Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

domingo, 27 de junho de 2021

~ em torno do mestre


Os dois espelhos ~ 

Um dos objectos cuja utilização está mais vulgarizada na sociedade é, sem dúvida, o espelho. A sua invenção data do século XIII, quando então se usava forrar a parte posterior do vidro com lâminas de metal. Mais tarde, no século XVI, a prática havia mostrado que, estanhando-se as lâminas de vidro na face posterior, a parte anterior reflectia perfeitamente a imagem que se colocava na frente. 

Estava realizada a grande descoberta. Já se não fazia mais mister, como na antiguidade, recorrer ao poder reflector dos discos de aço polido. O engenho humano havia resolvido o grande problema. O homem podia mirar-se à vontade, vendo a sua imagem fielmente reflectida na prancha de vidro emoldurada em elegantes caixilhos. 

Desde então, o fabrico de espelhos constituiu rendosa indústria, tal a generalização do seu emprego. Não há lar, por mais modesto, onde se não encontre esse utensílio havido como indispensável. Nos palácios mais sumptuosos, como nos casebres mais humildes; lá está o espelho ostentando luxuosamente nas portas dos guarda-casacas dos ricos, ou pendentes das paredes em singelos quadrinhos forrados de papelão. 

Ninguém lhe dispensa a utilização: do mais pobre ao mais rico, do sábio ao insciente, do pária ao magnata. Ambos os sexos o consideram como rigorosamente necessário. 

Sair à rua sem consultá-lo no conserto da gravata, no arranjo do cabelo, na disposição geral do fato, é falta imperdoável que a nossa elite é incapaz de praticar. 

Quanto às raparigas, é mais fácil "passar o camelo pelo buraco da agulha", que a senhorita do século defrontar um espelho sem dar um toque no cabelo e no vestuário, sem correr um olhar de inspecção no seu porte e nas linhas gerais do talhe. O espelho é tido em tal estima pelas raparigas que, além de não o dispensar em todos os cómodos da casa, trazem-no consigo em bolsas ou carteiras elegantes, a fim de consultá-lo a cada instante, a todos os momentos. 

No entanto, cumpre notar que, há um outro espelho, que não é fruto do engenho humano, mas constitui a mais preciosa das faculdades com que Deus houve por bem, no seu amor, dotar a todos os seus filhos, a fim de que se reflectisse neles a divina paternidade, assegurando-lhes, ao mesmo tempo, o meio seguro de caminharem triunfantes na conquista de um porvir glorioso: é a consciência. 

Assim como o espelho reflecte o nosso exterior, a consciência reflecte o nosso interior. Vemos através dela a imagem perfeita da nossa alma, como no espelho a imagem real do nosso rosto. O espelho dá conta da nossa fisionomia, do nosso semblante, da nossa forma. 

A consciência nos revela o espírito, o carácter, os sentimentos mais íntimos e recônditos. 

Ambos — o espelho e a consciência — se prestam ao mesmo fim: compor as linhas da harmonia, reparar os senão, corrigir, embelezar — o espelho, ao corpo, a consciência, ao espírito. Ambos têm a mesma função: reflectir com justiça, pondo, diante do nosso próprio critério, o aspecto, a figura exacta do nosso físico e do nosso moral, a forma externa e a interna do nosso ser. 

Ora, assim sendo, não será de estranhar estimarmos tanto o espelho de vidro, frágil e quebradiço quanto à matéria que reflecte, desdenhando a consciência, essa faculdade maravilhosa que reproduz a divina imagem a cuja semelhança fomos criados? Não será insânia curarmos, com tanto zelo, do corpo que perece, esquecendo o espírito que permanece? 

Se não saímos à rua com os cabelos em desalinho, com o fato amarfanhado, com os sapatos por polir, como, então, ousamos expor aos nossos olhos e aos nossos maiores, que de cima nos observam, a alma coberta de míseros andrajos e imundas farandolagens? Se consultamos o espelho no que respeita à beleza do corpo, porque não consultarmos a consciência no que concerne à beleza da alma? Valerá, por acaso, aquele mais que esta? Se recorremos diariamente, mesmo a cada momento, ao concurso do espelho para adornar o nosso físico, porque não proceder assim, apelando para a consciência constantemente, a fim de tornar íntegro e belo o nosso carácter? Se obedecemos aos reflexos do espelho, corrigindo todas as falhas que ele acusa no nosso exterior, porque não fazer outro tanto atendendo à consciência, sempre que ela acuse, intimamente, as falhas do nosso interior? 

Porque nos afligirmos com os reparos do corpo, desse corpo que dia a dia, a despeito de todo o nosso esforço em conservá-lo, declina e periclita e, não nos incomodarmos com o aperfeiçoamento do espírito, sede da inteligência e dos sentimentos? Trocaremos, então, o indumento do corpo pelo indumento da alma, atendendo pressurosos aos reclamos daquele e desprezando os clamores desta?  

É admirável que o homem se mire tantas vezes ao espelho de vidro e não se habitue a usar com a mesma assiduidade o espelho da alma — a consciência — essa faculdade que ele traz consigo, que faz parte integrante de si mesmo, da sua estrutura moral! 

Não condenamos as raparigas porque desejam ser belas. Essa aspiração é natural, é intrínseca à espécie, constituindo incentivo para o seu aperfeiçoamento. Lamentável é esse estrabismo que leva a mocidade a só buscar o belo exterior, descuidando do belo interior. A beleza é como a saúde: vem de dentro para fora. 

Reza a tradição que Maria, mãe de Jesus, era um peregrino-tipo de beleza. Cremos piamente nessa tradição; cremos porque podemos ver, positivamente, através das virtudes excelsas que lhe exornam o carácter de mulher perfeita, o reflexo de uma beleza sem exemplo nos fastos da história feminina. Se no interior era tudo harmonia, era tudo doçura, encanto e bondade, como o exterior não havia de objectivar tais dotes e virtudes no rasgo e nos traços de beleza? 

Sem deixarmos, portanto, de nos olhar por fora, olhemo-nos também por dentro. Façamos uso dos dois espelhos. 


Pai-nosso que estás nos Céus ~ 

Assim, pois, é que haveis de orar, disse o Mestre: Pai-nosso que estás nos céus... 

Pai-nosso, isto é, de todos os homens, da Humanidade inteira, abrangendo todas as raças, todas as nações, todos os povos. Pai dos bons e dos maus, dos justos e dos pecadores, sobre os quais derrama, sem excepção, as suas chuvas e faz incidir indistintamente os raios benéficos do seu sol que aquece, ilumina e vivifica. 

Pai do judeu e do gentio, do fariseu e do publicano, dos circuncidados e dos incircuncisos, dos que crêem e também dos que não crêem. Pai dos ricos e dos pobres, dos sábios e dos ignorantes, dos reis e dos vassalos, dos nobres e dos párias, dos poderosos e dos humildes. 

Da paternidade divina decorre como premissa inalienável a fraternidade humana. 

Todos os homens são irmãos. As raças — branca, preta e amarela; a latina e a saxónia, todas se confundem, formando uma só: a raça humana. 

Apagam-se as fronteiras que dividem os povos; as nacionalidades se irmanam, os idiomas se conjugam, os pavilhões mesclam as suas cores; uma só família habita a Terra: a Humanidade! 

Não há mais judeus nem gentios, fariseus nem publicanos, saduceus nem samaritanos: há só um rebanho e, um só pastor — Cristo Jesus

Nobres e plebeus, ricos e pobres, sábios e inscientes, intelectuais e operários, cérebro e músculos, capital e trabalho já se entendem perfeitamente. Não há mais dissídios, nem contendas, nem lutas fratricidas. A sociedade já não se compõe de classes ou castas que mutuamente se exploram e se hostilizam: é um todo homogéneo. As partes se ajustam e se completam, formando a grande harmonia na diversidade. 

Tal prodígio se consumará como efeito natural da compreensão e assimilação em espírito e verdade da primeira sentença da oração dominical: Pai-nosso que estás nos céus, isto é, que pairas acima de todas as competições, zelos, ciúmes e rivalidades; que pairas acima de todas as querelas, disputas e contendas; que pairas acima de toda a seiva sectária ou partidária, de todos os interesses subalternos, de todas as paixões inconfessáveis que separam os homens, gerando entre eles antagonismos e odiosidades. 

Pai-nosso que estás nos céus! ouve a nossa prece e faze que todos sintamos nos nossos corações que Tu és o nosso Pai, e nós somos irmãos; pois de tal depende, como Tu sabes e o teu Cristo no-lo revelou, a solução de todos os nossos problemas a conquista de todo o nosso bem. 


Frase maravilhosa ~ 

"Tudo é possível àquele que crê" — disse, com ênfase, o maior expoente da verdade na Terra: Jesus Cristo

Fundadas razões teve o Mestre ao firmar tão sábia sentença. A natureza íntima do homem propende a crer. Tudo o que a Humanidade tem produzido de bom e de grande, é obra da fé. Todas as descobertas, todos os inventos, todas as modalidades de progresso — esta ou aquela — representam conquistas desta grande virtude. 

Os povos mais fortes, mais capazes e que mais prodigiosos feitos têm realizado, são os que mais e melhor sabem crer. Os Países Baixos são um país de área bastante acanhada. A sua população densa não se podia acomodar nas limitadas proporções do território pátrio. Que fizeram os holandeses? Disputaram as terras ao mar. Entraram em conflito com o oceano, forçando as suas bravias ondas a recuarem e cederem terreno. Semelhante proeza é um magnífico golpe de fé que enobrece e dignifica o povo que o concebeu e executou. 

O Mestre divino não exagera quando diz que a fé move montanhas. 

De facto, onde há maior audácia: arrasar montes ou conquistar território das profundezas oceânicas.

Japão é vítima de terramotos violentíssimos que, por vezes, têm reduzido cidades inteiras a montões de escombros. Que faz o nipónico? Renega o solo onde nasceu, blasfema, revolta-se ou cai em apatia? Não. Reconstrói tudo, fazendo renascer das ruínas as mesmas cidades, refeitas, embelezadas tal como a Fénix da fábula ressurgindo das próprias cinzas. 

Vemos na tenacidade do japonês que o homem foi criado para crer. Por isso, ele enfrenta os cataclismos, certo de que é à vida, e não à morte, que cabe a vitória no desfecho de todas as lutas. 

Os caminhos de ferro, os barcos a vapor, os aeroplanos, as maravilhosas e utilíssimas invenções do grande e genial Edison, as descobertas científicas de toda a espécie, conducentes a conservar e dilatar a vida humana, melhorando, ao mesmo tempo, as suas condições, são outros tantos milagres da fé. 

Observemos um guindaste possante, manobrado por um menino, levantar moles cujo peso orça por algumas toneladas. 

Que ideia faremos desse maquinismo? Dirão, talvez, é a força da inteligência suprindo vantajosamente a força dos músculos. Cumpre notar, entretanto, que a inteligência (como as demais faculdades do Espírito) age mediante o influxo de um poder que a põe em actividade. Esse poder é a fé. 

Arquimedes, quando se propôs levantar o mundo, disse que o faria se lhe dessem uma alavanca e um ponto de apoio correspondente. O desafio do grande geómetra tinha por fim demonstrar o poder mecânico da alavanca no deslocamento de pesos. Não obstante, aquele poder depende de uma condição: o ponto de apoio. Todo o prodígio da alavanca resulta nulo sem o ponto de apoio. Assim também é a inteligência humana; a sua magia só se verifica debaixo da dinâmica da fé. A fé é o esteio da vida. Disse Amado Nervo, com muita justeza, que a fé é tão necessária como a respiração. 

A Natureza é um hino de fé. Tudo nos convida a crer, nada nos induz à descrença. As forças naturais são positivas. O homem que se harmoniza com elas age de acordo com a Natureza; mantém-se em atitude vitoriosa, sendo esse o segredo dos seus triunfos. O céptico é uma nota dissonante na orquestra da vida. É uma força negativa, estéril. O optimismo e o pessimismo são consequências inevitáveis da crença e da descrença. 

A Natureza nos convida a crer. O mundo do infinitamente grande, como o do infinitamente pequeno — o macrocosmo e o microcosmo — são elementos geradores de fé. O majestoso e o incomensurável panorama celeste onde milhões de sóis, de astros e de estrelas se agitam em revoluções ininterruptas na eternidade do tempo; aquele poder fantástico que traceja as órbitas para os gigantes do espaço infinito e, que é obedecido sem a discrepância de uma linha; esse concerto indescritível de acção e reacção, de atracção e repulsão que equilibra as potências cósmicas, assegurando a estabilidade do Universo; tudo isso, enfim, que do alto dos céus nos deslumbra e arrebata, convida-nos a crer. 

Se penetrarmos o ciclo do infinitamente pequeno, se devassarmos os mistérios de uma simples gota de água, outras tantas maravilhas não menos surpreendentes ali nos esperam para nos dizer peremptória e positivamente: crê! 

O telescópio e o microscópio geram mais fé que todos os dogmas e todas as liturgias das religiões. 

Se tudo o que existe, fora e dentro de nós, nos manda crer, porque havemos de descrer? Só a fatuidade do orgulho humano pode dar lugar ao cepticismo e à descrença. 

Gravemos na nossa mente a inolvidável frase de Jesus: Tudo é possível àquele que crê. Apelemos para o seu mágico encantamento e teremos o caminho da vida, aberto e franco às mais excelentes conquistas da inteligência. 

/… 

"Aos que comigo crêem e sentem as revelações do Céu, comprazendo-se na sua doce e encantadora magia, dedico esta obra." 
                                                                                 Pedro de Camargo “Vinícius” 


Pedro de Camargo “Vinícius” (i)Em torno do Mestre, 1ª Parte / Seixos e Gravetos; Os dois espelhos / Pai-nosso que estás nos Céus / Frase maravilhosa, 11º fragmento desta obra. 
(imagem de contextualização: Jesus em casa de Marta e Maria, óleo sobre tela (1654-1655), pintura de Johannes Vermeer)

quarta-feira, 16 de junho de 2021

Diálogos de Kardec ~


§ Fotografia e telegrafia do Pensamento" 

A fotografia e a telegrafia do pensamento são questões até agora pouco explanadas. Como todas as que não apresentam ligação com as leis que, devem ser universalmente difundidas, foram relegadas para segundo plano, não obstante serem de capital importância e poderem os elementos que elas contêm concorrer para a elucidação de muitos problemas que ainda se encontram sem solução. 

Quando um artista de talento executa um quadro, uma obra magistral a que consagrou todo o génio que progressivamente adquiriu, dá dela primeiramente os traços gerais, de forma que se compreenda, desde o esboço, todo o resultado que espera dali tirar. Só depois de haver elaborado minuciosamente o seu plano geral é que entra nas minúcias; e, embora a este último trabalho deva, talvez, dispensar maiores cuidados do que àquele outro, tal não lhe seria possível, se não houvesse esboçado antes o seu quadro. O mesmo sucede no EspiritismoAs leis fundamentais, os princípios gerais, cujas raízes existem no espírito de todo o ser criado, foram elaborados desde a origem. Todas as outras questões, quaisquer que sejam, dependem das primeiras. Por isso é que, durante certo tempo, se torna forçoso pôr de lado o estudo dessas questões. 

Com efeito, poder-se-ia logicamente falar de fotografia e de telegrafia do pensamento, antes de estar demostrada a existência da alma que manobra os elementos fluídicos e a dos fluidos que permitem se estabeleçam relações entre duas almas distintas? Ainda hoje, talvez, mal começamos a estar suficientemente esclarecidos para a elaboração de tão vastos problemas! Entretanto, não se encontrarão deslocadas aqui algumas considerações de natureza a preparar as bases para um estudo mais completo? 

Limitado nas suas ideias e aspirações, tendo circunscritos os seus horizontes, o homem precisa concretizar todas as coisas e pôr-lhes etiquetas, a fim de guardar delas apreciável lembrança e basear os seus futuros estudos nos dados que haja reunido. Pelo sentido da vista foi que lhe vieram as primeiras noções do conhecimento. Foi a imagem de um objecto que lhe ensinou a existência desse objecto. Quando conheceu muitos objectos, tirou deduções das impressões diferentes que eles lhe produziam no íntimo do ser, fixou na inteligência a quintessência deles por meio do fenómeno da memória. Ora, que é a memória, senão um espécie de álbum mais ou menos volumoso, que se folheia para encontrar de novo as ideias apagadas e reconstituir os acontecimentos que se foram? Esse álbum tem marcas nos pontos capitais. De alguns factos o indivíduo imediatamente se recorda; para recordar-se de outros, é-lhe necessário folhear por longo tempo o álbum. 

A memória é como um livro! Aquele em que lemos algumas passagens facilmente no-las apresenta aos olhos; as folhas virgens ou raramente perlustradas têm que ser folheadas uma a uma, para que consigamos reconstituir um facto sobre o qual pouco tenhamos demorado a atenção. 

Quando o Espírito encarnado se lembra, a sua memória lhe apresenta, de certo modo, a fotografia do facto que ele procura. Em geral, os encarnados que o cercam nada vêem; o álbum se encontra em lugar inacessível ao olhar deles; mas, os Espíritos o vêem e folheiam connosco. Em dadas circunstâncias, podem mesmo, deliberadamente, ajudar a nossa pesquisa, ou perturbá-la. 

O que se produz de um encarnado para um desencarnado também se verifica do desencarnado para o vidente. Quando se evoca a lembrança de certos factos da existência de um Espírito, apresenta-se-lhe a fotografia desses factos; e o vidente, cuja situação espiritual é análoga à do Espírito livre, vê como ele e, até, em determinadas circunstâncias, vê o que o Espírito não vê por si mesmo, tal como um desencarnado pode folhear a memória de um encarnado, sem que este tenha disso consciência e lembrar-lhe factos de há muito esquecidos. Quanto aos pensamentos abstractos, por isso mesmo que existem, tomam corpo para impressionar o cérebro; têm de agir naturalmente sobre este e, de certo modo, gravar-se nele. Ainda neste caso, como no primeiro, parece perfeita a semelhança entre os factos da terra e os do espaço. 

Já tendo sido o fenómeno da fotografia do pensamento objecto de algumas reflexões nossas na Revista, para maior clareza reproduziremos alguns trechos do artigo em que o assunto foi tratado e que completaremos com outras observações novas. 

Sendo os fluidos o veículo do pensamento, este actua sobre aqueles como o som actua sobre o ar; eles nos trazem o pensamento como o ar nos traz o som. Pode, pois, dizer-se, com verdade, que há ondas nos fluidos e radiações do pensamento, que se cruzam sem se confundirem, como há, no ar, ondas e radiações sonoras. 

Ainda mais; criando imagens fluídicas, o pensamento reflecte-se no envoltório perispirítico como num espelho, ou, então, como essas imagens de objectos terrestres que se reflectem nos vapores do ar tomando aí um corpo e, de certo modo, fotografando-seSe um homem, por exemplo, tiver a ideia de matar alguém, embora o seu corpo material se conserve impassível, o seu corpo fluídico é accionado por essa ideia e a reproduz com todos os matizes. Ele executa fluidicamente o gesto, o acto que o indivíduo premeditou. O seu pensamento cria a imagem da vítima e a cena inteira se desenha, como num quadro, tal qual lhe está na mente. 

É, assim que os mais secretos movimentos da alma se repercutem no invólucro fluídico. É assim que uma alma pode ler noutra alma como num livro e ver o que não é perceptível aos olhos corporais. Estes vêem as impressões interiores que se reflectem nos traços fisionómicos: a cólera, a alegria, a tristeza; a alma, porém, vê nos traços da alma os pensamentos que não se exteriorizam. 

Entretanto, se, vendo a intenção, pode a alma pressentir a execução do acto que lhe será a consequência, não pode, contudo, determinar o momento em que ele será executado, nem lhe precisar os pormenores, nem mesmo afirmar que ele se realize, porque ulteriores circunstâncias podem modificar os planos concebidos e mudar as disposições. Ela não pode ver o que ainda não está no pensamento; o que vê é a preocupação ocasional ou habitual do indivíduo, os seus desejos, os seus projectos, as suas intenções boas ou más. Daí os erros nas previsões de alguns videntes. 

Quando um acontecimento está subordinado ao livre-arbítrio de um homem, eles apenas podem pressentir-lhe a probabilidade, de acordo com o pensamento que vêem; mas, não podem afirmar que se dará de tal forma, ou em tal momento. A maior ou menor exactidão nas previsões depende, além disso, da extensão e da clareza da vista psíquica. Nalguns indivíduos, desencarnados ou encarnados, limita-se a um ponto ou é difusa, ao passo que noutros é nítida e abrange todo o conjunto dos pensamentos e das vontades que hajam de concorrer para a realização de um facto. Mas, acima de tudo, há sempre a vontade superior que pode, na sua sabedoria, permitir uma revelação ou impedi-la. Neste último caso, um véu impenetrável é lançado sobre a mais perspicaz vista psíquica. (Veja, em A Génese, o capítulo sobre a Presciência.) 

A teoria das criações fluídicas e, por conseguinte, da fotografia do pensamentoé uma conquista do moderno Espiritismo e pode, doravante, considerar-se como firmada em princípio, ressalvadas as aplicações de minúcia, que hão de resultar da observação. Este fenómeno é incontestavelmente a origem das visões fantásticas e desempenha grande papel em certos sonhos. 

Quem na Terra sabe de que maneira se estabeleceram os primeiros meios de comunicação do pensamento? Como foram inventados ou, antes, descobertos, dado que nada se inventa, pois que tudo existe em estado latente, cabendo aos homens apenas os meios de pôr em acção as forças que a Natureza lhes oferece? Quem sabe quanto tempo foi necessário para que os homens usassem da palavra de modo perfeitamente inteligível? 

Aquele que soltou o primeiro grito inarticulado tinha sem dúvida uma certa consciência do que queria exprimir, mas os a quem ele se dirigiu nada a princípio compreenderam. Só decorrido longo lapso de tempo se verificou a existência de palavras convencionadas, depois a de frases abreviadas e, por fim, discursos inteiros. Quantos milhares de anos não foram necessários para que a Humanidade chegasse ao ponto em que hoje se encontra! Cada progresso nos modos de comunicação, nas relações entre os homens, foi sempre assinalado por uma melhoria do estado social dos seres. À medida que as relações de indivíduo a indivíduo se tornam mais estreitas, mais regulares, a necessidade se faz sentir de uma nova e mais rápida forma de linguagem, mais apropriada a pôr os homens em comunicação instantânea e universalmente uns com os outros. Por que não teria cabimento no mundo moral, de encarnado a encarnado, por meio da telegrafia humana, o que ocorre no mundo físico, por meio da telegrafia eléctrica? Por que as relações ocultas que ligam, de maneira mais ou menos consciente, os pensamentos dos homens e dos Espíritos, por meio da telegrafia espiritual, não se generalizariam entre os homens, de modo consciente? 

A telegrafia humana! Aí está uma coisa de molde certamente a provocar o riso dos que se negam a admitir o que não cabe debaixo dos sentidos materiais. Mas, que importam as zombarias dos presunçosos? As suas negações, por mais que eles as multipliquem, não obstarão a que as leis naturais sigam o seu curso, nem a que se encontrem novas aplicações dessas leis, à medida que a inteligência humana se encontre em estado de lhes experimentar os efeitos. 

O homem exerce acção directa sobre as coisas, assim como sobre as pessoas que o cercam. Frequentemente, uma pessoa a quem se dá pouca atenção a exerce decisiva sobre outras de reputação muito superior. Isto decorre de que na Terra se vêem muito mais máscaras do que semblantes e de que aí o olhar tem a obscurecê-lo a vaidade, o interesse pessoal e todas as paixões más. A experiência demonstra que se pode actuar sobre o espírito dos homens, à revelia deles. Um pensamento superior, fortemente pensado, permita-se-nos a expressão, pode, pois, conforme a sua força e a sua elevação, tocar de perto ou de longe homens que nenhuma ideia fazem da maneira por que ele lhes chega, do mesmo modo que muitas vezes aquele que o emite não faz ideia do efeito produzido pela sua emissão. É esse um jogo constante das inteligências humanas e da acção recíproca de umas sobre as outras. Juntai-lhe a das inteligências dos desencarnados e imaginai, se o conseguirdes, o poder incalculável dessa força composta de tantas forças reunidas. 

Se se pudesse suspeitar do imenso mecanismo que o pensamento acciona e dos efeitos que ele produz de um indivíduo a outro, de um grupo de seres a outro grupo e, afinal, da acção universal dos pensamentos das criaturas umas sobre as outras, o homem ficaria assombrado! Sentir-se-ia aniquilado diante dessa infinidade de pormenores, diante dessas inúmeras redes ligadas entre si por uma potente vontade e actuando harmonicamente para alcançar um único objectivo: o progresso universal.

Pela telegrafia do pensamento, ele apreciará em todo o seu esplendor a lei de solidariedade, ponderando que não há um pensamento, seja criminoso, seja virtuoso, ou de outro género, que não tenha acção real sobre o conjunto dos pensamentos humanos e sobre cada um deles. Se o egoísmo o levava a desconhecer as consequências, para outrem, de um pensamento perverso, pessoalmente o seu, por esse mesmo egoísmo ele se verá induzido a ter bons pensamentos, para elevar o nível moral da generalidade das criaturas, atentando nas consequências que sobre si mesmo produziria um mau pensamento de outrem. 

Que serão, senão consequência da telegrafia do pensamento, esses choques misteriosos que nos advertem da alegria ou do sofrimento de um ente querido, que se encontra longe de nós? Não é a um fenómeno do mesmo género que devemos os sentimentos de simpatia ou de repulsão que nos arrastam para certos Espíritos e nos afastam de outros? 

/... 


ALLAN KARDEC, Obras Póstumas, Primeira Parte, Manifestações dos Espíritos, – Fotografia e telegrafia do Pensamento, 17º fragmento desta obra. 
(imagem de contextualização: Dança rebelde, 1965 – Óleo sobre tela, de Noêmia Guerra

quinta-feira, 3 de junho de 2021

O Mundo Invisível e a Guerra ~


XXII 

Hosanna! 

12 de Novembro de 1918 
(1) 

  A cidade está em festa. Tocam todos os sinos. Troa o canhão e ouvem-se as músicas norte-americanas em todos os cruzamentos das ruas e avenidas. A população inteira, num pensamento comum de libertação e de felicidade, aclama a assinatura do armistício, prenúncio da paz. 

  Não só a velha cidade está alegre, como toda a França vibra de entusiasmo. Das planícies do centro, dos vales do sul e dos bosques da Lorraine sobem os sons das fanfarras e os cantos de alegria. No Espaço, incontáveis legiões dos que tombaram pela pátria se associam ao júbilo de um povo delirante. As harmonias do Céu respondem às vozes da Terra. 

  O sofrimento de 52 meses terminou e, graças ao Novo Espiritualismo, aos guias invisíveis, às suas previsões e aos seus ensinamentos, tudo suportámos com paciência. apesar das tristezas e angústias dessa longa guerra, até mesmo nas horas mais difíceis, como por exemplo, na retirada da Rússia, nunca perdemos a confiança na salvação da pátria e no socorro do Alto. 

  Durante as peripécias da luta, uma poderosa corrente de forças espirituais nunca deixou de passar sobre a França e os seus heróicos soldados, impulsionando-os e exaltando-os até levá-los, finalmente, à vitória. 

  Agora temos que reparar os males causados pela guerra, formar uma alma nova para a França. É necessário que a união nascida nas trincheiras, nos campos de batalha e na retaguarda, entre homens de todas as condições, se fortifique pela vontade e pelos esforços de todos. 

  As lutas partidárias devem terminar diante da firme resolução de todos os franceses: trabalhar, com um mesmo empenho e um só coração, no reerguer e na regeneração do país. 

  É necessário, principalmente, que uma nova fé eleve os pensamentos acima dos interesses egoístas, fazendo penetrar nas consciências o sentimento do dever e das responsabilidades pessoais de quantos pretendam mostrar-se dignos do título de seres humanos. 

  Para todos vós, vivos heróicos ou mortos gloriosos que combateram, lutaram e padeceram por nós; para todos vós, que garantistes o triunfo da justiça e da liberdade neste mundo que se teria tornado inabitável, caso a força brutal e a mentira tivessem prevalecido; para todos vós, um hino de reconhecimento, um tributo de admiração e a gratidão da humanidade inteira! 

  Esta guerra é única na história do mundo, pelos recursos pérfidos e fratricidas que inaugurou, pela extensão mundial e as grandes massas de tropas movimentadas. As dificuldades e complicações que ela originou só foram vencidas graças a esforços gigantescos. 

  O tratamento imposto à Bélgica e à Sérvia pelos seus invasores levou-nos a acreditar numa bancarrota quanto ao mais nobre e ao mais sagrado que existe na consciência. 

  Por outro lado, povos inteiros se lançaram na fogueira em prol da causa do direito, multiplicando-se os actos de heroísmo e de sacrifício. Qualidades morais desconhecidas afloravam de tal forma que a dignidade humana se ergueu e se reabilitou. 

  O rebaixamento dos caracteres, antes da guerra, era notável e evidente. Lamentavelmente, verificávamos quanto a nossa época era pobre em homens geniais; porém, na hora do perigo, numerosas falanges surgiram, enfrentando os riscos e a morte. Embora o orgulho, a falsidade e a crueldade se manifestassem em toda a sua crueza, por outro lado, legiões de almas se elevaram de um salto até às alturas do sublime. 

  A França assumiu resolutamente as suas provações, subiu o seu calvário e arriscou a vida em prol da salvação comum. 

  A humanidade, comovida por esse espectáculo grandioso, acorreu a sustentá-la. Apareceram os homens exactos e providenciais que Deus reserva para a realização dos seus grandes desígnios: Woodrow Wilson, Lloyd George, Georges Clemenceau, Ferdinand Foch, que não foram mais do que instrumentos do Além, executores do plano divino, os agentes pelos quais a justiça superior se realiza com um brilho sem igual na história do mundo. O nosso século nada tem a invejar dos que o precederam, porque se mostrou maior que todos eles. 

  Como, portanto, duvidar do futuro? Através do caos dos acontecimentos, sentimos que uma nova humanidade se esboça; as tradições de um passado de ferro e de sangue parecem definitivamente afastadas. 

  As leis da consciência, paulatinamente, substituem as regras de uma política violenta e de uma força brutal que por muito tempo dominou o nosso mundo ainda bárbaro. Os povos acreditam vislumbrar no horizonte a aurora de um tempo onde a justiça e a fraternidade reinarão. 

  Assim sendo, um grande passo se dará no caminho áspero, porém sagrado, por onde se desenvolve a longa série de gerações humanas. Entretanto, não confiemos muito nisso... Longe, na grande Rússia, permanece um perigo que ameaça invadir a Europa Central e alastrar-se pelo Ocidente. 

  Existem ainda, no nosso atrasado planeta, muitos seres inferiores, ignorantes e passionais, para que a ordem e a harmonia se possam estabelecer de modo definitivo. 

  Provavelmente, a luta recomeçará sob outras formas, criando outros heróis e outros mártires e, nela as legiões invisíveis se associarão aos nossos esforços e às provações que suportaremos. 

  Trata-se de um combate universal do bem contra o mal, da luz contra as trevas e da verdade contra o erro! 

  Por meio dele as almas se robustecem e desenvolvem as suas energias latentes; escalam as ladeiras íngremes coroadas por cimos deslumbrantes. É o imenso concerto onde as contradições e os antagonismos ora se chocam, ora se fundem numa sinfonia quase sobre-humana. E nesse poderoso concerto há um canto que paira sobre todos os outros: a Hosanna, o canto triunfal daqueles que venceram e que, dos sofrimentos, das angústias e das lágrimas, souberam conseguir para as suas almas mais riqueza de pensamentos, de sentimentos, de beleza e de grandeza! 


15 de Dezembro de 1918 
(2) 

  Uma vez terminada a borrasca e que a calma começa a renascer nos espíritos, analisemos seriamente, com sentimento quase religioso, os factos que acabam de acontecer e tentemos obter os altos ensinamentos que eles encerram. 

  Em primeiro lugar, o que mais nos impressiona é a evidente intervenção de um poder, de uma vontade superior: a acção do mundo invisível para salvar a França do fracasso e da morte com o intuito de estabelecer o reinado do direito. 

  Mostrar-me-ão, talvez, as consequências dessa guerra terrível, as alternativas de sucesso e de fracasso, as horas de angústia e incerteza, quando parecia que o destino se voltava contra nós. Poderão dizer que tais peripécias estão em desacordo com a execução de um plano aprovado pelo Alto. 

  A resposta é fácil: Deus deseja que o homem participe da obra divina com os seus esforços e sacrifícios, é por esse preço que o progresso humano se concretiza. Porém, chegado o momento, o poder divino se manifestou e o orgulho germânico foi abatido. Daí a súbita reviravolta na situação, a ofensiva fulminante das nossas tropas e a derrota final para o inimigo. Ainda agora não perdem actualidade as palavras de Jeanne d’Arc: “Os soldados batalharão e Deus dará a vitória.” 

  Durante três anos, desde 1914, acompanhámos diariamente as etapas da guerra, quanto à colaboração do mundo invisível e, relatámos os seus feitos principais em diversos artigos de revistas: a reunião, em conselhos, dos grandes espíritos; a busca de chefes militares capazes de receber as suas inspirações; a acção permanente das legiões do além sobre os combatentes e a previsão dos acontecimentos futuros. 

  Após a batalha de Charleroi, quando o exército alemão avançava como uma avalanche e todas as vanguardas de sua cavalaria já penetravam nos subúrbios de Paris, os nossos guias nos garantiam que eles não entrariam na nossa capital. Mais tarde, diante de Verdun, na hora em que o inimigo chegava à última linha de fortificações de Souville e de Tavannes, aqueles mesmos guias nos afirmavam que os alemães não tomariam a cidade lorena. Da mesma forma, nos momentos mais duvidosos, antes que a sorte dos exércitos estivesse determinada, as predições dos espíritos sobre a nossa vitória final se concretizaram. 

  Entre os soldados muitos perceberam directamente a presença do invisível, outros tiveram a intuição dessa presença, conforme grande número de cartas, procedentes da linha de frente, confirmam. 

  Entre mil exemplos, citemos um: nas suas Cartas de Guerra, recentemente publicadas, o tenente Masson, embora sem ser espírita, declarava: 

  “Sinto-me fraternalmente rodeado por invisíveis que me orientam: todos me dizem que a morte não é tão terrível e que existem coisas que valem mais que a vida.” (*) 

  Os jovens, principalmente, estão vivamente impressionados, porque o contacto permanente com o perigo e a lição dos grandes acontecimentos lhes amadureceu o pensamento, tornando os seus sentimentos mais graves e mais profundos. Eles tornarão à vida civil com noção mais elevada dos seus deveres e, a ideia de pátria, tão desacreditada antes da guerra, assumiu a seus olhos um sentido mais amplo e mais extenso. Sabem que não basta servi-la na guerra, mas também nas horas de paz, em tudo aquilo que possa engrandecê-la, dignificá-la, tornando-a mais respeitada no mundo. 

  Observou-se que as novas classes são superiores, nesse particular, às antigas e que a incredulidade escarnecedora de outrora foi substituída pela confiança e pela fé. As próprias crianças que presenciaram este imenso drama conservarão dele uma forte impressão que exercerá grande influência nas suas vidas. 

  Se houvesse um ensino popular que viesse completar em todos eles estas felizes disposições, se a bela chama do idealismo fosse acesa naquelas almas, veríamos que, aos poucos, as gerações envelhecidas e decepcionadas, prestes a desaparecer, seriam substituídas por uma nova França, ardente e generosa, possuidora de uma fé patriótica que lhe garantiria efectuar grandes empreendimentos. 

  Actualmente, a França recobra o seu posto na vanguarda das nações. Desde 1870, vivíamos vergados sob o peso da derrota. Não podíamos dar um passo no exterior sem que esbarrássemos com as recordações dos nossos fracassos, com mil causas de amargura e humilhação. Depois veio a terrível crise em que o país poderia ter soçobrado. 

  Todas as faltas e todos os erros se expiam. Durante muito tempo as classes entre nós denominadas dirigentes, carcomidas pelo materialismo e pelo ateísmo, só possuíam como objectivo o dinheiro e o prazer. 


  O proletariado, por sua vez, cioso e vingativo, desejava a conquista do bem-estar, da riqueza e do poder, pela força. Disso resultou a perturbação dos espíritos, a incerteza do amanhã e o princípio da decomposição social. 

  Todavia, quando juntos enfrentaram o perigo e sofreram as provações, os traços de solidariedade se apertaram, ganhando a França uma nova alma. A charrua da dor nela cavou a sua marca e fez brotar as fontes de um poder que ajudará o seu reerguer e o seu majestoso voo. 

  Para nós apresenta-se uma imensa tarefa e para realizá-la é necessária a colaboração de todos, pois já não se trata de fazer concessões, nem de aceitar compromissos, mas de prestar uma cooperação sincera e leal, não podendo nenhuma parcela do povo isolar-se e viver sem as outras. 

  Devemos exigir duas condições ao regime político: [a ordem e a liberdade], sem as quais a sociedade não é estável e o progresso não está seguro. Um republicano verdadeiro deve respeitar as opiniões alheias e não querer impor as suas, a não ser pela persuasão, sendo criminosa, nesse domínio, toda e qualquer violência. 

  Porém, só isso não é suficiente: é preciso que a França recupere o seu grande papel histórico, que é o da semeadora e de divulgadora de ideias. Ao aureolar a sua fronte a vitória lhe impõe, como dívida, guiar as outras nações na sua marcha incerta. Para desempenhar essa grande missão necessita, sobretudo, do pensamento, da convicção elevada, da [iniciação na lei dos renascimentos e na comunhão dos vivos com os mortos]. 

  Esta comunhão pode tornar-se, na prática, uma fonte de força e de vida moral, porque é pelos esforços comuns dos dois planos – o visível e o invisível – que será realizada a obra regeneradora e a evolução dos seres para estados de maior sabedoria e mais luz. 

  [Jovens que lerem estas páginas, a estrada do futuro, larga e bela, está-vos aberta e vocês estão convidados a trilhá-la por todas as vozes da Terra e do Espaço]. Deixem para trás o passado, com o seu fardo pesado de terrores e iniquidades; avancem com passo firme e olhos fixos num nobre ideal. 

  Façam dos vossos trabalhos e dos vossos sofrimentos outros tantos degraus para uma subida mais alta. Escutem o apelo das almas invisíveis que vos dizem: “Coragem! Trabalhem com fervor na grande obra que cada geração elabora.” 

  Antes de vocês, na Terra, nós vivemos e sofremos, conhecendo a ingratidão, a zombaria e a perseguição. Porém, a vossa hora vos é mais propícia. 

  A nós calhou atravessar os desertos da descrença, vocês conhecerão no oásis as sombras frescas da esperança e os mananciais vivificantes da fé. Colherão na alegria o que semeamos na dor, porque, no meio da tempestade que acaba de desabar sobre a nossa pátria, surgiram as forças divinas, atenuou-se a descrença e a inteligência do homem se tornou receptiva às grandes verdades que regem os mundos. 

  Trabalhai, portanto, jovens! Nós vos inspiraremos e ampararemos. Do luminoso círculo que alcançámos, nós saudamos os novos tempos, os tempos melhores que se anunciam para a França e para a humanidade! 

/… 

(*) Masson, Cartas de Guerra, editado por Hachette, 1917 / Vejamos um segundo exemplo, mais recente: O general Berdoulat (i), governador militar de Paris, fez o seguinte relato a um repórter do Le Petit Parisien, publicado em 28 de Fevereiro de 1919: “O dia 18 de Julho de 1918 foi a jornada que devia marcar a derrota definitiva do inimigo. Algum tempo antes, eu havia ido, em missão especial, à Alsácia, onde conheci o prefeito de Montreux-le-Vieux. Ora, prevenido, pelas acções que antecederam a nossa grande ofensiva, da iminência de uma batalha, aquele magistrado me escreveu uma carta que me chegou às mãos na manhã do dia 18 de Julho. Ela continha as seguintes palavras: “Apresento a todos os meus votos pelo vosso bom êxito e pela nossa vitória. ” Pois bem! Eu estava, naquele dia, não sei porquê, tão emocionado pela certeza do triunfo, que, no momento em que a acção se delineava, bem antes de saber o seu resultado, respondi ao prefeito de Montreux: “Os vossos votos foram atendidos, esta é a nossa vitória, a derrota do inimigo.” Quem me impulsionou a responder assim, anunciando a vitória de uma batalha que ainda não havia começado? Qual a razão disso? Porquê naquela manhã eu não tinha a esperança, mas a certeza do triunfo? Na verdade, eu estava envolvido por uma força misteriosa. / Em Junho de 1917, num álbum que lhe foi entregue pelo general Guillemont (i) e no qual se lia a pergunta: “Quando terminará a guerra?”, o general Berdoulat respondeu, sob a influência da mesma força: “Em Novembro de 1918!” O armistício foi assinado no dia 11 daquele mês, este prognóstico também deu certo. 



Léon Denis, O Mundo Invisível e a Guerra, XXII Hosanna!, (1) 12 de Novembro de 1918 e (2) 15 de Dezembro de 1918, 37º fragmento desta obra. 
(imagem: Dois soldados um alemão e o outro britânico, no dia de Natal durante a primeira guerra mundial (1914), quando fizeram um cessar-fogo informal entre soldados, alemães, britânicos e também franceses, ao longo de uma semana, trocaram saudações, cantaram músicas e chegaram a trocar presentes)