Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

terça-feira, 23 de junho de 2020

o grande desconhecido ~


~ a trama de acções e reacções na vida humana

Problema intrigante para muita gente é o das acções e reacções dos indivíduos e dos grupos humanos em face da teoria do livre-arbítrio. Há quem não consiga entender essa duplicidade contraditória, perguntando como podemos ser responsáveis por actos que já estavam determinados no nosso destino. Fala-se no Karma, palavra indiana de origem sânscrita, como de um fatalismo absoluto a que ninguém escapa. A palavra Karma não pertence à terminologia espírita, mas infiltrou-se no meio espírita, através das correntes espiritualistas de origem indiana por dois motivos: o seu aspecto misterioso e a vantagem de reduzir ao mínimo a expressão lei de acção e reacção. Não há nada de prejudicial nesta adaptação prática de uma palavra estranha, cujo conceito se adapta perfeitamente à expressão espírita. O prejuízo aparece quando certas pessoas pretendem que a palavra mantenha entre nós o seu significado conceitual de origem, modificando o sentido do conceito doutrinário. Segundo o Espiritismo, a acção e reacção dependem da consciência. A responsabilidade humana decorre das exigências conscienciais e está sempre na razão directa do grau de desenvolvimento consciencial das criaturas. Por outro lado, esse desenvolvimento depende das condições de liberdade e do grau de opção de que as criaturas dispõem. Justamente por isso o problema, que parece simples à primeira vista, torna-se bastante complexo quando o examinamos.

Nas fases inferiores da evolução, em que o princípio inteligente passa por acções e reacções destinadas a desenvolver as suas potencialidades, a acção da lei é natural e automática. Não existe ainda a consciência individual colectiva responsável; nas fases seguintes, até ao plano dos animais superiores e dos antropóides, a consciência está ainda em formação; mas ao iniciar-se a humanização, quando o espírito recebe, segundo a expressão bela de A Génese, de Kardec – quando Deus põe o seu selo na fronte do indivíduo, com a auréola da Razão – ele e o grupo começam a assumir a responsabilidade dos seus actos e pensamentos. Este princípio não se refere apenas a essas fases iniciais, mas estende-se a todo o desenvolvimento humano, como vemos em diversas passagens evangélicas, como na resposta de Jesus aos fariseus: “Até agora disseste não saber e não tinhas pecado, mas agora dizes saber e subsiste o vosso pecado.” E como no caso da mulher adultera, em que ninguém atirou a primeira pedra para a sua lapidação. Dessa maneira, parece-nos fácil a compreensão do problema. Quem faz, sabendo que faz, é responsável pelo que fez. Quem faz por instinto, automatismo, compulsão inconsciente ou condicionamento social não tem responsabilidade pelo que fez ou pelo menos tem a sua responsabilidade atenuada. Por outro lado, as compulsões determinadas pelo passado nem sempre são fatais, podendo ser atenuadas ou mesmo eliminadas pelo comportamento favorável dos responsáveis na vida actual. Dessa maneira, não há contradição, mas sequência e equilíbrio entre o fatalismo das consequências anteriores e a liberdade actual do indivíduo ou grupo. E a própria responsabilidade colectiva não é massiva, distribuindo-se o efeito na medida exacta das responsabilidades individuais de cada um dos seus componentes. Há ainda o problema do fatalismo voluntário, decorrente do pedido de espíritos culpados de passarem pelo que fizeram aos outros. Nesses casos, a consciência pesada do indivíduo ou do grupo só pode aliviar-se com a auto-imolação dos culpados. Com isso desaparece a falsa teoria da Ira de Deus e da vingança divina provinda de épocas de obscurantismo e de concepção extremamente antropomórfica de Deus. A Justiça Divina, segundo a concepção espírita, não é ditada por um tribunal remoto e de tipo humano, mas exclusivamente pela consciência do réu. É ele mesmo quem se condena, no tribunal especial instalado na sua consciência. Por isso, enquanto essa consciência não está suficientemente desenvolvida, a punição tarda, mas quando ela atinge o grau necessário de responsabilidade a punição manifesta-se de maneira rigorosa.

Como pode uma criança inocente, pergunta-se às vezes, ser condenada por Deus a morrer esmagada num acidente? Primeiro temos de lembrar que a criança não é inocente, mas está vestida com a roupagem da inocência, como observou Kardec (i). Depois, é preciso lembrar que o homem responsável pelo acto de brutalidade em que esmagou uma criança no passado, sob o amparo da legislação humana, sente a necessidade de sofrer uma violência correspondente, para livrar a sua consciência do peso que a esmaga e que o impede de continuar a avançar na sua evolução. Os familiares da criança são co-participantes do crime do passado e pagam a sua cota de responsabilidade com o mesmo fim de se libertarem. Aquilo, pois, que parece uma atrocidade divina, não passa de uma imolação em grupo, determinada pelas próprias consciências culpadas. Mas há também imolações voluntárias e sem culpa que as justifique, pedidas por espíritos que desejam socorrer criaturas amadas que se afundam nas ilusões da vida material, necessitando de um choque profundo que as arranque do caminho do erro, onde acumulam consequências dolorosas para si mesmas. São actos sublimes de abnegação e de amor, que elevam o espírito abnegado e abrem novas perspectivas para os que sofreram o que, na nossa ignorância, chamamos desgraça determinada pela impiedade divina. Os responsáveis pelo acidente responderão por sua culpa no tribunal das suas próprias consciências.

Os Espíritos falam em contabilidade divina, em registos e ficheiros especiais do mundo espiritual, para nos darem uma ideia humana da Justiça Suprema, mas essa Justiça não precisa dos nossos recursos inseguros e precários. A mecânica de acções e reacções é processada subjectivamente em cada um de nós e o ficheiro de cada indivíduo está visível nos registos da memória de cada um, inscritas de maneira viva e ardente nos arquivos da consciência subliminar (subconsciente) a que se referia Frederic Myers. Não há organização mais perfeita e infalível do que essa. A misericórdia divina manifesta-se nas intervenções consoladoras e nos socorros dispensados aos sofredores para que possam suportar os seus pesados resgates. Mas por quê toda essa complicada engrenagem, se Deus é omnipotente e omnisciente? Não poderia Ele, no seu absolutismo total, livrar as criaturas desse trânsito penoso pelos caminhos da evolução, fazendo-as logo perfeitas em acto? Essa objecção comum, provinda dos desesperados ou dos materialistas, provêm da ideia falsa do mundo como uma realidade mágica, produzida por Deus no simples acto oral do fiat (i). A complexíssima estrutura da realidade, nas suas múltiplas dimensões cósmicas, devia ser suficiente para nos mostrar quanto ainda estamos longe de compreender Deus. Certamente não seriamos nós, criaturas do seu amor, em fase embrionária de desenvolvimento espiritual que iríamos perceber agora o que Ele sabe desde todos os tempos. Temos de rever os nossos ingénuos conceitos de Deus, gerados pela nossa pretensão e as nossas superstições. Se Deus pudesse fazer tudo mais fácil, com a destreza inconsequente de um malabarista que tira os coelhos da cartola, é evidente que já seriamos há muito tempo anjos, arcanjos e serafins, revoando felizes e inúteis nas regiões celestiais. Indagar como e por que motivo Deus não age como um malabarista é simplesmente revelar a extensão da nossa ignorância. Como podemos conhecer os problemas divinos, se ainda não conhecemos sequer os humanos?

Mas podemos imaginar o seguinte, a partir de certas concepções contemporâneas, como a teoria do físico inglês Dirac sabre o oceano de electrões livres em que o Cosmos estaria mergulhado, a da luz infravermelha de que o Universo teria surgido, segundo os físicos russos, a teoria do Deus-Éter, de Ernesto Bozzano, e, por fim, a que nos parece mais aceitável, a tese de Gustave Geley, ex-presidente do Instituto de Metapsíquica de Paris, sobre o dínamo-psiquismo-inconsciente que impulsiona todas as coisas do inconsciente ao consciente, sendo este o título do seu livro a respeito. Deus poderia ser interpretado, à luz dessa teoria, como a Unidade no Inefável da intuição pitagórica ou o Eterno Existente e Incriado da concepção budista. O dínamo-psiquismo de Geley explicaria, no caso, o estremecimento inexplicável da Unidade que desencadeou a Década, estruturando o Universo. O dínamo-psiquismo-inconsciente de uma realidade estática teria atingido o consciente, num tempo remoto em que a Consciência Única e Suprema surgiria na solidão do Caos, gerando por sua determinação consciente e a sua vontade a estrutura do Cosmos, com todas as leis que o regem. Consciência Única e Suprema, seria a Inteligência Absoluta da concepção espírita, criadora de todas as coisas e de todos os seres. Essa Ideia de Deus supriria as lacunas lógicas do processo da Criação, conservando-lhe todos os atributos. Ao mesmo tempo, a mitologia antropomórfica e absurda do Deus das igrejas desapareceria, sendo substituída por uma hipótese científica de força e matéria unificadas na mão de uma Consciência Cósmica não pessoal. Claro que esta não seria a solução do problema que ninguém pode resolver por conta própria, mas uma tentativa de equação nas bases científicas do nosso conhecimento actual. Resta sempre uma dúvida insolúvel. Se Deus se realizou na evolução comum de todas as coisas e seres, quem estabeleceu essa lei evolutiva e quem criou, antes de Deus o Inefável e o dínamo-psiquismo-inconsciente?

A questão é solipsistatautológica, girando sempre em volta de um ponto único de que não podemos sair. O que prova a nossa total impossibilidade, no nosso estágio evolutivo actual, de conseguir resolvê-la. E o Espiritismo coloca-a nos devidos termos, ao dizer que só chegaremos à sua solução quando avançarmos o suficiente na escala evolutiva. Temos de subir a planos ainda muito distantes de nós para chegarmos a vislumbrar a verdade a respeito. De qualquer maneira, entretanto, temos de colocá-la, para mostrar que o Espiritismo não endossa as absurdas concepções teológicas, nem os mistérios absolutos que regam a percepção dos enigmas metafísicos. Deus espera a nossa maturação espiritual para nos revelar o que agora não podemos entender. Somos filhos e herdeiros de Deus e toda a Verdade nos espera nas supremas dimensões da Realidade Universal, de que conhecemos apenas uma reduzida parcela. Por outro lado, não podemos admitir que, a pretexto da nossa impotência actual, os supostos agraciados com uma sabedoria infusa nos imponham como verdades reveladas as suas conclusões dogmáticas sobre problemas ainda não concluídos.

A posição espírita é a única aceitável actualmente: Deus existe como a Causa Inteligente do efeito inteligente que é o Todo Universal, e por este efeito podemos avaliar a grandeza da Causa. Esta é a conclusão a que podemos chegar e a que Kardec chegou muito antes de podermos dispor dos recursos actuais das Ciências.

A existência de Deus é aceite como a maior e mais poderosa realidade com que nos defrontamos e que não podemos negar sem cairmos na situação ilógica de quem pretende negar a evidência. A colocação do problema por Kardec, baseado nos diálogos com os Espíritos Superiores, prova ao mesmo tempo a grandeza conceptual do Espiritismo, a firme posição científica e filosófica do Codificador, a elevação intelecto-moral dos Espíritos que o assistiram e a capacidade espírita de enfrentar racionalmente todos os problemas do homem e do mundo. Graças a isso, o Espiritismo se apresenta no nosso tempo como aquela síntese superior do Conhecimento Humano a que Léon Denis se referiu em O Génio Céltico e o Mundo Invisível (*).

A trama das acções e reacções na vida humana, que determina a extrema variedade dos destinos individuais e colectivos, já não pode, diante dos princípios comprovados da doutrina, ser considerada como ocorrência de factores ocasionais, aleatórios, que pudessem escapar das leis naturais que regem a totalidade cósmica em todas as suas minúcias, desde as simples amebas até às galáxias do Infinito. A ordem rigorosa dos eventos em todos os planos da realidade, as supostas lacunas que a pesquisa científica preenche, mais hoje, mais amanhã, descobrindo que pertencem a conexões ainda não conhecidas, as particularidades que confirmam a existência de uma estrutura subtil regendo acções e movimentos por toda a parte, evidenciam a presença de uma inteligência vigilante e atenta. A Cibernética e a Biónica demonstraram quanto temos de aprender com a Natureza no tocante aos organismos animais. Seria estranho que nessa maravilhosa estrutura macro e micro refinada, as acções e reacções da vida humana fossem esquecidas à margem. Por outro lado, o livre-arbítrio do homem não é apenas resguardado, mas também protegido e incentivado pelas responsabilidades que sobre ele se acumulam sem cessar. Tudo é importante e significativo no caleidoscópio universal. Cada acção, sentimento, pensamento e anseio das criaturas humanas pesa na balança de todos os destinos. E isso comprova-se diariamente na vida particular e na vida colectiva dos homens.

Não vivemos por viver, mas para existir na transcendência (i).

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(*) "O Espiritismo é o maior e mais solene movimento do pensamento que se produziu desde o aparecimento do Cristianismo. Não somente pelo conjunto dos seus fenómenos, ele nos traz a prova da sobrevivência, mas, sob o ponto de vista filosófico, as suas consequências são mais grandiosas. Com ele, o horizonte se aclara, o objectivo da vida torna-se preciso, a concepção do Universo e das suas leis aumentam, o pessimismo sombrio se esvaece para dar lugar à confiança, à fé em destinos melhores." in Léon Denis O Génio Céltico e o Mundo Invisível


José Herculano Pires, Curso Dinâmico de Espiritismo, XV – A Trama de Acções e Reacções na Vida Humana, 15º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: Somos as aves de fogo por sobre os campos celestes, acrílico de Costa Brites)

quarta-feira, 3 de junho de 2020

agonia das religiões ~


Magia e Misticismo ~

O homem primitivo não via o mundo, mas a magia da Natureza. Não tendo ainda o pensamento desenvolvido, o raciocínio metodizado, não podia sequer conceber o mundo. Tinha mais sensações do que emoções e mais emoções do que ideias. Os seus sentimentos germinavam no plano larvar dos instintos. E os instintos animais dominavam-no, sem dar lugar aos instintos espirituais. Era mais corpo do que alma. Denizard Rivail assinala dois seres na estrutura humana: o ser do corpo e o ser do espiritual. No homem actual esses dois seres equilibram-se e a sua psicologia pode ser medida pela predominância, de um ou do outro, ou pela sua equivalência. As pessoas em que predomina o ser do corpo estão mais próximas do primitivismo. Aqueles em que os dois seres se equivalem apegam-se mais às coisas materiais e têm dificuldade em conceber a realidade do espírito. As pessoas em que predomina o ser espiritual dão mais importância às questões espirituais. As primeiras estão apegadas ao passado humano, as segundas ao pragmatismo do presente e as terceiras tendem para o futuro. Mas entre uma e a outra dessas posições evolutivas, existem numerosas variações que podem ser classificadas em fases intermediárias de múltiplas nuances. A escala espírita de “O Livro dos Espíritos” oferece-nos um quadro psicológico geral dessas talvez inumeráveis variações tipológicas.

A percepção mágica do mundo (restrita ao ambiente tribal ou do clã) levou o homem primitivo às práticas mágicas. O seu pensamento desenvolvia-se na experiência, revelando-lhe progressivamente as relações existentes entre as coisas e os seres. Podemos supô-las assim, como simples dados exemplificativos: vida-alimento, bicho-mato, peixe-água, ave-céu, fruta-árvore, flecha-caça-inimigo, homem-mulher-criança, dia-sol, noite-escuro-lua. Estas relações primárias davam-lhe a possibilidade de agir com eficiência no meio físico. Através delas ele começou a agir instintivamente no plano espiritual e nasceu a magia simpática ou simpatética, a arte incipiente de atingir o inimigo através de reproduções da sua figura em barro ou em madeira e a de evocar as forças benéficas através de símbolos a elas correspondentes. Nascia o feitiço e consequentemente o feiticeiro. E de ambos nasceriam mais tarde os ídolos, os sacramentos, os sacerdotes e as religiões com os seus rituais. Esses processos, rudimentares, arrancavam o homem da selva e do gelo lançando-o na direcção da civilização. Para um longo caminho a percorrer no aprimoramento dessas técnicas primitivas através dos milénios.

Mas os homens não estavam sós, nem abandonados a si mesmos em nenhuma dessas fases. A ideia de Deus pairava obscura sobre o fundo nebuloso de suas experiências filogenéticas e a lei de adoração levava-os a reverenciar o mistério da terra, das águas, do céu estrelado, das montanhas coroadas de nuvens. Do escuro profundo das matas surgiam o bem e o mal, as forças e os seres benéficos e maléficos. Muitos desses seres não tinham a consistência das criaturas de carne e osso. Apareciam e desapareciam como as chamas nocturnas dos fogos-de-artifício. Uns auxiliavam-nos e eram considerados deuses benfazejos. Outros ameaçavam-nos e eram os deuses malfazejos. Os espíritos bons velavam pelas tribos e orientavam os seus chefes. Os Pagés e os xanãs tinham o dom de evocá-los e consultá-los. Como nas cidades cósmicas da Grécia arcaica, de que tratou Durkheim, os homens e os deuses conviviam numa espécie de intermúndio. Essa situação perdurou nas civilizações agrárias, no ciclo das grandes civilizações orientais, no mundo clássico, gerando as religiões mitológicas com os seus oráculos e as suas pitonisas. No Judaísmo e no Cristianismo temos a sua continuidade, que pode ver-se nos textos bíblicos e evangélicos.

Já no Paganismo encontramos as práticas místicas dos chamados Mistérios, com rituais específicos para levar os iniciados à relação directa com o mundo espiritual e especialmente com Deus. No Egipto antigo e nas religiões dos impérios americanos dos astecas, dos maias e dos incas, havia a utilização de sumos vegetais os quais viriam a dar origem às drogas actuais como a mescalina e ao ácido-lisérgico, para a produção do estado de êxtase, que é o fenómeno central destas práticas. Pelo êxtase, provocado ou espontâneo, o místico desligava-se de toda a realidade sensível, do mundo material, e mergulhava no inteligível, no mundo espiritual.

O Misticismo tem as suas origens remotas no êxtase dos pagés, que no meio das selvas procuravam o contacto directo com os espíritos protectores das tribos. O pressuposto do misticismo nas eras civilizadas é a possibilidade humana de superação dos sentidos e da razão para se obter o conhecimento superior nas fontes divinas. Esse pressuposto conduz os homens a uma fuga da realidade. No Espiritismo as práticas místicas são condenadas por dois motivos fundamentais: 1º) porque o homem está no mundo para viver o mundo com o fim de desenvolver as suas potencialidades internas, na experiência da vida de relação; 2º) porque a ligação do homem com Deus se faz através do amor ao próximo, na prática da caridade (que é o amor em acção) e de maneira natural, sem a necessidade de práticas rituais ou do emprego de excitantes de qualquer espécie. As pessoas que consideram o Espiritismo como doutrina mística confundem a fenomologia mediúnica com as práticas do misticismo. Não sabem que a mediunidade – como hoje está confirmado pelas pesquisas parapsicológicas – é simplesmente uma faculdade humana natural que permite a todos o exercício da percepção extra-sensorial. O misticismo nasceu das manifestações naturais dessa faculdade e da falta de condições culturais para o seu estudo racional. A mística experiência de Deus das religiões dogmáticas depende das práticas místicas e de uma concepção anti-racional do mundo e da vida. Por isso Ranzolli propõe a limitação do termo misticismo às filosofias religiosas, substituindo-o no campo filosófico geral por expressões como irracionalismo e intuicionismo ou sentimentalismo

O Cristianismo – que os árabes chamaram religião do livro – utilizou-se, na sua origem, da mediunidade, mas a sua posição face às religiões anteriores foi nitidamente racionalista. Todos os ensinamentos de Jesus, mesmo quando ele se referia a Deus, chamando-o de Pai, são racionais. A sua condenação constante do irracionalismo judeu foi sempre seguida de explicações racionais, através de exemplos em forma de parábolas tiradas da própria vida diária do povo. Ao tratar do dogma judaico da ressurreição ele se referia claramente ao nascer de novo, usando exemplos históricos como a volta de Elias reencarnado em João Baptista. As suas referências às potencialidades divinas do homem eram exemplificadas pelos fenómenos produzidos por ele mesmo e pelos seus seguidores. Nunca falou da sua ressurreição como um privilégio, mas ligando-a à ressurreição de todos. O Apóstolo Paulo se incumbiu de formular a teoria racional da ressurreição, não da carne, mas do espírito, explicando que o corpo espiritual do homem, hoje descoberto pelas ciências como corpo-bioplásmico, é o corpo da ressurreição.

Esse racionalismo foi posteriormente prejudicado pelas influências pagãs e judaicas do misticismo, que atingiriam nas igrejas cristãs um refinamento intelectualista paradoxal, opondo o intelecto a si mesmo. Todo o esforço de Jesus no combate à mitologia foi anulado pelos teólogos, que o transformaram a ele mesmo num novo mito, – fazendo de sua natureza humana uma espécie de simples manifestação pragmática de sua divindade. O Espiritismo retoma à tradição racionalista do Cristianismo primitivo e, da mesma maneira que os antigos cristãos, prova na prática os ensinos teóricos de Jesus através das manifestações espíritas, da prova concreta das materializações e das aparições tangíveis (como a de Jesus para os apóstolos no cenáculo) dos fenómenos de voz-directa (como o da voz que soou no espaço na hora do baptismo) e dos casos pesquisáveis de reencarnação, hoje na pauta da pesquisa científica mundial. Nada disto se refere ao misticismo, a práticas místicas através de processos mágicos, de excitantes específicos e de tentativas anti-naturais de transformar o homem vivo em um morto-vivo que nega o mundo para viver como espírito desencarnado, desligado dos processos necessários da razão. O homem é deus em potência, não em acto, e não pode querer antecipar a sua actualização, fugindo aos compromissos e às experiências da vida terrena. Os seus deveres estão aqui, neste mundo, por enquanto e, as suas possibilidades de evolução, de transcendência, não se encontram na alienação, na fuga, mas na integração consciente das suas tarefas sociais.

O tempo das igrejas chegou ao fim, como chegaram os dos Mistérios na Antiguidade. Elas foram necessárias e tanto serviram como desserviram à Humanidade, revelando a sua estrutura imperfeita como a de todas as obras humanas. Em vão se arrogaram investiduras divinas. A mente humana abre-se hoje para novas dimensões e as igrejas não têm condições para acompanhá-la nesse avanço. A luta sem tréguas que sustentaram e ainda sustentam contra o Espiritismo e em especial contra a mediunidade provou a sua incapacidade para enfrentar os novos tempos. A dinâmica da concepção espírita opõe-se à mecânica ritual das igrejas como a Física moderna se opõe à Física do passado. Na proporção em que as camadas retrógradas da população terrena vão sendo afastadas do planeta, na sucessão inevitável das gerações, cresce o esvaziamento das igrejas e os seminários vão sendo fechados por falta de alunos. Foi o que aconteceu com as religiões mitológicas do mundo greco-romano. Para poderem sobreviver, as igrejas têm de diminuir os seus actos actuais, suprimindo o profissionalismo sacerdotal, as suas dogmáticas absurdas, as liturgias vazias de sentido. Antes que possam pagar um preço demasiado elevado, as forças da evolução as varrerão da face da Terra. Isto não é uma profecia espírita, é uma profecia evangélica de Jesus de Nazaré, no episódio com a mulher samaritana. Que ninguém me acuse de responsável por essa previsão que elas mesmas, as igrejas, por dois mil anos fizeram ler no Evangelho nos seus cultos sem a entenderem. Também não entenderam a questão das muitas moradas da Casa do Pai, nem a do baptismo espiritual, nem a do nascer de novo, nem a condenação das exigências rituais dos fariseus. O que podem esperar ou reclamar agora?

Respeitáveis pensadores religiosos, reconhecidamente cultos, não conseguem ainda libertar-se da magia das selvas, cujos resíduos impregnam de misticismo as religiões em agoniaEsse apego impede-os de socorrer as instituições religiosas no momento crucial. Desesperados, acusam o Espiritismo e os espíritas de incapazes de compreender as subtilezas da fé e exigem provas materiais do que não é material. Chegam mesmo a considerar como profanação a pesquisa espírita dos fenómenos mediúnicos. Ou acusam o Espiritismo de práticas primitivas e confundem-no com as formas do sincretismo-religioso afro-brasileiro. O materialismo – proclamam – leva os espíritas a quererem materializar espíritos. Perdem a perspectiva cultural do nosso tempo e mergulham no passado, acusando-nos de uma posição retrógrada no campo do Espiritualismo.

As nossas ligações com a selva realmente existem e são as mesmas que constatamos nas religiões em agonia, mas há uma diferença fundamental entre a nossa posição e a delas: a reelaboração da experiência. Essa reelaboração não foi feita pelas religiões, que se limitaram a refinar as práticas selvagens e a cobri-las com o verniz da civilização. Até mesmo a tentativa de submeter a Divindade ao poder misterioso dos pagés sobrevive nos sacramentos das igrejas, dando aos sacerdotes o poder (que foi negado aos anjos) de obrigar o próprio Deus a materializar-se em substâncias materiais do culto, bem como o poder de obrigar o Espírito Santo a manifestar-se aos adeptos para o baptismo do espírito.

No Espiritismo, o que sobrevive das selvas é o fenómeno, o facto natural da manifestação dos espíritos através da mediunidade, como todos os fenómenos físicos e químicos, botânicos e biológicos ou psíquicos sobrevivem obrigatoriamente nas ciências. Mas o Espiritismo não permanece apegado às superstições da experiência selvagem; reelabora essa experiência à luz da cultura e descobre as suas leis para poder usá-las em função do progresso. A capacidade humana de conhecer não tem limites e a divisão absoluta entre espírito e matéria já foi superada nas pesquisas físicas.

O materialismo morreu por falta de matéria, como afirmou Einstein, e as religiões agonizam, como podemos ver, por falta de espírito. Há mais apego à matéria nas práticas e nos conceitos das religiões em agonia do que nos ritos selvagens, pois nestes a crença ingénua e instintiva manifestava-se naturalmente, enquanto naquelas é puro artifício, mera tentativa de racionalização psicológica de heranças atávicas.

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José Herculano Pires, Agonia das Religiões / Capítulo 10 – Magia e Misticismo, 11º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: Paraíso Perdido, estudo do Anjo, lápis e giz de Alexandre Cabanel)