Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

sexta-feira, 30 de abril de 2021

O Homem e a Sociedade


Capítulo III 

MARX E KARDEC 
(II de II) 

Para Kardec, o fenómeno social tem as suas bases no fenómeno espiritual: não existe separação entre essas duas realidades; pelo contrário, o conflito da luta de classes se desdobra, penetrando desse modo nas realidades do mundo invisível. De maneira que o homem kardecista é um Ser que relaciona, mediante o perispírito, instrumento psíquico que não possui o homem de Marx, o mundo corporal com o mundo espiritual e moral. O perispírito é o elo perdido, que relacionará subsequentemente os modos de produção com os modos de evolução, isto é, a luta de classes com as classes em luta. Porque a evolução do espírito, para ser equilibrada e harmónica, tem necessidade de meios e formas económicas justas e equitativas, já que a sua própria palingenesia fará que o instrumento social seja empregado novamente pelo mesmo Ser, através do seu incessante avançar espiritual. Com razões de sobra dizia Kardec: “Risquem-se das leis e das instituições, das religiões e da educação, os últimos restos da barbárie e os privilégios; destruam-se por completo todas as causas que dão vida e desenvolvimento a estes eternos obstáculos do verdadeiro progresso e que, por assim dizer, aspiramos por todos os poros na atmosfera social e, então os homens compreenderão os deveres e benefícios da fraternidade e, a liberdade e a igualdade se estabelecerão por si mesmas de qualquer forma. (i) 

As palingenesias individuais e sociais são, para o homem kardecista, o resultado dos factos sociológicos determinados pelo Espírito, através de sua incessante evolução. Para Kardec, ao contrário de Marx, o progresso é uma sucessão de factos morais e sociais, determinados pelas relações entre o elemento espiritual e o material. A nova sociedade, segundo o codificador da doutrina espírita, será determinada pelo modo de vida espiritual alcançado pelos homens. Corpo e Espírito, isto é, Sociedade e Alma, deverão desenvolver-se harmonicamente; deste modo, com o homem kardecista, a transformação social será integral: compreenderá o aspecto material e espiritual. Ao contrário, a evolução socialista de Marx só modificará uma parte da realidade: afectará unicamente o sistema económico da sociedade, deixando o Espírito do homem tal como estava no regime chamado capitalista. 

Se a imagem do homem kardecista se reflecte nas profundezas do mundo espiritual, isso nos indica que ele não verá apenas uma vez os alcances e resultados do processo social, mas que passará muitas vezes através desse processo, razão pela qual deverá trabalhar insistentemente em prol de melhores sistemas sociais. O sistema socialista, segundo a ideia do homem kardecista, será revivido e reencontrado pelos mártires do socialismo, porque o Ser que a filosofia espírita nos apresenta é uma entidade eterna, que vai e vem no curso e recurso palingenésico da história, sem jamais fenecer. 

O homem, para Kardec, é um espírito encarnado, que reconhecerá o seu passado histórico, à medida que ilumine a sua visão e intuição espirituais. É por isso que, com a doutrina social espírita, podemos falar de um homem-que-reencontra-a-história, isto é, de um homem que construirá um mundo melhor para reencontrar-se a si mesmo, segundo tenham sido os seus actos para construí-lo e edificá-lo. A nova sociedade do futuro, segundo o homem kardecista, se emancipará do regime social baseado na propriedade individual, porque o estado de evolução espiritual alcançado pelo Ser o obrigará a aperfeiçoar-se, segundo o princípio espírita da lei de igualdade. E este estado de evolução fará que os homens percebam o mundo e os bens económicos unicamente como objectos de encarnação. 

Em resumo, podemos afirmar que a comunidade socialista não é o resultado de um sistema imposto por um processo político, mas uma realidade social dependente da evolução avançada do homem; é, pois, o fruto do progresso, tanto externo como interno, da humanidade. Por isso, Kardec dizia que os sistemas sociais variam com a evolução dos espíritos; sustentar, portanto, um regime social que esteja em luta com a evolução espiritual, é colocar-se em oposição à própria lei de progresso. A esse respeito, escreveu Kardec: “A aspiração do homem para uma ordem de coisas melhor que a actual é um indício certo da possibilidade de que chegará a ela. Cabe, pois, aos homens amantes do progresso, activar este movimento pelo estudo e a prática dos meios que se julguem mais eficazes.” (ii) 

Se a filosofia espírita não abranger o estudo das questões sociais, o homem marxista terá sempre maior vantagem sobre o homem kardecista, porque o tema da luta de classes é a grande realidade individual e colectiva dos tempos modernos. Como temos visto, o espiritismo não é individualista; pelo contrário, abarca por igual a face pessoal e social do homem. Contudo, esta integralidade da filosofia espírita tem sido, pode-se dizer, postergada, por receio de cair no político. Muito se tem falado do espiritismo, quase sempre como de um comércio entre vivos e mortos; tem-se dado preferência aos seus fenómenos, em detrimento de sua doutrina espiritual e filosófica, que constitui um verdadeiro humanismo revolucionário e “abrange tanto o homem físico (o social), como o homem moral (o espiritual)”, segundo o sentir esclarecido de Allan Kardec. 

Louis Fourcade, notável espírita francês, em uma carta dirigida de Paris à revista La Idea, referindo-se ao sentido social da filosofia espírita, dizia o seguinte: “Por não haver militado no domínio social, o espiritismo francês é insuficientemente conhecido das massas. Tem atraído para si uma desconfiança inexplicável, mesmo no mundo intelectual; da parte de alguns cérebros lúcidos e orgulhosos do seu conhecimento, atraiu um desprezo cínico e sistemático que, alentado pelo clero, tem conseguido reduzi-lo e circunscrevê-lo a simples reuniões de associações timoratas, onde frequentemente degenera em corrupção e charlatanismo, ou tráfico mercenário.” (iii) 

Enquanto fizermos do espiritismo uma questão de médiuns, provas e experiências, não sairemos do círculo estreito em que o têm encerrado psiquistas de toda a espécie. Kardec apresentou a filosofia espírita com um carácter absolutamente diferente daquele que lhe deram os registadores de fenómenos. Ela encarna, como se sabe, uma nova visão espiritual do homem e do Universo apresentando-se como uma sociologia espiritualista, tanto do homem físico como do homem moral. O espiritismo, segundo Kardec, é a restauração dos valores essenciais do cristianismo e o instrumento filosófico e religioso destinado a dar forma a um novo tipo de sociedade humana. Consequentemente, a filosofia espírita deverá socializar-se, se quisermos que avance ao lado do progresso, sem ser ultrapassada em sua militância pelas novas ideias. 

A alma dos tempos modernos está eivada de transformações gerais. Se queremos impulsionar o progresso dos homens, teremos de penetrar no social, onde pulsa o coração das realizações futuras. Não nos esqueçamos de que é nas massas que estão encarnados os tristes e deserdados. Foi nessa perspectiva que Kardec viu o sentido social do espiritismo, ao ponto de chegar a sustentar que é a eles, “mais que aos felizes da Terra”, que se dirige o seu ideal religioso ou de redenção humana. A mensagem que o espiritismo proclama é a mesma que se ouviu há vinte séculos no Sermão da Montanhaencarnando-se outra vez na história, conforme fora anunciado; através da divina presença do Espírito de Verdade

/… 
(i) Ver Obras Póstumas, Kardec, capítulo Liberdade, Igualdade e Fraternidade e O Livro dos Espíritos, capítulo sobre o mesmo assunto. 
(ii) Allan Kardec, Obras Póstumas, capítulo citado atrás. 
(iii) Revista La Idea, Buenos Aires, n.° 275, abril de 1947. 


Humberto MariottiO Homem e a Sociedade numa Nova Civilização, Do Materialismo Histórico a uma Dialéctica do Espírito, 1ª PARTE O NÚMENO ESPIRITUAL NOS FENÓMENOS SOCIAIS, Capítulo III MARX E KARDEC (II de II), 5º fragmento desta obra. 
(imagem: Alrededores de la ciudad paranóico-crítica: tarde al borde de la historia europea | 1936, Salvador Dali)

sábado, 24 de abril de 2021

Deus na Natureza ~


~ a personalidade humana ~
 
(I de II)

  Felizmente para as grandes e respeitáveis verdades de ordem moral, não estamos reduzidos a curvar a cabeça diante de tão grosseira conclusão. 

  Como nos dias decantados (i) pelo célebre autor latino das Metamorfoses, temos nascido para ficar de pé e contemplar o céu. 

  Certo, poderíamos invocar aqui o testemunho imponente dos sentidos mais profundos da natureza humana: poderíamos evidenciar, à luz meridiana, que nestas doutrinas perniciosas já não há lugar para a esperança, moral para a consciência, luz para os pendores do coração; bondade natural, justiça na ordem universal, consolação para os aflitos e, mais, que a população do globo já não tem à sua frente nenhuma finalidade, nenhuma claridade, nenhuma lei intelectual

  Rolando, por aí além, em turbilhão, levada no espaço obscuro pela rotação e translação rápidas do globo e renovando-se a cada momento pelo nascimento e morte dos seus membros, ela – a Humanidade – não passa, à superfície deste globo, de bolorento parasita cegamente desabrochado e perpetuado por forças químicas. 

  Sim, poderíamos, invocando o testemunho dos corações que ainda pulsam e das almas que ainda acreditam, dispor na linha de batalha dos argumentos ainda vivazes da Filosofia e da Psicologia e destituir o adversário, constrangendo-o a confessar-se vencido. Todavia, como os preferimos combater no mesmo terreno e com as mesmas armas, pretendendo refutá-los só em nome da Ciência de que se dizem intérpretes, apraz-nos permanecer no campo exclusivamente científico e desdenhar, qual estes o fazem, os silogismos da Psicologia. 

  Deixamos, assim, sem resposta as seguintes proposições adversárias e os comentários com que as esticam: 

  “As leis da Natureza são forças bárbaras, inflexíveis; não conhecem a moral nem a benevolência.” (Vogt). 

  “A Natureza não ouve as queixas nem as preces do homem, antes as repele inexoravelmente em si mesmo.” (Feuerbach). 

  “Sabemos, por experiência própria, que Deus absolutamente não se imiscui, de qualquer forma, nesta vida terrestre.” (Lutero). 

  Aí temos conceitos bem consoladores, não é assim? Mas, repetimos: o sentimento não é um recurso científico e por isso não entraremos nesse capítulo. Esta abstenção não nos impede, bem entendido, de convidar o leitor a meditar e decidir para que lado lhe pendem o coração e a razão. 

  Mas, apenas do ponto de vista da observação científica e deixando de lado os pendores do coração e os imperativos da consciência – que não deixam de ser alguma coisa na história da alma – dizemos que factos há, nos domínios da observação pura, completamente inexplicáveis na hipótese materialista. 

  No anterior capítulo (O Cérebro), o leitor ainda pode ficar suspenso entre as duas hipóteses, porquanto apresentamos factos mutuamente oscilantes, que deixam o espírito indeciso, quanto ao centro de gravidade. Agora, porém, o centro de gravidade vai passar ao corpo das doutrinas espiritualistas e os que o não seguirem muito se arriscarão a desequilibrar-se e a cair, rapidamente, no mais vazio dos vácuos. 

  Exponhamos, em primeiro lugar, as afirmativas materialistas contra a existência da alma e, para não falar só dos estranhos, ao mesmo tempo, fazer o histórico do materialismo no nosso país, escutemos Broussais, cuja obra foi o primeiro toque a reunir dos nossos modernos epicuristas e inaugurou, no nosso século, a primeira fase desse curso pouco luminoso. 

  Para Broussais, como para CabanisLocke e Condillac, o homem é, simplesmente, o conjunto dos órgãos em função. O eu, a personalidade humana não é um ser suis generis, é um facto (ii), é um resultado, é um produto imputável a tal ou qual disposição da matéria (iii). Inteligência e sensibilidade são funções do aparelho nervoso, mais ou menos como a transformação dos alimentos em quilo e o sangue é uma função do aparelho digestivo, ou do respiratório (iv). A existência da alma não é mais que uma hipótese que se não funda em qualquer observação, que nenhum raciocínio autoriza, por gratuita e, é até mesmo destituída de senso (v). Não reconhecer no homem mais que um sistema orgânico é cair nos absurdos da Ontologia (vi)

  Cabanis, no seu livro bem conhecido – Destutt de Tracy, na sua análise racional das relações do físico com o moral, emite as mesmas opiniões, mas, sob uma forma menos explícita. 

  Segundo os exagerados defensores da doutrina da sensação, a pessoa humana confunde-se nas funções orgânicas. Na realidade, não existe. 

  Todos os homens, em todos os tempos e por toda a parte, acreditaram na sua existência pessoal, se sentiram viventes e pensantes; todas as línguas os enunciaram, nas primeiras páginas dos anais humanos, a existência do pensamento individual, a alma, a inteligência, o espírito, não importa sob que nome (poderíamos encher uma página de nomes primitivos, arianos, sânscritos, gregos, latinos, celtas, etc., mas uma tal nomenclatura não é necessária e os nossos leitores, certamente, sabem da existência desses vocábulos). O bom senso popular, tanto quanto o génio filosófico, espontaneamente sempre acreditaram, desde que o mundo é mundo e há seres racionais na Terra; que existe no nosso corpo algo mais que a matéria, uma consciência própria, sem a qual não existiríamos e que se comprova a si mesma, pelo facto tão-só da certeza íntima. Enfim, todos sentiram que nem o corpo, nem tampouco o mundo exterior, constituem a entidade pensante. Entretanto, a Humanidade do passado, como a do presente, parece que não leva em conta a opinião dos materialistas. 

  Felizmente para nós, eles aí estão a esclarecer-nos de agora em diante, convidando-nos a reconsiderar a ingenuidade das nossas crenças. Como bem o disse um fino espiritualista (o duque de Broglie, nos Ècrits et Discours, t. 1º). “Até aqui, caros amigos – escreveu ele –, acreditastes que existíeis e tínheis um corpo; mas, desenganai-vos, porque não existis e é o corpo que vos possui. Só existis na aparência; o que chamais o eu não passa de simples vocábulo, um não sei quê, destituído de realidade e consistência; e o que realmente existe, no fundo de tudo isso, é alguma coisa de que não tendes consciência, nem ela tampouco a tem de vós.” (ver também) (*) 

  No parecer de Broussais como dos seus colegas e discípulos, o eu é o cérebro. O pensamento, todos os fenómenos inteligentes, são excitações da matéria cerebral ou, para usar a mesma linguagem do Autor – condensações da mesma matéria (vii). E, seja de que natureza for, toda a percepção mental está neste caso. Dor, alegria, saudade, julgamento, comparação, determinação, entusiasmo, desejo, tudo é condensação. Se houver fenómenos complexos nesse laboratório do pensamento, quais uma série de raciocínios sucessivos saídos de uma impressão inicial, mesmo do exterior e culminando em acto voluntário, serão ainda condensação de condensações. Estas são o próprio pensamento, que não passa de consequência, de resultante, a mesma condensação das fibras do encéfalo...” Meu Deus! Que bela coisa é a Ciência e como o Sr. Broussais possuía uma imaginação tão condensada! 

  Sentir-se sentir, eis a fórmula e o único facto consciencial admitido por Broussais. Ora, qual é o órgão que sente no organismo humano? Incontestavelmente, o cérebro. Logo, ele é o eu e todas as percepções do pensamento não passam de excitações da substância cerebral. Coisa que parece simples, mas que desafia a um ligeiro reparo. 

  Temos visto que o cérebro é uma massa carnosa, pesando três libras mais ou menos e composta de medula, fibras brancas ou pardas, gordura fosforada, água, albumina, etc. Então, entre estas substâncias, qual é a pensante? A água? o fósforo? a albumina? o oxigénio? Se a faculdade de pensar está ligada a uma simples molécula, a um átomo real, não tendes o direito de negar a imortalidade da alma, pois, neste caso a faculdade de pensar participaria do destino do átomo indestrutível. Seria preciso, pois, admitir que esse átomo se libertou, desde logo, do movimento, para ficar imóvel, talvez no fundo da glândula pineal. Admitindo-se, agora, que cada molécula seja capaz de sentir em conformidade com a natureza das sensações, esse pretenso eu já não estará no singular, mas no plural, haverá tantos eus (!) quantas moléculas cerebrais. Os léxicos não conheciam esse vocábulo e, doravante, deverão perfilhá-lo. 

  O homem jamais suspeitara que continha em si diversas personalidades, quando os próprios gregos, com as suas múltiplas designações possíveis, não tinham visto nisso senão várias faculdades e diversas maneiras de ser de uma única e a mesma alma. Mas, cada molécula é, por sua vez, um agregado de átomos, de corpos simples, diversos e diversamente combinados. Teremos, então, cada átomo a pensar agora? Eis-nos caídos na mais absurda e inimaginável das hipóteses. Essa contradição entre a unidade incontestável do ser pensante e a multiplicidade, não menos incontestável, dos elementos cerebrais, reduz a zero a pretensão de fazer da consciência individual uma propriedade do encéfalo. 

  Nota curiosa: estes senhores não se cuidam de que assim racionando regridem aos arqueus de Van Helmont, a pretexto do progresso. Não lhes falta mais que os espíritos animais, dos tempos de Descartes e Malebranche, para nos vermos recuados a mais de dois séculos anteriores à origem da própria Fisiologia. 

  Não temos no âmago da consciência a certeza da nossa unidade? Percebe-se o pensamento como um mecanismo composto de várias peças, ou como um ser simples? Todos os fenómenos activos da nossa alma depõem a favor dessa unidade pessoal, visto como, na sua variedade e multiplicidade, estão agrupados em torno de uma percepção íntima, de um julgamento e de uma faculdade de generalizações únicas. Sentimos, em nós mesmos, essa unidade pessoal, sem a qual pensamentos e actos já não se ligariam por qualquer laço e nenhum valor teriam as nossas determinações. É esse um facto tão firmemente enraizado na consciência e tão inatacável, que as contradições aparentes que se lhe podem opor redundam, em definitivo, a seu favor. Se, por exemplo, certa faculdade da nossa alma se engana nas suas apreciações, parece poder concluir-se que há complexidade na maneira operatória do espírito. Mas, se descermos ao fundo do fenómeno do erro, tão frequente, reconheceremos que é sempre o mesmo ser, a mesma pessoa a enganar-se e a reconhecer a sua imprevidência, assim como, no homem que erra e se corrige, é manifesto que a mesma razão que erra é a que corrige. 

  Assim, as mesmas contradições da natureza humana prestam-se, tanto quanto o foro íntimo, a afirmar a personalidade do nosso ser mental. 

  Se bem que a afirmação da personalidade do eu prove a existência da alma, não se infere daí que a constitua. Temos, para nós, que a alma é o ser pensante, ao passo que o eu é apenas uma concepção que dá para os fenómenos internos o carácter de facto consciencial. 

  A alma poderia existir inconsciente da sua personalidade e, de facto, no mundo animado há um grande número de almas ainda nessa condição. 

  Dizem outros que é o conjunto do cérebro e não cada molécula de per si, que pensa. Mas, que vem a ser o conjunto do cérebro senão a reunião das moléculas que o compõem? Os que fazem dessa reunião um ser ideal, uma espécie de sociedade, de exército, não podem pretender que essa colectividade pense, sem que o façam todos e cada qual dos seus membros. Porque, em si, uma sociedade, um povo, não são entidades reais, mas um conglomerado cuja natureza e cujo valor só se constituem dos membros, componentes. Suprimi o pensamento dos cérebros do povo francês e então o que restará a esse povo? Imaginai que as moléculas cerebrais não pensam, assim o que restará ao cérebro? E, se elas pensam, então, voltaremos à imagem extravagante de uma quantidade indefinida de eus! (Era caso para dizer que este vocábulo, se os vocábulos pensassem, deveria estranhar ao ver-se aqui pluralizado.) 

  E, para que elas se acordem entre si, veremos instituir-se a hierarquia militar e nomear um general que cavalgue qualquer átomo bicudo da glândula pineal, ou então dir-se-á, com Syndenham, “que há no homem um outro homem interior, dotado das mesmas faculdades e afecções do homem exterior”. A pretexto da ciência positiva, imaginar-se-ão mil hipóteses mais difíceis do que os tão criticados mistérios das velhas religiões. 

  Os materialistas contemporâneos são um pouco mais fortes. Declararam, como vimos, que a alma é uma força excretada pelo cérebro (?), sem se darem ao trabalho de elucidar qual a parte ou o elemento do encéfalo que possui essa maravilhosa faculdade. É uma resultante do conjunto de movimentos operados sob diversas influências, no órgão cerebral. Tal a opinião da escola materialista e, mesmo da panteísta. Esta nova hipótese é tão simplória quanto as precedentes e só apresenta uma ligeira falha que é, nem mais nem menos, o ser incompreensível. Aliás, não se dão eles ao trabalho de a explicar. Em 1827, quando se opunha a simplicidade da alma à multiplicidade dos elementos cerebrais, nessa época em que a química do pensamento não gozava a prerrogativa de ser manipulada nas retortas de além-Reno, Broussais respondia francamente: “o eu é um facto inexplicável, não pretendo explicá-lo” (viii). Todavia, às definições acima assinaladas, juntou ele mais esta: “O eu é um fenómeno de inervação”. Ainda hoje, ninguém conseguiu provar, nem explicar, como pode a consciência resultar de certas combinações operadas num maquinismo automático. Assim, a unidade da nossa força pensante não só protesta energicamente, como destrói, de um golpe, a hipótese da secreção cerebral. Oporemos, agora, à mesma hipótese um segundo facto, paralelo a este e de tanto valor que basta, por si só, para arrasar o colossal exército de argumentos já embotados na defesa da referida teoria. 

  Ei-lo, esse facto, em termos bem claros. 

  A substância cerebral não se mantém duas semanas idêntica a si mesma. O cérebro refunde-se completamente num prazo mais ou menos longo. Vimos na segunda parte que, não só o cérebro, mas todo o organismo, não passa de uma sucessão de moléculas em mutabilidade constante. 

  E, não obstante, a nossa personalidade racional subsiste. Todos temos a certeza de que, desde que nos entendemos por gente, não mudamos intrinsecamente, como mudaram os nossos cabelos, a nossa pele, a nossa fisionomia, a nossa estatura. 

  Nas páginas anteriores, demonstramos a personalidade humana, mau grado a complexidade dos elementos cerebrais e a multiplicidade das suas funções. E vimos que, longe de ser uma resultante, essa personalidade se afirma a si mesma como força individual. Vamos agora, de algum modo, transportar-nos à noção do tempo o que dizíamos a propósito do espaço, para estabelecer que a unidade da alma não existe somente a cada momento, considerada em si mesma, mas persiste de um a outro momento e fica idêntica em si mesma, apesar das mudanças que o tempo traz à composição da substância cerebral. 

  Trata-se, pois, de conciliar a identidade permanente da nossa personalidade com a mutabilidade incessante da matéria. Os senhores materialistas seriam de uma gentileza rara se aceitassem subir por um momento ao palco, a fim de resolverem este pequenino problema. 

  A nós, muito nos apraz fornecer-lhes o enunciado: – demonstrar que o movimento é amigo do repouso e que o melhor processo de criar no mundo, uma instituição estável e sólida é lançar a ideia através de um turbilhão de cabeças frívolas. 

  As rigorosas observações feitas e comparadas, sob diversos pontos de vista, demonstraram não apenas que o corpo se renova sucessiva e completamente, molécula a molécula, mas, também, que essa renovação perpétua é rapidíssima, bastando trinta dias para que se tenha um corpo integralmente renovado. 

  Tal, o princípio da desassimilação no animal. Falando com rigor, o homem corporal não fica dois momentos idêntico a si mesmo. Os glóbulos sanguíneos que circulam nos meus dedos, enquanto escrevo estas linhas, o fósforo mágico que me trabalha no cérebro ao pensar esta frase, já me não pertencerão quando estas páginas forem impressas e, talvez, no momento de as lerdes, façam parte dos vossos olhos ou da vossa fronte... talvez, ó gentil leitora! enquanto os vossos mimosos dedos dobrarem estas páginas, a dita molécula de fósforo que, na hipótese dos adversários, teve a fantasia de imaginar a dita frase, talvez, repito, essa ditosa molécula esteja sob a epiderme sensível do vosso indicador, ou, quem sabe, crepite ardentemente nas palpitações do vosso coração... (A respeito de moléculas itinerantes muito haveria a dizer, mas não ousamos alongar o parêntese.) O que importa, a sério, é recordar esta verdade: – a matéria circula perpetuamente em todos os seres e, no ser humano, em particular, não permanece dois dias idêntica a si mesma. 

  Se não estamos enganados, este facto tem a sua importância na questão que nos ocupa e, é com verdadeiro prazer que o alegamos aos adversários, convidando-os a que o expliquem. 

  Como estas interessantes observações se devem aos próprios campeões do materialismo, a eles, que não a outrem, compete interpretá-las em apoio da sua teoria, caso essa interpretação não lhes requeira um esforço muito exagerado. 

  Vejamos: 

  “O sangue rejeita constantemente as suas partes constitutivas aos órgãos do corpo, na qualidade de elementos histogénicos. A actividade dos tecidos decompõe esses elementos em ácido carbónico, ureia e água. Tecidos e sangue sofrem, na marcha regular da vida, um desperdício de substância só compensado na provisão dos alimentos. Essa permuta de matérias opera-se com uma rapidez notável. Os factos gerais indicam que o corpo renova a maior parte das substância num período de vinte a trinta dias. O coronel Lann, por meio de várias pesagens, encontrou uma perda média de 22% do seu peso, em 24 horas. A renovação total exigiria, portanto, 22, dias. Liebig deduziu uma rapidez de 25 dias, considerando as permutas de outra maneira, pela combustão do sangue. Por surpreendente que possa parecer esta rapidez, as observações são concordantes em todos os pontos” (ix)

  Assim, sois vós mesmos a ensinar que dentro de alguns dias o nosso corpo se renova inteiramente. O nosso ser material viu dissolver-se e reconstituir-se, sucessivamente, a sua assembleia constituinte, não lhe ficando uma só molécula de oxigénio, carbono, hidrogénio, ferro, carbono, albumina... Essas moléculas aliaram-se a outras substâncias, que andam agora embaladas pelas nuvens, levadas pelas ondas, envolvidas no solo, recolhidas pelas plantas, ou pelos animais, enquanto que a nossa substância também se encontra inteiramente mudada. 

  Quando se aplique essa engenhosa teoria a uns tantos factos de ordem social, chega a provar-se que a união matrimonial deixa de ser um sacramento eficaz, visto que ao fim de um mês as duas criaturas, que acreditaram formar liames eternos, estão corporal e espiritualmente transformadas e vivem como adúlteros. Como esta, outras conclusões se podem tirar, edificantes. Ajuntais, de seguida, que, sendo o fósforo a parte do cérebro mais caracterizada, é desta substância que provém o pensamento, assim como à potassa se devem os músculos e as faculdades de locomoção e os ossos ao fosfato de cal, etc., e vós comparais o acto de pensar (secreção do cérebro!) à secreção da bílis pelo fígado, da urina pelos rins. 

  Contrariando as vossas pretensões, noto que o meu ser pensante, a minha pessoa, o meu ego, é o mesmo de há cinco, dez, vinte, quarenta anos. E espero não negareis que vos lembrais de terdes sido criança, de haverdes brincado no colo materno, frequentado a escola e feito (lá isso não duvido) brilhantes estudos, para vos tornardes, com o tempo, furiosos paladinos do materialismo. 

  Sois mesmo vós que assim vivestes, não é verdade? Foi, certo, sobre o vosso espírito e, não sobre a vossa fronte, que esses anos passaram. Se mudastes de opiniões, de ideias, de directriz, nos vossos estudos; se trocastes de país, de hábitos, de alimentos, nem por isso deixou de ser a vossa mesma pessoa que cresceu, viveu, envelheceu; e, se algum audacioso e legítimo partidário das vossas doutrinas, tendo-vos roubado, há dez anos, a honra e a fortuna, reaparecesse e dissesse que já não sois o mesmo homem, que tendes mudado muitas vezes, que não vos conhece e que também ele mudou e, por isso, nada vos deve nem lhe cumpre reparar, estou certo de que não demoraríeis a demonstrar-lhe que não é assim que entendeis, na prática, as vossas teorias. 

  Com efeito, senhores, essas teorias não nos parecem nem mais nem menos que absurdas, diante do facto eloquente da identidade do espírito. Podeis conciliar umas e o outro? Podeis pretender que uma secreção de substâncias que apenas transitam pelo organismo possa gozar dessa faculdade? Ousaríeis avançar que, considerando o pensamento como atributo de uma associação de moléculas de gordura fosforada, albumina, colesterina, potassa e água (x) – moléculas trazidas a esse laboratório pela nutrição e a respiração, variáveis, em contínuo movimento, semelhantes a soldados de todas as nações, que chegam ao mesmo campo, armam tendas e seguem adiante para serem logo substituídos por outros; – ousaríeis, repito, avançar que um tal sistema pode explicar a identidade, a permanência do pensamento? 

  Não, não o ousais: nem mesmo o ensaiam, pois muito tenho revolvido nos vossos anais e vejo que prestes vos esquivais ao escolho, deixando quase de o nomear. 

  Um dos vossos (xi) diz de passagem que numa observação feita a trepanados se demonstrou que certos anos ou fases da sua existência se lhes apagavam da memória devido à perda de quaisquer partes do cérebro. Acrescenta mais, que a velhice acarreta a perda quase total da memória. Sem dúvida, diz, as substâncias cerebrais mudam, mas o modo da sua composição deve ser permanente e determinante do modo da consciência individual. Depois, confessa que “os processos interiores são inexplicáveis”. Ora pois! eis aí uma confissão que compensa tudo. Essas pretensas explicações apoiadas em factos anormais são as únicas que se permitem dar ao grande facto por nós assinalado. 

  Lacuna sensível e, visto que a vossa maior ambição é remover todos os obstáculos e nada abafar em silêncio – censura que infligis aos vossos adversários – concito-vos, a bem do vosso bom nome, a já não deixar de explicar física ou quimicamente como a renovação dos vossos átomos pode ter a propriedade de engendrar no ser pensante e consciente a permanência da sua identidade. 

  Não vemos conciliação possível entre estes dois termos contrários, pelo que poderíamos seguir adiante sem nos preocuparmos com o adversário, para só o considerarmos fora de combate, qual gladiador antigo a esvair-se na arena, trespassado pelo mortal tridente. 

  Todavia, ainda por princípio de caridade, vamos prosseguir na luta e, para defesa geral da causa, acreditamos útil examinar as diversas explicações emitidas a respeito, a fim de que saibam nenhuma haver satisfatória, ficando assim de todo insolúvel a hipótese materialista. 

  A primeira dessas explicações consiste em dizer que, se as moléculas do corpo estão em perfeita circulação, o mesmo não se dá com a forma individual. Os nossos traços ficam gravados no semblante, os olhos conservam a mesma cor, os cabelos a mesma natureza, a fisionomia o seu tipo fundamental. Quantos tiveram ensejo de reivindicar à glória militar uma cicatriz qualquer, guardam-lhe a marca, não obstante a renovação dos tecidos. Tal o facto geral da permanência e carácter fisionómico individual. 

  Podem os adversários pretender que, assim sendo com o corpo, impossível não seja a identidade do espírito, como resultante de fenómenos materiais. 

  Ora, aí justamente é que está o erro: 

  1º – Não se pode provar que a constância dos traços seja o resultado de simples fenómenos de assimilação e desassimilação e, da modificação incessante da substância; 

  2º – mesmo ainda que assim fosse, não existiria nisso senão uma identidade de forma, aparente, conservada pelas moléculas sucessivas e não a identidade fundamental, um ser substancial que fica; 

  3º – a alma não é uma sucessão de pensamentos, uma série de manifestações mentais e, sim, um ser pessoal com a consciência da sua permanência. 

  Por consequência, a diferença que separa da nossa a hipótese materialista, consiste simplesmente em observar que nada se explica pela primeira, ao passo que pela nossa tudo se explica. Como se vê, uma diferença insignificante. 

  Dir-se-á que os átomos materiais, em se substituindo, seguem precisamente a mesma direcção dos anteriores, entrosados no mesmo turbilhão, como sentinelas militares transmitindo-se a senha e que, se o pensamento é apenas uma série de vibrações, são estas mesmas vibrações a se perpetuarem, ainda que mude a substância dos círculos vibrantes. Mas, uma tal pretensão é duplamente insignificante, atento a que não explica melhor que as primeiras a identidade do eu e tende a arrastar-nos ao ocultismo, arvorando o corpo em locutório de moleculazinhas capazes de se entenderem e concordarem, mau grado à tagarelice e leviandade peculiares do sexo. 

  Pode ainda dizer-se que, se o cérebro muda pouco a pouco, o mesmo sucede com o nosso carácter, tendências, o próprio espírito. Mas, se de um lado considerarmos a substância constitutiva do cérebro num dado momento, teremos que, semanas ou meses depois (não importa a duração do intervalo), a metade dessa substância, por exemplo, estará mudada e não haverá, portanto, senão outra metade substancial da considerada num dado momento. Depois, um meio quarto e, assim por diante. De sorte que, nesta hipótese, estaríamos mudados em duas, três, quatro partes, até que nada restasse da personalidade primitiva. Ora, quem não vê, quem não sente, que se não guardam de tal arte fragmentos de alma e, que esta é una, simples, indivisível e idêntica a si mesma em qualquer período da sua duração? A permanência do eu ressalta, uma vez mais, vitoriosa dessa mixórdia. 

  Avançarão, enfim, que há no cérebro um lugar qualquer, um santuário em cujo aditamento fique, isenta das leis gerais, uma molécula imutável, permanente, privilegiada entre as demais, dotada de integridade inatacável e, que essa tal molécula é o centro dos pensamentos e o que constitui a identidade pessoal? 

  Mas, tal suposição é, não apenas arbitrária e balda de sentido, como também contrária à observação científica e à índole do método positivo. De resto, nenhum dos adversários se decide a lhe assumir a responsabilidade. 

  Assim, queiram ou não, a identidade permanente do ser mental é facto inconciliável com a mutabilidade incessante do órgão cerebral, no caso em que se conceitue o nosso ser mental como atributo orgânico. 

  Singular audácia de sonhadores, o virem negar, à face da consciência individual e universal, o grande facto da existência pessoal da alma! Não sabemos todos, à saciedade, que o nosso eu e os nossos órgãos são radicalmente distintos? que a nossa pessoa se reconhece e afirma independente em si e de si mesma? que nós não somos os nossos órgãos, mas que eles são nossos, o que é bem diferente? Negar tal coisa, vale por negar a luz meridiana. Pôr assim em dúvida a primeira afirmação de consciência, pretender que estejamos iludidos e que, ao contrário de uma existência pessoal, da posse dos nossos órgãos, são estes que nos possuem, é pôr em dúvida ao mesmo tempo o princípio de toda e qualquer certeza, é reduzir a fumo o secular edifício dos conhecimentos humanos. 

  Negado esse primeiro facto de consciência, nada mais resta à Humanidade. 

  Haverá quem desconheça a ousadia de semelhante pilhéria (i)

/… 
(ii) De l’Irritation et de la Folie, página 153. (iii) Idem, página 171. (iv) Idem, Prefácio, 19º. (v) Reponse aux Critiques, página 30. (vi) De l’Irritation, etc., página 122. (vii) Broussais – De l’Irritation et de la Folie, página 214. (viii) Reponme aux Critiques, página 17. (ix) Jac Moleschott – La Cireulation de la Via, t. 1º, páginas 169, 170 e 172. (x) Moleschott, 2º, 149. (xi) Büchner – Força e Matéria
(*) Louis de Broglie, mais tarde, no discurso de aceitação (i), da Academia Francesa. Adenda desta publicação.


Camille Flammarion, Deus na Natureza, Terceira Parte – A Alma […] 2/ A Personalidade Humana (I de II), 25º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: Jungle Tales (Contos da Selva)_1895, pintura de James Jebusa Shannon)

quinta-feira, 15 de abril de 2021

o grande desconhecido ~


Acção Espírita na transformação do Mundo ~ 

Três são os elementos fundamentais de que o Espiritismo se serve para transformar o nosso mundo num mundo melhor e mais belo: 

a) O Amor, 
b) O Trabalho, 
c) A Solidariedade. 

(I de III) 

I – O Amor 

O amor abrange a compreensão e a tolerância, pois quem ama compreende o ser amado e sabe tolerá-lo em todas as circunstâncias. Abrange também a Verdade, pois quem ama sabe que o alvo supremo do Amor é a Verdade. Ninguém ama a mentira, pois mesmo os mentirosos apenas a suportam na falta da verdade. O amor egoísta do homem por si mesmo expande-se no desenvolvimento psicobiológico como, segundo já vimos, no amor altruísta, o amor pelos outros, a partir do núcleo familial (i) até à Sociedade, à Pátria e à Humanidade. Alguns espíritas dizem que os espíritas não têm pátria, pois sabem que todos podemos renascer em várias nações. Isso é uma incongruência, pois então não poderíamos também amar o pai e a mãe, que variam nas encarnações sucessivas. O Amor não tem limites, mas nós, os homens, somos criaturas limitadas e estamos condicionados, em cada existência, pelas limitações da condição humana. Amamos de maneira especial aqueles que estão ligados a nós nesta vida ou se ligaram a nós em vidas anteriores. Amamos a todos os seres e a todas as coisas na proporção do nosso alcance mental de compreensão da realidade. E amamos a nossa Terra, o pedaço do mundo em que nascemos e vivemos e a parte populacional a que pertencemos, no recorte da população mundial que corresponde à população da nossa terra. E amamos os que estão para além da Terra, nas zonas planetárias espirituais, como amamos, por intuição mental e afectiva, a todos os seres e às coisas de todo o Universo. O ilimitado do Amor impõe-se aos limites temporários da nossa condição imediata. E é esse o nosso primeiro degrau para a transcendência espiritual. Na proporção em que a nossa capacidade infinita de amar se concretiza na realidade afectiva (nascida dos sentimentos profundos e verdadeiros do amor) sentimo-nos elevados a planos superiores de afectividade intelecto-moral, respeitando progressivamente todas as expressões da vida e da beleza em todo o Universo. O Amor não é um gosto, nem uma preferência, nem um desejo – é afeição, ou seja, afectividade em acção, fluxo permanente de vibrações espirituais do ser que se expandem em todas as direcções da realidade. Foi por isso que Francisco de Assis amou com a mesma ternura e o mesmo afecto, chamando-os de irmãos; os minerais, os vegetais, os animais, os homens e os astros no Infinito. As ondas do Amor atingem a todas as distâncias, elevações e profundezas, não podendo ser medidas, como fazemos com as ondas hertzianas do rádio. Depois de ultrapassar os limites possíveis da Criação, o Amor atinge o seu alvo principal, que é Deus, e Nele se transfunde. 

O Espiritismo aprofunda o conhecimento da Realidade Universal e não pretende modificar o Mundo em que vivemos através de mudanças superficiais das estruturas. Essa é a posição dos homens diante dos desequilíbrios e injustiças sociais. Mas o homem-espírita vê mais longe e mais fundo, buscando as causas dos efeitos visíveis. Se queremos apagar uma lâmpada eléctrica não adianta soprá-la, é necessário carregar no botão que detém o fluxo de electricidade. Se queremos mudar a Sociedade, não adiante modificar a sua estrutura feita pelos homens, mas modificar os homens que modificam as estruturas sociais. O homem egoísta produz o mundo egoísta, o homem altruísta produzirá o mundo generoso, bom e belo que todos desejamos. Não podemos fazer um bom plantio com más sementes. Temos de melhorar as sementes. 

As relações humanas baseiam-se na afectividade humana. Não há afectos entre corações insensíveis. Por isso a dor campeia no mundo, pois só ela pode abalar os corações de pedra. Mas o Espiritismo mostra-nos que os corações de pedra são duros por falta de compreensão da realidade, de tradições negativas que os homens desenvolveram em tempos selvagens e brutais. Essas relações modificam-se quando oferecemos aos homens uma visão mais humana e mais lógica da Realidade Universal. Essa visão não tem sido apresentada pelos espíritas, que, na sua maioria, se deixam levar apenas pelo aspecto religioso da doutrina, assim mesmo deformado pela influência de formações religiosas anteriores. Precisamos restabelecer a visão espírita na sua totalidade, afastando os resíduos de um passado de ilusões e mentiras prejudiciais. Se compreenderem a necessidade urgente de se aprofundarem no conhecimento da doutrina, de maneira a formarem uma sólida e esclarecida convicção espírita, poderão realmente contribuir para a modificação do mundo em que vivemos. Gerações e gerações de espíritas passaram pela Terra, de Kardec até hoje, sem terem obtido sequer um laivo de educação espírita, de formação doutrinaria sistemática. Aprenderam apenas alguns hábitos espíritas, ouviram aulas inócuas de catecismo igrejeiro, tornaram-se, às vezes, ardorosos na adolescência e na juventude (porque o Espiritismo é a oposição a tudo quanto de envelhecido e caduco existe no mundo), mas ao defrontarem-se com a cultura universitária incluíram a doutrina no rol das coisas peremptas por não terem a menor visão de sua grandeza. Pais ignorantes e filhos ignorantes, na sucessão das encarnações inúteis, nada mais fizeram do que transformar a grande doutrina numa seita de papalvos (i). Duras são e têm de ser as palavras, porque ineptas e criminosas foram as acções condenadas. A preguiça mental de ler e pensar, a pretensão de saber tudo por intuição, de receber dos guias a verdade feita, o brilhareco inútil e vaidoso dos tribunos, as mistificações aceites de mão beijada como bênçãos divinas e assim por diante, num rol infindável de tolices e burrices fizeram do movimento doutrinário um charco de crendices que impediu a volta prevista de Kardec para continuar o seu trabalho. Em compensação, surgiram os reformadores e adulteradores, as mistificações deslumbrantes e vazias e até mesmo as séries ridículas de reencarnações do mestre por contraditores incultos de suas mais valiosas afirmações doutrinárias. 

Este amargo panorama afastou do meio espírita muitas criaturas dotadas de excelentes condições para ajudarem o movimento a organizar-se num plano superior de cultura. Isto é tanto mais grave quanto o nosso tempo que não justifica o que aconteceu com o Cristianismo deformado totalmente num tempo de ignorância e atraso cultural. Pelo contrário, o Espiritismo surgiu numa fase de acelerado desenvolvimento cultural e espiritual, em que os espíritas contaram e contam com os maiores recursos do conhecimento e do progresso de que a humanidade terrena já dispôs. Todos os grandes esforços culturais em favor da doutrina foram negligenciados e continuam a sê-lo pela grande maioria dos espíritas de caramujo, que se encolhem nas suas carapaças e nos seus redutos fantásticos. Falta o amor pela doutrina, de que falava Urbano de Assis Xavier; falta o amor pelos companheiros que se dedicam à seara com abnegação de si mesmos e de suas próprias condições profissionais e intelectuais; falta o amor pelo povo faminto de esclarecimentos precisos e seguros; falta o amor pela Verdade, que continua sufocada pelas mentiras das trevas. 

Os médiuns de grandes possibilidades vêem-se cercados de multidões interesseiras, que os levam quase sempre ao fracasso ou ao esgotamento precoce. Só os interesseiros os procuram: os que pretendem aproveitar as suas produções em proveito próprio; os que desejam apenas dizer-se íntimos do médium; os que procuram consolação passageira na sua presença; os que buscam sugar-lhes os benefícios fluídicos e assim por diante. Os próprios médiuns acabam muitas vezes entregando-se ao desânimo e desviando-se para outros campos de actividade onde, pelo menos, poderão gozar de convivências menos penosas. 

exploração inconsciente e consciente dos médiuns pelos próprios adeptos da doutrina é um dos factores mais negativos para o desenvolvimento do Espiritismo no nosso país e no mundo. A contribuição que eles poderiam dar para a execução das metas doutrinárias perde-se na miudalha das consultas pessoais e nas mensagens quotidianas de sentido religioso-confessional, mais tocadas por emoção embaladora do que de raciocínio e esclarecimento. É isso o que todos pedem, como crianças choramingas acostumadas a dormir com cantigas de embalar. Até mesmo um médium como Arigó, dotado de temperamento agressivo como João Baptista e assistido por uma entidade positiva como Fritz, acabou envolvido numa rede de interesses contraditórios que o envolveram através de manobras que o aturdiram, misturadas a calúnias e campanhas difamatórias que o levaram, na sua ignorância de roceiro inculto, a precipitar-se, sem querer, na sua destruição precoce. As grandes teses da Doutrina Espírita não foram suficientes para mobilizar os espíritas em favor do médium, resguardando-o e facilitando, pelo menos, a investigação dos cientistas norte-americanos, de diversas Universidades e da NASA, que tentaram desesperadamente colocar o problema em termos de equação científica. O que devia ter sido uma vitória da Verdade no plano universal reverteu-se em mesquinho episódio de disputas profissionais acirradas por clérigos e médicos de visão rasteira. E tudo isso por que estranho motivo? Porque os espíritas não foram capazes de sair das suas tocas, empunhando as armas poderosas da doutrina, para enfrentar o conluio miserável das ambições absorventes e vorazes. 

Cada espírita, ao aceitar e compreender a grandeza da causa doutrinária e a sua finalidade suprema – que é a transformação moral, social, cultural e espiritual do nosso mundo – assume um grave compromisso com a sua própria consciência. O aparecimento de um médium como Chico Xavier ou Arigó já não tem o sentido restrito do aparecimento de uma pitonisa ou de um oráculo no passado, mas o do aparecimento de um João Baptista ou de um Cristo na fase crítica da queda do mundo clássico greco-romano, da trágica agonia da civilização mitológica. Porém, após um século da semeadura evangélica, na hora certa e precisa da colheita, vemos de novo o povo eleito enrolado em intrigas na Porta do Monturo (i), enquanto os romanos crucificam entre ladrões os que se imolaram em reencarnações providenciais. 

Essa mentalidade de corujas agoureiras e, de troianos que não ouvem Cassandra, decorre do egoísmo (essa lepra do coração humano, segundo a expressão de Kardec) do comodismo e da preguiça mental. A falta de estudo sério e sistemático da doutrina, que permite a infiltração de elementos estranhos no corpo doutrinário, causando-lhe deformações rebarbativas e fantasiadas de novidades, avilta a consciência espírita com a marca de Caim nos grupos de traidores. Estes traidores não traem apenas a doutrina, Cristo e Kardec, mas também a Humanidade e o Futuro. Onde fica o princípio do Amor em tudo isso? Quem revelou amor à Verdade? Quem provou amar e respeitar a doutrina? Quem mostrou amar o seu semelhante e por isso querer realmente ajudá-lo, orientá-lo, esclarecê-lo? A esse fim superior sobrepõe-se o interesse falso e mesquinho de fazer bonito aos olhos que necessitam de luz, bancar saberetas para os que nada sabem, impor a criaturas ingénuas a sua maneira mentirosa de ver o ensino puro e claro de Kardec. 

O amor não está nos que se acumpliciam, se comprometem reciprocamente na trapaça, enleando-se na solidariedade da profanação consciente ou inconsciente, O amor está nos que repelem a farsa e condenam o gesto egoísta dos escamoteadores da verdade em proveito próprio, levando multidões ingénuas e desprevenidas à deturpação da doutrina esclarecedora. O amor, nesse caso, pode parecer impiedade, mas é piedade, pode assemelhar-se à injúria e agressão, mas é socorro e salvação. As condenações violentas de Jesus a escribas e fariseus não foram ditadas pelo ódio, mas pela indignação justa, necessária, indispensável do Mestre, que sacudia aquelas almas impuras para livrá-las da impureza com que aviltavam os simples. Quem não tiver condições para compreender isto deve ter pelo menos a humildade de André Luiz, o médico lançado às zonas umbralinas, a contentar-se com trabalhos de limpeza e lavagem nos hospitais dos planos superiores para aprender a grandeza da humildade, a nobreza dos pequeninos, ao invés de rebelar-se contra as leis divinas da busca da Verdade. O nosso movimento espírita, como todo o negro panorama religioso da Terra, está cheio de ignorantes revestidos ou não de graus universitários, que se julgam mestres iluminados e são apenas os cegos do Evangelho que levam outros cegos ao barranco. Impedi-los de cometer este crime de vaidade afrontosa é o dever dos que sabem realmente amar e servir. “Ai de vós, escribas e fariseus hipócritas!” advertiu Jesus, não para condená-los ao fogo do Inferno, mas para salvá-los do inferno de si mesmos. 

/… 


José Herculano Pires, Curso Dinâmico de Espiritismo, XVII – Acção Espírita na Transformação do Mundo, (I de III) – O Amor, 17º fragmento desta obra. 
(imagem de contextualização: Somos as aves de fogo por sobre os campos celestes, acrílico de Costa Brites)