Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

domingo, 27 de junho de 2021

~ em torno do mestre


Os dois espelhos ~ 

Um dos objectos cuja utilização está mais vulgarizada na sociedade é, sem dúvida, o espelho. A sua invenção data do século XIII, quando então se usava forrar a parte posterior do vidro com lâminas de metal. Mais tarde, no século XVI, a prática havia mostrado que, estanhando-se as lâminas de vidro na face posterior, a parte anterior reflectia perfeitamente a imagem que se colocava na frente. 

Estava realizada a grande descoberta. Já se não fazia mais mister, como na antiguidade, recorrer ao poder reflector dos discos de aço polido. O engenho humano havia resolvido o grande problema. O homem podia mirar-se à vontade, vendo a sua imagem fielmente reflectida na prancha de vidro emoldurada em elegantes caixilhos. 

Desde então, o fabrico de espelhos constituiu rendosa indústria, tal a generalização do seu emprego. Não há lar, por mais modesto, onde se não encontre esse utensílio havido como indispensável. Nos palácios mais sumptuosos, como nos casebres mais humildes; lá está o espelho ostentando luxuosamente nas portas dos guarda-casacas dos ricos, ou pendentes das paredes em singelos quadrinhos forrados de papelão. 

Ninguém lhe dispensa a utilização: do mais pobre ao mais rico, do sábio ao insciente, do pária ao magnata. Ambos os sexos o consideram como rigorosamente necessário. 

Sair à rua sem consultá-lo no conserto da gravata, no arranjo do cabelo, na disposição geral do fato, é falta imperdoável que a nossa elite é incapaz de praticar. 

Quanto às raparigas, é mais fácil "passar o camelo pelo buraco da agulha", que a senhorita do século defrontar um espelho sem dar um toque no cabelo e no vestuário, sem correr um olhar de inspecção no seu porte e nas linhas gerais do talhe. O espelho é tido em tal estima pelas raparigas que, além de não o dispensar em todos os cómodos da casa, trazem-no consigo em bolsas ou carteiras elegantes, a fim de consultá-lo a cada instante, a todos os momentos. 

No entanto, cumpre notar que, há um outro espelho, que não é fruto do engenho humano, mas constitui a mais preciosa das faculdades com que Deus houve por bem, no seu amor, dotar a todos os seus filhos, a fim de que se reflectisse neles a divina paternidade, assegurando-lhes, ao mesmo tempo, o meio seguro de caminharem triunfantes na conquista de um porvir glorioso: é a consciência. 

Assim como o espelho reflecte o nosso exterior, a consciência reflecte o nosso interior. Vemos através dela a imagem perfeita da nossa alma, como no espelho a imagem real do nosso rosto. O espelho dá conta da nossa fisionomia, do nosso semblante, da nossa forma. 

A consciência nos revela o espírito, o carácter, os sentimentos mais íntimos e recônditos. 

Ambos — o espelho e a consciência — se prestam ao mesmo fim: compor as linhas da harmonia, reparar os senão, corrigir, embelezar — o espelho, ao corpo, a consciência, ao espírito. Ambos têm a mesma função: reflectir com justiça, pondo, diante do nosso próprio critério, o aspecto, a figura exacta do nosso físico e do nosso moral, a forma externa e a interna do nosso ser. 

Ora, assim sendo, não será de estranhar estimarmos tanto o espelho de vidro, frágil e quebradiço quanto à matéria que reflecte, desdenhando a consciência, essa faculdade maravilhosa que reproduz a divina imagem a cuja semelhança fomos criados? Não será insânia curarmos, com tanto zelo, do corpo que perece, esquecendo o espírito que permanece? 

Se não saímos à rua com os cabelos em desalinho, com o fato amarfanhado, com os sapatos por polir, como, então, ousamos expor aos nossos olhos e aos nossos maiores, que de cima nos observam, a alma coberta de míseros andrajos e imundas farandolagens? Se consultamos o espelho no que respeita à beleza do corpo, porque não consultarmos a consciência no que concerne à beleza da alma? Valerá, por acaso, aquele mais que esta? Se recorremos diariamente, mesmo a cada momento, ao concurso do espelho para adornar o nosso físico, porque não proceder assim, apelando para a consciência constantemente, a fim de tornar íntegro e belo o nosso carácter? Se obedecemos aos reflexos do espelho, corrigindo todas as falhas que ele acusa no nosso exterior, porque não fazer outro tanto atendendo à consciência, sempre que ela acuse, intimamente, as falhas do nosso interior? 

Porque nos afligirmos com os reparos do corpo, desse corpo que dia a dia, a despeito de todo o nosso esforço em conservá-lo, declina e periclita e, não nos incomodarmos com o aperfeiçoamento do espírito, sede da inteligência e dos sentimentos? Trocaremos, então, o indumento do corpo pelo indumento da alma, atendendo pressurosos aos reclamos daquele e desprezando os clamores desta?  

É admirável que o homem se mire tantas vezes ao espelho de vidro e não se habitue a usar com a mesma assiduidade o espelho da alma — a consciência — essa faculdade que ele traz consigo, que faz parte integrante de si mesmo, da sua estrutura moral! 

Não condenamos as raparigas porque desejam ser belas. Essa aspiração é natural, é intrínseca à espécie, constituindo incentivo para o seu aperfeiçoamento. Lamentável é esse estrabismo que leva a mocidade a só buscar o belo exterior, descuidando do belo interior. A beleza é como a saúde: vem de dentro para fora. 

Reza a tradição que Maria, mãe de Jesus, era um peregrino-tipo de beleza. Cremos piamente nessa tradição; cremos porque podemos ver, positivamente, através das virtudes excelsas que lhe exornam o carácter de mulher perfeita, o reflexo de uma beleza sem exemplo nos fastos da história feminina. Se no interior era tudo harmonia, era tudo doçura, encanto e bondade, como o exterior não havia de objectivar tais dotes e virtudes no rasgo e nos traços de beleza? 

Sem deixarmos, portanto, de nos olhar por fora, olhemo-nos também por dentro. Façamos uso dos dois espelhos. 


Pai-nosso que estás nos Céus ~ 

Assim, pois, é que haveis de orar, disse o Mestre: Pai-nosso que estás nos céus... 

Pai-nosso, isto é, de todos os homens, da Humanidade inteira, abrangendo todas as raças, todas as nações, todos os povos. Pai dos bons e dos maus, dos justos e dos pecadores, sobre os quais derrama, sem excepção, as suas chuvas e faz incidir indistintamente os raios benéficos do seu sol que aquece, ilumina e vivifica. 

Pai do judeu e do gentio, do fariseu e do publicano, dos circuncidados e dos incircuncisos, dos que crêem e também dos que não crêem. Pai dos ricos e dos pobres, dos sábios e dos ignorantes, dos reis e dos vassalos, dos nobres e dos párias, dos poderosos e dos humildes. 

Da paternidade divina decorre como premissa inalienável a fraternidade humana. 

Todos os homens são irmãos. As raças — branca, preta e amarela; a latina e a saxónia, todas se confundem, formando uma só: a raça humana. 

Apagam-se as fronteiras que dividem os povos; as nacionalidades se irmanam, os idiomas se conjugam, os pavilhões mesclam as suas cores; uma só família habita a Terra: a Humanidade! 

Não há mais judeus nem gentios, fariseus nem publicanos, saduceus nem samaritanos: há só um rebanho e, um só pastor — Cristo Jesus

Nobres e plebeus, ricos e pobres, sábios e inscientes, intelectuais e operários, cérebro e músculos, capital e trabalho já se entendem perfeitamente. Não há mais dissídios, nem contendas, nem lutas fratricidas. A sociedade já não se compõe de classes ou castas que mutuamente se exploram e se hostilizam: é um todo homogéneo. As partes se ajustam e se completam, formando a grande harmonia na diversidade. 

Tal prodígio se consumará como efeito natural da compreensão e assimilação em espírito e verdade da primeira sentença da oração dominical: Pai-nosso que estás nos céus, isto é, que pairas acima de todas as competições, zelos, ciúmes e rivalidades; que pairas acima de todas as querelas, disputas e contendas; que pairas acima de toda a seiva sectária ou partidária, de todos os interesses subalternos, de todas as paixões inconfessáveis que separam os homens, gerando entre eles antagonismos e odiosidades. 

Pai-nosso que estás nos céus! ouve a nossa prece e faze que todos sintamos nos nossos corações que Tu és o nosso Pai, e nós somos irmãos; pois de tal depende, como Tu sabes e o teu Cristo no-lo revelou, a solução de todos os nossos problemas a conquista de todo o nosso bem. 


Frase maravilhosa ~ 

"Tudo é possível àquele que crê" — disse, com ênfase, o maior expoente da verdade na Terra: Jesus Cristo

Fundadas razões teve o Mestre ao firmar tão sábia sentença. A natureza íntima do homem propende a crer. Tudo o que a Humanidade tem produzido de bom e de grande, é obra da fé. Todas as descobertas, todos os inventos, todas as modalidades de progresso — esta ou aquela — representam conquistas desta grande virtude. 

Os povos mais fortes, mais capazes e que mais prodigiosos feitos têm realizado, são os que mais e melhor sabem crer. Os Países Baixos são um país de área bastante acanhada. A sua população densa não se podia acomodar nas limitadas proporções do território pátrio. Que fizeram os holandeses? Disputaram as terras ao mar. Entraram em conflito com o oceano, forçando as suas bravias ondas a recuarem e cederem terreno. Semelhante proeza é um magnífico golpe de fé que enobrece e dignifica o povo que o concebeu e executou. 

O Mestre divino não exagera quando diz que a fé move montanhas. 

De facto, onde há maior audácia: arrasar montes ou conquistar território das profundezas oceânicas.

Japão é vítima de terramotos violentíssimos que, por vezes, têm reduzido cidades inteiras a montões de escombros. Que faz o nipónico? Renega o solo onde nasceu, blasfema, revolta-se ou cai em apatia? Não. Reconstrói tudo, fazendo renascer das ruínas as mesmas cidades, refeitas, embelezadas tal como a Fénix da fábula ressurgindo das próprias cinzas. 

Vemos na tenacidade do japonês que o homem foi criado para crer. Por isso, ele enfrenta os cataclismos, certo de que é à vida, e não à morte, que cabe a vitória no desfecho de todas as lutas. 

Os caminhos de ferro, os barcos a vapor, os aeroplanos, as maravilhosas e utilíssimas invenções do grande e genial Edison, as descobertas científicas de toda a espécie, conducentes a conservar e dilatar a vida humana, melhorando, ao mesmo tempo, as suas condições, são outros tantos milagres da fé. 

Observemos um guindaste possante, manobrado por um menino, levantar moles cujo peso orça por algumas toneladas. 

Que ideia faremos desse maquinismo? Dirão, talvez, é a força da inteligência suprindo vantajosamente a força dos músculos. Cumpre notar, entretanto, que a inteligência (como as demais faculdades do Espírito) age mediante o influxo de um poder que a põe em actividade. Esse poder é a fé. 

Arquimedes, quando se propôs levantar o mundo, disse que o faria se lhe dessem uma alavanca e um ponto de apoio correspondente. O desafio do grande geómetra tinha por fim demonstrar o poder mecânico da alavanca no deslocamento de pesos. Não obstante, aquele poder depende de uma condição: o ponto de apoio. Todo o prodígio da alavanca resulta nulo sem o ponto de apoio. Assim também é a inteligência humana; a sua magia só se verifica debaixo da dinâmica da fé. A fé é o esteio da vida. Disse Amado Nervo, com muita justeza, que a fé é tão necessária como a respiração. 

A Natureza é um hino de fé. Tudo nos convida a crer, nada nos induz à descrença. As forças naturais são positivas. O homem que se harmoniza com elas age de acordo com a Natureza; mantém-se em atitude vitoriosa, sendo esse o segredo dos seus triunfos. O céptico é uma nota dissonante na orquestra da vida. É uma força negativa, estéril. O optimismo e o pessimismo são consequências inevitáveis da crença e da descrença. 

A Natureza nos convida a crer. O mundo do infinitamente grande, como o do infinitamente pequeno — o macrocosmo e o microcosmo — são elementos geradores de fé. O majestoso e o incomensurável panorama celeste onde milhões de sóis, de astros e de estrelas se agitam em revoluções ininterruptas na eternidade do tempo; aquele poder fantástico que traceja as órbitas para os gigantes do espaço infinito e, que é obedecido sem a discrepância de uma linha; esse concerto indescritível de acção e reacção, de atracção e repulsão que equilibra as potências cósmicas, assegurando a estabilidade do Universo; tudo isso, enfim, que do alto dos céus nos deslumbra e arrebata, convida-nos a crer. 

Se penetrarmos o ciclo do infinitamente pequeno, se devassarmos os mistérios de uma simples gota de água, outras tantas maravilhas não menos surpreendentes ali nos esperam para nos dizer peremptória e positivamente: crê! 

O telescópio e o microscópio geram mais fé que todos os dogmas e todas as liturgias das religiões. 

Se tudo o que existe, fora e dentro de nós, nos manda crer, porque havemos de descrer? Só a fatuidade do orgulho humano pode dar lugar ao cepticismo e à descrença. 

Gravemos na nossa mente a inolvidável frase de Jesus: Tudo é possível àquele que crê. Apelemos para o seu mágico encantamento e teremos o caminho da vida, aberto e franco às mais excelentes conquistas da inteligência. 

/… 

"Aos que comigo crêem e sentem as revelações do Céu, comprazendo-se na sua doce e encantadora magia, dedico esta obra." 
                                                                                 Pedro de Camargo “Vinícius” 


Pedro de Camargo “Vinícius” (i)Em torno do Mestre, 1ª Parte / Seixos e Gravetos; Os dois espelhos / Pai-nosso que estás nos Céus / Frase maravilhosa, 11º fragmento desta obra. 
(imagem de contextualização: Jesus em casa de Marta e Maria, óleo sobre tela (1654-1655), pintura de Johannes Vermeer)

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