mas que, como eu, não haviam cogitado em desenvolver em si os princípios elevados da espiritualidade. Chamaram-me pelo meu nome, sem que eu o tivesse pronunciado, e me acolheram com uma familiaridade tão benévola, que me senti agradavelmente reconfortado. Com eles deixei o meio onde desencarnara e onde me conservara até àquele momento. Pareceu-me nebulosa a paisagem que atravessei; mas dentro dessa meia obscuridade, fui conduzido a um lugar onde vi reunidos numerosos Espíritos, entre os quais muitos havia que eu conhecera em vida e que tinham morrido há algum tempo...

Notarei que no último parágrafo do episódio precedente se encontra um outro o dos detalhes secundários habituais, que se diferenciam mais ou menos nas descrições de tantos Espíritos que se comunicam. Este detalhe encontrará a sua razão de ser nas condições espirituais, bem pouco evolvidas, do defunto autor da mensagem. Geralmente, nas de revelações transcendentais, lê-se que os Espíritos dos mortos entram num meio mais ou menos radioso, onde são acolhidos pelos Espíritos dos seus parentes. Aqui se vê, ao contrário, que o Espírito comunicante se encontrou num meio nubloso, onde foi acolhida amistosamente por dois Espíritos que lhe eram desconhecidos, mas que guardavam afinidade com ele, do ponto de vista das condições espirituais. É fácil de julgar que este aparente desacordo entre as primeiras impressões deste Espírito desencarnado e outras muito mais frequentes dependa da circunstância de que, como ele próprio diz, se descuidara em vida em desenvolver em si o elemento espiritual e que os Espíritos que lhe foram ao encontro se encontravam nas mesmas condições. Daí resultou que, pela lei de afinidade, um meio de luz não se adaptava às condições transitórias, mas obscurecidas, dos seus Espíritos.

De outro ponto de vista, notarei que, também no episódio em apreço, o Espírito que se comunica afirma ter sofrido a prova da visão panorâmica do seu passado, prova que, neste caso, em vez de se desenrolar espontaneamente, em consequência de uma superexcitação sui generis das faculdades mnemónicas (superexcitação produzida pela crise da agonia, ao que dizem as psicologistas), pareceria antes provocada pelos guias espirituais, com o fim de predispor o Espírito recém-chegado a uma espécie de exame de consciência.

Esta interpretação do fenómeno ressaltará muito mais claramente de alguns dos casos que se vão seguir.

Notarei, finalmente, que este caso, ocorrido em 1857, já contém a narração de um incidente interessante de bilocação no leito de morte, seguido do fenómeno consistente na situação que durante algum tempo o Espírito desencarnado se manteve, pairando por cima do cadáver. Frequentes incidentes análogos encontrar-se-ão nas comunicações da mesma natureza; com mais frequência ainda, são sensitivos que, assistindo à morte de alguém, os descreverão segundo o que perceberam. As obras espiritualistas estão cheias de episódios deste género, a começar pelos que foram descritos pelo famoso vidente Andrew Jackson Davis e pelo juiz Edmonds, até aos que chegaram ao Rev. William Stainton Moses e à governante inglesa (enfermeira diplomada) Mrs. Joy Snell (i), que tem vindo a assistir à produção de fenómenos desta espécie desde há vinte anos. Ora, quem não vê que o facto das afirmações de videntes, concordantes de modo admirável com o que narram os próprios Espíritas desencarnados, tem inegável importância, uma vez que se confirmam mutuamente? E também, com relação a esta ordem de incidentes, é muito comum que o médium escrevente, ou o sensitivo vidente, estejam na mais completa ignorância acerca da existência de tais fenómenos e da maneira pela qual se produzem no leito de morte. E como o caso com que acabamos de ocupar-nos remonta a 1857, isto é, aos começos do movimento espírita, tudo contribui para que se suponha que nesta circunstância o médium e os assistentes ignoravam tudo o que concerne aos fenómenos de bilocação em geral e, sobretudo, à maneira como se dão com os moribundos.

/...

(*) From Matter to Spirit (Da Matéria ao Espírito), uma obra escrita por Sophia Elizabeth De Morgan (1809–1892) foi esposa do matemático e lógico Augustus De Morgan e mãe do célebre ceramista William De Morgan. Neste livro, publicado em 1863, De Morgan, escrevendo como 'CD' – com um prefácio de seu marido assinado como 'AB' – reconhece que supostas manifestações espirituais enfrentaram muitas críticas e cepticismo, mas argumenta que era um fenómeno pouco compreendido que merecia mais investigação. Ela passou uma década nesta pesquisa e se concentrou no papel dos médiuns, pessoas que se acreditava comunicarem-se com o mundo espiritual. Ela foi auxiliada nisso pela chegada de um médium que viveu com a família De Morgan durante seis anos. Os seus capítulos também examinam em profundidade o processo de morrer e as ideias sobre a vida depois da morte. Um relato em primeira mão do mundo espiritualista do século XIX, este livro fornece um vislumbre fascinante do cenário religioso em mudança da Grã-Bretanha à época. Adenda desta publicação.


Ernesto Bozzano (1862-1943) (i)A Crise da Morte, Publicação original (1930), "La Crisi Della Morte"; Segundo Caso. 2º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: Puro aire, uma pintura de Josefina Robirosa)