Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

quarta-feira, 31 de maio de 2023

o problema do | ser


(Quem sou... o que faço aqui... de onde vim... para onde vou...) 

A alma e os diferentes estados do sono 

O estudo do sono fornece-nos indicações de grande importância sobre a natureza da personalidade. Em geral não se aprofunda muito o mistério do sono. O exame atento desse fenómeno, o estudo da alma e da sua forma fluídica durante a parte da existência que consagramos ao descanso, conduzir-nos-ão a uma compreensão mais alta das condições do ser na vida do Além. 

O sono possui não só propriedades restauradoras que a Ciência não pôs em devido relevo, mas também um poder de coordenação e centralização sobre o organismo material. Pode, além disso, acabamos de o ver, provocar uma ampliação considerável das percepções psíquicas, maior intensidade do raciocínio e da memória. 

O que é então o sono? 

É simplesmente o desprendimento da alma, que sai do corpo. Diz-se: o sono é irmão da morte. Estas palavras exprimem uma verdade profunda. Sequestrada na carne no estado de vigília, a alma recupera, durante o sono, a sua liberdade relativa, temporária e, ao mesmo tempo o uso dos seus poderes ocultos. A morte será a sua libertação completa, definitiva. 

Já nos sonhos, vemos os sentidos da alma, esses sentidos psíquicos, dos quais os do corpo são a manifestação externa e amortecida, entrar em acção. (ii) À medida que as percepções externas se enfraquecem e apagam, quando os olhos estão fechados e suspenso o ouvido, outros meios mais poderosos despertam nas profundezas do ser. Vemos e ouvimos com os sentidos internos. Imagens, formas, cenas à distância sucederem-se e desenrolarem-se; travarem-se conversas com pessoas vivas ou falecidas. Esse movimento, muitas vezes incoerente e confuso no sono natural, adquire precisão e aumenta com o desprendimento da alma no sono provocado, no transe de sonambulismo (i) e no êxtase. 

Às vezes, a alma afasta-se durante o descanso do corpo e são as impressões das suas viagens, o resultado das suas indagações, das suas observações, que se traduzem pelo sonho. Nesse estado, um laço fluídico ainda a liga ao organismo material e, por esse vínculo subtil, espécie de fio condutor, as impressões e as vontades da alma podem transmitir-se ao cérebro. É pelo mesmo processo que, nas outras formas do sono, a alma governa o seu invólucro terrestre, o fiscaliza e dirige. Essa direcção, no estado de vigília, durante a incorporação, exercita-se de dentro para fora; efectuar-se-á em sentido inverso nos diferentes estados de desprendimento. A alma, emancipada, continuará a influenciar o corpo mediante o laço fluídico que continuamente liga um à outra. Desde este momento, com o seu poder psíquico reconstituído, a alma exercerá sobre o organismo carnal uma direcção mais eficaz e segura. Os sonâmbulos andam à noite, por caminhos perigosos e com inteira segurança; é uma demonstração evidente desse facto. 

Sucede o mesmo com a acção terapêutica provocada pela sugestão. Esta é eficaz, principalmente no sentido de facilitar o desprendimento da alma e dar-lhe o poder absoluto de fiscalização, a liberdade necessária para dirigir a força vital acumulada no perispírito e, por esse meio, restaurar as perdas sofridas pelo corpo físico. (iii) Comprovamos esse facto nos casos de personalidade dupla. A segunda personalidade, mais completa, mais integral que a personalidade normal, substitui-a para um fim curativo, por meio de uma sugestão exterior, aceite e transformada em auto-sugestão pelo Espírito do sujet. Com efeito, este nunca abandona os seus direitos e poderes de fiscalização. Assim, como disse Myers, “não é a ordem do hipnotizador, mas antes a faculdade do paciente que forma o nó da questão”. (iv) 

O sábio professor de Cambridge disse mais: (v) 

“O único fim de todos os processos hipnogénicos é dar energia à vida; é atingir mais rápida e completamente resultados que a vida abandonada a si mesma só realiza lentamente e de forma incompleta.” 

Por outras palavras, o hipnotismo é a aplicação, num grau mais intenso, das energias reparadoras que entram em acção no sono natural. A sugestão terapêutica é a arte de libertar o Espírito do corpo, de abrir-lhe uma saída pelo sono permitindo-lhe que exerça em plenitude os seus poderes sobre o corpo doente. As pessoas sugestionáveis são aquelas cujas almas indolentes ou que pouco têm evolvido não estão aptas para se desprenderem por si mesmas e agir utilmente no sono ordinário para restaurar as perdas do organismo. 

A sugestão em si mesma não é, pois, mais do que um pensamento, um acto de vontade, diferindo somente da vontade ordinária pela sua concentração e intensidade. Em geral, os nossos pensamentos são múltiplos e hesitantes. Nascem e passam ou, então, quando coexistam em nós, chocam-se e se confundem. Na sugestão, o pensamento e a vontade fixam-se num ponto único. Ganham em poder o que perdem em extensão. Por sua acção, que se torna mais penetrante, mais incisiva, provocam no sujet o despertar de faculdades não utilizadas no estado normal. A sugestão torna-se, então, uma espécie de impulso, de alavanca que mobiliza a força vital e a dirige para o ponto onde ela tem de operar. 

A sugestão pode exercer-se tanto na ordem física, por uma influência directa sobre o sistema nervoso, quanto na ordem moral, sobre o “eu” central e a consciência do sujet. Bem empregada, constitui ela um meio muito apreciável de educação, destruindo as más tendências e os hábitos perniciosos. A sua influência sobre o carácter produz, então, os mais felizes resultados. (vi) 

Voltemos ao sono ordinário e ao sonho. Enquanto o desprendimento da alma é incompleto, as sensações, as preocupações da vigília e as recordações do passado se misturam com as impressões da noite. As percepções registadas pelo cérebro desenrolam-se automaticamente, em desordem aparente, quando a atenção da alma está desviada do corpo e deixa de regular as vibrações cerebrais. Daí a incoerência da maior parte dos sonhos; mas, à medida que a alma se desprende e se eleva, a acção dos sentidos psíquicos torna-se predominante e os sonhos adquirem lucidez e nitidez notáveis. Clareiras cada vez mais amplas, melhores perspectivas se abrem no mundo espiritual, verdadeiro domínio da alma e lugar do seu destino. Nesse estado ela pode penetrar as coisas ocultas e até os pensamentos e os sentimentos de outros Espíritos. (vii) 

Há em nós uma dupla vista, pela qual pertencemos, ao mesmo tempo, a dois mundos, a dois planos de existência. Uma está em relação com o tempo e o espaço, como nós os concebemos no nosso meio planetário com os sentidos do corpo: é a vida material; a outra, mediante os sentidos profundos e as faculdades da alma, liga-nos ao universo espiritual e aos mundos infinitos. No decurso da nossa existência terrestre, é principalmente quando dormimos que essas faculdades podem exercer-se e entrar em vibração as potências da alma. Esta torna a pôr-se em contacto com o universo invisível, que é a sua pátria e do qual estava separada pela carne. Retempera-se no seio das energias eternas para continuar, quando desperta, a sua tarefa penosa e obscura. 

Durante o sono a alma pode, segundo as necessidades do momento, aplicar-se a reparar as perdas vitais causadas pelo trabalho quotidiano e regenerar o organismo adormecido, infundindo-lhe as forças tiradas do mundo cósmico, ou, quando está acabado esse movimento reparador, continua o curso da sua vida superior, paira sobre a Natureza, exercer as suas faculdades de visão à distância e penetração das coisas. Nesse estado de actividade independente vive já antecipadamente a vida livre do Espírito; porque essa vida, que é uma continuação natural da existência planetária, a espera depois da morte, devendo a alma prepará-la não somente com as suas obras terrestres, mas também com as suas ocupações quando desprendida durante o sono. É graças ao reflexo da luz do Alto, que cintila nos nossos sonhos e ilumina completamente o lado oculto do destino, que podemos entrever as condições do ser no Além. 

Se nos fosse possível abranger com o olhar toda a extensão de nossa existência, reconheceríamos que o estado de vigília está longe de lhe constituir a fase essencial, o elemento mais importante. As almas que de nós cuidam servem-se do nosso sono para nos exercitar na vida fluídica e no desenvolvimento dos nossos sentidos de intuição. Efectua-se, então, um trabalho completo de iniciação para os homens ávidos de se elevarem. 

Os vestígios desse trabalho encontram-se nos sonhos. Assim, quando voamos, quando deslizamos com rapidez pela superfície do solo, significa isso a sensação do corpo fluídico, ensaiando-se para a vida superior. 

Sonhar que subimos sem cansaço, com facilidade surpreendente, através do espaço, sem embaraço nem medo, ou então que estamos pairando por cima das águas; atravessar paredes e outros obstáculos materiais sem ficarmos admirados de praticar actos que são impossíveis enquanto estamos acordados, não é a prova de que nos tornamos fluídicos pelo desprendimento? Tais sensações, tais imagens, que comportam completa inversão das leis físicas que regem a vida comum, não poderiam vir ao nosso espírito, se não fossem o resultado de uma transformação do nosso modo da existência. 

Na realidade, já não se trata aqui de sonhos, mas de acções reais praticadas noutro domínio da sensação e cuja lembrança se insinuou na memória cerebral. Essas lembranças e impressões no-lo demonstram bem. Possuímos dois corpos e, a alma, sede da consciência, fica ligada ao seu invólucro subtil, enquanto o corpo material está deitado e em completa inércia. 

Apontemos, todavia, uma dificuldade. Quanto mais a alma se afasta do corpo e penetra nas regiões etéreas, tanto mais fraco é o laço que os une, tanto mais vaga a lembrança ao acordar. A alma paira muito longe na imensidade e o cérebro deixa de registar as suas sensações. Daí resulta não podermos analisar os nossos mais belos sonhos. Algumas vezes, a última das impressões sentidas no decurso dessas peregrinações nocturnas subsiste ao despertar. 

E se, nesse momento, tivermos o cuidado de fixá-la fortemente na memória, pode ficar lá gravada. Tive, uma noite, a sensação de vibrações percebidas no espaço, as últimas notas de uma melodia suave e penetrante e, a lembrança das derradeiras palavras de um cântico que findava assim: “Há céus inumeráveis!” 

Às vezes sentimos, ao acordar, a vaga impressão de poderosas coisas entrevistas, sem nenhuma lembrança determinada. Essa espécie de intuição, resultante de percepções registadas na consciência profunda, mas não na consciência cerebral, persiste em nós durante certo tempo e influencia os nossos actos. Outras vezes, essas impressões se traduzem nitidamente no sonho. Eis o que a respeito diz Myers(viii) 

“O resultado permanente de um sonho é muitas vezes de tal ordem que nos mostra claramente que o sonho não é o efeito de uma simples confusão com lembranças avivadas da vida passada, mas que possui um poder inexplicável que lhe é próprio e que ele tira, semelhante nisso à sugestão hipnótica, das profundezas da nossa existência, a que a vida de vigília é incapaz de chegar. Desse género, dois grupos de casos há que, pela clareza com que se patenteiam, facilmente podem ser reconhecidos; um deles, principalmente, em que o sonho acabou por uma transformação religiosa decidida e, o outro em que o sonho foi o ponto de partida de uma ideia obsidente (i) ou de um acesso de verdadeira loucura." 

Esses fenómenos poderiam explicar-se pela comunicação, no sonho, da consciência superior com a consciência normal, ou pela intervenção de alguma Inteligência elevada que julga, reprova, condena o proceder do sonhador, lhe ocasionando perturbação e um salutar receio. A obsessão pode também exercer-se por meio do sonho até ao ponto de causar perturbação mental ao despertar. Terá como autores Espíritos malfazejos, a quem o nosso procedimento no passado e os danos que lhes causamos deram domínio sobre nós. 

Insistimos também na propriedade misteriosa que tem o sono de nos fazer senhores, em certos casos, de camadas mais extensas da memória. 

A memória normal é precária e restrita, não vai além do círculo estreito da vida presente, do conjunto dos factos, cujo conhecimento é indispensável à causa do papel que se tem de desempenhar na Terra e do fim que se deve alcançar. A memória profunda abrange toda a história do ser desde a sua origem, os seus estádios sucessivos, os seus modos de existência, planetários ou celestes. Um passado inteiro, feito de recordações e sensações, esquecido, ignorado no estado de vigília, está gravado em nós. Esse passado só desperta quando o Espírito se exterioriza durante o sono natural ou provocado. Uma regra conhecida de todos os experimentadores é que, nos diferentes estados do sono, à medida que se vai ficando a maior distância do estado de vigília e da memória normal, tanto mais a hipnose é profunda, tanto mais se acentua a expansão, a dilatação da memória. Myers confirma o facto nos seguintes termos: (ix) 

“A memória mais distanciada da vida de vigília é a que mais vasto alcance tem, é a que mais profundo poder exerce sobre as impressões acumuladas no organismo. Por mais inexplicável que esse fenómeno se tenha apresentado aos observadores, que com ele se depararam sem possuírem a decifração do enigma, é certo que as observações independentes de centenas de médicos e de hipnotizadores (i) atestam a sua realidade. O exemplo mais comum é fornecido pelo sono hipnótico ordinário. O grau de inteligência que se manifesta no sono varia segundo os sujets e as épocas; mas todas as vezes que esse grau é suficiente para autorizar um juízo, achamos que existe durante o sono hipnótico a memória considerável, que não é necessariamente uma memória completa ou razoável do estado de vigília; ao passo que na maior parte dos sujets acordados, salvo o caso de uma injunção especial dirigida ao “eu” hipnótico, nenhuma lembrança existe que se relacione com o estado de sono. 

O sono ordinário pode ser considerado como ocupando uma posição que está entre a vida acordada e o sono hipnótico profundo; e parece provável que a memória pertencente ao sono ordinário se liga, por um lado, à que pertence à vida de vigília e, pelo outro, à que existe no sono hipnótico. Realmente assim é, estando os fragmentos da memória do sono ordinário intercalados nas duas cadeias.” 

Myers, no apoio às suas palavras, cita (x) vários casos em que factos retrospectivos esquecidos e, outros dos quais o que dorme nunca teve conhecimento, se revelam no sonho. 

As experiências a que se refere Myers (vê-las-emos quando tratarmos da questão das reencarnações (i)) que foram levadas muito mais longe do que ele previa e, as consequências que daí provêm são imensas. Não só tem sido possível, pela sugestão hipnótica, reconstituir as menores recordações da vida actual, desaparecidas da memória normal dos sujets, como também reatar o encadeamento das suas vidas passadas, já interrompido. 

Ao mesmo tempo em que uma memória mais vasta e mais rica, vemos aparecer no sono faculdades que são muito superiores a todas as que desfrutamos no estado de vigília. Problemas estudados em vão, abandonados como insolúveis, são resolvidos no sonho ou no sonambulismo; obras geniais, operações estéticas da ordem mais elevada, poemas, sinfonias e hinos fúnebres são concebidos e executados. Há em tudo isso uma obra exclusiva do “eu” superior ou a colaboração de entidades espirituais que vêm inspirar os nossos trabalhos? É provável que esses dois factores intervenham nos fenómenos dessa ordem. 

Myers cita o caso de Agassiz (i) descobrindo, enquanto dormia, o arranjo esquelético de ossadas dispersas que ele tentara, por várias vezes e sem resultado, acertar durante a vigília. 

Lembraremos os casos de Voltaire (i), La Fontaine (i), Coleridge (i), S.Bach (i), Tartini (i), etc., executando obras importantes em condições análogas. (xi) 

Finalmente, importa mencionar uma forma de sonhos cuja explicação escapou até agora a Ciência. São os sonhos premonitórios, complexo de imagens e visões que se referem a acontecimentos futuros e cuja exactidão é ulteriormente verificada. Parecem indicar que a alma tem o poder de penetrar o futuro ou que este lhe é revelado por inteligências superiores. 

Assinalemos o sonho da Duquesa de Hamilton, que viu com antecipação de quinze dias a morte do Conde de L... com particularidades de natureza íntima que acompanharam esse acontecimento. (xii) 

Um facto da mesma natureza foi publicado pelo Progressive Thinker de Chicago, a 1 de novembro de 1913. Um magistrado de Hauser, M. Reed, morreu imediatamente, em consequência de uma guinada do automóvel em que viajava. O seu filho, de 10 anos de idade, tinha tido, por duas vezes seguidas, a visão dessa catástrofe em todos os seus pormenores. Apesar dos avisos e das súplicas de sua mulher, M. Reed achou que não devia renunciar ao projectado passeio, em que veio a encontrar a morte, nas circunstâncias idênticas às percebidas no sonho da criança. 

M. Henri de Parville, no seu folhetim científico do Journal des Débats (maio de 1904) refere um, caso afiançado por testemunhos dignos de fé: 

“Uma senhora, cujo marido desapareceu sem deixar vestígios e que ela não pôde descobrir apesar de todas as pesquisas a que procedeu, teve um sonho. – Um cãozinho, que por muito tempo havia vivido na sua companhia, mas que o marido levara, aparece-lhe, dá latidos de alegria e cobre-a de carícias. Instala-se-lhe ao pé, não tira os olhos dela; depois, passados uns instantes, levanta-se e começa a arranhar a porta. Está feita a sua visita e precisa ir-se embora. Ela abre-lhe a porta e, no sonho, segue o animal, que se afasta, correndo; corre também atrás dele e, passado algum tempo, o vê entrar numa casa, cujo andar térreo é ocupado por um café. A rua, a casa e o bairro gravam-se-lhe na memória, que conserva a recordação de tudo isso depois de acordada. Preocupada com esse sonho, conta-o a três pessoas da vizinhança, que depois deram testemunho da autenticidade dos factos. – Decide-se, finalmente, a seguir a pista do cão e encontra o marido na rua e na casa que vira em sonho.” 

Os Annales des Sciences Psychiques, de julho de 1905, citava dois sonhos premonitórios acompanhados de circunstâncias que lhe dão carácter muito comovente. 

Encontramos na Revue de Psychologie de la Suisse Romande, 1905, pág. 379, o caso de um mancebo que se via muitas vezes a si mesmo numa alucinação autoscópica, precipitado do cimo de um rochedo e estendido, ensanguentado e esmagado, no fundo de um barranco. Essa premonição fatal realizou-se, ponto por ponto, a 10 de julho de 1904, no monte du Salève, perto de Genebra. 

Na proporção que nos vamos elevando na ordem dos fenómenos psíquicos, se vão eles apresentando com maior clareza, com maior rigor e trazem-nos provas mais decisivas da independência e da sobrevivência do Espírito. 

As percepções da alma no sono são de duas espécies. Verificamos primeiramente a visão à distância, a clarividência, a lucidez; vem depois um conjunto de fenómenos designados pelos nomes de telepatia e telestesia (sensações e simpatias à distância). Compreende a recepção e transmissão dos pensamentos, das sensações, dos impulsos motrizes. Com estes factos se relacionam os casos de desdobramentos e aparições designados pelos nomes de fantasmas dos vivos. A psicologia oficial teve de verificar estes casos em grande número, sem os explicar. (xiii) Todos estes factos se ligam entre si e formam uma cadeia contínua. Em princípio, constituem, no fundo, um só e o mesmo fenómeno, variável na forma e intensidade, isto é, o desprendimento gradual da alma. Vamos seguir esse desprendimento nas suas diversas fases, desde o despertar dos sentidos psíquicos e das suas manifestações em todos os graus até à projecção, à distância, de todo o Espírito, alma e corpo fluídico. 

Examinemos primeiramente os casos em que a visão psíquica se exerce com agudeza notável. Citamos alguns nas nossas obras precedentes. Aqui apresentamos um, mais recente, publicado por toda a imprensa londrina. 

O desaparecimento da Srta. Holland, processo criminal que apaixonou a Inglaterra, foi explicado por um sonho. A polícia a procurava inutilmente. O acusado, Samuel Douglas, que estava para ser solto, dizia que ela havia partido para destino desconhecido. Os jornais de Londres publicaram desenhos que representavam a casa em que morava a Srta. Holland e o jardim da mesma casa. Uma criada viu a gravura e exclamou: “Aí está o meu sonho!” e, indicou um lugar, ao pé de uma árvore, dizendo: “Está ali um cadáver!” Soube-o a polícia e, na presença dos agentes, ela confirmou as suas declarações. Explicou que vira em sonho esse jardim e, no solo, no lugar indicado, um corpo enterrado. A polícia mandou escavar o terreno nesse lugar e nele foi encontrado o cadáver da Srta. Holland. Ficou provado que a criada nunca conhecera essa pessoa nem pusera os pés nesse jardim. 

C. Flammarion, na sua obra O Desconhecido e os Problemas Psíquicos, menciona uma série completa de visões directas, à distância, durante o sono, resultante de um inquérito feito na França sobre os fenómenos dessa ordem. 

Vamos referir um caso mais complicado. Os Annales des Sciences Psychiques, de Paris, setembro de 1905 (pág. 551), contêm a relação circunstanciada e autenticada pelas autoridades legais de Castel di Sangro (Itália), de um sonho macabro, colectivo e verídico: 

“O guarda rural do Barão Raphaël Corrado viu em sonho, na noite de 3 de março último, o seu pai, falecido havia dez anos. Censurando-o, a ele, aos irmãos e às irmãs, terem-no esquecido e, coisa mais grave, deixarem os seus pobres ossos desenterrados pelos coveiros, abandonados sobre a neve, por trás da torre do cemitério, à mercê dos lobos. Uma irmã do guarda sonhou exactamente a mesma coisa, e um irmão, muito impressionado, pegou numa espingarda e, não obstante a tempestade de neve que atormentava a região, se dirigiu para o cemitério, situado num monte que dominava a cidade. Aí, por trás da torre, entre as silvas e por cima da neve, em que havia sinais de patas de lobo, viu ossos humanos.” 

Os Annales dão depois a narrativa circunstanciada do inquérito e das pesquisas feitas pelo juiz de paz. Estabelecem que os ossos eram, na realidade, os do pai do guarda, que os coveiros, terminado o prazo legal, haviam exumado. Iam eles transportá-los para o ossário, à noitinha, quando o frio e a neve os obrigaram a deixar o serviço para o dia seguinte. Os documentos relativos a esse caso, que foi objecto de um processo, estão assinados pelo tabelião, pelo juiz de paz e por um magistrado da localidade. Foram publicadas pelo Eco del Sangro, de 15 de março de 1905. 

O Prof. Newbold, da Universidade da Pensilvânia, relata nos Proceedings of S. P. R., XII, pág. 11, vários exemplos de sonhos, que indicam uma grande actividade da alma durante o sono e dão ensinamentos que vêm do mundo invisível. Entre outros, citaremos o do Dr. Hilprecht, professor de língua assíria na mesma Universidade, que num sonho teve a revelação de uma inscrição antiga, que até então não havia descoberto. Num sonho mais complexo, em que intervém um sacerdote dos antigos templos de Nippur, dele recebeu a explicação de um enigma de difícil decifração. Foram reconhecidas como exactas todas as particularidades desse sonho. As indicações do sacerdote versavam sobre pontos de Arqueologia completamente desconhecidos dos seres que vivem na Terra. 

Convém notar que em todos estes factos o corpo do percipiente está em repouso e os seus órgãos físicos estão adormecidos; mas, nele o ser psíquico continua em vigília, em actividade; vê, ouve e comunica, sem o auxílio da palavra, com outros seres semelhantes, isto é, com outras almas. 

Este fenómeno tem carácter geral e dá-se com cada um de nós. Na transição da vigília para o sono, exactamente no momento em que os nossos meios ordinários de comunicação com o mundo exterior estão suspensos, se abrem em nós novas saídas para a Natureza e por elas se escapa uma irradiação mais intensa da nossa visão. Já nisso vemos revelar-se uma nova forma de vida, a vida psíquica, que vai amplificar-se nos outros fenómenos dos quais nos vamos ocupar, provando que existem para o ser humano modos de percepção e de manifestação muito diferentes dos de sentidos materiais. 

Depois dos fenómenos de visão no sono natural, vamos apresentar um caso de clarividência no sono provocado. 

O Dr. Maxwell (i), advogado geral no Supremo Tribunal de Bordéus, provoca na Sra. Agullana, sujet muito sensível, o sono magnético. Ela desprende-se, exterioriza-se, afasta-se em espírito da sua morada. O Dr. Maxwell manda-lhe observar, a certa distância, o que está a fazer um seu amigo M. B... Eram 10:20 da noite. Damos a palavra ao experimentador: (xiv) 

“A médium, com grande surpresa nossa, nos disse que estava vendo M. B..., meio despido, a passear descalço sobre a pedra. Pareceu-me que isso não tinha sentido algum. No dia seguinte ofereceu-se-me o ensejo de ver o meu amigo. Mostrou-se muito admirado com o que lhe contei e disse-me textualmente: “Ontem, à noite, não me senti bem. Um amigo meu, M. S..., que mora comigo, aconselhou-me que experimentasse o sistema Kneip e instou tanto que, para satisfazê-lo, fiz pela primeira vez, ontem, à noite, a experiência de passear descalço na pedra fria. Estava efectivamente meio despido quando a fiz. Eram 10 horas e 20 minutos e passeei durante algum tempo nos degraus da escada, que é de pedra.” 

Os casos de clarividência no estado de sonambulismo são numerosos. Vêm relatados em todas as obras e revistas que se ocupam especialmente desses assuntos. 

Médecine Française, de 16 de abril de 1906, refere um facto de clarividência relativo às minas de Courrières. A Sra. Berthe, a vidente consultada, descreveu com exactidão um desabamento na mina e as torturas impostas aos sobreviventes, cuja morte ou libertação ela anunciou. 

Acrescentemos dois exemplos recentes: 

“O Sr. Louis Cadiou, director da Usina de la Grand-Palud, perto de Landerneau (Finistère), tendo desaparecido nos fins de dezembro de 1913, não se lhe viam sinais, apesar das buscas minuciosas. Das sondagens efectuadas na ribeira do rio Elorn nenhum resultado adveio. Uma vidente, moradora em Nancy, a Sra. Camille Hoffmann, tendo sido consultada, disse, em estado de sono magnético, que o cadáver seria encontrado na orla de um bosque vizinho à usina, oculto sob ligeira camada de terra. 

Por essas indicações, o irmão da vítima descobriu, depois, o corpo numa situação idêntica à que a vidente tinha descrito. 

Todos os jornais, entre outros o Le Matin, de 5 de fevereiro de 1914, relatam pormenorizadamente o caso Cadiou, que toda a França acompanhou com apaixonado interesse. 

Alguns dias depois, produziu-se um fenómeno análogo. Havendo-se afogado no Saóne, perto de Màcon, um jovem chamado Charles Chapeland, um seu irmão recorreu à Sra. Camille Hoffmann para encontrar o cadáver. Ela assegurou que ele seria levado pelas águas, 60 dias depois do acidente, para perto do dique de Cormoranche, o que se realizou exactamente.” (xv) 

/… 
(ii) A visão ocular não é mais do que a manifestação externa da faculdade visual, que tem a sua expressão mais ampla na visão interna. A visão interior exterioriza-se e traduz-se pela acção dos sentidos, tanto na vida física como na vida psíquica. No primeiro caso, o órgão terminal pertence ao corpo material; no segundo caso aos órgãos do corpo fluídico. 
A visão no sonho é acompanhada de uma luz especial, constante, diferente da luz do dia. 
(iii) O espírito exteriorizado pode tirar do organismo mais força vital do que o homem normal ou encarnado pode obter. Experiências demonstraram que o espírito assim desprendido, pode, através do organismo, exercer maior pressão num dinamómetro do que o espírito encarnado. 
(iv) F. Myers (i) - La Personnalité Humaine, pág. 204. 
(v) Idem, pág. 187. 
(vi) Em resumo, os frutos que a sugestão hipnótica pode e deve proporcionar e em vista dos quais se deve aplicar, são estes: concentração do pensamento e da vontade; aumento de energia e vitalidade; atenção fixa em coisas essencialmente úteis; alargamento do campo da memória; manifestação de novos sentidos por meio de impulsões internas ou externas. 
(vii) Segundo os antigos, existem duas espécies de sonhos: o sonho propriamente dito, em grego, “onar”, é de origem física, e o sonho “repar”, de origem psíquica. Encontra-se esta distinção em Homero (i), que representa a tradição popular, assim como em Hipócrates (i), que é representante da tradição científica. Muitos ocultistas modernos adoptaram definições análogas. Em tese geral, segundo eles dizem, o sonho propriamente dito seria um sonho produzido mecanicamente pelo organismo e, o sonho psíquico um produto da clarividência adivinhadora; ilusório um, verídico o outro. Porém, às vezes, é muito difícil estabelecer uma limitação nítida e distinta entre estas duas classes de fenómenos. 
O sonho vulgar parece devido à vibração cerebral automática, que continua a produzir-se no sono, quando a alma está ausente. Esses sonhos são muitas vezes absurdos; mas este mesmo absurdo é uma prova de que a alma está fora do corpo físico e deixou de lhe regular as funções. Com menos facilidade nos lembramos do sonho psíquico, porque não impressiona o cérebro físico, mas somente o corpo psíquico, veículo da alma, que está exteriorizada no sono. 
“Os sentidos, diz o Dr. Pascal (Mémoire présenté au Congrès de Psychologie de Paris, em 1900), depois da actividade do dia, já não produzem sensações tão vivas e, como é a energia dessas sensações que tem a consciência “concentrada” no cérebro, esta consciência, quando os sentidos adormecem, escapa-se para fora do corpo físico e fixa-se no corpo psíquico.” 
O sonho lúcido representa o conjunto das impressões recolhidas pela alma no estado de liberdade e transmitidas ao cérebro, quer no decurso das suas migrações, quer no momento do despertar. Poder-se-ia distingui-lo do sonho vulgar ou automático pelo facto de não causar nenhuma fadiga, contrariamente ao que sucede com a actividade cerebral da vigília. 
(viii) F. Myers - La Personnalité Humaine, pág. 117. 
(ix) F. Myers - La Personnalité Humaine, págs. 121 e 122. 
(x) F. Myers - La Personnalité Humaine, págs. 123 e 124. 
(xi) Ver No Invisível, cap. XII. 
(xii) Proceedings, S.P.R., XI, pág. 505. 
(xiii) Ver Proceedings da Sociedade de Pesquisas Psíquicas de Londres. 
(xiv) J. Maxwell (i) - Les Phénomènes Psychiques, pág. 173, F. Alcan, Paris, 1903. 
(xv) Ver Le Matin, de 23 de fevereiro de 1914. 


Léon Denis, O Problema do Ser, do Destino e da Dor, Primeira Parte O Problema do Ser, V – A alma e os diferentes estados do sono, 6º fragmento desta obra. 
(imagem de contextualização: Sin título (detalhe), de uma pintura atribuída a Josefina Robirosa)

sábado, 13 de maio de 2023

O Homem e a Sociedade ~


Capítulo VI 

A Realidade Viva do Pensamento Espírita 

a) A Necessidade Ideológica do Estudo da Filosofia 

 É indiscutível que, para o estudo do novo espiritualismo, se torna necessário conhecer os princípios essenciais da filosofia. Mas porque é que é necessário este conhecimento? Porque o kardecismo está estreitamente ligado à filosofia espiritualista, sem a qual não poderíamos compreender exactamente os valores e o alcance da teoria e a prática do espiritismo. (1) 

 Torna-se indispensável o conhecimento filosófico para a refutação com êxito das falsas imputações feitas ao espiritismo, pelas correntes eclesiásticas e materialistas. Mas o que é a teoria filosófica? Segundo o critério geral, é aquela que abrange a própria essência do Conhecimento; sem uma teoria filosófica amplamente desenvolvida na mente e na consciência, será de todo impossível chegar-se a compreender o sentido real da concepção kardecista. 

 E o que é a prática filosófica? É o acto volitivo de converter a teoria em factos, mas factos reais e positivos. Sem a prática filosófica, não haveria uma filosofia objectiva do espiritualismo espírita, nem a acção social e espiritual do kardecismo. 

 Na filosofia, é indispensável conjugar a teoria com a prática. É necessário que o ideal se aposse do real. De contrário, haveria desvinculação entre o espírito e a forma, isto é, entre a essência e a existência. Mas a teoria espírita é exequível? Sim, a teoria espírita é exequível, porque é uma realidade espiritual, cuja finalidade é ordenar e transformar a ordem imperfeita da existência, isto é, da sociedade e de toda a humanidade. A prática do espiritualismo, através do kardecismo, é a melhor demonstração da objectividade que se consegue alcançar, com referência à espiritualidade do homem e da natureza. Desta maneira, fica desmentida a negação assacada contra o idealismo pelo materialismo, porém, sempre e quando o idealismo se apoiar no espiritualismo espírita. É por isso que todo o homem activo deverá conhecer os princípios fundamentais da filosofia, único meio de passar do espiritualismo teórico ao kardecismo prático. (2) 

b) Em Que se Baseia a Filosofia? 

 A filosofia baseia-se no conhecimento da essência que informa as coisas, a individualidade e a personalidade do homem. É um método para reflexionarmos sobre a própria existência e a existência dos demais; para observarmos de que maneira essa existência está vinculada ao semelhante e ao dessemelhante, fundando-se especialmente neste fio essencial que unifica a todo o existente. É por meio desta noção ideológica que a filosofia espiritualista se fortifica, mediante o kardecismo, passando a ser uma filosofia prática da realidade. A teoria filosófica se transforma em acção e prática da existência espiritual, única forma de evidenciar a convicção ideológica que emana da realidade espírita. A filosofia torna-se prática, além disso, ao demonstrar a essência real do Ser encarnado e do seu espírito imortal, o que ainda se reafirma pelos fenómenos da mediunidade. 

c) O método Kardecista Como Fundamento do Espiritualismo Positivo 

 O kardecismo constitui, no novo desenvolvimento do espírito filosófico, o método racional pelo qual se poderá estabelecer, — como já se vem fazendo, — a realidade do espiritualismo espírita e positivo. O antigo espiritualismo está viciado, como se sabe, por crenças e supostos metafísicos que não se conformam com o pensamento científico dos novos tempos. O seu conteúdo é uma mixórdia de ideias sustentadas no passado, que não se apresentam harmónicas nem uniformes. A mentalidade moderna busca uma doutrina baseada na verdade, mas concorde e objectiva em relação ao mundo. O espiritualismo antigo foi apenas um desejo de conhecer o passado, mas nunca poderá aspirar a apresentar-se como uma real filosofia espiritualista, já que a sua parte essencial está recoberta por uma carapaça impenetrável. 

 O espiritualismo positivo nasce, entretanto, com o método kardecista e, se expressa vivamente através de uma filosofia que prepara o espírito, fazendo-o penetrar a fundo nos problemas da existência. Isso se deve ao facto de ser o espiritualismo espírita a consequência natural do fenómeno metapsíquico, cuja realidade fundamentou o conhecimento filosófico da Terceira Revelação. Daí a conclusão de que o verdadeiro espiritualismo deve estar apoiado no método kardecista, pois todo o espiritualismo proveniente de tradições e lendas, mescladas caoticamente, não chegará nunca ao grau de veracidade necessária e, não passará nunca de um pensamento espiritual híbrido e desvitalizado. 

 No antigo espiritualismo predominou sempre, por mais adiantado que se apresentasse, o método eclesiástico e ritualístico, pela sua absoluta adesão ao passado. Ao contrário, o espiritualismo espírita é a resultante de uma evolução mental e espiritual do homem. Por isso é que o método kardecista nos leva do espiritualismo ao espiritismo, revelando-nos que este último é a concepção espiritual mais adequada para penetrarmos no conhecimento do Espírito e, como dizia o filósofo e biólogo alemão Hans Driesch, no mundo dos espíritos. O antigo espiritualismo, por não avançar para a concepção espírita, mantém-se na sua ambiguidade filosófica; admite o insustentável, por medo ao espiritismo; mas tarde ou cedo o realismo metapsíquico o fará aproximar-se da concepção kardecista, para se transformar em espiritualismo positivo. 

d) A Dialéctica Palingenésica do Kardecismo 

 O método kardecista baseia-se na dialéctica palingenésica do progresso e da evolução, enquanto o antigo espiritualismo se funda numa concepção fatalista, no que respeita à lei de causalidade ou de causa e efeito. A dialéctica de Hegel é o grande instrumento com que se pode conhecer o fenómeno palingenésico, a que está sujeito o Ser na sua ascendente evolução. Além disso, é por meio da dialéctica que se poderá transformar a ideia da reencarnação, que nos vem do Oriente, em renascimento ou palingenésia dinâmica, para a civilização do Ocidente. Sem o método dialéctico e kardecista, a reencarnação continuará sendo um exotismo oriental, sem ligação nem entrosamento com o processo histórico. 

 Quem velou sempre, com o seu conceito quietista, a reencarnação, foi esse antigo espiritualismo, inspirado, por assim dizer, na ideologia eclesiástica a que já nos temos referido. O kardecismo, ao contrário, apresenta-se como uma consequência das três etapas que presidem à revelação espiritual: a mosaica, a crística e a mediúnica. Como se sabe, a Terceira Revelação é o produto desse espírito invisível que passou através da história, até se sintetizar no método kardecista, que está a elaborar a nova consciência religiosa da humanidade por meio do espiritualismo espírita e cristão. 

 O professor Asmara, destacado filósofo espanhol, dizia que o espiritismo dialéctico havia nascido no Congresso Espírita de Barcelona; mas os pregadores do espiritismo, posteriores a Denis e Delanne, esqueceram-se desse aspecto original da filosofia espírita, que nada mais era do que a reafirmação do kardecismo. Outro que também realizou uma ampla interpretação dialéctica do espiritismo foi o nosso compatriota Manuel S. Porteiro, com o seu livro Espiritismo Dialéctico(3) no qual se observa como a filosofia espírita determinou a aparição de um espiritualismo positivo, em relação com os fenómenos históricos. 

 Na ideologia dialéctica do kardecismo o processo palingenésico do Ser revela uma evolução incessante, que nos coloca em novos ambientes espirituais, determinando ainda uma nova visão religiosa para a consciência humana. Com efeito, se o processo dialéctico da história se interpretasse na sua exacta realidade, seria preciso aplicar-lhe o sentido palingenésico do espírito, mas recorrendo ao kardecismo, que nos fará ver a intervenção do mundo espiritual no referido processo. 

e) Oposição da Ideologia Dogmática ao Kardecismo 

 A ideologia dogmática coloca-se decididamente contrária ao kardecismo e ao espiritualismo espírita, do que se deduz que essa ideologia está em crise e, que já não resiste ao transformismo espiritual que o método kardecista realiza no social e no espiritual, juntamente com o fenómeno mediúnico, sobre o qual se baseia a realidade espírita. 

 Se o espiritualismo espírita fosse um erro, não haveria motivos para temê-lo nem para sair-lhe ao encontro. Entretanto, a ideologia dogmática sabe bem que o kardecismo é uma realidade positiva e que avança conduzida pelo Espírito de Verdade. Por isso o enfrenta e combate, tratando de preservar os seus domínios espirituais. Mas o espiritismo proclamou esta sentença histórica: São chegados os tempos, e isso é o que está motivando um novo ideal nas consciências, ao calor de um novo espírito religioso. Já não haverá uma só ideologia religiosa; futuramente, o ideal deísta será um imperativo da consciência, visto que o aparecimento desse novo espírito religioso não dependerá da exterioridade do indivíduo, mas do fundo do seu inconsciente. Isto quer dizer que o progresso religioso provirá da zona interna do Ser, estando assim no próprio inconsciente do homem o maior adversário da ideologia dogmática. 

 Oprimir o mundo interno do homem, por meio de ideias já superadas, seria provocar uma rebelião anímica e espiritual, capaz de fazer desmoronar violentamente as antigas formas religiosas. Não se deve esquecer que a opressão do inconsciente significaria, além disso, uma oposição obstinada ao que tem que vir: o novo mundo religioso, que é um mundo do espírito, o que vale dizer que surgirá, apesar dos obstáculos, das profundas raízes do Eu. 

 Do seu mundo inconsciente dependerá o verdadeiro sentimento religioso do homem. Nesta realidade psíquica do Eu é que jazem os germes da nova consciência religiosa, elaborada, como sabemos, pelo processo palingenésico a que ele está sujeito. Isto nos está a indicar que o Ser espiritual não é a consequência do corpo físico: o Eu é a divina essência que avança através das idades, levando consigo todo o saber adquirido. Resulta, assim, num resumo das múltiplas existências vividas pelo espírito. Daí que a Divina Sabedoria surgirá ao desenvolvimento da consciência, sendo o obstáculo principal do dogma o inconsciente do indivíduo, de cujas profundezas surgirá a religião-Sabedoria, que fará vibrar unissonamente com o Universo o corpo psíquico da humanidade. 

 No mistério interno do Eu radica-se a chave das novas ideias religiosas que vão aparecendo. A psicologia do Ser agora se reestuda através de introspecções e explorações íntimas. Nestes novos tempos, o Espírito se está a libertar das influências dogmáticas, para se sentir na plenitude de si mesmo. É por essa evolução que o Eu se vai afirmando como independente e individual, livrando-se de falsos instrutores para entrar nas profundas regiões da sua natureza imortal e conseguir, por ele mesmo, a luz e a sabedoria de que tanto necessita. (4) 

f) O Que é a Filosofia Espiritualista? 

 A filosofia espiritualista do kardecismo é a prova fenomenológica da realidade espiritual do espiritismo. Não nos esqueçamos de que o espiritismo é o clímax da filosofia espiritualista e, que se apoia positivamente no método kardecista. Sem o espiritismo, o espiritualismo resulta numa utopia filosófica; mas, com o espiritismo, os seus princípios se nutrem da realidade espiritual. De maneira que todo o espiritualismo filosófico, que aspire objectivar a sua ideologia, deverá apoiar-se no espiritismo e no seu método kardecista. 

 A verdadeira filosofia espiritualista é uma consequência iniludível do fenómeno espírita e metapsíquico, constituindo uma interpretação normal e supranormal do homem e do Universo, se é que não abandonamos a lógica irrefutável do kardecismo. 

g) As Relações Entre o Espiritualismo e o Kardecismo 

 A realidade do espiritualismo deverá basear-se na objectividade filosófica; sem esta objectividade o espiritualismo será uma metafísica irreal, com vida temporária. Se é certo que se relaciona subjectivamente com o homem, sem objectividade não penetrará no âmbito real do Ser e por essa razão terá de assimilar o kardecismo, um dos melhores métodos para reconhecer a realidade existente nas diversas utopias espirituais. Repetimos que o espiritualismo só se afirmará quando se transformar em espiritismo e se afastar das nebulosidades metafísicas. A filosofia do kardecismo é um método lógico para captar a realidade espiritual do mundo. Disto se deduz que o Espírito imortal está a demonstrar pelos mesmos espíritos comunicantes, que têm expressado o seguinte entimema: Existo: logo, o nada não existe. (5) Por conseguinte, qualquer espiritualismo dogmático, que não esteja demonstrado por esse realismo mediúnico-comunicante, está viciado nas suas bases e se encontra frente à possibilidade de ser anulado pelas ciências materialistas. Pelo contrário, no espiritualismo espírita existe uma certeza racional, um idealismo lógico e objectivo, cujo testemunho favorável se encontra na comunicação espírita. Por isso, o método kardecista é o resultado de uma experiência metapsíquica do fenómeno mediúnico. 

 O espiritualismo espírita, condicionado pelo kardecismo, é a resultante de uma verdade substancial emanada do próprio processo evolutivo da inteligência. Esta é a razão das suas sólidas bases ideológicas e, porque resiste filosoficamente às contradições da existência. 

h) A Transformação do Fenómeno Mediúnico em Comunicação Espírita 

 A tríade dialéctica constitui o método sobre o qual se baseia a filosofia palingenésica do kardecismo. O fenómeno mediúnico veio confirmar o antigo conceito de Heráclito: “Tudo passa e se transforma”, pois, a matéria, ao ser movida pelo referido fenómeno, revelou o estado vibratório do mundo atómico e a possibilidade da sua fusão nuclear. (6) 

 Esse primeiro efeito do fenómeno mediúnico resultou realmente extraordinário, visto haver determinado a transformação do espiritualismo em espiritismo. Esta transformação dialéctica determinou, por sua vez, uma evolução do sentido espiritual da filosofia. O espiritualismo dogmático possuía apenas um vago sentido do Espírito. Com o fenómeno mediúnico e a acção dos espíritos comunicantes, transformou-se em espiritismo, isto é, produziu o enlace e a relação entre o visível e o invisível. Com o kardecismo, essência pura da filosofia espírita, se revelou a influência do mundo dos espíritos sobre a história e a natureza. 

 O fenómeno mediúnico foi considerado, desde o início, como perigoso pelo espiritualismo dogmático. Não obstante essa apreciação, ao lado do mesmo se fez presente um númeno espiritual que, com a dialéctica kardecista, expressando: Todo o efeito inteligente possui uma causa inteligente, trocou o seu primeiro sentido de fenómeno pelo de comunicação. Foi desta maneira que se teve consciência da mensagem dos espíritos, os quais fundaram o método kardecista do espiritualismo. 

 Com o fim de refutar os erros e contradições do materialismo, o fenómeno mediúnico continua sendo uma necessidade. Mas, nos tempos actuais, é justamente avaliado como uma evolução para a revelação e comunicação dos espíritos superiores. Esta etapa alcançada pela mediunidade corresponde a um grau superior da consciência religiosa e filosófica da humanidade. Por isso é que o espiritualismo espírita é como uma síntese de todo o antigo espiritualismo, depurado e renovado pelo kardecismo. 

 A única esperança do espiritualismo dogmático, de vencer o espiritismo, consistia em mostrá-lo como uma causa do demónio, à base da irrealidade da comunicação dos espíritos. Mas o caso é que esta comunicação ou revelação se acentuou cada vez mais, ao ponto de se tornar impossível contê-la e proscrevê-la. A sua constante e crescente actualização está a mostrar, aos antigos espiritualistas, que o espiritismo não é uma invocação dos mortos pelos homens, como eles o afirmavam até há pouco tempo, mas um chamamento espiritual dos mortos ao homem, para que este se faça consciente da realidade do além-túmulo e da ligação constante que existiu, existe e existirá sempre, entre o visível e o invisível. 

i) Do Espiritualismo Inconsciente ao Espiritualismo Consciente 

 O espiritualismo inconsciente, adequada definição do espiritualismo dogmático, foi superado pelo kardecismo, isto é, pela forma consciente do novo espiritualismo expresso na filosofia espírita. Gustave Geley confirmou cientificamente o kardecismo, este notável método que permitiu a transformação do espiritualismo em espiritismo. A partir desse momento, a consciência espiritual do homem se fez consciente de sua ideologia espiritualista, que se afastou inteiramente das velhas crenças religiosas. Assim se une o Ser com a grandeza do Universo, sentindo-se actor consciente no grande processo da evolução e, reconhecendo que Deus está presente e actua no próprio seio do Cosmos. 

 Pelo espiritualismo consciente, o seu ideal filosófico se ajusta com a amplitude do Universo: o homem encara a Terra como uma estação de paragem, mas sabendo que no espaço existem outras, onde ainda voltará a deter-se, para recolher novos ensinamentos que auxiliem o desenvolvimento da sua natureza divina e, assim prosseguir na sua carreira infinita. 

 Podemos dizer que o espiritualismo consciente é uma consequência do método kardecista, que une o Espírito com a vida Universal e o maravilhoso Plano Divino, sob cuja influência se desenvolve a evolução palingenésica dos seres e das formas. 

/… 
(1) Veja-se o n°1, “Espiritismo e Espiritualismo”, na “Introdução da Doutrina espírita”, em O Livro dos Espíritos. (Nota de J. H. Pires). 
(2) Embora Kardec recusasse a expressão kardecismo, por humildade, Mariotti a emprega, como vemos nesta frase, num sentido de objectivação da teoria espírita. Realmente, a teoria se objectivou através da acção prática de Allan Kardec. (Nota de José Herculano Pires). 
(3) Espiritismo Dialéctico, de Manuel S. Porteiro, Editorial Victor Hugo, Buenos, Aires, 1960, aparecerá também na Colecção Filosófica Edicel. Porteiro e Mariotti participaram do Congresso de Barcelona, em 1934. (Nota de J. H. Pires). Esse livro, traduzido por José Rodrigues, foi lançado pelo Pense em edição digital, em 2001 e pelo CE João Barroso, em formato de livro. (Nota do Pense).
(4) Leia-se o Cap. I de O Evangelho Segundo o Espiritismo. Com os novos tempos, surge a religião em espírito e verdade, livre de exigências materiais e de sectarismo, como Jesus anunciou à mulher samaritana. João, 4:5-24. (Nota de J.H. Pires). 
(5) Allan KardecA Génese, cap. I. 
(6) Vejam-se as pesquisas de Friedrich Zollner, em Provas Científicas da Sobrevivência, Colecção Científica Edicel, 1966. (Nota de J.H. Pires). 


Humberto MariottiO Homem e a Sociedade numa Nova Civilização, Do Materialismo Histórico a uma Dialéctica do Espírito, 1ª PARTE O NÚMENO ESPIRITUAL NOS FENÓMENOS SOCIAIS, Capítulo VI – A REALIDADE VIVA DO PENSAMENTO ESPÍRITA, 11º fragmento desta obra. 
(imagem de contextualização: Alrededores de la ciudad paranóico-crítica: tarde al borde de la historia europea | 1936, Salvador Dali

quinta-feira, 4 de maio de 2023

Deus na Natureza ~


~ a vontade do homem ~ 
(V) 

 Mas nós não temos necessidade de prova alguma exterior para afirmar a nossa liberdade. Ninguém melhor o sabe do que a nossa própria consciência. Ela é, aliás, a única coisa que possuímos completamente nossa e, a boa ou má direcção que lhe damos, em definitivo, só depende de nós. Os nossos hábitos e pendores não são os nossos amos, mas os servos. Mesmo quando com eles transigimos, a consciência adverte-nos de que poderíamos resistir e que, para vencê-los, não careceríamos de fortaleza superior às nossas possibilidades, se fizéssemos finca-pé. É pelo emprego livre da razão que nos fazemos o que somos. Se ela apenas propende para o sensualismo é por que a vontade, forte e demoníaca, subjuga e escraviza a inteligência. Bem dirigida, porém, essa mesma vontade compara-se a uma rainha, tendo por ministros as faculdades intelectuais e presidindo ao maior desenvolvimento compatível para com a natureza humana. 

 Este pretenso ateísmo científico tomou o encargo de rebaixar e destruir todos os caracteres da grandeza humana. Não pode, contudo, impedir a alma de provar o seu valor, de sobrelevar (i) a matéria, construindo-se de si mesma com os elementos do seu meio e do seu clima. 

 Ele, o materialismo, não percebe que se a personalidade humana fosse resultado de influências fatalísticas da Natureza, a criança e o selvagem, sob o governo quase exclusivo dessas forças, seriam mais sensatos, mais íntegros que os sábios, os filósofos, os artistas. Uma tal consequência destrói, por si só, a teoria dos nossos adversários. 

 Moleschott (i) ri-se inconsideradamente do químico espiritualista Liebig (i), a propósito desta assertiva do eminente pensador: “O homem tem umas tantas necessidades que radicam na sua natureza espiritual e não podem ser satisfeitas pelas forças físicas, necessidades que são as diversas condições de suas funções intelectuais.” É claro – responde Moleschott – que estas palavras não têm sentido. Pode a ambição humana imaginar um fim mais orgulhoso que o decorrente de sua própria elevação a necessidades impossíveis de serem providas por forças naturais? 

 Certo, o autor (i) de A Circulação da Vida jamais sentiu essas aspirações superiores à natureza física e às forças que a regem. Nunca contemplou o ideal do bem e do belo, jamais exorbitou da esfera das funções corporais, seja da assimilação e desassimilação orgânicas. Se assim é, nós lastimamo-lo e nos contristamos de saber que há, no mundo pensante, criaturas para as quais o mundo intelectual permanece completamente fechado. 

 Mas, dirijo-me a vós, espíritos pensantes que aqui me ledes, sejais quem fordes, homem ou mulher, criança ou velho, rapariga ou rapaz: Concordais em que todos os anseios d'alma, todos os requisitos do coração, todas as aspirações da mente não tendam a fins estranhos e transcendentes às transformações da matéria? Acreditais que no círculo da sensação e do sensualismo se encerrem todas as tendências da nossa personalidade? Se já amastes na aurora da vida, se já sonhastes os sonhos primaveris, se o céu de vossa juventude já vos deixou entrever, ainda que por um momento, uma estrela verdadeiramente celestial em sua auréola atractiva; dizei-me se é possível aceitar, como expressão de realidade, a palavra de Stendhal (i), quando diz que o amor não é mais que um contacto de duas epidermes? 

 Se tendes estudado as obras da Natureza, o céu cujos mundos incontáveis gravitam harmónicos no âmbito da luz e da vida, a Terra, a Terra em cuja superfície se conjugam e se desdobram de concerto as manifestações da força vital, a atmosfera, cujas leis periódicas regulam o regime geral; as plantas, ornamento e perfume do solo, base do edifício das existências; os seres vivos, cuja estrutura revela, a cada passo, a maravilhosa adaptação das funções aos órgãos; se tendes estudado as lições grandiosas e o mecanismo geral desta Natureza tão rica e tão fecunda, podereis recusar-vos a saudar do uno de vossa alma a Inteligência suprema com tamanho império manifestada sob o véu da matéria? Se, no silêncio eloquente das noites estreladas, a vossa alma se deixou arrebatar num voo olímpico a esses focos de vida desconhecida; se já fostes alguma vez levados a perguntar quais possam ser as formas da vida futura e, se já houverdes pressentido que o idealismo de nossas aspirações não se realizou neste mundo, porventura não estremecestes à ideia do infinito e da eternidade que nos aguardam? Se tendes presenciado as obras sublimes de devotamento e caridade, que espalham o bálsamo da consolação nos espíritos sofredores; que levam os proscritos da Terra a esperar uma justiça imanente; que sustentam o passo vacilante dos feridos e que se consagram de corpo e alma ao alívio das misérias terrenas; – dizei-me: não tendes concluído que o sensualismo e o egoísmo indiferentes não são tudo o que encerra o coração humano? Se sentistes, alguma vez, a magia da música deixando-vos embalar por essas obras-primas, cujos autores ilustres têm pontilhado de encantos a travessia oceânica da vida, dizei-me: – não vos parece que há fases acústicas, harmonias que o ouvido não entendeu e das quais as melodias terrenas não representam mais que um eco amortecido? Se tendes vivido a vida da alma, enfim, essa vida entrecortada de êxtases e angústias, sensível e dominadora ao mesmo tempo; – vida que se conturba com as mágoas do coração e sabe, todavia, calcar a seus pés os prejuízos vulgares e dominar triunfante os nadas mundanos; se tendes caminhado de cabeça erguida, fitando o céu, não compreendestes que a inteligência ultrapassa a matéria, que a alma tem necessidades extra-corpóreas e que a nossa dignidade moral não conhece a poeira das praças públicas, onde os saltimbancos divertem as turbas (i) vadias com jogos de Física recreativa? 

 Se, qual temos visto, a Ciência do mundo físico perde, na hipótese da inexistência de Deus, a sua base e a sua luz, para resvalar na incapacidade absoluta de explicar razoavelmente a construção do Universo, a ciência do mundo intelectual perde, maioritariamente, a sua razão de ser. Esvanecem-se o verdadeiro, o belo, o bem. Em que abismos tenebrosos mergulham, então, os velhos princípios da Filosofia, da Estética, da Moral? 

 A meditação das eternas verdades já não passará de um sonho. 

 O sábio, o pensador e o artista estrebucham na treva e no caos? 

 Em vão se pretenderá que a Arte possa objectivar outros fins que não sejam a representação de formas agradáveis? Escultura, música, pintura, apenas visam deleitar-nos os sentidos? Erro profundo! Qual a beleza, que a nossa alma contempla na estatuária, no desenho, na harmonia? Qual a magia que nos atrai através das luzes e sombras dos ensaios perecíveis? Não será a beleza ideal, a verdade misteriosamente oculta, da qual temos sede, procurando vê-la em tudo? Não será o ideal puro, translúcido, soberano, ímã possante, sedutor irresistível de inteligência? 

 A Humanidade não se elevou acima das outras espécies terrenas senão por sua constante ascensão para o ideal, para a verdade espiritual. A Arte seria um mito, um engodo, um exercício mecânico, um nada, se não radicasse na beleza suprema. Nisto – nisto sobretudo – é que o homem se afirma por predicados estranhos à matéria e confinantes com a esfera do Infinito. Nisto, sobretudo, é que o homem entra em comunhão com os esplendores infinitos e os fixa, para sempre, em louvores imortais... Tenho diante de mim a poeira vil, a matéria inanimada, um fragmento de argila! 

 A minha alma, inspirada, concebeu o tipo visível de uma virtude sobre-humana, a manifestação do heroísmo, do devotamento, do amor, da adoração... Argila! terra colhida nalgum fosso húmido, em ti vou transfundir a inspiração de minha alma... Em ti vai encarnar-se (i) a minha inteligência! Em ti vai manifestar-se e esplender o tipo sublime que o meu espírito contempla! Em ti vão fremir as palpitações do meu pensamento! E enquanto o meu despojo miserando, caído em inominável ignomínia, vai sumir-se e afastar-se no tempo e na História, dentro ainda de quarenta séculos, os olhos que te contemplarem em ti verão o meu pensamento! Milhões de corações terão palpitado e palpitarão ainda, em uníssono, com o meu... E diante de ti as almas se inclinarão para saudar a virtude divina, que te deu uma auréola imperecível! 

/… 


Camille Flammarion, Deus na Natureza, Terceira Parte; (3) A Vontade do Homem (5 de 6), 31º fragmento desta obra. 
(imagem de contextualização: Jungle Tales (Contos da Selva) 1895, pintura de James Jebusa Shannon)