Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

sexta-feira, 30 de julho de 2021

o grande desconhecido ~


Acção Espírita na transformação do Mundo ~ 

Três são os elementos fundamentais de que o Espiritismo se serve para transformar o nosso mundo num mundo melhor e mais belo: 

a) O Amor, 
b) O Trabalho, 
c) A Solidariedade. 

[...] 

(II de III) 

II – O Trabalho 

O trabalho é a exigência do princípio de transcendência. O homem trabalha por necessidade, como querem os teóricos da Dialéctica Materialista, mas não apenas para suprir as suas necessidades físicas de subsistência e sobrevivência. Não só, como querem os teóricos da vontade de potência, para adquirir poder. E não só, também, como pretendem Bentham e os teóricos da ambição, para acumular posses que representam o poder. A busca das causas, nesse campo, morreria no plano das causas secundárias. Mas a Filosofia Existencial, no nosso tempo, ao descobrir o conceito de existência e definindo o homem como o existente (aquele ser que existe, sabe que existe e luta para existir cada vez mais e melhor), mostrou e provou que a natureza humana é subjectiva e não objectiva (externa e material) e que a mola do mundo não está nos braços e nas mãos, mas na consciência. Confirmou-se assim, no plano geral da Cultura, o tantas vezes rejeitado e ridicularizado conceito espírita do trabalho. Em O Livro dos Espíritos temos a afirmação de que tudo trabalha na Natureza. Essa tese espírita antecipou a própria tese de John Dewey sobre a natureza universal da experiência. Em todo o Universo há forças em acção, inteligentemente dirigidas segundo planos determinados. Nada se fez ao acaso. Em termos actuais da electrónica podemos dizer que o universo é uma programação gigantesca de computadores em incessante actividade rigorosamente controlada. De um grão de areia a uma constelação estelar, de um fio de cabelo e de um vírus isolado até às maiores aglomerações humanas dos grandes parques industriais do mundo, tudo trabalha. O próprio repouso é uma forma de diversificação do trabalho para a recuperação e reajustes nos organismos materiais e nas estruturas psicomentais do homem. As criaturas humanas que só trabalham para si mesmas ainda não superaram a condição animal. Vivem e trabalham, mas não existem. Porque existir é uma forma superior de viver, que inclui no seu conceito plena consciência das actividades desenvolvidas com finalidades transcendentes. 

No próprio desenvolvimento da Civilização o trabalho individual abre-se, progressivamente, nos processos de distribuição, para o plano superior do trabalho colectivo. Por isso, é no trabalho e através do trabalho que o homem se realiza como ser, desenvolvendo as suas potencialidades. A extrema especialização da Era Tecnológica nasceu nas selvas, quando nos primeiros clãs o homem se incumbiu da guerra, da caça e da pesca, e a mulher da criação, da alimentação e da orientação dos filhos. A Revolução Industrial (i) na Inglaterra marcou um momento decisivo da evolução humana para a consciência da solidariedade. É no esforço comum e conjugado das relações de trabalho que se desenvolve o senso de comunidade, provando a necessidade do princípio espírita de solidariedade e tolerância para o maior rendimento, maior estímulo e maior aperfeiçoamento das técnicas de produção. À concorrência de mercado, que estimula a ganância e a voracidade dos indivíduos e dos grupos, das empresas e dos sistemas de produção, opõe-se a conjugação das consciências, na solidariedade do trabalho comum, com vistas ao bem-estar de todos. Os teóricos que condenam as comunidades de trabalho voltadas para o interesse da maioria reduzem a finalidade superior do trabalho a interesses mesquinhos de enriquecimento individual e de grupos. A própria realidade contesta-os com o espectáculo gigantesco do trabalho da Natureza, voltado para a grandeza do todo. Rémy Chauvin considera-os insectos sociais como expressão de sistemas colectivos de trabalho e de vida em que o egoísmo individualista e grupal (o sociocentrismo) não impediu o desenvolvimento normal da solidariedade. A Natureza inteira é um exemplo que o homem rejeita em nome do seu egoísmo, da sua vaidade e das suas ambições desmedidas. Esses três elementos funcionaram na espécie humana como pontos hipnóticos que impediram o livre fluxo das energias livres do trabalho, condensando-as em formas institucionais absorventes. As tentativas de romper essas formas por métodos violentos representam uma reacção instintiva que leva fatalmente, como o demonstra o panorama histórico actual, a novas formas de condensação. Esse circulo vicioso só pode ser rompido por uma profunda e geral compreensão do verdadeiro sentido do trabalho, que não leva a lutas e dissensões, mas à conjugação e harmonização de todas as fontes e todos os recursos do trabalho, nos mais diferenciados sectores de actividade. A proposição espírita nesse sentido, como foi no seu tempo a proposição cristã original, encarna os mais altos ideais da espécie, voltados para o trabalho comunitário na acção e nos fins. 

Hegel observou, nos seus estudos de Estética, que a dialéctica do trabalho se revela nos reinos da Natureza. O mineral é a matéria-prima das elaborações futuras, apresentando-se como concentração de energias que formam as reservas básicas; o vegetal é a doação em que as forças do mineral se abrem para a floração e para os frutos da vida; o animal é a vida em expansão dinâmica, síntese das elaborações dos dois reinos anteriores, endereçando esses resultados ao futuro, à síntese superior do Homem, no qual as contradições se resolvem na harmonia psicofísica e espiritual da criatura humana, dotada de consciência. Cabe agora a essa consciência elaborar a grandeza da Terra dos Homens (segundo a expressão de Saint-Exupéry). Por sinal que Exupéry, aviador, poeta e profeta, representa o arquétipo actual da evolução humana, na busca do Infinito. Por isso, Simone de Beauvoir considerou a Humanidade, não como a espécie a que nos referimos por alegoria com os planos inferiores, mas como um devir, um processo de mutações constantes na direcção do futuro. Hoje somos ainda projecções dos primatas obtusos e violentos, antropófagos (segundo Tagore) devoradores de si mesmos e dos semelhantes, escarnecedores e aviltadores da condição humana. Mas amanhã seremos homens, criaturas humanas que encarnação as forças naturais sob o domínio da Razão e da Consciência. Teremos então a República dos Espíritos, formada pela solidariedade de consciências de que trata René Hubert na sua Pedagogia Generale

Como vemos através destes dados, a Doutrina Espírita não nos oferece uma visão utópica do amanhã, mas uma precognição do homem na sua condição espiritual, sem as deformações teológicas e religiosas da visão comum, calcada em superstições e idealizações rebarbativas. Tendo penetrado objectivamente no mundo das causas, um século antes que as Ciências Materiais o fizessem – a Ciência Espírita, experimental e indutiva – tem agora todos os seus princípios fundamentais endossados por aquelas, em pesquisas de laboratório e tecnológicas, não formulou uma estrutura dogmática de pressupostos para configurar o homem do pós morte e o homem do futuro. A imagem que nos deu do homem novo, há um século, está hoje plenamente confirmada pelos factos. A controversa questão da sobrevivência espiritual foi resolvida tecnologicamente de maneira positiva, comprovando a tese espírita. Falta pouco para se romper, nas mãos já trémulas dos teólogos, a Túnica de Nessus da dogmática religiosa, que gerou por toda a parte angústias e desesperos. Estamos agora em condições de pensar tranquilamente num futuro melhor para a Humanidade em fases melhores da sua evolução. Podemos agora integrar-nos conscientemente na gigantesca oficina de trabalhos da Terra, preparando o caminho das gerações vindouras. As revelações já não nos chegam de mão beijada, pois, como ensina Kardec, brotam dos esforços conjugados do homem esclarecido com os espíritos conscientes. Os dois mundos em que nos movemos, o espiritual e o material, abriram as suas comportas para que as suas águas se encontrem no esplendor de uma nova aurora. E o Sol que acende essa aurora já não é uma chama solitária na escuridão total dos espaços vazios, mas apenas uma tocha olímpica entre milhões de tochas que balizam as conquistas futuras do homem na escalada sem-fim. Prometeu não será mais sacrificado por querer roubar o fogo celeste de Zeus, pois esse fogo é o mesmo que resplandece no corpo espiritual da ressurreição, que brilha na alma humana e define a sua natureza divina. Basta-nos continuar os nossos trabalhos para termos a nossa parte assegurada na Herança de Deus, pois como ensinou o Apóstolo Paulo, somos herdeiros de Deus e co-herdeiros de Cristo. O conhecimento é a nossa fé, que não se funda em palavras, sacramentos e ídolos mortos, mas na certeza das verificações positivas e nas conquistas do trabalho humano, gerador constante de novas formas de energia para a escalada humana da transcendência. 

/… 


José Herculano Pires, Curso Dinâmico de Espiritismo, XVII – Acção Espírita na Transformação do Mundo, (II de III) – O Trabalho, 18º fragmento desta obra. 
(imagem de contextualização: Somos as aves de fogo por sobre os campos celestes, acrílico de Costa Brites)

quarta-feira, 21 de julho de 2021

agonia das religiões ~


O Problema da Violência ~ 

Chamamos Civilização do Espírito àquela em que os poderes espirituais regerão a vida social. Para isso é necessário que a sociedade seja constituída por seres morais, criaturas formadas nos princípios da moral-consciencial. Essa moral corresponde ao que Hubert considera as exigências da consciência. Não se trata, pois, de um conceito de moral metafísico, de uma formulação utópica de sonhadores. Mesmo que o fosse, a definição da utopia por Karl Mannheim nos socorreria quanto à sua validade. Se as utopias são, como quer Mannheim, percepções antecipadas de realidades futuras – possibilidade provada pelas pesquisas parapsicológicas – nem assim estaríamos a tratar de hipóteses vazias. Mas quando aludimos à consciência estamos a pisar na terra e não a olhar para o céu. A consciência é um dado positivo, uma realidade antropológica (i) e social que ninguém se atreveria a contestar. Ela rege a nossa vida, o nosso comportamento nas relações humanas e por isso se projecta de maneira inegável no plano do sensível. 

Sabemos que a consciência varia de graus no tocante à sua estrutura e à sua coerência. E sabemos também quais os perigos concretos de uma consciência imatura, ainda não suficientemente definida, e portanto frouxa ou incoerente, contraditória, que pode produzir catástrofes no âmbito da sua influência ou do seu domínio. As variações da moral entre os grupos humanos e as próprias civilizações decorrem mais da posição da consciência dominante na sociedade do que dos factores mesológicos (i) e das suas consequências económicas. No plano religioso a consciência é um factor determinante da realidade religiosa. A consciência judaica de Saulo de Tarso fez dele um perseguidor sanguinário dos cristãos primitivos, o lapidador cruel de Estêvão. Mas, ao ajustar a sua consciência aos princípios cristãos, ele se transformou no Apóstolo dos Gentios e no maior propagador do Cristianismo. 

As exigências da consciência são sempre as mesmas em todos os homens. As variações de graus e de coerência decorrem do processo de maturação e das condições do meio e da educação. A consciência amadurece na proporção em que as experiências vão revelando ao espírito o seu anseio latente de transcendência (i). A vontade de potência, de Nietzshe, é o primeiro impulso que leva o homem, ainda na selva, a querer sobrepujar os outros, a elevar-se acima das condições gerais do meio. Esse impulso se prolongará no processo evolutivo. O homem se envaidece com a sua capacidade de subjugar os outros, de mandar, de impor medo, respeito, submissão aos demais. A sua consciência abre-se no plano individual, fechada nos limites de si mesma. É o reconhecimento do seu poder que naturalmente o embriaga e o levará a excessos perigosos. Mas na proporção em que os liames (i) do clã se desenvolvem, o parentesco, a simpatia e as afinidades se revelam, a embriaguez do poder vai sendo atenuada, contida pela percepção dos limites inevitáveis. Depois, o esgotamento progressivo das forças físicas e o perigo das doenças, das competições com iguais ou mais fortes, e por fim a certeza da morte irão abatendo a sua arrogância. Nas reencarnações (i) sucessivas essas experiências se renovam, mas o impulso de transcendência se acentua, levando-o a procurar outros meios de superação: o poder social, a hipocrisia, a estratégia das posses materiais e das posições de comando. Só lentamente, ao longo do tempo, sujeito às reacções que o enredam nas situações difíceis, muitas vezes torturantes, a sua consciência começa a abrir-se para o respeito dos direitos dos outros. A interacção social, na reciprocidade das obrigações e das necessidades, na transformação dos instintos em sentimentos, irá pouco a pouco despertando-o para novas dimensões consciênciais. 

violência do homem civilizado tem as suas raízes profundas e vigorosas na selva. O homo brutalis tem as suas leis: subjugar, humilhar, torturar, matar. O seu valor está sempre acima do valor dos outros. A sua crença é a única válida. O seu modo de ver o mundo e os homens é o único certo. O seu deus é o único verdadeiro. Só o que é bom para ele é bom para a comunidade. Os que se opõem aos seus desígnios devem ser eliminados para o bem de todos. A violência é o seu método de acção, justificado pelo seu valor pessoal, pela sua capacidade única de julgar. Tece ele mesmo a trama de fogo do seu futuro nas encarnações dolorosas que terá de enfrentar. As religiões da violência fizeram de Deus uma divindade implacável e os livros básicos das suas revelações estão cheios de homicídios e genocídios em nome de Deus. 

Não obstante, misturam-se às ordenações violentas estranhos preceitos de amor e bondade. São as lições de consciências desenvolvidas em luta pelo despertar as que, endurecidas no apego a si mesmas, asfixiam os germes do altruísmo nas garras do egoísmo. É um espectáculo dantesco o de uma alma vigorosa dotada de intelecto capaz de entender as suas próprias contradições, mas empenhada em negar a sua condição humana, rebaixando-se aos brutos ao invés de procurar a elevação moral a que se destina. Nos momentos de transição, como este que estamos a viver, a violência desencadeada exige a oposição vigorosa e sacrificial dos que já atingiram o desenvolvimento consciencial da civilização. A cumplicidade com as práticas de violência, por parte de consciências esclarecidas, retarda a evolução colectiva e rebaixa o cúmplice a posições indignas. O mesmo acontece no tocante à aceitação de princípios erróneos (i) por conveniência. O espírito coloca-se então em luta consigo mesmo, negando o seu próprio desenvolvimento consciencial e ateando em si mesmo a fogueira dos remorsos futuros. 

A Civilização do Espírito torna-se, assim, o resultado de um parto doloroso. Mas, como todos os partos, tem de ser feito. E se acaso for possível o aborto, a civilização se fechará sobre si mesma e todos os responsáveis mergulharão com ela nas trevas da miséria moral. As fases de transição, na evolução dos mundos, são também fases de julgamento individual das criaturas que os habitam. Daí o mito do Juízo Final, em que todos serão julgados. Mas não haverá um Tribunal Divino nas nuvens, porque esse tribunal está naturalmente instalado na consciência de cada indivíduo. A presença do julgador é omnímoda (i) e fatal, porque cada qual será juiz implacável e inevitável de si mesmo. 

A agonia das religiões é a agonia de um mundo. Por isso a Terra inteira participa dessa mesma agonia. A queda dos deuses mitológicos do mundo clássico foi também a queda dos grandes impérios. Em vão César procurou desligar-se de Júpiter e aceitar o Deus Único. A conversão do Império foi a sua própria morte. A Idade Média (i) procurou restabelecer o reino da violência em nome de Jesus. Durou um milénio, pois a integração dos bárbaros na ordem cristã exigia uma reelaboração demorada e um reajuste penoso (i) das contradições culturais. O Renascimento (i) marcou o advento do que parecia ser, na verdade, uma civilização cristã. Mas os resíduos da violência continuaram a fermentar nas novas estruturas sócio-culturais. A prova histórica de que a carga de violência era enorme está hoje aos nossos olhos, na explosão de violências em todos os níveis do mundo contemporâneo. A nossa esperança é a de que essa explosão seja a catarse final. O homo brutalis vai desaparecer. Mas para isso é necessário o despertar de novas dimensões na consciência actual. Não será sustentando e justificando as estruturas religiosas envelhecidas, submissas às ordenações do passado bíblico, que facilitaremos o advento da nova era. Muito menos pela negação da própria essência, do homem, através de ideologias materialistas. A busca da intimidade pessoal com Deus, em termos fantasiosos, ou a negação de Deus em nome de uma razão ilógica são formas contraditórias de asfixia da consciência. A rejeição do Evangelho ou a manutenção da sua interpretação sectária equivalem igualmente à negação dos valores espirituais do homem. A estrutura moral da consciência está delineada de maneira indelével nas páginas do ensino moral de Jesus. Temos de aprofundar o seu estudo e procurar aplicá-lo na nossa vivência social. A civilização Cristã vai sair agora do tubo de ensaio, concretizar-se na forma real de uma Civilização do Espírito, em que os princípios espirituais se encarnarão nas normas de conduta, nas formas de comportamento do Novo Homem. 

O problema das relações humanas, colocado em forma de etiqueta nas velhas civilizações nobiliárquicas (i) do Oriente e do Ocidente, formalizado ao extremo nos tempos feudais, e convertido em protocolo de conveniências no mundo moderno e contemporâneo, terá de voltar ao ponto de partida dos ensinos e dos exemplos de JesusA regra áurea do amor prevalecerá num mundo regido pela moral consciencial. Porque a primeira exigência da consciência humana é a do amor ao próximo, desprezada e amesquinhada nas sociedades mercenárias ao ponto de nos levar ao seu contrário – ao ódio, essa cegueira do espírito, que gera e sustenta a violência no mundo. 

O pragmatismo das sociedades contemporâneas coisificou o homem, o que vale dizer que o nadificou no plano moral. Pior do que a nadificação pela morte, da teoria de Sartre, é essa nadificação da vida que reduz a criatura humana a objecto de mero uso. O homem retorna à condição dos instrumentos vocais de Cícero, um instrumento que fala. Pode ser incluído entre os úteis ou amanuais de Heidegger, objectos manuseáveis. O public-relations de hoje é o fâmulo (i) medieval aprimorado pela técnica, domesticado para sorrir e curvar-se em todas as ocasiões, pois o que importa é sempre o lucro, o que vale é a relação social em termos de vantagens, sempre que possível, pecuniárias (i). Esse aviltamento total do homem abriu as comportas da violência represada debilmente pelas barreiras artificiais da civilização. Como estamos a ver no panorama mundial da actualidade, com exemplos gritantes diariamente divulgados pelos meios de comunicação, a fera-besta das selvas arrombou as jaulas convencionais e tripudia sobre a fragilidade humana. 

Contra esta realidade exasperante, de nada valem os sermões, as pregações, as ladainhas e outras preces labiais. O mesmo indivíduo que se ajoelha diante das imagens, nos templos sumptuosos, volta ao seu posto de comando para ordenar torturas canibalescas. Está certo que Deus o aprova, pois age em defesa da civilização cristã, aviltando aqueles pelos quais o Cristo morreu, segundo lembrou Stanley Jones. No começo do século XX, Leon Tolstoi já advertia que estamos numa era de nova antropofagia, então requintada pelas técnicas modernas. Hoje, na era tecnológica, os instrumentos de opressão, tortura e aniquilamento do homem atingiram a máxima perfeição diabólica. Tudo isso porquê? Porque a deformação da mente e o aviltamento da consciência desumanizou o homem. 

Seria loucura responsabilizar unicamente as religiões por essa calamidade. Mas seria hipocrisia querer isentá-las de culpa. Elas se apegaram à matéria em nome do espírito e asfixiam-no nas suas estruturas pragmáticas. Cabe-lhes pelo menos metade da culpa, pois que se fizeram mestras e orientadoras da civilização, participando activamente dos maiores desmandos através dos séculos, quando não os dirigia. Todas elas trocaram o mandato divino pelos poderes de César. E se não se aniquilaram mutuamente, não foi por piedade, mas porque jogaram habilmente a sua sorte sobre a túnica do crucificado e os dados romanos favoreceram a todas. Apesar dessa voracidade mundana, almas valentes como a de Lutero, humildes e piedosas como a de Francisco de Assis, irredutíveis como a de John Huss, límpidas como a de Maria D'Ageada se sacrificaram para tentar salvá-la e insuflar-lhes a seiva cristã de seus novos exemplos. 

Os mártires da fé não foram apenas perseguidos e esmagados pelos ímpios. Dentro das suas próprias confissões religiosas, nos calabouços medievais que reflectiam o Inferno na Terra, e até mesmo no mundo moderno, apesar dos trágicos exemplos históricos, em nações profundamente marcadas pelo fogo do fanatismo religioso, milhares de mártires continuaram sofrendo as ameaças e os castigos do Deus bíblico implacável, através dos seus estranhos e temíveis capatazes. Ainda não surgiu, infelizmente, o génio da Psicologia que deverá, mais cedo ou mais tarde, realizar a análise assombrosa dos complexos sem nome de misticismo, sadismo e barbárie que Freud apenas aflorou nas suas pesquisas da libido. Será um balanço apocalíptico da escatologia (i) das religiões da violência. 

Não proponho estes problemas em tom de acusação, mas de análise. Os maiores mártires, na verdade, foram os próprios carrascos, que aviltaram primeiro a si mesmos, condenando-se perante o tribunal da consciência, cujas auto-sentenças brotam como labaredas das próprias entranhas do criminoso, digno de piedade e perdão como todas as criaturas humanas. A minha intenção é apenas a de prevenir, sacudir e acordar os que continuam a errar, na vaidosa ilusão de uma investidura divina contrária aos princípios fundamentais do Evangelho. A imortalidade do ser é a sua própria e irreversível condenação, perante as leis de Deus inscritas na sua consciência. A vantagem do Espiritismo, entre todas as doutrinas filosóficas do nosso tempo, é a de colocar os problemas do homem, mesmo no campo religioso, em termos de razão e naturalidade, eliminando os resíduos do sobrenatural que pesaram esmagadoramente sobre o passado, sem cair no cepticismo e no agnosticismo. Essa posição suis generis do Espiritismo permite-lhe preparar o homem actual para uma existência normal e digna no futuro, desde que os espíritas, tão sobrecarregados de heranças religiosas deformantes, não venham a cair nas mesmas e nefastas ilusões da investidura divina e da institucionalização hierárquica das religiões da violência. Não escrevi este ensaio com fins proselitistas (i), pois uma doutrina aberta, sem finalidades salvacionistas, fundada em métodos científicos de observação e pesquisa, como o próprio Kardec (i) afirmou, não é caçadora de adeptos. O que lhe interessa não é combater as religiões ou tirar das suas fileiras os que nelas se sentem bem, mas apenas oferecer aos homens de bom senso uma visão realista e por isso mais ampla e mais profunda do homem e do seu destino no espaço e no tempo. Só essa compreensão racional e superior do Universo, em que o homem aparece integrado nas leis naturais, poderá modificar a mentalidade confusa e contraditória do nosso tempo e preparar-nos para a Era Cósmica, na qual a Terra só poderá entrar com a Civilização do Espírito. Nessa civilização, que será a única digna dessa classificação, a única civilização autêntica, os homens estarão investidos do único mandato realmente divino (considerando-se o divino como uma categoria superior à do humano) que decorre das exigências de sua consciência moral. 

René Hubert interpreta a Educação, no seu Traité de Pedagogie Generale, como um processo que tem por finalidade estabelecer na Terra a solidariedade de consciências, da qual resultará uma estrutura política e social que ele chama de República dos Espíritos. É essa República, em que a rés não se limita às coisas materiais, mas se estende sobretudo às consciências, proclamando o primado do espírito no planeta, que o Espiritismo pretende atingir pelo trabalho e a compreensão dos homens. Porque a tarefa é nossa e não de entidades mitológicas de qualquer espécie. 

Se insisto na tónica do Cristianismo não é por menosprezo às demais correntes de pensamento religioso, mas porque a experiência histórica, apesar de todos os pesares já anteriormente referidos, prova que somente ele se mostrou capaz de reformular o mundo na sua globalidade. As energias espirituais e a orientação racional do ensino moral do Cristo, encerrado no complexo de mitos dos Evangelhos, são, segundo entendo, os elementos que podem e realmente já estão balizando o futuro da humanidade terrena. O importante é chegarmos a esse futuro pelos meios adequados, com o mínimo de conflitos criminosos e o máximo de compreensão racional dos nossos objectivos. Como observou Gandhi nas suas memórias, os meios que nos podem levar à verdade e à dignidade só podem ser verdadeiros e dignos. Esses meios não precisam da justificação dos fins, pois que se justificam em si mesmos. 

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José Herculano Pires, Agonia das Religiões / Capítulo 14 – O Problema da Violência, 14º fragmento desta obra
(imagem de contextualização: Paraíso Perdido, estudo do Anjo, lápis e giz de Alexandre Cabanel

domingo, 11 de julho de 2021

Hippolyte Léon Denisard Rivail


~~ Isolamento dos corpos pesados ~ 

O movimento imprimido aos corpos inertes pela vontade é hoje de tal forma conhecido que seria quase infantil relatar os factos desse género; já o mesmo não acontece quando o movimento se faz acompanhar de certos fenómenos menos vulgares, por exemplo, o da sua suspensão no espaço. Embora os anais do Espiritismo citem numerosos exemplos, este fenómeno apresenta uma tal derrogação das leis da gravidade que a dúvida parece muito natural para quem quer que os tenha testemunhado. Mesmo nós, confessamos, por mais habituados que estejamos às coisas extraordinárias, ficamos bastante impressionados em constatar-lhe a realidade. Os factos que vamos narrar, repetiram-se várias vezes, aos nossos olhos, nas reuniões que antes aconteciam em casa do Sr. B***, na Rua Lamartine e, sabemos, também, que se produziram inúmeras vezes noutros lugares. Podemos, pois, atestá-lo como incontestável. Eis como as coisas se passavam: 

Oito ou dez pessoas, entre as quais algumas dotadas de um poder especial, embora não fossem reconhecidas como médiuns, se sentavam à volta de uma pesada e maciça mesa de jantar, com as mãos às suas bordas e unidas, todas, pela intenção e pela vontade. Ao fim de um certo tempo mais ou menos longo, dez minutos ou um quarto de hora, conforme fossem as disposições ambientais mais ou menos favoráveis, a mesa se punha em movimento, a despeito do seu peso de quase cem quilos; deslizava para a direita ou para a esquerda no soalho; dirigia-se para diversas partes do salão que lhe fossem indicadas; levantava-se depois, ora num pé, ora noutro, até formar um ângulo de 45º; e balançava com rapidez, imitando o movimento de baloiço do navio. Se, em tal posição, os assistentes redobrassem os esforços de sua vontade, a mesa se levantava completamente do solo, a dez ou vinte centímetros de altura, sustentando-se, dessa forma, no espaço sem qualquer ponto de apoio, durante alguns segundos, para cair em seguida com todo o seu peso. 

O movimento da mesa, o seu levantamento sobre um pé e o seu baloiço produziam-se mais ou menos à vontade, várias vezes durante a reunião e, também por diversas vezes sem nenhum contacto das mãos; bastava somente a vontade para que a mesa se dirigisse ao lado indicado. O isolamento completo era mais difícil de obter, sendo repetido amiúde, a fim de não ser visto como um facto excepcional. Ora, isso não se passava apenas na presença dos adeptos, que se poderia crer muito acessíveis à ilusão, mas diante de vinte ou trinta pessoas, entre as quais se encontravam algumas muito pouco simpáticas, que não deixariam de levantar a suspeita de alguma artimanha secreta, sem consideração para com o dono da casa, cujo carácter honrado deveria afastar todo o pensamento de fraude e para quem, aliás, teria sido um prazer particularmente singular passar algumas horas por semana a mistificar uma assembleia, sem qualquer proveito. 

Narramos o facto em toda a sua simplicidade, sem restrições nem exageros. Não diremos, no entanto, que vimos a mesa adejar no espaço como se fosse uma pluma; porém, mesmo como as coisas se passaram, o facto não demonstra menos a possibilidade do isolamento dos corpos pesados sem ponto de apoio, por meio de uma força até agora desconhecida. Também não diremos que bastava estender uma mão ou fazer um sinal qualquer para que, no mesmo momento, a mesa se movesse e se elevasse como por encanto. 

Ao contrário, diremos, a bem da verdade, que os primeiros movimentos se verificaram sempre com certa lentidão, não adquirindo senão gradualmente a sua máxima intensidade. O levantamento completo só acontecia depois de vários movimentos preparatórios, que eram como que ensaios para uma espécie de arremesso. A força actuante parecia redobrar de esforços para encorajar os assistentes, como um homem ou um cavalo que realiza uma pesada tarefa e que é excitado por gestos e palavras. Uma vez produzido o efeito, tudo retornava à calma e, por alguns instantes, nada se obtinha, como se aquela mesma força tivesse necessidade de retomar o fôlego. 

Muitas vezes, mais, haveremos de ter ocasião de citar fenómenos deste género, sejam espontâneos ou provocados e, realizados em proporções e circunstâncias bem mais extraordinárias; porém, sempre que formos deles testemunha, relatá-lo-emos sempre de maneira a evitar qualquer interpretação falsa ou exagerada. Se no facto relatado, acima, nos tivéssemos contentado em dizer que vimos uma mesa de cem quilos elevar-se do solo pelo simples contacto das mãos, ninguém duvide, que muitas pessoas pensariam que a mesa havia subido até ao tecto e, com a rapidez de um piscar de olhos. É assim que as coisas mais simples se tornam prodígio pelas proporções que lhes empresta a imaginação. O que não acontecerá quando os factos atravessarem os séculos e passarem pela boca dos poetas! Se se dissesse que a superstição é filha da realidade, ter-se-ia avançado num paradoxo e, todavia, nada é mais verdadeiro; não há superstição que não repouse sobre um fundo verdadeiro; tudo está em discernir onde termina um e começa o outro. O verdadeiro meio de combater as superstições não é contestá-las de maneira absoluta; no espírito de certas pessoas há ideias que não se desenraízam tão facilmente, porque há sempre factos a citar em apoio de sua opinião; ao contrário, é preciso é mostrar o que tem existência de facto; então, só restará o exagero ridículo, ao qual o bom senso fará justiça. 

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Allan Kardec (i), aliás, Hippolyte Léon Denisard Rivail, Isolamento dos Corpos Pesados. Revista Espírita – Jornal de Estudos Psicológicos, Paris, Fevereiro de 1858, 10º fragmento da Revista objecto do presente titulo desta publicação. 
(imagem de contextualização: Dança rebelde, 1965 – Óleo sobre tela, de Noêmia Guerra