Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

sábado, 28 de abril de 2012

Sinais dos tempos ~


Sinais dos tempos

   Com a ideia de que a actividade e a cooperação individuais na obra geral da civilização estão limitadas à vida presente, que nada fomos e nada seremos, para que serve ao homem o progresso posterior da humanidade?

   Que lhe importa que no futuro os povos sejam mais bem governados, mais felizes, mais esclarecidos, melhores uns para os outros? Dado que não deve retirar daí nenhum benefício, não estará este progresso perdido para ele? Para que lhe serve trabalhar para os que vierem depois dele, se nunca os deverá conhecer, se são seres novos que pouco tempo depois entrarão eles mesmos no nada? Sob o império da negação do futuro individual, tudo se limita forçosamente às mesquinhas proporções do momento e da personalidade.

   Mas, pelo contrário, que amplitude confere ao pensamento do homem a certeza da perpetuidade do seu ser espiritual! Que de mais racional, de mais grandioso, de mais digno do Criador que esta lei, segundo a qual a vida espiritual e a vida corporal não são mais do que dois modos de existência que se alternam para realização do progresso! Que de mais justo e de mais consolador que a ideia dos mesmos seres a progredirem sem parar, primeiro através das gerações do mesmo mundo e a seguir de mundo em mundo até à perfeição, sem solução de continuidade! Todas as acções têm então uma finalidade, pois, trabalhando para todas, trabalhamos para nós e reciprocamente; para que nem o progresso individual nem o progresso geral sejam alguma vez estéreis; aproveita às gerações e aos indivíduos futuros que não são mais do que as gerações e os indivíduos passados, chegados a um mais elevado grau de evolução.

   A fraternidade deve ser a pedra angular da nova ordem social; mas não há fraternidade real, sólida e efectiva se não estiver apoiada numa base inabalável; esta base é a fé; não a fé nestes ou naqueles dogmas particulares que mudam com os tempos e os povos e se apedrejam, pois anatematizando alimentam o antagonismo, mas a fé nos princípios fundamentais que toda a gente pode aceitar: Deus, a alma, o futuro, O PROGRESSO INDIVIDUAL ILIMITADO, A PERPETUIDADE DAS RELAÇÕES ENTRE OS SERES. Quando todos os homens estiverem convencidos de que Deus é o mesmo para todos; que Deus, soberanamente justo e bom, não pode querer nada de injusto; que o mal vem dos homens e não dele, olhar-se-ão como filhos de um mesmo Pai e dar-se-ão as mãos.

   É esta a fé que o Espiritismo dá e que será doravante o eixo sobre o qual se moverá o género humano, seja qual for o modo de adoração e as crenças particulares.

   O progresso intelectual realizado até hoje nas mais vastas proporções é um grande passo e marca a primeira fase da humanidade, mas sozinho é impotente para a regenerar; enquanto o homem estiver dominado pelo orgulho e pelo egoísmo, utilizará a sua inteligência e os seus conhecimentos em benefício das paixões e dos seus interesses pessoais; é por isso que as aplicam no aperfeiçoamento dos meios para prejudicar os seus semelhantes e os destruir.

   Só o progresso moral pode garantir a felicidade dos homens na Terra pondo um travão nas más paixões; só ele pode fazer reinar entre os homens a concórdia, a paz, a fraternidade.

   É ele que derrubará as barreiras dos povos, que fará cair os preconceitos de casta e calar os antagonismos das seitas, ensinando aos homens a olharem-se como irmãos, chamados a ajudarem-se uns aos outros e não a viverem à custa uns dos outros.

   É ainda o progresso moral, secundado aqui pelo progresso da inteligência, que confundirá os homens numa mesma convicção estabelecida sobre as verdades eternas, não sujeitas a discussão e por isso mesmo aceitas por todos.

   A unidade de crença será o elo mais poderoso, o mais sólido fundamento da fraternidade universal, destruída desde sempre pelos antagonismos religiosos que dividem os povos e as famílias, que fazem com que se veja nos dissidentes inimigos de quem é preciso fugir, combater, exterminar, em vez de irmãos que é preciso amar.
/…


ALLAN KARDEC, A GÉNESE – Os Milagres e as Profecias Segundo o Espiritismo – Capítulo XVIII, SÃO CHEGADOS OS TEMPOS – Sinais dos tempos 16 a 19, tradução portuguesa de Maria Manuel Tinoco, Editores Livros de Vida.
(imagem de ilustração: Dança rebelde, 1965 – Óleo sobre tela, de Noêmia Guerra)

sexta-feira, 27 de abril de 2012

O Génio Céltico e o Mundo Invisível~


A Irlanda

Através da história dramática dessa ilha que soube, pelos seus próprios meios e sem nenhum auxílio externo, reconquistar sua independência, reencontra-se, sob a pena
de seus escritores, este mesmo gosto dos mistérios do Além, do sentido encoberto das coisas, desse sentimento profundo do oculto que caracteriza essa raça.

Sob os véus do Cristianismo aparece a alma primitiva dos antigos celtas. Ela vibra na poesia gaélica como nas cordas das harpas de Ossian. O mundo invisível é, para seus bardos, uma realidade viva, e se lhes acontece, algumas vezes, atribuir-lhe nomes e formas fantasiosas, eles não reconhecem menos, sob seus aspectos diversos e inconstantes, a sobrevivência e a imortalidade da alma humana.

Portanto, nos nossos dias, o sentimento do oculto tomou, na Irlanda, nuances mais nítidas e mais precisas. Ele se revestiu de uma forma experimental, tornando-se uma ciência, um método que tem suas regras e suas leis. Nesse país, como em todo o ocidente, os fenómenos do Além são agora observados, estudados por técnicos conhecedores dos processos de laboratório e que prosseguem essas experiências num rigoroso espírito de controlo com uma atenção escrupulosa.

Os resultados obtidos pelo professor Crawford, de Belfast, com a Srta. Goligher tiveram grande repercussão. Mas a obra mais importante sobre esses fenómenos é, certamente, a de Sir William Barrett, professor da Universidade de Dublin, membro da Academia Real de Ciências e um dos fundadores da “Sociedade de Pesquisas Psíquicas de Londres”, da qual foi presidente honorário. Seu livro No Limiar do Invisível, traduzido para o francês (e para o português), publicado em 1923, é um dos mais notáveis que têm sido escritos sobre esse vasto assunto. Ele resume, de forma clara e com uma grande profundeza de vistas, os frutos de meio século de observações e experiências.

Recomendamos sua leitura e dele nos limitaremos a citar as belas conclusões:

“A mudança mais radical do pensamento, desde a era cristã, será, provavelmente, a aceitação, pela ciência, da imanência do mundo espiritual. A fé cessará de hesitar ao se esforçar em conceber a vida do invisível, a morte se despojará do terror que inspira aos próprios corações cristãos, os milagres parecerão apenas relíquias supersticiosas de um tempo bárbaro. Pelo contrário, se, como eu acredito, a telepatia é indiscutível, se os seres da criação se impressionam reciprocamente sem a voz nem a palavra, o Espírito Infinito, cuja sombra nos cobre, será, sem dúvida, revelado, no correr dos séculos, aos corações humanos capazes de entendê-lo.

Para algumas almas privilegiadas foram dadas a intuição, a clarividência, a palavra inspirada, mas todos nós, às vezes, percebemos uma voz dentro de nós mesmos, débil eco dessa vida mais ampla que a humanidade expressa lentamente, porém, seguramente, à medida que os séculos passam. Mesmo para aqueles que estudarão esses fenómenos apenas sob o ponto de vista científico, o lucro será imenso, fazendo-lhes mais evidente a solidariedade humana, a imanência do invisível, a soberania do pensamento e do espírito, em outras palavras, a unidade transcendental e a continuidade da vida.

Não estamos separados do Cosmo nem perdidos nele: a luz dos sóis e das estrelas nos alcança, a força misteriosa da gravitação une as diferentes partes do Universo em um todo orgânico; a mais pequena molécula e a mais distante trajectória estão sujeitas ao mesmo meio. Mas acima, e além desses vínculos materiais, está a solidariedade do espírito. Do mesmo modo que a significação essencial e a unidade de um favo de mel não estão na cera dos alvéolos, mas na vida e no propósito de seus construtores, do mesmo modo o verdadeiro sentido da natureza não está no mundo material, mas no espírito que lhe dá sua interpretação, que suporta e une, que vai além e cria o mundo fenomenal através do qual cada um de nós passa um instante.”
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LÉON DENIS, O Génio Céltico e o Mundo Invisível, Primeira Parte OS PAÍSES CÉLTICOS, CAPÍTULO II – A Irlanda 3 de 3, 9º fragmento
(Imagem: A Apoteose dos heróis franceses que morreram por seu país durante a guerra da Liberdade, pintura de Anne-Louis Girodet-Trioson)

quinta-feira, 26 de abril de 2012

O peregrino sobre o mar de névoa~


Desenvolvimento da Ciência Espírita

É cada vez maior o número de pessoas que recorrem às instituições espíritas suplicando ajuda para si mesmas ou para parentes e amigos que se entregam a viciações e perversões de toda espécie. Na sua humildade muitas vezes simplória, alimentada racionalmente pelos princípios doutrinários, os dirigentes de centros e grupos espíritas fazem o que podem, servindo-se dos recursos naturais da prece, do passe e das sessões mediúnicas. Dos resultados positivos obtidos no passado, não obstante as campanhas difamatórias, perseguições e processos criminais movidos contra os médiuns, nasceram os Hospitais Psiquiátricos Espíritas, hoje em grande número em nosso país e geralmente bem aparelhados e dotados de assistência médica especializada. Só no Estado de São Paulo funcionam actualmente mais de trinta hospitais espíritas reunidos numa Federação Hospitalar de que o Governo do Estado se serviu para aliviar o Juqueri, Hospital Franco da Rocha, numa das suas crises mais ameaçadoras. Os espíritas sentem-se na obrigação de atender a esses casos, sempre que possível, por considerarem que eles são mais espirituais do que materiais, de maneira que o tratamento médico é geralmente insuficiente para curá-los. Fiéis aos princípios de caridade e fraternidade da Doutrina, esforçam-se por dar a sua ajuda desinteressada em favor dos sofredores.

Essa intenção piedosa, humanitária, foi constantemente denegrida por médicos e clérigos desconhecedores do problema. A luta foi sempre árdua e até mesmo desesperadora para os espíritas, num país em que a maioria da população é pobre e desprovida de cultura, prevalecendo sempre as opiniões dos doutores e dos sacerdotes, os primeiros apoiados em sua formação científica e académica, e os segundos em sua falível cultura religiosa, mais de sacristia do que se seminário. Essas duas classes gozavam amplamente da autoridade de saberetas num meio social de analfabetos e bacharéis em direito. Os espíritas que mais se destacavam por seus conhecimentos doutrinários não haviam sequer compreendido os fundamentos científicos do Espiritismo e os encaravam misteriosa e até mesmo cabalisticamente. Os adversários não encontravam dificuldades para misturá-los, aos olhos do público, com possíveis remanescentes da Goécia ou magia-negra medieval. Padres, bacharéis e juristas pintaram o chamado demonismo-espírita à moda do tempo, com rabo, chifres e a foice e o martelo do ateísmo pendurados no pescoço.

Quando os espíritas de Amparo resolveram fundar naquela cidade um Sanatório Espírita para doentes mentais, ilustre, jovem e fogoso médico e intelectual paulista explicou pelos jornais da época, nos anos 40, que os espíritas fundavam esses hospitais por dor de consciência, pois fabricavam loucos e depois queriam reabilitá-los. Foi necessário que um jornalista espírita o revidasse, mostrando que o motivo não era esse, mas o facto evidente da falência da medicina que, no desconhecimento do problema, enchia diariamente os caldeirões do diabo no Juqueri com pobres criaturas desprotegidas da ciência e da religião. O mestre implume, não podendo voar mais alto, teve de calar o bico. Logo mais, o médium Arigó, que por sinal ainda era católico e fazia milagres ao invés de produzir fenómenos, foi atacado brutalmente por uma série de artigos publicados em jornal de grande circulação por um médico que não chegara a ver o médium e diagnosticava à distância a sua loucura, e por famoso professor universitário que o apoiava, alegando que Arigó operava sob a acção alucinatória do café, que bebia em excesso. Os cientistas norte-americanos salvaram o médium já então condenado à prisão, vindo a São Paulo e expondo, no auditório do Museu de Arte Moderna, perante convidados ilustres, os motivos científicos de seu interesse pelo médium. Apesar disso, Arigó acabou sendo preso e só foi libertado por uma decisão do Supremo Tribunal, ante o prestígio dos nomes dos cientistas, pertencentes a famosas Universidades dos Estados Unidos, cujos pareceres foram divulgados nos Diários Associados e em todo o Brasil. Mas isso não impediu que o Padre Quevedo prosseguisse com suas arruaças contra o médium e o Espiritismo, no bom estilo de toureiro que, de capa e espada, desafiava as aspas da verdade na imprensa e na televisão com rendosa propaganda gratuita de seus cursos de pseudoparapsicologia made in Madri.

A moda pegou e o Brasil se encheu de pseudoparapsicólogos que brotavam do chão como as heresias no tempo de Tertuliano. Ainda hoje continua a floração desses cogumelos por todo o país. Cursos e escolas semeiam diplomas da Ciência de Rhine e McDougal à margem da lei e das áreas educacionais oficialmente autorizadas. Esse panorama surrealista é responsável pelo atraso em que nos defrontamos no campo dos estudos e das pesquisas dos fenómenos paranormais no Brasil. O Instituto Paulista de Parapsicologia, fundado por Cientistas, Médicos, Psicólogos, estudantes de Medicina (actualmente já médicos famosos) não vingou, ante a avalanche de aproveitadores que o invadiram, levando seus directores a fechá-lo, por esse motivo e pelo total desinteresse das nossas Universidades, temerosas do pandemónio que se avolumava. Tivemos de voltar à estaca-zero. Ninguém, nem mesmo os governos, tiveram coragem de pôr a mão na cumbuca, proporcionando recursos ao Instituto para a montagem de seu laboratório. Nas vésperas da Era Cósmica, preferimos o gesto cómico, supinamente burlesco, de lavar as mãos na bacia de Pilatos e deixar o problema no campo da charlatanice.
/…


José Herculano Pires, Ciência Espírita e suas implicações terapêuticas 1 Desenvolvimento da Ciência Espírita 1 de 2, 4º fragmento
(imagem: O peregrino sobre o mar de névoa, por Caspar David Friedrich)

quarta-feira, 25 de abril de 2012

Narrações do Infinito~



LÚMEN

Primeira narrativa – III
 
Resurrectio præteriti
(a
ressurreição
do
passado)

…/


   Lúmen – E positivo. Buscai, na criação inteira, e encontrareis um paradoxo mais notável do que esse?

   Ora, que é o tempo? Suponde que um octogenário tem diante do olhar dois retratos representando, o primeiro, seu pai quando criança, saindo do primeiro lustro de idade, por exemplo, e o segundo, ele próprio, na idade actual de oitenta. Onde está a criança, onde está o velho? Sem dúvida, o genitor está mais idoso do que ele, mas esse tempo já passou, pois o genitor já faleceu. Suas duas existências foram sucessivas; é tudo que poderíamos dizer. Ante esses dois retratos, o pai é a criança, a criança um avô. Visto de mais longe, desaparecido o tempo, o passado dá lugar a um presente perpétuo. O tempo desaparece também em astronomia.

   Eu vos dizia há pouco que ocasiona bastante fadiga mensurar as posições precisas de pares de estrelas duplas que não existem mais. A luz que recebeis hoje partiu há séculos e séculos, e desde essa época o par foi destruído por uma conflagração cósmica que vereis dentro de um milénio. Mas, estudais, apesar disso, o inexistente, e, muitas vezes, com verdadeira paixão. Não vos importa. Isso, aliás, é um prazer matemático. Não é inútil reflectir a respeito dessas verdades: elas nos elevam acima das contingências pueris da vida.

   Que acrescentarei agora à minha narrativa? Eu me segui, assim, crescendo na vasta cidade parisiense. Eu me vi, em 1804, ingressando no colégio e fazendo minhas estreias no momento em que o Primeiro Cônsul se coroava com a dignidade imperial. Conheci essa fronte dominadora e pensativa de Napoleão num dia em que passou em revista o Carrocel.

   Não me havendo jamais encontrado em sua presença, fiquei satisfeito em vê-lo atravessar meu campo actual de observação. Em 1810 eu me revi na formatura da Escola Politécnica e em palestra no pátio com o melhor dos meus camaradas, Francisco Arago. Esse jovem já pertencia ao Instituto e substituía Monge na Escola, devido ao jesuitismo de Binet, do qual o Imperador se queixava. Encontrava-me desse modo na plenitude dos brilhantes tempos da minha adolescência e dos meus projectos de viagem de exploração científica, em companhia de Arago e Humboldt, viagens que este se decidiu empreender sozinho. Depois, eu me reconheci, mais tarde, sob os Cem-Dias, atravessando rapidamente o pequeno bosque do velho Luxemburgo, a rua do Este e a ala do jardim da rua de S. Jaques, e vendo acorrer minha bem-amada para me receber sob os lilases em flor. Doces horas de solitude a dois, de confidências de coração, silêncios da alma, transportes do amor, efusões da tarde – vós vos oferecestes à minha vista emocionada, não mais no grau de saudades longínquas, porém na vossa actualidade absoluta!

   Assisti de novo ao combate dos Aliados na colina de Montmarte, à sua descida na Capital, à queda da estátua da praça Vendôme, arrastada nas ruas, por entre gritos de alegria, ao campo dos ingleses e dos Prussianos nos Campos Elíseos, à devastação do Louvre, à viagem de Gand, à reentrada de Luís XVIII! A bandeira da ilha de Elba flutua sob meus olhares e, mais tarde, porque buscasse no Atlântico a ilha solitária onde a águia fora acorrentada, asas quebradas, a rotação do Globo aproximou de minha vista Santa-Helena, onde identifiquei o Imperador, imaginando junto de um sicómoro.

   Assim passou cada ano presente ao meu olhar. Acompanhando sempre a minha própria individualidade, no meu casamento, nas minhas iniciativas, minha vida de relação, minhas viagens, estudos, etc., assisti ao desenvolvimento da história contemporânea. À restauração de Luís XVIII sucede o governo efémero de Carlos X. As jornadas de Julho de 1830 mostraram as suas barricadas e, não longe do trono do Duque de Orleães, vi aparecer a coluna da Bastilha. Rapidamente passaram esses 216 meses. Apercebi-me no Luxemburgo, nessa avenida magnífica, que fora aberta por Napoleão e substituíra velhos mosteiros. Revi Arago no Observatório e a turba que se apertava às Portas do novel anfiteatro. Reconheci a Sorbona de Gousin e de Guizot. Depois, meu coração se constringiu, ao ver passar o enterro de minha mãe, senhora austera e talvez um pouco severa demais em seus julgamentos, porém que eu sempre muito amei, conforme sabeis. A singular pequena revolução de 1848 surpreendeu-me não menos vivamente do que quando me pareciam ser os próprios acontecimentos. Reconheci, na praça da Bolsa, Lamoricière, falecido no ano passado, e, nos Campos Elíseos, Cavaignac, também já desaparecido, há um lustro mais ou menos. O 2 de Dezembro veio encontrar-me observador na minha estação celeste, tal qual eu o havia sido na minha torre solitária, e, sucessivamente, se escoaram assim acontecimentos que me haviam emocionado, e outros de mim desconhecidos.

   Quœrens – E esses acontecimentos passavam com rapidez ante vosso olhar?

   Lúmen – Não saberia apreciar a medida do tempo; mas todo esse panorama retrospectivo se sucedeu de certo em menos de um dia... ou horas, talvez.

   Quœrens – Nesse caso, não compreendo melhor! Perdoe a um velho amigo esta interrupção um tanto viva; mas, segundo havia imaginado, pareciam-me ser os próprios acontecimentos que se apresentavam aos vossos olhos, e não um simulacro unicamente, em virtude do tempo necessário ao trajecto da luz, esses sucessos estavam atrasados quanto ao momento da sua ocorrência. Se, pois, 864 meses terrestres passaram sob vosso olhar, eles deviam ter gasto esse período de tempo para vos aparecerem, e não algumas horas. Se o ano 1793 vos surgiu em 1864, o ano de 1864, em retrocesso, não deveria, consequentemente, aparecer antes de 1936.

   Lúmen – Vossa objecção, nova, tem fundamento e demonstra que haveis perfeitamente compreendido a teoria desse facto. Sei que estais satisfeito por havê-la formulado. Também vou explicar porque não me foi necessário aguardar 864 novos meses para rever minha vida, e por que, sob o impulso de uma força inconsciente, eu a pude rever em menos de um dia. Continuando a seguir o desenrolar da minha existência, cheguei aos últimos tempos, notáveis pela transformação radical feita em Paris. Vi meus velhos e queridos amigos, vós inclusive, minha filha e seus lindos filhinhos, minha família e meu círculo de conhecidos; e, enfim, chega o momento em que, pela percepção dos raios ultravioleta, atravessando os mundos, eu me vi, deitado no meu leito de morte. Penetrei na câmara mortuária e assisti à derradeira cena, o que equivale dizer que eu regressara à Terra.

   Atraída pela contemplação que a empolgava, minha alma havia depressa esquecido a montanha dos anciães e Capela. Tal qual acontece por vezes em sonho, abalava-se com o que via. Disso não me apercebi imediatamente, tanto a estranha visão absorvera todas as minhas faculdades.

   Não vos posso explicar qual o poder que permite às almas transportarem-se tão rapidamente de um lugar a outro; mas, a verdade é que eu voltara à Terra, em menos de um dia, e que penetrei em meu aposento de dormir, no preciso momento de ser amortalhado.

   Por isso que em tal viagem de regresso caminhava ao encontro de raios luminosos, eu encurtava sem cessar a distância que me separava da Terra; a luz tinha cada vez menos percurso a vencer e restringia assim a sucessão dos acontecimentos. No meio do caminho, os raios luminosos, chegando-me apenas com a metade do atraso (432 meses), não mais me mostravam a Terra dos 864 anteriores, mas a daquela metade de tempo. Nas três quartas partes do percurso, os aspectos eram os de 216 meses de retardo. Na metade do último quarto do tempo chegavam com a diferença de 108 meses decorridos, e assim por diante, de modo que a minha existência se condensou em menos de um dia, em consequência da volta rápida de minha alma vindo ao encontro dos raios luminosos.
/…


CAMILLE FLAMMARION, Narrações do Infinito, LÚMEN Primeira narrativa – III,
fragmento 9º (C. Flammarion faz falar uma alma liberta dos vínculos corporais, a que ele denominou Lúmen)
(imagem: Jungle Tales_1895, pintura de James Jebusa Shannon)

terça-feira, 24 de abril de 2012

O Espiritismo na Arte~


Parte II
|Fevereiro de 1922|

– A inspiração e a evolução da arte e do pensamento

O objectivo deste tópico é, principalmente, mostrar o considerável papel que a inspiração desempenhou em todos os tempos na evolução da arte e do pensamento.
Todos os estudantes do oculto sabem que uma onda de ideias, de formas, de imagens, derrama-se incessantemente do mundo invisível sobre a humanidade.
A maior parte dos escritores, dos artistas, dos poetas,


dos inventores, conhece essas correntes poderosas que vêm fecundar seu cérebro, ampliar o círculo das suas concepções.

Ora a inspiração se introduz suavemente em nosso intelecto, mistura-se intimamente ao nosso próprio pensamento, de tal forma que se torna impossível distingui-la, ora é uma irrupção súbita, uma invasão cerebral, um sopro que passa sobre nossas frontes e nos agita fortemente numa espécie de febre. Outras vezes é como uma voz interior, tão nítida, tão clara que parece vir de fora para nos falar de coisas graves e profundas. Uma corrente de forças e de pensamentos agita-se e rola em torno de nós, buscando penetrar nos cérebros humanos dispostos a recebê-los, a assimilá-los, a traduzi-los sob a forma e a medida de suas capacidades, de seu grau de evolução. Uns o exprimem de uma forma mais ampla, outros, de forma mais restrita, de acordo com suas aptidões, com a riqueza ou a pobreza das expressões que lhes são familiares e os recursos de sua inteligência.

As lições de o Esteta, que reproduzimos mais adiante, vão determinar os diversos carácteres da inspiração, segundo os casos.

Entre os homens de talento, muitos reconheceram essas influências invisíveis. Vários descrevem o estado vizinho ao do transe, em que a elaboração de uma grande obra os lança. Outros falam da onda ardente que os penetra, do fogo que corre em suas veias e provoca uma superexcitação que centuplica suas faculdades. Às vezes procuram, inutilmente, resistir a essa força que os domina, os subjuga e destruiria seu envoltório, caso fosse contínua. Existem os que sucumbiram a essa acção soberana e morreram prematuramente, como Rafael, na flor da idade.

Lamartine  descreveu esse estado em versos célebres:

Mais à l’essor de la pensée
L’instinct des sens s’oppose em vain:
Sous le dieu mon âme oppressée
Bondit, s’elance et bat mon sein.
La foudre en mes veines circule,
Etonné du feu qui me brûle.
Je l’irrite en le combattant.
Et la lave de mon génie
Déborde en torrents d’harmonie
Et me consume en s’échappant.

(Méditations Poétiques)

Romain Rolland  descreve, nestes termos, o caso especial de Miguel Ângelo  (Revue de Paris, 1906, e Cahiers de la Quinzaine):

A força do talento que provém do Deus oculto não se manifesta mais claramente senão em um homem sem vontade, como Miguel Ângelo. Jamais um homem foi sua presa dessa forma. Esse talento não parecia da mesma natureza que ele; era um conquistador, que havia se lançado sobre ele e o mantinha escravizado. Sua vontade não tinha nenhum poder e quase se poderia dizer, nenhum poder tinham seu espírito e seu coração. Era uma exaltação frenética, uma vida formidável em um corpo e uma alma muito fracos para contê-las.

Encontra-se em Goethe (Cartas a uma Criança), os seguintes detalhes sobre Beethoven:

Beethoven, falando da fonte de onde lhe vinha a concepção de suas obras-primas, dizia a Bettina:

“Eu me sinto forçado a deixar transbordarem, de todos os lados, as ondas de harmonia que provêm do foco da inspiração. Tento segui-las, e as agarro apaixonadamente; de novo elas me escapam e desaparecem entre a multidão das distracções que me cercam. Logo eu volto a agarrar a inspiração com ardor, arrebatado, multiplico todas as suas modulações e, no último momento, triunfo com o primeiro pensamento musical.

Devo viver sozinho comigo mesmo. Sei bem que Deus e os anjos estão mais perto de mim, em minha arte, que os outros. Comunico-me com eles e sem temor. A música é uma das entradas espirituais nas esferas superiores da inteligência.”

Mozart, por sua vez, em uma de suas cartas a um amigo íntimo, nos inicia nos mistérios da inspiração musical. Essa carta foi publicada em A Vida de Mozart, por Holmes, em Londres, 1845:

Dizeis que gostaríeis de saber qual é minha maneira de compor e qual é o meu método. Verdadeiramente eu não posso vos dizer mais do que o que vou falar, porque eu mesmo não sei nada a respeito e não consigo me explicar.

Quando estou com boa disposição e completamente , durante meu passeio, os pensamentos musicais me vêm em abundância. Não sei de onde vêm esses pensamentos, nem como eles me chegam, minha vontade não tem nenhum poder nisso.

Schiller declarou que seus mais belos pensamentos não eram de sua própria criação, eles lhe vinham tão rapidamente e com uma tal força que ele tinha dificuldade em compreendê-los bastante rápido para transcrevê-los.

Michelet também parece estar, em certas horas, sob o domínio de algum poder incomum. Falando da sua História da Revolução Francesa, ele diz:

Jamais, desde a minha Virgem de Orléans, eu havia recebido semelhante emanação do Alto, uma visita tão luminosa do céu... Inesquecíveis dias, quem sou eu para tê-los narrado? Eu ainda não sei, e não saberei jamais, como pude reproduzi-los. A incrível felicidade de reencontrar isso tão vivo, tão abrasador, após sessenta anos, encheu-me o coração de uma alegria heróica.

O poder da inspiração se traduz de uma maneira mais sensível ainda em Henri Heine.

Eis o que ele dizia no prefácio de sua tragédia William Radcliff:

Escrevi William Radcliff em Berlim, enquanto o Sol iluminava com seus raios, antes enfadonhos, os tectos cobertos de neve e as árvores desprovidas de suas folhas; eu escrevia sem interrupção e sem fazer rasuras. Sempre escrevendo, parecia que eu ouvia, acima da minha cabeça, como que um barulho de asas...

Poderíamos multiplicar as citações do mesmo género, e nelas veríamos que a inspiração varia segundo as naturezas. Em uns, o cérebro é como um espelho que reflecte as coisas escondidas e envia as suas radiações sobre a humanidade. Sob mil formas, ela penetra os sensitivos e se impõe.

– Comportamento de outros espíritos diante de o Esteta

As duas lições de o Esteta que vamos ler, têm por assunto a inspiração, considerada em sua causa e em seus efeitos gerais, tanto na Terra como no espaço.

Em nossas reuniões, essas lições prosseguem com regularidade a cada semana, porém, ainda ignoramos o nome e a personalidade verdadeira do seu autor. No entanto, observamos que os espíritos familiares do nosso grupo afastam-se com respeito e apenas se calam diante dele; o guia do médium vem, após a partida de o Esteta, e nos diz algumas palavras de amizade e de encorajamento, declarando-se “acanhado pela superioridade e a irradiação desse grande espírito”.

Qualquer que seja o valor do estilo, nós nos empenhamos em reproduzir fielmente o pensamento do autor, evitando com cuidado tudo o que pudesse alterar o seu sentido, mesmo em benefício da forma.
/…


LÉON DENIS, O Espiritismo na Arte, Parte II – A inspiração e a evolução da arte e do pensamento – Comportamento de outros espíritos diante de o Esteta, 7º fragmento
(imagem: Mona Lisa 1503-1507 – Louvre, pintura de Leonardo da Vinci)

sexta-feira, 20 de abril de 2012

~~~Párias em Redenção~~~


4. FÚRIA ASSASSINA
.../ 

   Passados os primeiros dias,
em que mergulhara fundo no fosso da libertinagem,
com a alma em labéus hediondos,
Girólamo acreditou chegado o momento de manter uma entrevista com a comparsa.

Para tanto, solicitou o auxílio de um jovem servente da casa e pediu-lhe que, em seu nome, procurasse a jovem, convidando-a, em segredo, a vir à villa Angélico, com a maior brevidade. Acrescentou ao recado que ela explicasse, em casa, o impositivo que a reteria fora do lar por toda a tarde, sem entrar em maiores esclarecimentos. Como prova da autenticidade da mensagem, solicitou ao jovem que apresentasse a Assunta o anel que trazia no dedo mínimo, e que seria facilmente identificado.

   Girólamo sabia do local em que se refugiava a Dulcineia e não teve dificuldade em fazer-se compreendido pelo moço, acostumado a serviços dessa natureza.

   Assunta, quando soube que o amante se encontrava em Florença, prorrompeu em ruidosa alegria. Agradeceu ao mensageiro e o despediu festivamente, prometendo comparecer ao encontro na tarde do dia imediato, no local aprazado. Modificou-se, então, inteiramente, justificando em casa a necessidade de encontrar pessoa amiga que, recém-chegada de Siena, trazia notícias agradáveis e lhe impunha a necessidade do encontro. Foi com desregrada ansiedade que aguardou o momento de se dirigir à villa, o que fez sem maiores dificuldades. À entrada, Girólamo a aguardava. Saudou-a, aparentando discrição, e convidou-a adentrar-se no bosque margeante ao rio, onde poderiam conversar sem testemunhas incómodas.

   A jovem, que se ressentia da ausência do mancebo dissoluto, atirou-se-lhe nos braços, logo pôde fazê-lo, e narrou-lhe os receios, as preocupações, o sonho atemorizante. O amásio fitava-a quase com desprezo. Temendo, porém, ser descoberto nos pensamentos íntimos que acalentava, aparentou, cortês, certo interesse, falando com natural cinismo:

   – Examinemos a nossa situação. Segundo sei, em Siena tudo transcorre conforme planeado. Durante este período de repouso que experimento aqui, pessoas da minha absoluta confiança organizam os meus direitos e os legalizam. Pouco tempo nos separa da ventura. É indispensável, todavia, prosseguir sem despertar suspeitas. Todos os factos ainda estão muito recentes na memória geral. Tão logo eu receba correios do palácio, o que será muito breve, retornaremos e, transcorrido algum tempo, anunciarei o nosso noivado, a nossa boda. De momento, ninguém, a qualquer pretexto, poderá saber dos nossos planos, pois poderia pô-los a perder.

   – Eu pressinto, amado – falou com receio –, que uma nova tragédia se abaterá sobre nós. Tenho a impressão de que a Senhora duquesa me segue, fitando-me com os olhos imensos e tristes… Conseguiste esquecê-la Girólamo?

   – Não me fales dos mortos, – retrucou o moço com enfado. – Os que para lá foram não voltam a perturbar os que aqui ficaram. O que está feito não se poderá refazer. Prefiro o céu na terra à terra do céu…

   E estrugiu ruidosa gargalhada, na qual extravasava as emoções, zombeteiro e cruel. Pela primeira vez, Assunta compreendeu que está diante de um homem totalmente destituído de sentimentos. Dominada por justificável receio, enfrentou-o, azeda:

   – Vê como te portas comigo. Estás amarrado a mim, não esqueças. Não te perdoaria jamais qualquer traição. Irei contigo à força, mas não te livrarás de mim tão facilmente, como fizeste a Lúcia e aos desditos rebentos do duque.

   – Cala-te, infeliz! Desejas que algum passado te escute? Ignoras como o vento conduz notícias dessa natureza? Não me afastarei de ti, pois que jamais te separarás de mim. Eu te amo e te desejo ao meu lado…

   Rapidamente, queimado pelo fogo dos desejos em desalinho, envolveu a moça sufocou-a na paixão desregrada.

   Deambulante entre a violência dos instintos e os albores da razão., Assunta, fascinada pelo idílio criminoso, que se assentava em sangue e lágrimas, deixou-se arrastar cada dia a mais fundo engodo, terminando por entregar-se a Girólamo totalmente, de corpo e alma. Sonhadora e tresloucada trocou os sonhos da pureza pelo abastardamento dos sentidos, em devassidão sempre crescente e insaciável. É verdade que o enceguecimento da razão produz o vaguear nas sombras e o vilipêndio dos sentimentos tresmalha as manifestações da dignidade e do pudor. Cada vez mais embriagada de luxúria, repetia os encontros clandestinos com o moço irresponsável, permitindo-se consumir numa sofreguidão sem medidas. E como a febre dos sentidos somente se extingue com o apagar das próprias fontes do desejo, o amolentamento do carácter progredia na razão directa do devaneio sensual. O refocilar, em casa, que poderia abrir as comportas da mente a nobre inspiração superior, antes servia de pretexto para novas aventuras… O amante escolhera, precavido, local discreto para os sucessivos encontros, de modo a evitar ser identificado ao lado da irresponsável mulher.

   Girólamo, experimentado explorador da sentimentalidade mórbida, apesar da aparente vinculação com a doidivanas, apenas esperava, impaciente, o justo momento para libertar-se do seu jugo, que era penoso, encerrando esse desagradável capítulo da vida. Qual ave de rapina, enrodilhava a vítima na sua armadilha, sonhando com os alcantis mais elevados da ventura e do prazer, esperando o ensejo para despedaça-la e romper os últimos laços que o retinham prisioneiro aos perigosos cipós com que manipulava e retinha a presa.

   Assim, logo chegaram as primeiras flores da primavera e os dias se fizeram mais claros e róseos, com o canto das águas do Arno bordando as margens de mais sons e festa, o malfadado descendente dos Cherubini programou com a moça apaixonada uma excursão ao bosque das colinas de San Miniato, onde o dia lhes poderia proporcionar sonhos de prazeres fugidos, que tentariam alongar, quanto pudessem.

   Concertado o convescote para o domingo porvindouro, que lhe facultaria bastante tempo para organizar o hediondo delito, com cuidados especiais, inclusive visitando o local onde deveria consumar a tragédia, a moça, alucinada pela força dos desejos descabidos, esquecida de que somente o equilíbrio dispensa ordem de paz, aceitou o encontro para o dia programado, prometendo estar à frente do Palazzo Vecchio, onde se encontrariam, às primeiras horas, antes do despertar da cidade.

   Conseguido o cabriolé, mediante aluguer na estalagem para onde se transladara, Girólamo rumou em busca da enamorada e, encontrando-a, seguiu presuroso por caminhos marginais, fora da cidade, vencendo o vale do Arno e dirigindo-se às verdes colinas, sob a pressão de crescente impaciência. Dissimulando com dificuldade os desencontrados sentimentos, tivera antes o cuidado de convencer a jovem de que se despedisse dos familiares, alegando chamado urgente para resolver a Siena, e a ela prometendo uma viagem de recreação, no dia imediato. Cauteloso, a fim de evitar possíveis e remotas suspeitas, Girólamo, despediu-se anteriormente dos amigos, em festa ruidosa, na villa, explicando quanto à necessidade de retornar, embora ainda se demorasse pelo caminho, em visitas a pessoas gradas ao seu coração, prometendo aos amigos uma retumbante recepção no Palácio di Bicci, quando das suas núpcias, em futuro não distante. Astuto e venal, mudou-se cautelosamente para uma hospedaria, à entrada da cidade, onde poderia passar como viajante ignorado, até a consumação do novo crime ardilosamente premeditado.

   Conduzindo matalotagem especial, vinho capitoso e frutos, o casal adentrou-se pelas vias húmidas e perfumadas do bosque em flor. Chilreavam os pássaros ao amanhecer e a Natureza, desabrochando claridade, parecia um convite ao júbilo puro e à emotividade superior, como se as vozes onomatopaicas da vida modulassem nobre pastoral.

   Mais relaxado, agora, quando o bosque era um festival de bênçãos naturais, o moço quase se deixou penetrar pelo bucolismo da paisagem, que tinha por moldura, mais abaixo, as águas do rio cantarolante entre seixos e pedras das bordas.

   Escolhido um lugar discreto, numa clareira natural entre árvores, os jovens saltaram no acume do outeiro, onde a visão era esplendente, e se entregaram ao primeiro repasto, entremeado de libações…

   Motivando a recordação dos dramas que os jungiam um ao outro em canga pesada, Girólamo perguntou à moça em deslumbramento:

   – Deixaste transparecer em casa ou a alguém os nossos objectivos futuros? Fizeste quanto te recomendei? Não ignoras que tudo organizo para o nosso próprio bem.

   – Tranquiliza-te, querido, – informou a companheira inexperiente. – Não seria eu a tonta que poria a perder a cornucópia da fortuna, que agora se volta recheada na minha direcção. Sempre ambicionei a glória e o fastígio. Como tu, eu também caminhava no chão, com gana de galgar a montanha. Se não fosse contigo… Mas, apareceste no meu caminho e não te pude resistir. Puxaste-me para a escalada e aqui estou. Se subo ou desço, ainda não sei…

   – E se, por acaso – aventou o moço, como se falasse imponderadamente –, um mau fado, em circunstância vil, te exigisse denunciar-me, fá-lo-ias?

   – Sabes que não. Eu te pertenço e nunca me permitia trair-te. Excepto…

   – Excepto?! Em que condições me arrojarias ao cárcere e à morte?

   – Se me abandonasses, – falou, com dura franqueza e esfogueada. – Uma mulher ferida nos seus sentimentos é pior do que um animal acossado. Nunca o intentes, porque não te cederei. A minha segurança é o nosso segredo e eu jurei – maledetta vita! – que não terias perdão se um dia te encorajasses a substimar-me, a trair-me…

   A jovem pusera-se de pé. Todo o seu sangue ferveu, ante a possibilidade da traição do amado. Erguida, contrastava com o sol filtrado pelas árvores, e, emocionada, seu rosto jovem adquirira forte beleza carnal.

   Com o espírito túmido de ódio e trémulo, aguardando o ensejo de desferir certeiro golpe, Girólamo fitou-a e considerando-lhe a beleza, que sempre o fascinava. Mas os apetites, naquele momento, deveriam ceder lugar às ambições desmedidas para o futuro. Como se fora possuído por uma fúria assassina, ergueu-se de um salto e atacou violentamente a moça, que venceu nos braços de aço, dominando-a facilmente. A princípio, Assunta não compreendeu o que ocorria: num relance, porém, em que os seus olhos se cravaram nos do apaixonado, percebeu o que se passava, mas já era tarde. A expressão de horror que se lhe desenhou no rosto congestionado e o grito lancinante que proferiu de nada valeram. Tomando de um punhal que trazia sob a jaqueta de veludo carmesim, desferiu repetidos golpes, desvairado, automaticamente, até certificar-se da extinção da vida naquele corpo terrivelmente mutilado. Sangrando abundantemente, a jovem foi largada no solo, a estremecer, nos últimos reflexos e estertores…

   Com a cabeça a estourar, o moço olhou em derredor, como se sentisse terrível presença a espioná-lo, e, nos sentidos aguçados, teve a impressão de que alguém se afastava em disparada sobre folhas e gravetos. Corça ou homem? Que importava! Agora era tarde demais!

   O crime não poderia deixar vestígios. A astúcia do criminoso é a sua arma e a sua perdição.

   Girólamo afastou-se, lépido, do local, e improvisou, numa vala distante, uma sepultura, onde atirou os despojos sangrentos da companheira, cobrindo-os com folhagens e ramos. Logo após, procurou apagar as manchas sanguinolentas na clareira, deixando transparecer que os sinais no solo fossem de feras em luta, que se rebolcassem feridas, pelo chão revolto. Desceu ao rio, para a necessária limpeza das mãos e da indumentária, e tornou a cidade, usando o veículo que deixara antes de galgar o morro. No dia imediato, muito cedo, retornou a Siena, em condução da carreira, anónima, discretamente.

   Girólamo, como todo criminoso, acreditou que o novo delito passara despercebido e que a mão da Justiça jamais o alcançaria. Reflexionando convencia-se de que Assunta, afinal, não representava nada na vida. Agora, era o novo dia que necessitava viver, esquecendo o passado, começando experiências novas…
/…


VICTOR HUGO, Espírito “PÁRIAS EM REDENÇÃO” – LIVRO PRIMEIRO, 4 FÚRIA ASSASSINA (fragmento 3 de 3) texto mediúnico recebido por DIVALDO PEREIRA FRANCO
(imagem: L’âme de la forêt _1898, pintura de Edgar Maxence)

quarta-feira, 18 de abril de 2012

Inquietações Primaveris~


|Conceito
actual da Morte|

O pó de múmia desapareceu no seu próprio desprestígio.
Sua ineficácia curativa correspondia à ineficácia das múmias para eternizar os corpos perecíveis.

A Cultura do Renascimento floresceu e desenvolveu-se na Terra.

Em vão a Igreja condenou as pesquisas, combateu-as, amaldiçoou-as.
Galileu teve de se defender perante os tribunais da

Inquisição, Giordano Bruno foi queimado em fogueira criminosa e herética por sustentar que a Terra girava em torno do Sol.

Descartes, o filósofo espadachim que não engoliu a falsa paciência dos padres do Colégio de La Fleche, teve de fugir para a Suécia e, num golpe de esgrima, recolocar o problema copérnico do heliocentrismo: “A Terra é fixa na sua atmosfera – escreveu – que gira em torno do Sol”.

Os paquidermes da Ciência Divina não perceberam o golpe.

A família de Espinosa teve de fugir de Portugal para a Holanda. Sua mãe o levava no ventre e Portugal perdeu a única chance de ter um filósofo de verdade. Espinosa nasceu na Holanda e esmagou com sua Ética a pobreza mental dos clérigos.

Francis Bacon sofreu perseguições mas não cedeu. Nasceu o movimento de resistência lógica em todo o mundo e a Ciência humana arquivou na Terra a suposta e infusa Ciência Divina.

Gritaram os retrógrados que o ateísmo dominava o mundo. Mas os resistentes não cediam e ganhavam todas as batalhas nas emboscadas da inteligência.

Expulso da Sinagoga, guardiã esclerosada da Bíblia judaica, Espinosa traça os delineamentos da matemática filosófica, esfarelando em seus dedos a calúnia do ateísmo para a nova cultura. Fez do conceito de Deus o fundamento do pensamento. Estruturou o panteísmo em termos esmagadores. Chamaram-no “ébrio de Deus”.

Kant correu em socorro a Rousseau com sua crítica da razão.

Voltaire feria com o sorriso da sua ironia mortal a fera encurralada do Vaticano e a chamava corajosamente: “L’infeme”. Com um pé na cova e outro na terra firme, como dizia de si mesmo, manejava com perícia suas armas terríveis. Não temia a morte, pois já se considerava, por sua saúde periclitante, um semimorto. Nada se podia fazer contra ele, senão suportá-lo.

O Século XVIII consolidara o prestígio da Ciência. Os clérigos, batidos em todos os sectores, lutavam para restabelecer o prestígio divino que eles mesmos haviam destruído.

O Evolucionismo de Spencer se opunha brilhantemente à concepção estática do mundo. Darwin pesquisava o problema das origens do homem em termos puramente materiais, mas Wallace dosava o seu materialismo com a verdade espiritual.

O Século XIX sofria então a invasão dos mortos, na América e na Europa. Os fantasmas contrabalançavam, com suas aparições, o desequilíbrio materialista da nova cultura, baseada na heresia das pesquisas científicas.

Foi então que Denizard Rivail, discípulo de Pestalozzi, continuador do mestre, professor universitário, filósofo, sacudiu os novos tempos com a publicação de O Livro dos Espíritos, proclamando o restabelecimento da verdade espiritual contra o vandalismo teológico. Um homem solitário, dotado de profundo saber e lógica inabalável, despertava contra si todas as forças organizadas do novo mundo cultural. E sozinho enfrentava as iras da Igreja, da Ciência e da Filosofia. Kant, que testemunhara os fenómenos de vidência do sábio sueco Swedenborg, não arredava pé da sua posição científica, afirmando que a Ciência só era possível no plano sensorial, onde funciona a dialéctica. Era impedido ao homem penetrar nos problemas metafísicos. Mas Kardec respondia com os factos, sob uma avalanche de contradições sofísticas, despejadas sobre ele de todos os quadrantes da nova cultura. Lutou e sofreu sozinho, solitário na sua certeza. Ensinava sem cessar que os fenómenos mediúnicos eram factos, coisas palpáveis e não abstracções imaginárias. O sábio inglês William Crookes, chamado a combatê-lo, entrou na arena das pesquisas psíquicas por três anos e confirmou a realidade da descoberta kardeciana. Fredrich Zöllner fez o mesmo na Alemanha e conseguiu resultados positivos. Ochorowicz confirmou a realidade dos fenómenos em Varsóvia.

O Século
XIX, como diria mais tarde Léon Denis, tinha a missão de restabelecer cientificamente a concepção espiritual do homem. O movimento neo-espiritualista empolgou a Inglaterra e os Estados Unidos. Lombroso levantava-se irado, na Itália, contra essa ressurreição ameaçadora das antigas superstições. O Prof. Chiaia, de Milão, o desafiou para assistir experiências com a famosa médium Eusápia Paladino. Lombroso aceitou o desafio e teve a ventura de receber nos braços sua própria mãe num fenómeno de materialização.

Charles Richet, na França, funda a Metapsíquica. Era o maior fisiologista do século, prémio Nobel, director da Faculdade de Medicina de Paris. Kardec, o solitário, já não estava mais só. Numerosos cientistas e intelectuais o apoiavam. Conan Doyle, médico e escritor de renome, tornara-se ardoroso propagador do Espiritismo. Victor Hugo pronunciou-se a favor da nova doutrina. Estava cumprida a missão do Século XIX e Léon Denis fazia conferências em toda a Europa sobre a Missão do Século XX. Clérigos e teólogos sensibilizaram-se com os acontecimentos e surgiu numa igreja de Paris um sacerdote corajoso, Meningem, professor da Sorbone, que pregava a favor do Espiritismo e escreveu um livro a respeito: O Cristianismo do Cristo e o dos seus Vigários. Foi expulso da Igreja.

Em 1935 Richet falecia em Paris, entregando aos seus discípulos a obra Monumental do Tratado de Metapsíquica. Geley e Osty deram prosseguimento à sua obra, no Instituto Internacional de Metapsíquica, em Paris. Mas a imprensa mundial trombeteou que a metapsíquica morrera e havia sido enterrada com Richet. Não sabia que, cinco anos antes, em 1930, Rhine e McDougall haviam reiniciado as pesquisas metapsíquicas na Universidade de Duke, com a denominação de Parapsicologia.
/…


José Herculano Pires, Educação para a Morte – Conceito actual da Morte, 3º fragmento
(imagem: O caranguejo, pintura de William-Adolphe Bouguereau)

terça-feira, 17 de abril de 2012

O Mundo Invisível e a Guerra~


III
As Lições da Guerra

|Março de 1915|

…/

   Ainda subsistem, sem dúvida,

muitos resquícios de imoralidade, corrupção e decadência e, por vezes, perguntamos se tamanha lição não foi bastante para corrigir nossos vícios. Em compensação, quantas existências fantasiosas, estéreis ou desordenadas ficaram mais simples, puras e fecundas.

   A vida pública e a privada, sob certos aspectos, estão sofrendo uma radical transformação. Essa purificação dos costumes e do carácter traz consigo a das letras francesas, a do jornalismo, enfim, a do pensamento sob todas as formas em que se expresse, parecendo que estamos livres, por muito tempo, dessa psicologia mórbida, dessa pornografia chula, venenos da alma que nos faziam ser considerados, pelo estrangeiro, como nação decadente.

   Quem ousaria servir-se da pena para recair em semelhantes erros? Os escritores e os romancistas do futuro terão assuntos bem diversos, graves e elevados para suas obras.

   Por certo não perdemos de vista o lamentável desfile das desgraças produzidas pela guerra: as horríveis hecatombes, a aniquilação das vidas, o saque e a destruição das cidades, os estupros, os incêndios, os velhos, as mulheres e as crianças espoliadas, mortas ou mutiladas, a fuga dos rebanhos humanos abandonando seus lares devastados, afinal, o espectáculo do sofrimento humano no que existe de mais intenso e pungente.

   Qualquer espírita sabe que a morte é apenas uma aparência: a alma, ao desprender-se do seu envoltório material, adquire maior força, maior percepção das coisas e o ser se encontra mais vivo no Além.

   O pensamento se purifica pela dor, nenhum sofrimento se perde e nenhuma provação deixa de ter sua compensação. Os que morreram pela pátria recolhem os frutos do seu sacrifício e o sofrimento dos que sobreviveram transmite aos seus perispíritos ondas de luz e sementes de futuras felicidades.

   A questão do progresso se resolve facilmente, porque só ele é real e permanente, sendo simultâneo em seus dois aspectos, o material e o moral.

   O progresso meramente material é, com muita frequência, apenas uma arma colocada a serviço das más paixões.

   Aos bárbaros da actualidade a ciência forneceu formidáveis recursos de destruição: máquinas variadas, violentos explosivos, pastilhas incendiárias, dispositivos para o lançamento de líquidos inflamáveis, gases asfixiantes ou corrosivos, etc.

   A navegação aérea e submarina aumentou de muito o poder do fogo, todavia todos os progressos da ciência tornam o homem infeliz, enquanto ele permanece mau. E tal situação se prolongará enquanto a educação popular for falseada e o homem seguir ignorando as verdadeiras leis do ser e do destino, assim como o princípio das responsabilidades com suas consequências nas vidas sucessivas.

   Sob esse aspecto, o fracasso das religiões e da ciência é completo: a guerra actual o comprova, fartamente.

   Com relação ao progresso moral, ele é lento e quase imperceptível na Terra, graças à população do globo que cresce incessantemente com elementos provindos de mundos inferiores.

   Só os espíritos que conseguiram certo grau de progresso na Terra evoluem com proveito para grupos melhores. Eis por que varia pouco o nível geral, permanecendo raras e ocultas as qualidades morais dos indivíduos.

   Os golpes da adversidade ainda serão, durante muito tempo, meios necessários para impelir o homem a se desprender do círculo estreito onde se encerra, obrigando-o a elevar mais alto seu pensamento.

   Ainda precisará escalar, muitas vezes, a íngreme ladeira do calvário através de espinhos e pedras pontiagudas. Todavia, do escabroso pico, ele divisará o brilho do grande foco de sabedoria, de verdade e de amor que ilumina e fortalece o Universo.
/…


LÉON DENIS, O Mundo Invisível e a Guerra, III – As Lições da Guerra 2 de 3,
7º fragmento
(imagem: Tanque de guerra britânico capturado pelos Alemães, durante a Primeira Guerra Mundial)

domingo, 15 de abril de 2012

a pedra e o joio~


As normas
de Kardec

   Mas o desenvolvi-
mento dos princípios espíritas não pode ser feito de maneira arbitrária, pois no campo do conhecimento
há leis de
lógica e de logística que regem o processo cultural.

Kardec estabeleceu as normas que temos de observar para não cairmos nos enganos e nas ilusões tão comuns à nossa precipitação.
Essas normas, elas mesmas, estão hoje sendo acrescidas de meios novos de verificação da realidade através da Ciência e da Filosofia.
O bom senso, como ensinou Kardec, é o fio-de-prumo que nos garante a construção de um conhecimento mais amplo e mais rico, mas ao mesmo tempo mais preciso.

   Usar do bom senso é o primeiro preceito da normativa de Kardec.
Examinar com rigor a linguagem dos Espíritos comunicantes, submetê-los a testes de bom senso e conhecimento, verificar a relação de realidade dos conceitos por eles enunciados (relação do seu pensamento com os factos, as coisas e os seres), enquadrar os seus ensinos e revelações no contexto cultural da época, verificando o alcance abusivo ou não das afirmações mais audaciosas – eis os elementos que temos de observar no trato da mediunidade, se não quisermos cair em situações difíceis, a que fatalmente nos levariam espíritos imaginosos ou pseudo-sábios.
E ao lado disso submeter tudo quanto possível à comprovação experimental, à pesquisa.

   Bem sabemos que tudo isso requer espírito metódico, um fundo básico de conhecimentos gerais, capacidade normal de discernimento, superação da curiosidade doentia, controle rigoroso da ambição e da vaidade, equilíbrio do raciocínio, maturidade intelectual, critério científico de observação e pesquisa e firme decisão de não se deixar levar pelas aparências, aprofundando sempre o exame de todos os aspectos dos problemas e das circunstâncias.
Sim, tudo isso é difícil, mas sem isso não faremos ciência e sem ciência não teremos Espiritismo.
Se alguém notar que não dispõe dessas qualidades deve reconhecer-se inábil para a investigação espírita.
É melhor aceitar com humildade as próprias limitações do que aventurar-se a realizações impossíveis.
/…


José Herculano Pires – A Pedra e o Joio, Crítica à Teoria Corpuscular do Espírito, As normas de Kardec, 3º fragmento
(imagem: As Colhedoras de Grãos, pintura a óleo por Jean-François Millet)

sábado, 14 de abril de 2012

São chegados os tempos ~


Os tempos marcados por Deus chegaram dizem-nos em todos os lados, durante os quais se realizarão grandes acontecimentos para regeneração da humanidade.

Que sentido devemos dar a estas palavras proféticas?

Para os incrédulos não têm qualquer importância; a seus olhos não passa da expressão de uma crença pueril sem fundamento; para a maior parte dos crentes elas têm qualquer coisa de místico e de sobrenatural que lhes parece ser o prenúncio da desorganização das leis da natureza. Estas duas interpretações são igualmente erradas: a primeira no que implica de negação da Providência; a segunda, no que estas palavras não anunciam a perturbação das leis da natureza, mas o seu cumprimento.

Tudo é harmonia na Criação; tudo revela uma previsão que não se desmente, nem nas mais pequenas coisas nem nas maiores; devemos portanto começar por afastar qualquer ideia de capricho inconciliável com a sabedoria divina; em segundo lugar, se a nossa época está marcada pela realização de certas coisas, é porque elas têm a sua razão de ser no andamento do conjunto.

Posto isto, diremos que o nosso globo, como tudo o que existe, está submetido à lei do progresso. Progride fisicamente pela purificação dos Espíritos encarnados e não encarnados que o povoam. Estes dois progressos seguem-se e caminham paralelamente, pois a perfeição da habitação está em relação com a do habitante. Fisicamente, o globo sofreu transformações constatadas pela ciência e que o foram sucessivamente tornando habitável pelos seres cada vez mais aperfeiçoados; moralmente, a humanidade progride com o desenvolvimento da inteligência, do sentido moral e suavização dos costumes.

Ao mesmo tempo que se opera a melhoria do globo sob o império das forças materiais, os homens concorrem para isso com os esforços da sua inteligência; saneiam as regiões insalubres, tornam as comunicações mais fáceis e a Terra mais produtiva.

Esta dupla evolução realiza-se de duas maneiras: uma lenta, gradual e insensível; a outra por mudanças mais bruscas, em cada uma das quais se opera um movimento ascensional mais rápido do que marca, por características definidas, os períodos progressivos da humanidade. Estes movimentos, subordinados nos pormenores ao livre-arbítrio dos homens, são de certo modo fatais no seu conjunto, porque estão submetidos a leis, como as que se operam na germinaçãocrescimento e maturidade das plantas; é por isso que o movimento progressivo é por vezes parcial, quer dizer, limitado a uma raça ou a uma nação, outras vezes geral.

O progresso da humanidade efectua-se portanto por virtude de uma lei; ora, como todas as leis da natureza são obra eterna da sabedoria e da presciência divinas, tudo o que é efeito destas leis é resultado da vontade de Deus, não de uma vontade acidental e caprichosa, mas de uma vontade inalterável. Quando então a humanidade estiver madura para subir um degrau, podemos dizer como também podemos dizer que em determinada estação os tempos chegaram para a maturação dos frutos e para a colheita.

Pelo facto de o movimento progressivo da humanidade ser inevitável por estar na natureza, não se segue que Deus lhe seja indiferente e que depois de ter estabelecido as leis tenha voltado à inacção deixando as coisas andarem sozinhas. As suas leis são eternas e imutáveis, sem dúvida, mas porque a sua vontade é ela mesma eterna e constante e que o seu pensamento anima todas as coisas sem interrupção; o seu pensamento, que tudo penetra, é a força inteligente e paciente que mantém tudo em harmonia; se esse pensamento deixar um só instante de agir, o Universo será como um relógio sem pêndulo regulador. Deus vela portanto incessantemente pelo cumprimento das suas leis e os Espíritos que povoam o espaço são os seus ministros encarregados dos pormenores, de acordo com as atribuições correspondentes ao seu grau de evolução.

O Universo é simultaneamente um mecanismo incomensurável conduzido por um número menos incomensurável de inteligências, um imenso governo onde cada ser inteligente tem a sua parte de acção sob o olhar soberano do Mestre, cuja vontade única mantém em todo o lado a unidade. Sob o império deste vasto poder regulador tudo se move, tudo funciona numa ordem perfeita; os que se nos apresentam como perturbações são os movimentos parciais e isolados que só nos parecem irregulares porque a nossa visão está circunscrita. Se pudéssemos abarcar o conjunto, veríamos que estas irregularidades não são aparentes e que elas se harmonizam no todo.

A humanidade realizou até hoje incontestáveis progressos; os homens, pela sua inteligência, chegaram a resultados que nunca tinham atingido no campo das ciências, das artes e do bem-estar material; falta-lhe ainda um imenso progresso a realizar: é fazer com que reine entre eles a caridade, a fraternidade e a solidariedade, para garantir o bem-estar moral. Não o poderiam com as suas crenças nem com as suas intuições antiquadas, resto de uma outra era, boas para uma certa época, suficientes para um estado transitório mas que, tendo dado o que continham, seriam hoje um ponto de paragem. Já não é somente o desenvolvimento da inteligência que faz falta aos homens, é a elevação do sentimento, e para isso é preciso destruir tudo o que possa sobreexcitar neles o egoísmo e o orgulho.

É assim o período em que vão doravante entrar e que marcará uma das fases principais da humanidade. Esta fase que se elabora neste momento é o complemento necessário do estado antecedente, assim como a idade viril é o complemento da juventude; podia portanto ser prevista e profetizada com antecedência e é por isso que dizemos que os tempos marcados por Deus já chegaram.

Neste tempo agora, não se trata de uma mudança parcial, de uma renovação limitada a uma região, a um povo, a uma raça; é um movimento universal que se opera no sentido do progresso moral. Uma nova ordem de coisas tende a estabelecer-se e os homens que mais se opõem a isso trabalham nesse sentido sem o saberem; a geração futura, liberta da escória do velho mundo e formada por elementos mais depurados, encontrar-se-á animada de ideias e de sentimentos muito diferentes da geração actual que se vai embora a passos de gigante. O velho mundo morrerá e viverá na história tal como hoje vivem os tempos da Idade Média com os seus costumes bárbaros e as suas crenças supersticiosas.

De resto, todos sabem quanto a ordem actual das coisas deixa ainda a desejar; depois de ter, de certa maneira, esgotado o bem-estar material que é produto da inteligência, conseguimos compreender que o complemento deste bem-estar só pode estar no desenvolvimento moral. Quanto mais se avança, mais se sente o que falta, sem no entanto o podermos definir claramente ainda: é o efeito do trabalho íntimo que se opera para a regeneração; têm-se desejos, aspirações, que são como que o pressentimento de um estado melhor.

Mas uma mudança assim tão radical como a que se elabora não se pode realizar sem comoção; há aí uma luta inevitável entre as ideias. Deste conflito nascerão forçosamente perturbações temporárias até que o terreno esteja preparado e o equilíbrio restabelecido. É então da luta de ideias que surgirão os graves acontecimentos anunciados e não de cataclismos ou catástrofes puramente materiais. Os cataclismos gerais eram consequência do estado de formação da Terra; hoje, já não são as entranhas do globo que se agitam, são as da humanidade.
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ALLAN KARDEC, A GÉNESE – Os Milagres e as Profecias Segundo o Espiritismo – Capítulo XVIII, SÃO CHEGADOS OS TEMPOS – Sinais dos tempos, números de 1 a 7, fragmento. Tradução portuguesa de Maria Manuel Tinoco, Editores Livros de Vida.
(imagem: Dafne, a Sibila délfica, afresco na Capela Sistina por Michelangelo)