Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

sábado, 24 de abril de 2021

Deus na Natureza ~


~ a personalidade humana ~
 
(I de II)

  Felizmente para as grandes e respeitáveis verdades de ordem moral, não estamos reduzidos a curvar a cabeça diante de tão grosseira conclusão. 

  Como nos dias decantados (i) pelo célebre autor latino das Metamorfoses, temos nascido para ficar de pé e contemplar o céu. 

  Certo, poderíamos invocar aqui o testemunho imponente dos sentidos mais profundos da natureza humana: poderíamos evidenciar, à luz meridiana, que nestas doutrinas perniciosas já não há lugar para a esperança, moral para a consciência, luz para os pendores do coração; bondade natural, justiça na ordem universal, consolação para os aflitos e, mais, que a população do globo já não tem à sua frente nenhuma finalidade, nenhuma claridade, nenhuma lei intelectual

  Rolando, por aí além, em turbilhão, levada no espaço obscuro pela rotação e translação rápidas do globo e renovando-se a cada momento pelo nascimento e morte dos seus membros, ela – a Humanidade – não passa, à superfície deste globo, de bolorento parasita cegamente desabrochado e perpetuado por forças químicas. 

  Sim, poderíamos, invocando o testemunho dos corações que ainda pulsam e das almas que ainda acreditam, dispor na linha de batalha dos argumentos ainda vivazes da Filosofia e da Psicologia e destituir o adversário, constrangendo-o a confessar-se vencido. Todavia, como os preferimos combater no mesmo terreno e com as mesmas armas, pretendendo refutá-los só em nome da Ciência de que se dizem intérpretes, apraz-nos permanecer no campo exclusivamente científico e desdenhar, qual estes o fazem, os silogismos da Psicologia. 

  Deixamos, assim, sem resposta as seguintes proposições adversárias e os comentários com que as esticam: 

  “As leis da Natureza são forças bárbaras, inflexíveis; não conhecem a moral nem a benevolência.” (Vogt). 

  “A Natureza não ouve as queixas nem as preces do homem, antes as repele inexoravelmente em si mesmo.” (Feuerbach). 

  “Sabemos, por experiência própria, que Deus absolutamente não se imiscui, de qualquer forma, nesta vida terrestre.” (Lutero). 

  Aí temos conceitos bem consoladores, não é assim? Mas, repetimos: o sentimento não é um recurso científico e por isso não entraremos nesse capítulo. Esta abstenção não nos impede, bem entendido, de convidar o leitor a meditar e decidir para que lado lhe pendem o coração e a razão. 

  Mas, apenas do ponto de vista da observação científica e deixando de lado os pendores do coração e os imperativos da consciência – que não deixam de ser alguma coisa na história da alma – dizemos que factos há, nos domínios da observação pura, completamente inexplicáveis na hipótese materialista. 

  No anterior capítulo (O Cérebro), o leitor ainda pode ficar suspenso entre as duas hipóteses, porquanto apresentamos factos mutuamente oscilantes, que deixam o espírito indeciso, quanto ao centro de gravidade. Agora, porém, o centro de gravidade vai passar ao corpo das doutrinas espiritualistas e os que o não seguirem muito se arriscarão a desequilibrar-se e a cair, rapidamente, no mais vazio dos vácuos. 

  Exponhamos, em primeiro lugar, as afirmativas materialistas contra a existência da alma e, para não falar só dos estranhos, ao mesmo tempo, fazer o histórico do materialismo no nosso país, escutemos Broussais, cuja obra foi o primeiro toque a reunir dos nossos modernos epicuristas e inaugurou, no nosso século, a primeira fase desse curso pouco luminoso. 

  Para Broussais, como para CabanisLocke e Condillac, o homem é, simplesmente, o conjunto dos órgãos em função. O eu, a personalidade humana não é um ser suis generis, é um facto (ii), é um resultado, é um produto imputável a tal ou qual disposição da matéria (iii). Inteligência e sensibilidade são funções do aparelho nervoso, mais ou menos como a transformação dos alimentos em quilo e o sangue é uma função do aparelho digestivo, ou do respiratório (iv). A existência da alma não é mais que uma hipótese que se não funda em qualquer observação, que nenhum raciocínio autoriza, por gratuita e, é até mesmo destituída de senso (v). Não reconhecer no homem mais que um sistema orgânico é cair nos absurdos da Ontologia (vi)

  Cabanis, no seu livro bem conhecido – Destutt de Tracy, na sua análise racional das relações do físico com o moral, emite as mesmas opiniões, mas, sob uma forma menos explícita. 

  Segundo os exagerados defensores da doutrina da sensação, a pessoa humana confunde-se nas funções orgânicas. Na realidade, não existe. 

  Todos os homens, em todos os tempos e por toda a parte, acreditaram na sua existência pessoal, se sentiram viventes e pensantes; todas as línguas os enunciaram, nas primeiras páginas dos anais humanos, a existência do pensamento individual, a alma, a inteligência, o espírito, não importa sob que nome (poderíamos encher uma página de nomes primitivos, arianos, sânscritos, gregos, latinos, celtas, etc., mas uma tal nomenclatura não é necessária e os nossos leitores, certamente, sabem da existência desses vocábulos). O bom senso popular, tanto quanto o génio filosófico, espontaneamente sempre acreditaram, desde que o mundo é mundo e há seres racionais na Terra; que existe no nosso corpo algo mais que a matéria, uma consciência própria, sem a qual não existiríamos e que se comprova a si mesma, pelo facto tão-só da certeza íntima. Enfim, todos sentiram que nem o corpo, nem tampouco o mundo exterior, constituem a entidade pensante. Entretanto, a Humanidade do passado, como a do presente, parece que não leva em conta a opinião dos materialistas. 

  Felizmente para nós, eles aí estão a esclarecer-nos de agora em diante, convidando-nos a reconsiderar a ingenuidade das nossas crenças. Como bem o disse um fino espiritualista (o duque de Broglie, nos Ècrits et Discours, t. 1º). “Até aqui, caros amigos – escreveu ele –, acreditastes que existíeis e tínheis um corpo; mas, desenganai-vos, porque não existis e é o corpo que vos possui. Só existis na aparência; o que chamais o eu não passa de simples vocábulo, um não sei quê, destituído de realidade e consistência; e o que realmente existe, no fundo de tudo isso, é alguma coisa de que não tendes consciência, nem ela tampouco a tem de vós.” (ver também) (*) 

  No parecer de Broussais como dos seus colegas e discípulos, o eu é o cérebro. O pensamento, todos os fenómenos inteligentes, são excitações da matéria cerebral ou, para usar a mesma linguagem do Autor – condensações da mesma matéria (vii). E, seja de que natureza for, toda a percepção mental está neste caso. Dor, alegria, saudade, julgamento, comparação, determinação, entusiasmo, desejo, tudo é condensação. Se houver fenómenos complexos nesse laboratório do pensamento, quais uma série de raciocínios sucessivos saídos de uma impressão inicial, mesmo do exterior e culminando em acto voluntário, serão ainda condensação de condensações. Estas são o próprio pensamento, que não passa de consequência, de resultante, a mesma condensação das fibras do encéfalo...” Meu Deus! Que bela coisa é a Ciência e como o Sr. Broussais possuía uma imaginação tão condensada! 

  Sentir-se sentir, eis a fórmula e o único facto consciencial admitido por Broussais. Ora, qual é o órgão que sente no organismo humano? Incontestavelmente, o cérebro. Logo, ele é o eu e todas as percepções do pensamento não passam de excitações da substância cerebral. Coisa que parece simples, mas que desafia a um ligeiro reparo. 

  Temos visto que o cérebro é uma massa carnosa, pesando três libras mais ou menos e composta de medula, fibras brancas ou pardas, gordura fosforada, água, albumina, etc. Então, entre estas substâncias, qual é a pensante? A água? o fósforo? a albumina? o oxigénio? Se a faculdade de pensar está ligada a uma simples molécula, a um átomo real, não tendes o direito de negar a imortalidade da alma, pois, neste caso a faculdade de pensar participaria do destino do átomo indestrutível. Seria preciso, pois, admitir que esse átomo se libertou, desde logo, do movimento, para ficar imóvel, talvez no fundo da glândula pineal. Admitindo-se, agora, que cada molécula seja capaz de sentir em conformidade com a natureza das sensações, esse pretenso eu já não estará no singular, mas no plural, haverá tantos eus (!) quantas moléculas cerebrais. Os léxicos não conheciam esse vocábulo e, doravante, deverão perfilhá-lo. 

  O homem jamais suspeitara que continha em si diversas personalidades, quando os próprios gregos, com as suas múltiplas designações possíveis, não tinham visto nisso senão várias faculdades e diversas maneiras de ser de uma única e a mesma alma. Mas, cada molécula é, por sua vez, um agregado de átomos, de corpos simples, diversos e diversamente combinados. Teremos, então, cada átomo a pensar agora? Eis-nos caídos na mais absurda e inimaginável das hipóteses. Essa contradição entre a unidade incontestável do ser pensante e a multiplicidade, não menos incontestável, dos elementos cerebrais, reduz a zero a pretensão de fazer da consciência individual uma propriedade do encéfalo. 

  Nota curiosa: estes senhores não se cuidam de que assim racionando regridem aos arqueus de Van Helmont, a pretexto do progresso. Não lhes falta mais que os espíritos animais, dos tempos de Descartes e Malebranche, para nos vermos recuados a mais de dois séculos anteriores à origem da própria Fisiologia. 

  Não temos no âmago da consciência a certeza da nossa unidade? Percebe-se o pensamento como um mecanismo composto de várias peças, ou como um ser simples? Todos os fenómenos activos da nossa alma depõem a favor dessa unidade pessoal, visto como, na sua variedade e multiplicidade, estão agrupados em torno de uma percepção íntima, de um julgamento e de uma faculdade de generalizações únicas. Sentimos, em nós mesmos, essa unidade pessoal, sem a qual pensamentos e actos já não se ligariam por qualquer laço e nenhum valor teriam as nossas determinações. É esse um facto tão firmemente enraizado na consciência e tão inatacável, que as contradições aparentes que se lhe podem opor redundam, em definitivo, a seu favor. Se, por exemplo, certa faculdade da nossa alma se engana nas suas apreciações, parece poder concluir-se que há complexidade na maneira operatória do espírito. Mas, se descermos ao fundo do fenómeno do erro, tão frequente, reconheceremos que é sempre o mesmo ser, a mesma pessoa a enganar-se e a reconhecer a sua imprevidência, assim como, no homem que erra e se corrige, é manifesto que a mesma razão que erra é a que corrige. 

  Assim, as mesmas contradições da natureza humana prestam-se, tanto quanto o foro íntimo, a afirmar a personalidade do nosso ser mental. 

  Se bem que a afirmação da personalidade do eu prove a existência da alma, não se infere daí que a constitua. Temos, para nós, que a alma é o ser pensante, ao passo que o eu é apenas uma concepção que dá para os fenómenos internos o carácter de facto consciencial. 

  A alma poderia existir inconsciente da sua personalidade e, de facto, no mundo animado há um grande número de almas ainda nessa condição. 

  Dizem outros que é o conjunto do cérebro e não cada molécula de per si, que pensa. Mas, que vem a ser o conjunto do cérebro senão a reunião das moléculas que o compõem? Os que fazem dessa reunião um ser ideal, uma espécie de sociedade, de exército, não podem pretender que essa colectividade pense, sem que o façam todos e cada qual dos seus membros. Porque, em si, uma sociedade, um povo, não são entidades reais, mas um conglomerado cuja natureza e cujo valor só se constituem dos membros, componentes. Suprimi o pensamento dos cérebros do povo francês e então o que restará a esse povo? Imaginai que as moléculas cerebrais não pensam, assim o que restará ao cérebro? E, se elas pensam, então, voltaremos à imagem extravagante de uma quantidade indefinida de eus! (Era caso para dizer que este vocábulo, se os vocábulos pensassem, deveria estranhar ao ver-se aqui pluralizado.) 

  E, para que elas se acordem entre si, veremos instituir-se a hierarquia militar e nomear um general que cavalgue qualquer átomo bicudo da glândula pineal, ou então dir-se-á, com Syndenham, “que há no homem um outro homem interior, dotado das mesmas faculdades e afecções do homem exterior”. A pretexto da ciência positiva, imaginar-se-ão mil hipóteses mais difíceis do que os tão criticados mistérios das velhas religiões. 

  Os materialistas contemporâneos são um pouco mais fortes. Declararam, como vimos, que a alma é uma força excretada pelo cérebro (?), sem se darem ao trabalho de elucidar qual a parte ou o elemento do encéfalo que possui essa maravilhosa faculdade. É uma resultante do conjunto de movimentos operados sob diversas influências, no órgão cerebral. Tal a opinião da escola materialista e, mesmo da panteísta. Esta nova hipótese é tão simplória quanto as precedentes e só apresenta uma ligeira falha que é, nem mais nem menos, o ser incompreensível. Aliás, não se dão eles ao trabalho de a explicar. Em 1827, quando se opunha a simplicidade da alma à multiplicidade dos elementos cerebrais, nessa época em que a química do pensamento não gozava a prerrogativa de ser manipulada nas retortas de além-Reno, Broussais respondia francamente: “o eu é um facto inexplicável, não pretendo explicá-lo” (viii). Todavia, às definições acima assinaladas, juntou ele mais esta: “O eu é um fenómeno de inervação”. Ainda hoje, ninguém conseguiu provar, nem explicar, como pode a consciência resultar de certas combinações operadas num maquinismo automático. Assim, a unidade da nossa força pensante não só protesta energicamente, como destrói, de um golpe, a hipótese da secreção cerebral. Oporemos, agora, à mesma hipótese um segundo facto, paralelo a este e de tanto valor que basta, por si só, para arrasar o colossal exército de argumentos já embotados na defesa da referida teoria. 

  Ei-lo, esse facto, em termos bem claros. 

  A substância cerebral não se mantém duas semanas idêntica a si mesma. O cérebro refunde-se completamente num prazo mais ou menos longo. Vimos na segunda parte que, não só o cérebro, mas todo o organismo, não passa de uma sucessão de moléculas em mutabilidade constante. 

  E, não obstante, a nossa personalidade racional subsiste. Todos temos a certeza de que, desde que nos entendemos por gente, não mudamos intrinsecamente, como mudaram os nossos cabelos, a nossa pele, a nossa fisionomia, a nossa estatura. 

  Nas páginas anteriores, demonstramos a personalidade humana, mau grado a complexidade dos elementos cerebrais e a multiplicidade das suas funções. E vimos que, longe de ser uma resultante, essa personalidade se afirma a si mesma como força individual. Vamos agora, de algum modo, transportar-nos à noção do tempo o que dizíamos a propósito do espaço, para estabelecer que a unidade da alma não existe somente a cada momento, considerada em si mesma, mas persiste de um a outro momento e fica idêntica em si mesma, apesar das mudanças que o tempo traz à composição da substância cerebral. 

  Trata-se, pois, de conciliar a identidade permanente da nossa personalidade com a mutabilidade incessante da matéria. Os senhores materialistas seriam de uma gentileza rara se aceitassem subir por um momento ao palco, a fim de resolverem este pequenino problema. 

  A nós, muito nos apraz fornecer-lhes o enunciado: – demonstrar que o movimento é amigo do repouso e que o melhor processo de criar no mundo, uma instituição estável e sólida é lançar a ideia através de um turbilhão de cabeças frívolas. 

  As rigorosas observações feitas e comparadas, sob diversos pontos de vista, demonstraram não apenas que o corpo se renova sucessiva e completamente, molécula a molécula, mas, também, que essa renovação perpétua é rapidíssima, bastando trinta dias para que se tenha um corpo integralmente renovado. 

  Tal, o princípio da desassimilação no animal. Falando com rigor, o homem corporal não fica dois momentos idêntico a si mesmo. Os glóbulos sanguíneos que circulam nos meus dedos, enquanto escrevo estas linhas, o fósforo mágico que me trabalha no cérebro ao pensar esta frase, já me não pertencerão quando estas páginas forem impressas e, talvez, no momento de as lerdes, façam parte dos vossos olhos ou da vossa fronte... talvez, ó gentil leitora! enquanto os vossos mimosos dedos dobrarem estas páginas, a dita molécula de fósforo que, na hipótese dos adversários, teve a fantasia de imaginar a dita frase, talvez, repito, essa ditosa molécula esteja sob a epiderme sensível do vosso indicador, ou, quem sabe, crepite ardentemente nas palpitações do vosso coração... (A respeito de moléculas itinerantes muito haveria a dizer, mas não ousamos alongar o parêntese.) O que importa, a sério, é recordar esta verdade: – a matéria circula perpetuamente em todos os seres e, no ser humano, em particular, não permanece dois dias idêntica a si mesma. 

  Se não estamos enganados, este facto tem a sua importância na questão que nos ocupa e, é com verdadeiro prazer que o alegamos aos adversários, convidando-os a que o expliquem. 

  Como estas interessantes observações se devem aos próprios campeões do materialismo, a eles, que não a outrem, compete interpretá-las em apoio da sua teoria, caso essa interpretação não lhes requeira um esforço muito exagerado. 

  Vejamos: 

  “O sangue rejeita constantemente as suas partes constitutivas aos órgãos do corpo, na qualidade de elementos histogénicos. A actividade dos tecidos decompõe esses elementos em ácido carbónico, ureia e água. Tecidos e sangue sofrem, na marcha regular da vida, um desperdício de substância só compensado na provisão dos alimentos. Essa permuta de matérias opera-se com uma rapidez notável. Os factos gerais indicam que o corpo renova a maior parte das substância num período de vinte a trinta dias. O coronel Lann, por meio de várias pesagens, encontrou uma perda média de 22% do seu peso, em 24 horas. A renovação total exigiria, portanto, 22, dias. Liebig deduziu uma rapidez de 25 dias, considerando as permutas de outra maneira, pela combustão do sangue. Por surpreendente que possa parecer esta rapidez, as observações são concordantes em todos os pontos” (ix)

  Assim, sois vós mesmos a ensinar que dentro de alguns dias o nosso corpo se renova inteiramente. O nosso ser material viu dissolver-se e reconstituir-se, sucessivamente, a sua assembleia constituinte, não lhe ficando uma só molécula de oxigénio, carbono, hidrogénio, ferro, carbono, albumina... Essas moléculas aliaram-se a outras substâncias, que andam agora embaladas pelas nuvens, levadas pelas ondas, envolvidas no solo, recolhidas pelas plantas, ou pelos animais, enquanto que a nossa substância também se encontra inteiramente mudada. 

  Quando se aplique essa engenhosa teoria a uns tantos factos de ordem social, chega a provar-se que a união matrimonial deixa de ser um sacramento eficaz, visto que ao fim de um mês as duas criaturas, que acreditaram formar liames eternos, estão corporal e espiritualmente transformadas e vivem como adúlteros. Como esta, outras conclusões se podem tirar, edificantes. Ajuntais, de seguida, que, sendo o fósforo a parte do cérebro mais caracterizada, é desta substância que provém o pensamento, assim como à potassa se devem os músculos e as faculdades de locomoção e os ossos ao fosfato de cal, etc., e vós comparais o acto de pensar (secreção do cérebro!) à secreção da bílis pelo fígado, da urina pelos rins. 

  Contrariando as vossas pretensões, noto que o meu ser pensante, a minha pessoa, o meu ego, é o mesmo de há cinco, dez, vinte, quarenta anos. E espero não negareis que vos lembrais de terdes sido criança, de haverdes brincado no colo materno, frequentado a escola e feito (lá isso não duvido) brilhantes estudos, para vos tornardes, com o tempo, furiosos paladinos do materialismo. 

  Sois mesmo vós que assim vivestes, não é verdade? Foi, certo, sobre o vosso espírito e, não sobre a vossa fronte, que esses anos passaram. Se mudastes de opiniões, de ideias, de directriz, nos vossos estudos; se trocastes de país, de hábitos, de alimentos, nem por isso deixou de ser a vossa mesma pessoa que cresceu, viveu, envelheceu; e, se algum audacioso e legítimo partidário das vossas doutrinas, tendo-vos roubado, há dez anos, a honra e a fortuna, reaparecesse e dissesse que já não sois o mesmo homem, que tendes mudado muitas vezes, que não vos conhece e que também ele mudou e, por isso, nada vos deve nem lhe cumpre reparar, estou certo de que não demoraríeis a demonstrar-lhe que não é assim que entendeis, na prática, as vossas teorias. 

  Com efeito, senhores, essas teorias não nos parecem nem mais nem menos que absurdas, diante do facto eloquente da identidade do espírito. Podeis conciliar umas e o outro? Podeis pretender que uma secreção de substâncias que apenas transitam pelo organismo possa gozar dessa faculdade? Ousaríeis avançar que, considerando o pensamento como atributo de uma associação de moléculas de gordura fosforada, albumina, colesterina, potassa e água (x) – moléculas trazidas a esse laboratório pela nutrição e a respiração, variáveis, em contínuo movimento, semelhantes a soldados de todas as nações, que chegam ao mesmo campo, armam tendas e seguem adiante para serem logo substituídos por outros; – ousaríeis, repito, avançar que um tal sistema pode explicar a identidade, a permanência do pensamento? 

  Não, não o ousais: nem mesmo o ensaiam, pois muito tenho revolvido nos vossos anais e vejo que prestes vos esquivais ao escolho, deixando quase de o nomear. 

  Um dos vossos (xi) diz de passagem que numa observação feita a trepanados se demonstrou que certos anos ou fases da sua existência se lhes apagavam da memória devido à perda de quaisquer partes do cérebro. Acrescenta mais, que a velhice acarreta a perda quase total da memória. Sem dúvida, diz, as substâncias cerebrais mudam, mas o modo da sua composição deve ser permanente e determinante do modo da consciência individual. Depois, confessa que “os processos interiores são inexplicáveis”. Ora pois! eis aí uma confissão que compensa tudo. Essas pretensas explicações apoiadas em factos anormais são as únicas que se permitem dar ao grande facto por nós assinalado. 

  Lacuna sensível e, visto que a vossa maior ambição é remover todos os obstáculos e nada abafar em silêncio – censura que infligis aos vossos adversários – concito-vos, a bem do vosso bom nome, a já não deixar de explicar física ou quimicamente como a renovação dos vossos átomos pode ter a propriedade de engendrar no ser pensante e consciente a permanência da sua identidade. 

  Não vemos conciliação possível entre estes dois termos contrários, pelo que poderíamos seguir adiante sem nos preocuparmos com o adversário, para só o considerarmos fora de combate, qual gladiador antigo a esvair-se na arena, trespassado pelo mortal tridente. 

  Todavia, ainda por princípio de caridade, vamos prosseguir na luta e, para defesa geral da causa, acreditamos útil examinar as diversas explicações emitidas a respeito, a fim de que saibam nenhuma haver satisfatória, ficando assim de todo insolúvel a hipótese materialista. 

  A primeira dessas explicações consiste em dizer que, se as moléculas do corpo estão em perfeita circulação, o mesmo não se dá com a forma individual. Os nossos traços ficam gravados no semblante, os olhos conservam a mesma cor, os cabelos a mesma natureza, a fisionomia o seu tipo fundamental. Quantos tiveram ensejo de reivindicar à glória militar uma cicatriz qualquer, guardam-lhe a marca, não obstante a renovação dos tecidos. Tal o facto geral da permanência e carácter fisionómico individual. 

  Podem os adversários pretender que, assim sendo com o corpo, impossível não seja a identidade do espírito, como resultante de fenómenos materiais. 

  Ora, aí justamente é que está o erro: 

  1º – Não se pode provar que a constância dos traços seja o resultado de simples fenómenos de assimilação e desassimilação e, da modificação incessante da substância; 

  2º – mesmo ainda que assim fosse, não existiria nisso senão uma identidade de forma, aparente, conservada pelas moléculas sucessivas e não a identidade fundamental, um ser substancial que fica; 

  3º – a alma não é uma sucessão de pensamentos, uma série de manifestações mentais e, sim, um ser pessoal com a consciência da sua permanência. 

  Por consequência, a diferença que separa da nossa a hipótese materialista, consiste simplesmente em observar que nada se explica pela primeira, ao passo que pela nossa tudo se explica. Como se vê, uma diferença insignificante. 

  Dir-se-á que os átomos materiais, em se substituindo, seguem precisamente a mesma direcção dos anteriores, entrosados no mesmo turbilhão, como sentinelas militares transmitindo-se a senha e que, se o pensamento é apenas uma série de vibrações, são estas mesmas vibrações a se perpetuarem, ainda que mude a substância dos círculos vibrantes. Mas, uma tal pretensão é duplamente insignificante, atento a que não explica melhor que as primeiras a identidade do eu e tende a arrastar-nos ao ocultismo, arvorando o corpo em locutório de moleculazinhas capazes de se entenderem e concordarem, mau grado à tagarelice e leviandade peculiares do sexo. 

  Pode ainda dizer-se que, se o cérebro muda pouco a pouco, o mesmo sucede com o nosso carácter, tendências, o próprio espírito. Mas, se de um lado considerarmos a substância constitutiva do cérebro num dado momento, teremos que, semanas ou meses depois (não importa a duração do intervalo), a metade dessa substância, por exemplo, estará mudada e não haverá, portanto, senão outra metade substancial da considerada num dado momento. Depois, um meio quarto e, assim por diante. De sorte que, nesta hipótese, estaríamos mudados em duas, três, quatro partes, até que nada restasse da personalidade primitiva. Ora, quem não vê, quem não sente, que se não guardam de tal arte fragmentos de alma e, que esta é una, simples, indivisível e idêntica a si mesma em qualquer período da sua duração? A permanência do eu ressalta, uma vez mais, vitoriosa dessa mixórdia. 

  Avançarão, enfim, que há no cérebro um lugar qualquer, um santuário em cujo aditamento fique, isenta das leis gerais, uma molécula imutável, permanente, privilegiada entre as demais, dotada de integridade inatacável e, que essa tal molécula é o centro dos pensamentos e o que constitui a identidade pessoal? 

  Mas, tal suposição é, não apenas arbitrária e balda de sentido, como também contrária à observação científica e à índole do método positivo. De resto, nenhum dos adversários se decide a lhe assumir a responsabilidade. 

  Assim, queiram ou não, a identidade permanente do ser mental é facto inconciliável com a mutabilidade incessante do órgão cerebral, no caso em que se conceitue o nosso ser mental como atributo orgânico. 

  Singular audácia de sonhadores, o virem negar, à face da consciência individual e universal, o grande facto da existência pessoal da alma! Não sabemos todos, à saciedade, que o nosso eu e os nossos órgãos são radicalmente distintos? que a nossa pessoa se reconhece e afirma independente em si e de si mesma? que nós não somos os nossos órgãos, mas que eles são nossos, o que é bem diferente? Negar tal coisa, vale por negar a luz meridiana. Pôr assim em dúvida a primeira afirmação de consciência, pretender que estejamos iludidos e que, ao contrário de uma existência pessoal, da posse dos nossos órgãos, são estes que nos possuem, é pôr em dúvida ao mesmo tempo o princípio de toda e qualquer certeza, é reduzir a fumo o secular edifício dos conhecimentos humanos. 

  Negado esse primeiro facto de consciência, nada mais resta à Humanidade. 

  Haverá quem desconheça a ousadia de semelhante pilhéria (i)

/… 
(ii) De l’Irritation et de la Folie, página 153. (iii) Idem, página 171. (iv) Idem, Prefácio, 19º. (v) Reponse aux Critiques, página 30. (vi) De l’Irritation, etc., página 122. (vii) Broussais – De l’Irritation et de la Folie, página 214. (viii) Reponme aux Critiques, página 17. (ix) Jac Moleschott – La Cireulation de la Via, t. 1º, páginas 169, 170 e 172. (x) Moleschott, 2º, 149. (xi) Büchner – Força e Matéria
(*) Louis de Broglie, mais tarde, no discurso de aceitação (i), da Academia Francesa. Adenda desta publicação.


Camille Flammarion, Deus na Natureza, Terceira Parte – A Alma […] 2/ A Personalidade Humana (I de II), 25º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: Jungle Tales (Contos da Selva)_1895, pintura de James Jebusa Shannon)

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