Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

segunda-feira, 25 de novembro de 2013

Nas garras do pensamento crítico ~


O velho e o novo ~

   É evidente que o conhecimento da sobrevivência alarga a concepção humana da vida e do mundo, muito além dos limites terrenos ou orgânicos da concepção materialista. Oliver Lodge classificou o Espiritismo de “nova revolução copérnica”.

   Assim como Copérnico rompeu de vez o ergástulo mental do geocentrismo, a revolução espírita desloca dos organismos materiais o conceito de vida, rompe o organocentrismo da biologia moderna e reduz a uma simples confusão do efeito pela causa o chamado “materialismo-psicológico”.

   Em consequência, leis e perspectivas novas aparecem, exigindo verdadeira revisão dos conhecimentos do homem e do seu modo de encarar a vida e o mundo. Mais uma vez nos deparamos com a luta clássica entre o velho e o novo tão bem definida no Evangelho de Cristo e nas obras de Allan Kardec.

Vagas aspirações

   Alegam os mais ferrenhos materialistas que o conhecimento da sobrevivência – se de facto ela existisse – não serviria senão para perturbar a visão presente do homem, desviando-o da execução pura e simples das tarefas imediatas. Kardec, que condenou a vida contemplativa, e pregou a necessidade da acção contínua, dando o exemplo concreto da sua própria vida de militante espírita, replica: “...a incerteza, no tocante às coisas da vida futura, faz que o homem se lance, com uma espécie de frenesi, sobre as da vida material.”

   A réplica de Kardec não exige demonstrações. A vida moderna, baseada no materialismo prático do mundo capitalista, vale por uma experiência natural, em escala de assombro. Nunca se viu tamanho frenesi na procura dos bens materiais. A advertência de Francis Bacon“Busca primeiro as boas coisas do espírito, que o resto será suprido ou não sentirás a sua falta”, com base naquela de Cristo: “Busca primeiramente o Reino de Deus e a sua justiça, e tudo o mais te será dado por acréscimo”, não soa no coração, mas apenas nos tímpanos desatentos do homem moderno. Diante disso, poderíamos esperar do materialismo teórico ou filosófico uma nova aplicação do princípio de Hahnemann, – similia similibus curantur – para curar o mundo desse delírio febril?

   Kardec diz ainda: “Esse é o inevitável efeito das épocas de transição. O edifício do passado rui, sem que o do futuro esteja construído. O homem é como um adolescente, que não tem mais a crença ingénua dos primeiros anos e não adquiriu ainda os conhecimentos da idade madura. Não possui mais do que vagas aspirações, que não sabe definir.”

   A sociedade socialista, baseada na filosofia materialista mais avançada, terminaria atormentada por essas “vagas aspirações” de que nos fala Kardec. E mais uma vez surgiria, no seu próprio seio, a luta entre o velho e o novo. A hipótese não é gratuita, pois para tal não acontecer, seria necessário que não existisse uma vida futura, que a sobrevivência não fosse uma das realidades do Universo.

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José Herculano Pires, Espiritismo Dialéctico, "O velho e o novo / Vagas aspirações", 11º fragmento da obra.
(imagem de ilustração: Vi o caçador levantar o arco-íris, pintura em acrílico de Costa Brites)

quarta-feira, 20 de novembro de 2013

a pedra e o joio ~


O comparsa da matéria ~
   Estranharam alguns leitores a acusação de materialismo que fizemos à teoria corpuscular do espírito. Realmente, alguns trechos do livro do Sr. Guimarães Andrade parecem contradizer-nos. Assim, por exemplo, na página 110, encontramos este: “Sem atribuir aos componentes da substância viva a intervenção de um princípio extra-material, não conseguiremos levar a bom termo a compreensão do enigma da vida”. (Suprimimos os trechos intercalados, para maior clareza).

   Essa, entretanto, não é mais do que uma das muitas contradições do livro e da teoria. Enquanto o autor afirma tal coisa, através de palavras, propõe o contrário na sua elaboração teórica. Preso àquilo que chamamos de “fatalismo lógico”, o Sr. Guimarães Andrade quer seguir um caminho, mas na verdade segue outro. O princípio extra-material não tem lugar nessa teoria corpuscular, tipicamente mecanicista, irremediavelmente amarrada às ciências da matéria.

   Na página 116, por exemplo (Cap. VI), vemos o autor equiparar os bions aos electrons. As suas palavras textuais são estas: “O bion seria um correspondente tetradimensional do electron. As suas propriedades se assemelham e são homólogas. Todavia, um tem quatro e o outro tem três dimensões. Talvez somente nisso resida a diferença entre eles”. Como vemos, a diferença é apenas dimensional. Mas quando nos lembramos de que a quarta dimensão é o tempo da concepção física de Einstein, chegamos a perguntar porque o autor se refere ao espírito.

   Tudo se passa, como já demonstramos, no “continuum espaço-tempo”, que é um “continuum” material, o todo material do universo einsteiniano. O próprio autor chama o espírito de “comparsa da matéria”, chegando a falar num “conúbio entre o espírito e a matéria”. Mas por que esse conúbio, se a matéria pode explicar tudo, pois tudo se passa nela? O espírito aparece por mero engano, como “peninha para atrapalhar”, pois o que importa é a matéria. E tanto assim, que o espírito, antes de se integrar na matéria, é apenas matéria em quarta dimensão.

   Para sair da situação contraditória em que se colocou, o autor inventa um curioso processo de queda dos átomos espirituais, atraídos por um campo material. Mas nesse momento tem de reformar, não só o Espiritismo, como também a Física. A sua posição é então a de um reformador universal. De um lado, quer modificar Allan Kardec, do outro, modificar Einstein e todos os teóricos da física nuclear. A sua teoria da queda dos átomos, entretanto, não é mais do que uma imitação da teoria da inclinação dos átomos, de Epicuro. E sabemos que Epicuro foi acusado, por essa teoria da inclinação, de haver desfigurado o atomismo de Demócrito.

   Vejamos como o autor propõe essa aparente novidade: “Para explicar o fenómeno (a vivificação da matéria), precisamos transpor algumas barreiras conceptuais da própria Física, admitindo que o movimento dos electrons, quando cobrindo uma superfície fechada em torno do núcleo, possa desenvolver um momento magnético perpendicular, ao mesmo tempo, aos três eixos cartesianos que definem um espaço físico”. Mais uma vez, como assinalamos anteriormente, o autor se utiliza dos conceitos alheios em função dos seus interesses teóricos. Amolda ao seu bel-prazer as próprias teorias da ciência moderna.

   No final do volume, o Sr. Guimarães Andrade se lembra da existência de Deus e declara que o excluiu intencionalmente da teoria, para o incluir mais tarde. O leitor que acompanhou o nosso estudo há de perguntar, porém, de que maneira Deus seria incluído nesse mundo mecânico, onde o próprio Espírito da concepção kardeciana foi também posto de lado e “cientificamente” substituído por um “comparsa da matéria”, que nada mais faz do que obedecer a leis de atracção e repulsão.

   Não existe, na teoria corpuscular do espírito, uma anterioridade do espírito. “Comparsa da matéria”, ele nasce com esta e nesta se desenvolve. Na página 134, ao tratar da reencarnação, o autor reafirma a sua tese: “Como já fizemos ressaltar nos capítulos anteriores, o espírito se forma e se aperfeiçoa através das suas experiências na matéria”. E na página 184, explica que a alma é simples “duplicata biomagnética”, que surge com o corpo e com ele desaparece.

   Essa nova teoria da alma é outro ponto obscuro do livro. O Sr. Guimarães Andrade faz absoluta distinção entre espírito e alma. Afirma que esta última desaparece com a morte do corpo. Mas acrescenta que ela fica “em estado latente, aguardando novo veículo fisiológico para se manifestar”. Quer dizer que a alma desaparece, mas não desaparece. Verdadeiro jogo de esconde-esconde, perfeitamente dispensável, pois em nada influi na teoria. O autor se diverte, às vezes, jogando com a sua imaginação, na formulação de subteorias inteiramente inúteis, simples brinquedos de passa-tempo.

   E o perispírito? perguntarão os leitores. E perguntarão com razão. Mas não podemos dar-lhes nenhuma resposta positiva. O perispírito existe, porque o autor se refere a ele, mas jamais o define. Aliás, parece que a omissão é determinada pelo “fatalismo lógico” a que já aludimos. Como explicar o perispírito, depois que toda a sua possível explicação foi aplicada ao espírito? O que o Sr. Guimarães Andrade chama de espírito, desde o início do livro até ao fim, seria mais aceitável se ele o chamasse de perispírito. Mas, por outro lado, se o fizesse, onde iria parar a teoria corpuscular “do espírito”?

   Pela exposição acima, parece-nos ter ficado claro que a teoria corpuscular do espírito, como já dissemos, é simplesmente um equívoco. O Sr. Guimarães Andrade empregou mal a sua inteligência e a sua cultura, ao querer fazer tamanha revolução no Espiritismo e na Ciência, pois não conseguiu atingir a nenhum dos dois. Veremos ainda, no último artigo sobre o assunto, reproduzido logo a seguir, que as intenções do autor não se limitam a contribuir para o desenvolvimento da ciência espírita. Vão bem mais longe. A teoria corpuscular pretende substituir a doutrina espírita, deixando Allan Kardec e a codificação na retaguarda. É por isso, e não pelo gosto de divergir, que insistimos no esclarecimento do assunto.
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José Herculano Pires – A Pedra e o Joio, Crítica à Teoria Corpuscular do Espírito. O comparsa da matéria, 15º fragmento da obra.
(imagem: As Colhedoras de Grãos, pintura a óleo por Jean-François Millet)

quinta-feira, 14 de novembro de 2013

| o grande enigma ~


Unidade substancial do Universo (II)

A grande querela secular que dividia as escolas filosóficas reduz-se, pois, a uma questão de palavras. Nas experiências em que a William Crookes coube tomar a iniciativa, a matéria funde-se, o átomo desaparece; em seu lugar surge a energia. A substância é um Proteu que reveste mil formas inesperadas. Os gases, que se consideravam permanentes, se liquefazem; o ar se decompõe em elementos muito mais numerosos do que a ciência de ontem ensinava; a radioactividade, isto é, a aptidão dos corpos à desagregação, emitindo eflúvios análogos aos raios catódicos, revela-se qual um facto universal. Uma revolução se dá nos domínios da Física e da Química. Por toda a parte, em nosso redor, vemos expandirem-se fontes de energia, imensos reservatórios de forças, muito superiores em potência a tudo quanto até hoje se conhecia. A Ciência se encaminha, pouco a pouco, para a grande síntese unitária, que é a lei fundamental da Natureza. As suas mais recentes descobertas têm alcance incalculável, no sentido de demonstrar, experimentalmente, o grande princípio constitutivo do Universo: unidade das forças, unidade das leis. O encadeamento prodigioso das forças e dos seres – precisa-se, completa-se. Verifica-se existir continuidade absoluta, não só entre todos os estados da Matéria, mas ainda entre estes e os diferentes estados da força. (i)

(i) “Os produtos da dissociação dos átomos – diz Gustave Le Bon – constituem uma substância intermediária, pelas suas propriedades, entre os corpos ponderáveis e o éter imponderável, isto é, entre dois mundos profundamente separados até aqui.” (Revue Scientifique, 17 de outubro de 1903).
“As observações precedentes – diz ainda esse eminente químico – parecem provar que os diversos corpos simples derivam de matéria única. Essa matéria primitiva seria produzida por uma condensação do éter.” (Revue Scientifique, 24 de outubro de 1901).

A energia parece ser a substância única, universal. No estado compacto, ela reveste as aparências a que chamamos matéria sólidalíquidagasosa; sob um modo mais subtil, constitui os fenómenos de luz, calor, electricidade, magnetismo, afinidade química. Estudando a acção da vontade sobre os eflúvios e as irradiações, poderíamos, talvez, entrever o ponto, o vértice em que a força se torna inteligente, em que a Lei se manifesta, em que o Pensamento se transforma em vida. (ii)

(ii) Ver nota complementar nº 2, no fim deste volume.

E isso porque tudo se liga e encadeia no Universo. Tudo é regulado pela lei do número, da medida, da harmonia. As manifestações mais elevadas de energia confinam com a inteligência. A força se transforma em atracção; a atracção se faz amor. Tudo se resume num poder único e primordial, motor eterno e universal, ao qual se dão nomes diversos e é apenas o Pensamento, a Vontade divina. As suas vibrações animam o Infinito! Todos os seres, todos os mundos se banham no oceano das irradiações que emanam do inesgotável foco.

Consciente da sua ignorância e da sua fraqueza, o homem fica confundido diante dessa unidade formidável que abrange todas as coisas e com ela conduz a vida das Humanidades. Ao mesmo tempo, entretanto, o estudo do Universo lhe abre fontes profundas de gozos e de emoções. Apesar da nossa enfermidade intelectual, o pouco que entrevemos das leis universais nos arrebatam; na Potência ordenadora das leis e dos mundos pressentimos Deus e, por isso, adquirimos a certeza de que o Bom, o Belo, a Harmonia perfeita, reina acima de tudo.
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Léon Denis, O Grande Enigma, Primeira parte Deus e o Universo, II Unidade substancial do Universo 2 de 2, 10º fragmento da obra.
(imagem de ilustração: As majestosas e violentas palavras dos poemas, pintura em acrílico de Costa Brites)

sexta-feira, 8 de novembro de 2013

Victor Hugo e o invisível ~


VICTOR HUGO E AS VIDAS SUCESSIVAS DO SER

   O autor de Contemplações não negava as vidas sucessivas da alma; ao contrário, acreditava nelas como numa teoria infinita pela qual o Ser, passando de um longínquo histórico a um novo tempo, se engrandece espiritualmente. Sentia-se protagonista da grande evolução palingenésica da humanidade; por isso, as idades distintas do passado se repercutiam vivamente na sua sensibilidade poética. A visão cosmológica que possuía aproximava-o do pensamento de Camille Flamarion, que pregou a doutrina da pluralidade dos mundos habitados em relação com a pluralidade da existência da alma. O universo era para o poeta como um palco no qual o espírito age para subir os degraus do infinito. Aceitava, pois, a concepção de Allan Kardec resumida no lema: "Nascer, morrer, renascer e progredir sempre, esta é a lei". Neste aspecto, Victor Hugo coincidia com grandes poetas como GoetheWhitmanLamartineEmerson e outros que, por suas ideias palingenésicas, foram colocados sob o signo da Cruz Ansata.

   Quando o poeta disse que "a origem tem um ontem e o túmulo um amanhã'' fez declaração pública das suas ideias filosóficas baseadas na reencarnação. O seu génio imenso e abrangente não resistia às limitações de uma existência única para a alma. Não obstante as interpretações teológicas, Hugo acreditava que Jesus havia falado de um homem palingenésico quando, dirigindo-se a Nicodemos, disse: "Necessário vos é nascer de novo".

   Ler o seu estudo sobre As Almas é verificar de que forma o poeta penetrou no drama dos espíritos cujas características particulares, tão diferentes entre si, comprovam os variados desenvolvimentos de cada ser, facto que revela o processo palingenésico vivido pelas almas. Para Victor Hugo, o homem não é um composto físico-químico que se perde no nada com a decomposição. Concebia o homem como um espírito reencarnado que traz a sua própria história realizada nas vidas anteriores. Nesse sentido, a poesia se revela como uma acumulação de elevadas virtudes morais que se transformam em harmonia e beleza. Isto porque a beleza para o poeta palingenésico é uma expressão superior do Ser, pela qual penetra na essência religiosa da criação. O homem entra e sai do processo histórico mediante a lei da reencarnação e, à medida em que se liberta do mundo material, liga-se com a realidade do espírito imortal.

   Victor Hugo participava dessa legião de espíritos iluminados a que pertenciam Giuseppe MazziniEmílio CastelarGiuseppe GaribaldiPi y Margall, os que se inspiravam moral e socialmente nas ideias palingenésicas. Mas em Hugo a intuição que o fez compreender que "a origem tem um ontem e o túmulo um amanhã'' manifestou-se com sonoridades enraizadas no cósmico e no divino. O seu génio poético lhe permitiu sentir a presença do passado palingenésico, tal como o percebeu em "Terra Santa" Alphonse de Lamartine. De facto, foi ali que o autor de Jocely se recordou de uma vida anterior relacionada com os tempos apostólicos.

   Victor Hugo confirmou as suas convicções palingenésicas ao final dos seus dias, quando disse: "Faz meio século que escrevo em prosa e verso; história, filosofia, drama, legendas, sátira, ode, canção; de tudo tenho tratado, mas sinto que não disse mais que a milionésima parte do que sinto em mim. Quando estiver no túmulo, direi: 'terminei a minha jornada' e não 'terminei a minha vida'. A minha existência recomeçará no outro dia. O túmulo não é um beco sem saída mas uma avenida. A minha obra é apenas um princípio e a sede do infinito prova que existe o infinito.

   "Sou homem, mas sou uma partícula divina que, insignificante como sou, me sinto Deus porque eu também ponho ordem no meu caos interior.

   "Viverei mil vidas futuras, continuarei a minha obra, de século em século escalarei todas as rochas, todos os perigos, todos os amores, todas as paixões, todas as angústias e depois de mil ascensões, livre, transformado, o meu espírito voltará à sua fonte, unindo-se com a realidade absoluta, como o raio de luz retorna ao Sol".

   O grande poeta francês era um lírico profundamente religioso: daí os seus ímpetos por uma vida eterna e renovada pela reencarnação. Como muitos outros génios poéticos, uniu-se à concepção de um ser infinito e espiritual que nasce, morre e renasce. O seu espírito aspirava por "entrar e sair" da humanidade, a fim de participar existencialmente em todos os processos históricos e sentir-se protagonista em todos os episódios da história universal.

   Este mistério palingenésico do homem e do universo é que porá a descoberto a Nova Poesia, a excelsa. Gaia Ciência dos grandes poemas humanos e sobre-humanos. A nova poesia, como foi sentida por Hugo, Whitman, Goethe, NervoCapdevila e outros grandes poetas, revelará cada vez mais à humanidade que sem "vidas sucessivas" tudo estará desvinculado no grande processo da criação. Por outro lado, com o homem palingenésico, ou seja, o ser que nasce, morre e renasce tudo se une e entrelaça no universo. A história se mostra como um processo universal determinado pelo ''processo individual" dos espíritos encarnados. Victor Hugo cantou esse renascimento incessante das almas para que o homem compreenda que ele está sempre presente em todos os períodos da história.

  No poema O aparecido do seu livro Contemplações, a ideia do regresso palingenésico dos espíritos está dramaticamente descrita. Fala de uma mãe que adorava o seu filhinho e sonhava para ele um futuro radiante. Mas um dia, disse o poeta, "esse corvo chamado crupe penetrou bruscamente naquele lar feliz e, arrojando-se sobre o menino, pegou-o pela garganta". A mãe infeliz, vendo-se sem o filho querido, destruído pelas garras da morte, "ficou imóvel três meses, os olhos fixos, murmurando um nome ininteligível e olhando sempre para a mesma parte da parede".

   Mais adiante, diz o poeta: "O tempo passou, passaram-se os dias, semanas e meses e aquela mulher soube que seria mãe pela segunda vez''.

   Quando pressentiu a vinda do novo filho, a mãe "empalideceu e lançou um grito: – Quem é este ser estranho? exclamou. E, caindo de joelhos, acrescentou: 'Não, não o quero; meu filho morto teria ciúmes e me pressionaria por acreditar que o houvesse esquecido e que outro ocupava o seu lugar: ''minha mãe o quer, concebe-o formoso, ri com ele e beija-o; mas eu, eu estou no túmulo! Não, não o quero! "Fazia-a falar assim a sua dor profunda".

   "Quando amanheceu – continua o poeta – vendo que o seu marido era pai de outro filho, a mulher exclamou, agitada: É menino! O marido, porém, era o único que estava alegre em casa; a mãe permaneceu triste, sem esquecer o filho morto. Trouxeram-lhe o recém-nascido, deixou que viesse e o apertou no seu peito; imediatamente, porém, pensando sem cessar mais no filho morto do que naquele ali, preocupando-se mais com a mortalha do que com o agasalho, exclamou: – Está só no túmulo aquele anjo! Mas, por um milagre que fez voltar a sua alegria, aquela mãe ouviu que o recém-nascido falava nos seus braços, com voz familiar, e dizia baixinho: – Sou eu!.. mas não o digas!"

  De facto, o filho morto havia regressado através da grande lei da reencarnação. O ser chorado e tão desesperadamente invocado havia voltado às entranhas de sua mãe e por elas renascido para acalmar a sua dor e continuar, dessa forma, o seu ciclo de crescimento espiritual.

  Com este poema, Victor Hugo venceu a escuridão, o túmulo e afirmou à cultura filosófica do seu tempo que o homem é uma entidade imortal que encarna e desencarna para alcançar estados superiores e divinos. Nesse mesmo poema deu à maternidade um novo significado filosófico e religioso quando disse: "Oh mães! O nascimento começa com o túmulo. A eternidade guarda mais do que um segredo divino".
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Humberto MariottiVictor Hugo Espírita, VICTOR HUGO E AS VIDAS SUCESSIVAS DO SER, 7º fragmento da obra.
(imagem de ilustração: Criança com uma boneca, pintura de Anne-Louis GIRODET-TRIOSON)