Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

domingo, 24 de fevereiro de 2013

O Mundo Invisível e a Guerra ~

VI 
O Despertar do Génio Céltico *

   Assim como um lago que a tempestade agita vê surgir à superfície as coisas submersas no fundo de suas águas, também o drama imenso que perturba o mundo faz aparecer, com as forças latentes, todas as violentas paixões, as cobiças e os ódios que dormitavam no fundo da alma humana.

   Neste momento cruel, é agradável descansar o pensamento nos grandes vultos que guiaram, iluminaram e confortaram a humanidade, estando nesse número Allan Kardec.

   Há cerca de 20 anos percorria eu as praias da Bretanha, essa terra de granito agitada pelas tempestades e varrida pelos fortes ventos do mar. Lá estão os colossos de pedra, os imponentes monumentos megalíticos, erguidos por nossos antepassados, os celtas, à beira do oceano.

   É verdade que Camille Jullian e outros sábios lhe dão origem mais antiga, porém, sejam quais forem os seus autores, representam um grande pensamento religioso e os druidas dele se utilizaram para as necessidades de seu culto austero.

   Falarei aqui dos célebres alinhamentos de Carnac, que contavam, ainda na Idade Média, doze mil pedras do Menhir de Locmariaquer, dividido hoje em três pedaços com 25 metros de altura!

   Precisarei falar dos dolmens e das grutas funerárias que cobrem toda a região?

   Quantos viajantes passaram perto desses blocos misteriosos sem entender o seu sentido?

   De minha parte sempre me esforcei em estudar essa gigantesca bíblia de pedra e ela me revelou a religião de nossos antepassados, tão caluniados pelo Catolicismo idólatra: Deus é grande demais, pensavam eles, para ser representado por imagens e só a natureza, virgem e livre, pode dar uma ideia de seu poder e de sua grandeza.

   Toda pedra talhada é pedra maculada e somente debaixo das abóbadas sombrias das florestas seculares ou do alto das penedias, de onde o olhar abarca os imensos horizontes do mar, podemos entrever o Ser Infinito e Eterno!

   Vós bem sabeis que eles acreditavam na pluralidade dos mundos habitados, no progresso das almas pelo caminho das vidas sucessivas, e mantinham o intercâmbio dos vivos com os mortos.

   Nessas profundas fontes Allan Kardec ilustrou o seu espírito e em ambientes idênticos ele outrora viveu. Talvez não na Bretanha, mas na Escócia, conforme indicação de seus guias. A Escócia era habitada pela mesma raça e ali os monumentos megalíticos são numerosos. Ainda hoje a tradição céltica paira sobre os lagos e os montes, entre as neblinas melancólicas do norte.

   As faculdades psíquicas, principalmente a vidência, são hereditárias em muitas famílias e Kardec aprendeu nessa terra a filosofia dos druidas, preparando-se para as grandes empresas futuras, no estudo e na meditação.

   Em sua última existência, tudo nele, o carácter grave, o ardente amor pela natureza, o nome de Allan Kardec, que ele mesmo escolheu, até o dólmen erguido no seu túmulo em cumprimento do seu desejo, tudo nele, repito, recorda o homem do visco ** do carvalho, que retornou a esta Gália para fazer renascer a fé extinta, revivendo nas almas o sentido de imortalidade, a crença nas existências sucessivas e a estreita solidariedade que liga o mundo visível ao mundo invisível.

   Kardec, meu mestre! É sob esse aspecto, bem pouco conhecido, que desejo considerar-te! É em nome dessas lembranças comuns que te venho dizer: inspira-nos na realização da obra começada, guiando-nos no caminho que teus primeiros esforços abriram.
/…

* Lido no Cemitério Père-Lachaise em 31 de março de 1916, aniversário do falecimento de Allan Kardec.
** Visco: planta parasita, originária das regiões temperadas do hemisfério norte, que vive agarrada aos troncos e aos ramos das árvores e que se mantém sempre verde. (N.R.)


LÉON DENIS, O Mundo Invisível e a Guerra, VI – O Despertar do Génio Céltico, 1 de 2, 18º fragmento da obra.
(imagem: Tanque de guerra britânico capturado pelos Alemães, durante a Primeira Guerra Mundial)

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

pensamento crítico ~


A tese das “materia-lizações românticas”

   Não se pense, porém, que o desprezo ficou no que dissemos. Longe disso, ele foi e vai muito além. Quando se trata de contradizer o Espiritismo e de factos espíritas, tudo parece permitido aos homens de ciência e aos homens de letras. Não há fronteiras para a imaginação, nem limites para o raciocínio.

   É assim que, ilustrando o volume com várias fotografias espíritas, os autores reproduzem um quadro de Tissot e o comparam à famosa fotografia da “cabeça materializada”, obtida por Notzing e madame Bisson, com a médium Eva Carriere. Para concluírem: “Antes da época dos flagrantes fotográficos, o grande pintor Tissot mostrou-nos o que acreditava ser a reencarnação de uma mulher amiga, acompanhada do seu Espírito-guia; é uma bela pintura, onde ele reproduziu a impressão de verdadeira beleza, recebida numa sessão espírita. Os métodos mais rigorosos, que hoje se usam, já não permitem essas sublimações do testemunho visual: as câmaras fotográficas mostram as coisas como elas se passam. E vemos que essas figuras e rostos materializados começam pequenos e às vezes desproporcionalmente. Quaisquer que possam ser essas figuras e faces achatadas e amarfanhadas, não são, certamente, materializações em carne e sangue humano”.

   Richet escreveu o Traité sem aceitar a tese espírita, mas contudo jamais cometeu a heresia de dizer que as materializações eram fantoches amarfanhados. Encontramos no Traité essa mesma cabeça de que se servem os Wells e Huxley, mas apresentada em outro sentido, ou seja, no bom e verdadeiro sentido que se lhe deve dar: como uma das mais belas fotografias já obtidas, revelando e documentando, de maneira insofismável, uma das fases do processo de materialização. Não tivéssemos essa e outras fotografias obtidas por Notzing e madame Bisson, e esses mesmos ilustres cavalheiros nos acusariam de não havermos surpreendido jamais uma das fases daquilo que chamamos “processo de materialização”. Não teriam dúvidas em utilizar esse facto como argumento “poderoso” contra a teoria da formação progressiva do fantasma, com a matéria plástica do ectoplasma ou teleplasma.

   Perguntaremos, porém, a esses ilustres divulgadores do conhecimento, se não tiveram a oportunidade de ver outras fotografias, como a médium Linda Gazzera, constantes do seu livro Fotografias de Fantasmas, no qual elas figuram, não através de clichês, mas nas próprias cópias fotográficas, para que não haja dúvidas.
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José Herculano Pires, Espiritismo Dialéctico, A tese das “materializações românticas”, 8º fragmento da obra.
(imagem: Diógenes, pormenor d'A escola de Atenas de Rafael Sanzio, 1509)

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

a pedra e o joio ~


Conceitos mecanicis-tas

   Ao tentar a elaboração da sua teoria corpuscular do espírito, o confrade Hernani Guimarães Andrade (como vimos no nosso artigo de domingo passado) partiu de uma premissa falsa: a de que o Espiritismo deve sujeitar-se às ciências materiais. O trecho de Kardec, citado na página 16 do seu livro, para justificar essa premissa, pertence ao parágrafo 55, capítulo primeiro, de A Génese. Nesse parágrafo, Kardec esclarece que o Espiritismo, como doutrina progressiva, “assimilará sempre todas as doutrinas progressivas, de qualquer espécie, que tenham chegado ao estado de verdades práticas, deixando o domínio da utopia”.

   Para explicar melhor o seu pensamento, Kardec, entretanto, acrescenta que: “Deixando de ser o que é (o Espiritismo), mentiria à sua origem e ao seu fim providencial”. Como se vê, Kardec adverte, com o bom-senso que o caracterizava, que o Espiritismo não podia converter-se num sistema estático, devendo acompanhar o desenvolvimento natural do conhecimento. Acompanhá-lo, porém, no plano da realidade, das verdades práticas, e não das utopias, das conjecturas. E acentuava, ao fazer isso, que o Espiritismo não podia trair-se a si mesmo. Quer dizer, ao acompanhar o progresso geral, devia entretanto manter a sua integridade doutrinária.

   Não compreendendo essa posição de Kardec, o confrade Guimarães Andrade pretende fazer com o Espiritismo o que Augusto Comte fez com a Filosofia, sujeitá-lo às ciências. Para isso, entretanto, vê-se obrigado a um malabarismo intelectual que o coloca em situações contraditórias. Porque, segundo o próprio Kardec já advertia, a Ciência Espírita é de natureza diversa da Ciência da Matéria. Tem objecto diverso e exige métodos especiais. Não compreendendo esse facto, o Sr. Guimarães Andrade procura amoldar, na retorta da sua teoria corpuscular, os dois elementos diversos, o que não é possível. Disso resultam as incongruências que podemos notar em seu livro.

   A pretensão reformista do autor chega às raias do extremismo. Vejamos este trecho, das páginas 16 e 17 de A Teoria Corpuscular do Espírito, em que ele define sua posição: “Por conseguinte, a Ciência Espírita tem campo aberto à pesquisa e ao desenvolvimento de seus princípios básicos, os quais podem e devem evoluir paralelamente à Ciência Oficial. E, tal como esta, precisa progredir, até mesmo, se necessário, à custa de reforma dos seus postulados”. Isto quer dizer que o Espiritismo deve modificar os seus princípios básicos, para sujeitar-se aos novos enunciados das ciências materiais.

   Kardec, em A Génese, no mesmo trecho que citamos acima, lembra que as ciências materiais são apenas “a exposição das leis da natureza, com relação a certa ordem de factos”. E esclarece que se trata dos factos materiais. Estes interessam ao Espiritismo, pois estão na ordem geral das leis de Deus, mas não são o objecto da doutrina. Submeter a ciência espiritual aos enunciados de leis materiais é simples absurdo. Aliás, na “Introdução ao Estudo da Doutrina Espírita”, que abre O Livro dos Espíritos, Kardec observa: “Quando a ciência sai da observação material dos factos, e trata de apreciá-los e explicá-los, abre-se para os cientistas o campo das conjecturas: cada um constrói o seu sistemazinho, que deseja fazer prevalecer, e o sustenta encarniçadamente”.

   O confrade Guimarães Andrade refere-se ao perigo de um dogmatismo espírita, mas oferece-nos um perigo maior, que é o do dogmatismo científico, de natureza materialista. Amarrar o Espiritismo a esses “sistemazinhos”, referidos por Kardec, é muito mais perigoso do que sustentar os postulados doutrinários que têm na sua base a “autoridade dos factos” e não das conjecturas explicativas. Aliás, nenhum progresso das ciências afectou até agora os postulados doutrinários. Pelo contrário, só os tem confirmado. Como pretender-se então modificar esses postulados? No tocante aos conceitos da Física Nuclear, o que parece evidente é que eles se aproximam dos conceitos espíritas, como vemos no caso de negação da matéria, de transformação do mundo material em mundo energético, de redução dos fenómenos físicos a simples aparência e assim por diante.

   As próprias contradições do Sr. Guimarães Andrade provam isso. Condenando, por exemplo, a terminologia mecanicista de Kardec, vê-se ele obrigado, logo mais, a usá-la. É o que se verifica no seu capítulo intitulado “Das Bases da Teoria”, em que os conceitos de “vibração” e de “fluido vital” são empregados, e este último com o agravante de juntar-se ao conceito hinduísta de “prana”. Também o conceito de “matéria inerte”, nada corpuscular, ali aparece. Vemos, assim, que a reforma pretendida pelo autor é mais difícil do que ele mesmo supunha. Não chega a efectuar-se nem sequer no plano da terminologia, quanto mais no plano mental dos conceitos, propriamente ditos, que permanece inalterado.

   Por outro lado, o Sr. Guimarães Andrade, para poder misturar as ciências físicas e os princípios espíritas na sua retorta, foi obrigado a voltar vinte e cinco séculos atrás, adoptando o esquema de Demócrito para a explicação atómica do espírito. Os seus corpúsculos modernos, denominados “bion”, “mentalton” e “intelecton”, não são mais do que adaptações dos chamados “átomos de fogo”, do atomismo grego, que explicavam inclusive a percepção extra-sensorial. Demócrito admitia átomos especiais para a percepção sensorial e átomos mais subtis para a percepção intelectual. E considerava o espírito como um “arranjo atómico”, exactamente como o faz o Sr. Guimarães Andrade. Esse arranjo, naturalmente, podia desarranjar-se com a morte, e o espírito voltaria ao “todo universal”. O Sr. Guimarães Andrade não escapa a esse fatalismo lógico da teoria atómica do espírito, caindo numa posição materialista, como veremos mais tarde.

   Ao expor a natureza do “bion”, que seria “a partícula correspondente à vida em si mesma, independente de prévia organização, o agente vivificador da matéria”, o autor se choca frontalmente com o princípio estabelecido no cap. quarto de O Livro dos Espíritos, onde o fluido vital: “sem a matéria, não é vida, da mesma maneira que a matéria não pode viver sem ele”. Ainda aqui, o erro decorre da posição materialista, que não admite o espírito como agente não-físico. Embora o autor, nesse terreno, às vezes admita o conceito doutrinário de espírito, no geral permanece com o conceito mecanicista do atomismo grego. É uma das suas contradições, que procuraremos esclarecer nos próximos trabalhos.
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José Herculano Pires – A Pedra e o Joio, Crítica à Teoria Corpuscular do Espírito. Conceitos mecanicistas, 12º fragmento da obra.
(imagem: As Colhedoras de Grãos, pintura a óleo por Jean-François Millet)

sábado, 9 de fevereiro de 2013

| o grande enigma ~


Deus | e o Universo (IV)

Não procures Deus nos templos de pedra e de mármore, ó homem que o queres conhecer, e sim no templo eterno da Natureza, no espectáculo dos mundos a percorrer o Infinito, nos esplendores da vida que se expande em sua superfície, na vista dos horizontes variados: planícies, vales, montanhas e mares que a tua morada terrestre te oferece. Por toda parte, à luz brilhante do dia ou sob o manto constelado das noites, à margem dos oceanos tumultuosos, e assim na solidão das florestas, se te sabes recolher, ouvirás as vozes da Natureza e os subtis ensinamentos que murmuram ao ouvido daqueles que frequentam suas solidões e estudam seus mistérios.

A Terra voga sem ruído na extensão. Essa massa de dez mil léguas de circuito desliza sobre as ondas do éter qual um pássaro no Espaço, qual um mosquito na luz. Nada denuncia sua marcha imponente. Nenhum ranger de rodas, nenhum murmúrio de vagas sob seus flancos. Silenciosa, ela passa, rola entre suas irmãs do céu. Toda a potente máquina do Universo se agita; os milhões de sóis e de mundos que a compõem, mundos perto dos qual o nosso vale por uma criança, todos se deslocam, se entrecruzam, prosseguem suas evoluções com velocidades aterradoras, sem que som algum ou qualquer choque venha trair a acção desse gigantesco aparelho. O Universo continua calmo. É o equilíbrio absoluto; é a majestade de um poder misterioso, de uma Inteligência que não se impõe, que se esconde no seio das coisas, e cuja presença se revela ao pensamento e ao coração, e que atrai o pesquisador qual a vertigem do abismo.

Se a Terra evolucionasse com estrondo, se o mecanismo do mundo se regulasse com fracasso, os homens, aterrorizados, curvar-se-iam e creriam. Mas, não! A obra formidável se executa sem esforço. Globos e sóis flutuam no Infinito, tão livres quanto plumas sob a brisa. Avante, sempre avante! O rondar das esferas se efectua guiado por uma potência invisível.

A vontade que dirige o Universo se disfarça a todos os olhares. As coisas estão dispostas de maneira que ninguém é obrigado a lhes dar crédito. Se a ordem e a harmonia do Cosmos não bastam para convencer o homem, este é livre no conjecturar. Nada constrange o céptico para ir a Deus.

O mesmo acontece às coisas morais. Nossas existências se desenrolam e os acontecimentos se sucedem sem ligação aparente; mas, a imanente justiça domina ao alto e regula nossos destinos segundo um princípio imutável, pelo qual tudo se encadeia em uma série de causas e de efeitos. Seu conjunto constitui uma harmonia que o espírito emancipado de preconceitos, iluminado por um raio da Sabedoria, descobre e admira. Que nós sabemos do Universo? Nossa vista só percebe um conjunto restrito do império das coisas. Somente os corpos materiais, à nossa semelhança, a afectam. A matéria subtil e difusa nos escapa. (I) Vemos o que há de mais grosseiro, em tudo que nos cerca. Todos os mundos fluídicos, todos os círculos onde a vida superior se agita, a vida radiosa, se eclipsam aos olhos humanos. Distinguimos apenas os mundos opacos e pesados que se movem nos céus. O Espaço que os separa nos parece vazio. Por toda parte, profundos abismos parecem abrir-se. Erro! O Universo está cheio. Entre essas moradas materiais, no intervalo desses mundos planetários, prisões ou presídios flutuam no Espaço, outros domínios da Vida se estendem, vida espiritual, vida gloriosa, que nossos sentidos espessos não podem perceber porque, sob suas radiações, quebraria qual se rompe o vidro ao choque de uma pedra.

A sábia Natureza limitou nossas percepções e nossas sensações. É degrau a degrau que ela nos conduz no caminho do saber. É lentamente, trecho por trecho, vidas depois de vidas, que ela nos leva ao conhecimento do Universo, seja visível, seja oculto. O ser sobe, um a um, os degraus da escadaria gigantesca que conduz a Deus. E cada um desses degraus representa para o ser uma longa série de séculos.

Se os mundos celestes nos aparecessem de repente, sem véus, em toda a sua glória, ficaríamos aturdidos, cegos. Mas, nossos sentidos exteriores foram medidos e limitados. Eles avultam e se apuram à medida que o ser se eleva na escala da existência e dos aperfeiçoamentos. O mesmo se dá com o conhecimento, a possessão das leis morais. O Universo se desvenda aos nossos olhos à proporção que a nossa capacidade de compreender as suas leis se desenvolve e engrandece. Lenta é a incubação das Almas sob a luz divina.
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(I) Actualmente não conhecemos, nem podemos conhecer, em sua essência, nem o Espírito nem a Matéria.


Léon Denis, O Grande Enigma, Primeira parte Deus e o Universo, I O grande Enigma 4 de 5, 7º fragmento da obra.
(imagem: Salvador Dali, 1950)

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013

Victor Hugo e o invisível ~


Em torno do ser profundo de Victor Hugo

   Por mais profunda que seja a crítica em relação à personalidade de Victor Hugo, nela não penetrará enquanto não medir a sua existência com o critério palingenésico ou "sentido" de reencarnação do ser. Se Hugo teve inúmeras alternativas morais foi porque o seu ser penetrava nas misteriosas zonas de uma realidade pré-existencial. A crítica comum, quando se trata de grandes espíritos, opina sempre ignorando a natureza profunda que os conforma. Enquanto a crítica desconhecer que génio e mediunidade são uma mesma essência, não poderá nunca penetrar nesses "mundos" que se movem no infinito das almas.

   Victor Hugo sabia que em seu ser se entrecruzavam incontáveis existências por ele vividas; daí suas variações de carácter, suas angústias e tristezas, suas aproximações repentinas dos mais variados climas espirituais. Seu espírito projectava no circundante as suas sondas psíquicas até extrair da essência das coisas a sua substância infinita.

   Assim se relacionava com a alma verdadeira dos seres e das coisas; desse modo seu ser se colocava em comunicação com o outro Eu das pessoas, que é onde se encontra o verdadeiro espírito encarnado.

   Seu génio, logicamente, não pôde revelar a seus íntimos e amigos a realidade profunda que percebia no todo existente. Ocultava sempre segredos espirituais, falava de temas eternos de acordo com o sentir comum, pois sabia ser inoportuno revelar o que acontecia por esse sentido palingenésico de seu Ser, que o acompanhou em toda a sua vida. Ateve-se sempre à medida evolutiva dos espíritos, compreendendo que a realidade espiritual do homem não pode estar ao alcance de todos.

   Os filósofos quiseram perguntar sobre a origem de seu génio penetrando nas circunvoluções de seu cérebro. Pretenderam estimar sua inteligência conforme o peso desse órgão. O próprio Victor Hugo doou à ciência o seu organismo cerebral para que, não existindo nenhuma diferença substancial nos cérebros, fosse investigado, depois de sua morte, se havia qualquer disparidade entre a organização dele e da massa cerebral dos animais. Por essa razão, resolveu que a investigação deveria ser praticada no cérebro de seu próprio cão, "com a finalidade de descobrir se haveria algo diferente na substância ou organização de algum dos órgãos cerebrais que pudesse servir de base para apreciar os vários graus de inteligências".

(1) - Doutor Franco Ponte: Los cérebros de Victor Hugo y Alberto Einstein, Revista Cosmo, 1995, Ponce, Puerto Rico.

   A informação dada pela comissão médica examinadora foi a seguinte: "Não encontramos nenhuma molécula a mais de matéria cinzenta no cérebro de Victor Hugo que na do cão. Achamos diferença de volume e peso somente, que acreditamos não afectarem nada as manifestações intelectuais, pois é sabido que existem entidades de escassa inteligência com cérebros volumosos e vice-versa, entidades de vastos conhecimentos em cérebros muito pequenos".

   Ocorreu o mesmo quando se examinou o cérebro de Alberto Einstein, este outro ser que comoveu as bases da ciência oficial. O parecer assinalava: "Nada encontramos que nos conduza ao caminho da verdade", ao que se ajuntou: "Nada foi encontrado e estamos certos de que o cérebro de Einstein é igual em sua estrutura e forma física a todos os cérebros dos seres comuns".

   Estas conclusões demonstram que a caixa craniana não encerra e não gera a inteligência do ser. Dá-se conta que os lóbulos cerebrais não segregam as ideias como os rins e a urina e que o materialismo está assente sobre bases irreais no que se refere à espiritualidade do homem.

   A concepção espírita, que vai além do espiritualismo clássico, tem demonstrado mediante a observação de numerosos factos, que os lóbulos cerebrais não são mais que órgãos pelos quais se manifesta o ser e o pensamento. Consequentemente, o génio de Victor Hugo não esteve radicado na fisiologia especial de seu cérebro, ou seja, o grande poeta de Raios e Sombras, não possuía um cérebro extraordinariamente desenvolvido, pelo contrário, o génio é que foi a causa de seu grande desenvolvimento espiritual.

   O homem Victor Hugo não era igual ao homem comum, sujeito às limitadas percepções dos cinco sentidos corporais. O grande poeta francês foi um exemplo de homem palingenésico dotado, por essa mesma razão, do sexto sentido ou da mediunidade altamente desenvolvida. Assim é que foi vidente, profeta e poeta e pôde compreender o que significam espiritualmente as grandes epopeias da humanidade. Compreendeu assim que a Revolução Francesa sem uma revolução espiritual não seria mais que um fenómeno político de ordem local.  

   Descobriu também que em cada homem pode estar reencarnado um rei, um mendigo, um santo ou um malfeitor; por isso o poeta conseguiu perceber que as verdadeiras raízes da história estão no espírito. Para Hugo os processos sociais eram o resultado de impulsos morais provenientes de espíritos reencarnados e não cegos tumultos políticos. O próprio Jean Valjean, condenado por roubar um pão, pôde ser, de acordo com as visões espíritas do poeta, um espírito reencarnado com a missão de obrigar os poderosos a não serem, impiedosos para com os miseráveis da terra.

   Mas, por que se ocultam e dissimulam as ideias espíritas de Victor Hugo? Será que o génio é grande somente quando apoia a cultura materialista?

   A única coisa que nos atrevemos a responder é que Victor Hugo havia sobrepujado as velhas concepções espirituais e que o seu génio pôde abrir as suas asas mercê do que as revelações mediúnicas da Ilha de Jersey tão objectivamente demonstraram. Eis o que tentaremos ver nos próximos capítulos.
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Humberto MariottiVictor Hugo Espírita, Em torno do ser profundo de Victor Hugo, 4º fragmento da obra.
(imagem: Criança com uma boneca, pintura de Anne-Louis GIRODET-TRIOSON)