Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

quinta-feira, 4 de maio de 2023

Deus na Natureza ~


~ a vontade do homem ~ 
(V) 

 Mas nós não temos necessidade de prova alguma exterior para afirmar a nossa liberdade. Ninguém melhor o sabe do que a nossa própria consciência. Ela é, aliás, a única coisa que possuímos completamente nossa e, a boa ou má direcção que lhe damos, em definitivo, só depende de nós. Os nossos hábitos e pendores não são os nossos amos, mas os servos. Mesmo quando com eles transigimos, a consciência adverte-nos de que poderíamos resistir e que, para vencê-los, não careceríamos de fortaleza superior às nossas possibilidades, se fizéssemos finca-pé. É pelo emprego livre da razão que nos fazemos o que somos. Se ela apenas propende para o sensualismo é por que a vontade, forte e demoníaca, subjuga e escraviza a inteligência. Bem dirigida, porém, essa mesma vontade compara-se a uma rainha, tendo por ministros as faculdades intelectuais e presidindo ao maior desenvolvimento compatível para com a natureza humana. 

 Este pretenso ateísmo científico tomou o encargo de rebaixar e destruir todos os caracteres da grandeza humana. Não pode, contudo, impedir a alma de provar o seu valor, de sobrelevar (i) a matéria, construindo-se de si mesma com os elementos do seu meio e do seu clima. 

 Ele, o materialismo, não percebe que se a personalidade humana fosse resultado de influências fatalísticas da Natureza, a criança e o selvagem, sob o governo quase exclusivo dessas forças, seriam mais sensatos, mais íntegros que os sábios, os filósofos, os artistas. Uma tal consequência destrói, por si só, a teoria dos nossos adversários. 

 Moleschott (i) ri-se inconsideradamente do químico espiritualista Liebig (i), a propósito desta assertiva do eminente pensador: “O homem tem umas tantas necessidades que radicam na sua natureza espiritual e não podem ser satisfeitas pelas forças físicas, necessidades que são as diversas condições de suas funções intelectuais.” É claro – responde Moleschott – que estas palavras não têm sentido. Pode a ambição humana imaginar um fim mais orgulhoso que o decorrente de sua própria elevação a necessidades impossíveis de serem providas por forças naturais? 

 Certo, o autor (i) de A Circulação da Vida jamais sentiu essas aspirações superiores à natureza física e às forças que a regem. Nunca contemplou o ideal do bem e do belo, jamais exorbitou da esfera das funções corporais, seja da assimilação e desassimilação orgânicas. Se assim é, nós lastimamo-lo e nos contristamos de saber que há, no mundo pensante, criaturas para as quais o mundo intelectual permanece completamente fechado. 

 Mas, dirijo-me a vós, espíritos pensantes que aqui me ledes, sejais quem fordes, homem ou mulher, criança ou velho, rapariga ou rapaz: Concordais em que todos os anseios d'alma, todos os requisitos do coração, todas as aspirações da mente não tendam a fins estranhos e transcendentes às transformações da matéria? Acreditais que no círculo da sensação e do sensualismo se encerrem todas as tendências da nossa personalidade? Se já amastes na aurora da vida, se já sonhastes os sonhos primaveris, se o céu de vossa juventude já vos deixou entrever, ainda que por um momento, uma estrela verdadeiramente celestial em sua auréola atractiva; dizei-me se é possível aceitar, como expressão de realidade, a palavra de Stendhal (i), quando diz que o amor não é mais que um contacto de duas epidermes? 

 Se tendes estudado as obras da Natureza, o céu cujos mundos incontáveis gravitam harmónicos no âmbito da luz e da vida, a Terra, a Terra em cuja superfície se conjugam e se desdobram de concerto as manifestações da força vital, a atmosfera, cujas leis periódicas regulam o regime geral; as plantas, ornamento e perfume do solo, base do edifício das existências; os seres vivos, cuja estrutura revela, a cada passo, a maravilhosa adaptação das funções aos órgãos; se tendes estudado as lições grandiosas e o mecanismo geral desta Natureza tão rica e tão fecunda, podereis recusar-vos a saudar do uno de vossa alma a Inteligência suprema com tamanho império manifestada sob o véu da matéria? Se, no silêncio eloquente das noites estreladas, a vossa alma se deixou arrebatar num voo olímpico a esses focos de vida desconhecida; se já fostes alguma vez levados a perguntar quais possam ser as formas da vida futura e, se já houverdes pressentido que o idealismo de nossas aspirações não se realizou neste mundo, porventura não estremecestes à ideia do infinito e da eternidade que nos aguardam? Se tendes presenciado as obras sublimes de devotamento e caridade, que espalham o bálsamo da consolação nos espíritos sofredores; que levam os proscritos da Terra a esperar uma justiça imanente; que sustentam o passo vacilante dos feridos e que se consagram de corpo e alma ao alívio das misérias terrenas; – dizei-me: não tendes concluído que o sensualismo e o egoísmo indiferentes não são tudo o que encerra o coração humano? Se sentistes, alguma vez, a magia da música deixando-vos embalar por essas obras-primas, cujos autores ilustres têm pontilhado de encantos a travessia oceânica da vida, dizei-me: – não vos parece que há fases acústicas, harmonias que o ouvido não entendeu e das quais as melodias terrenas não representam mais que um eco amortecido? Se tendes vivido a vida da alma, enfim, essa vida entrecortada de êxtases e angústias, sensível e dominadora ao mesmo tempo; – vida que se conturba com as mágoas do coração e sabe, todavia, calcar a seus pés os prejuízos vulgares e dominar triunfante os nadas mundanos; se tendes caminhado de cabeça erguida, fitando o céu, não compreendestes que a inteligência ultrapassa a matéria, que a alma tem necessidades extra-corpóreas e que a nossa dignidade moral não conhece a poeira das praças públicas, onde os saltimbancos divertem as turbas (i) vadias com jogos de Física recreativa? 

 Se, qual temos visto, a Ciência do mundo físico perde, na hipótese da inexistência de Deus, a sua base e a sua luz, para resvalar na incapacidade absoluta de explicar razoavelmente a construção do Universo, a ciência do mundo intelectual perde, maioritariamente, a sua razão de ser. Esvanecem-se o verdadeiro, o belo, o bem. Em que abismos tenebrosos mergulham, então, os velhos princípios da Filosofia, da Estética, da Moral? 

 A meditação das eternas verdades já não passará de um sonho. 

 O sábio, o pensador e o artista estrebucham na treva e no caos? 

 Em vão se pretenderá que a Arte possa objectivar outros fins que não sejam a representação de formas agradáveis? Escultura, música, pintura, apenas visam deleitar-nos os sentidos? Erro profundo! Qual a beleza, que a nossa alma contempla na estatuária, no desenho, na harmonia? Qual a magia que nos atrai através das luzes e sombras dos ensaios perecíveis? Não será a beleza ideal, a verdade misteriosamente oculta, da qual temos sede, procurando vê-la em tudo? Não será o ideal puro, translúcido, soberano, ímã possante, sedutor irresistível de inteligência? 

 A Humanidade não se elevou acima das outras espécies terrenas senão por sua constante ascensão para o ideal, para a verdade espiritual. A Arte seria um mito, um engodo, um exercício mecânico, um nada, se não radicasse na beleza suprema. Nisto – nisto sobretudo – é que o homem se afirma por predicados estranhos à matéria e confinantes com a esfera do Infinito. Nisto, sobretudo, é que o homem entra em comunhão com os esplendores infinitos e os fixa, para sempre, em louvores imortais... Tenho diante de mim a poeira vil, a matéria inanimada, um fragmento de argila! 

 A minha alma, inspirada, concebeu o tipo visível de uma virtude sobre-humana, a manifestação do heroísmo, do devotamento, do amor, da adoração... Argila! terra colhida nalgum fosso húmido, em ti vou transfundir a inspiração de minha alma... Em ti vai encarnar-se (i) a minha inteligência! Em ti vai manifestar-se e esplender o tipo sublime que o meu espírito contempla! Em ti vão fremir as palpitações do meu pensamento! E enquanto o meu despojo miserando, caído em inominável ignomínia, vai sumir-se e afastar-se no tempo e na História, dentro ainda de quarenta séculos, os olhos que te contemplarem em ti verão o meu pensamento! Milhões de corações terão palpitado e palpitarão ainda, em uníssono, com o meu... E diante de ti as almas se inclinarão para saudar a virtude divina, que te deu uma auréola imperecível! 

/… 


Camille Flammarion, Deus na Natureza, Terceira Parte; (3) A Vontade do Homem (5 de 6), 31º fragmento desta obra. 
(imagem de contextualização: Jungle Tales (Contos da Selva) 1895, pintura de James Jebusa Shannon)

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