Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

quarta-feira, 25 de abril de 2012

Narrações do Infinito~



LÚMEN

Primeira narrativa – III
 
Resurrectio præteriti
(a
ressurreição
do
passado)

…/


   Lúmen – E positivo. Buscai, na criação inteira, e encontrareis um paradoxo mais notável do que esse?

   Ora, que é o tempo? Suponde que um octogenário tem diante do olhar dois retratos representando, o primeiro, seu pai quando criança, saindo do primeiro lustro de idade, por exemplo, e o segundo, ele próprio, na idade actual de oitenta. Onde está a criança, onde está o velho? Sem dúvida, o genitor está mais idoso do que ele, mas esse tempo já passou, pois o genitor já faleceu. Suas duas existências foram sucessivas; é tudo que poderíamos dizer. Ante esses dois retratos, o pai é a criança, a criança um avô. Visto de mais longe, desaparecido o tempo, o passado dá lugar a um presente perpétuo. O tempo desaparece também em astronomia.

   Eu vos dizia há pouco que ocasiona bastante fadiga mensurar as posições precisas de pares de estrelas duplas que não existem mais. A luz que recebeis hoje partiu há séculos e séculos, e desde essa época o par foi destruído por uma conflagração cósmica que vereis dentro de um milénio. Mas, estudais, apesar disso, o inexistente, e, muitas vezes, com verdadeira paixão. Não vos importa. Isso, aliás, é um prazer matemático. Não é inútil reflectir a respeito dessas verdades: elas nos elevam acima das contingências pueris da vida.

   Que acrescentarei agora à minha narrativa? Eu me segui, assim, crescendo na vasta cidade parisiense. Eu me vi, em 1804, ingressando no colégio e fazendo minhas estreias no momento em que o Primeiro Cônsul se coroava com a dignidade imperial. Conheci essa fronte dominadora e pensativa de Napoleão num dia em que passou em revista o Carrocel.

   Não me havendo jamais encontrado em sua presença, fiquei satisfeito em vê-lo atravessar meu campo actual de observação. Em 1810 eu me revi na formatura da Escola Politécnica e em palestra no pátio com o melhor dos meus camaradas, Francisco Arago. Esse jovem já pertencia ao Instituto e substituía Monge na Escola, devido ao jesuitismo de Binet, do qual o Imperador se queixava. Encontrava-me desse modo na plenitude dos brilhantes tempos da minha adolescência e dos meus projectos de viagem de exploração científica, em companhia de Arago e Humboldt, viagens que este se decidiu empreender sozinho. Depois, eu me reconheci, mais tarde, sob os Cem-Dias, atravessando rapidamente o pequeno bosque do velho Luxemburgo, a rua do Este e a ala do jardim da rua de S. Jaques, e vendo acorrer minha bem-amada para me receber sob os lilases em flor. Doces horas de solitude a dois, de confidências de coração, silêncios da alma, transportes do amor, efusões da tarde – vós vos oferecestes à minha vista emocionada, não mais no grau de saudades longínquas, porém na vossa actualidade absoluta!

   Assisti de novo ao combate dos Aliados na colina de Montmarte, à sua descida na Capital, à queda da estátua da praça Vendôme, arrastada nas ruas, por entre gritos de alegria, ao campo dos ingleses e dos Prussianos nos Campos Elíseos, à devastação do Louvre, à viagem de Gand, à reentrada de Luís XVIII! A bandeira da ilha de Elba flutua sob meus olhares e, mais tarde, porque buscasse no Atlântico a ilha solitária onde a águia fora acorrentada, asas quebradas, a rotação do Globo aproximou de minha vista Santa-Helena, onde identifiquei o Imperador, imaginando junto de um sicómoro.

   Assim passou cada ano presente ao meu olhar. Acompanhando sempre a minha própria individualidade, no meu casamento, nas minhas iniciativas, minha vida de relação, minhas viagens, estudos, etc., assisti ao desenvolvimento da história contemporânea. À restauração de Luís XVIII sucede o governo efémero de Carlos X. As jornadas de Julho de 1830 mostraram as suas barricadas e, não longe do trono do Duque de Orleães, vi aparecer a coluna da Bastilha. Rapidamente passaram esses 216 meses. Apercebi-me no Luxemburgo, nessa avenida magnífica, que fora aberta por Napoleão e substituíra velhos mosteiros. Revi Arago no Observatório e a turba que se apertava às Portas do novel anfiteatro. Reconheci a Sorbona de Gousin e de Guizot. Depois, meu coração se constringiu, ao ver passar o enterro de minha mãe, senhora austera e talvez um pouco severa demais em seus julgamentos, porém que eu sempre muito amei, conforme sabeis. A singular pequena revolução de 1848 surpreendeu-me não menos vivamente do que quando me pareciam ser os próprios acontecimentos. Reconheci, na praça da Bolsa, Lamoricière, falecido no ano passado, e, nos Campos Elíseos, Cavaignac, também já desaparecido, há um lustro mais ou menos. O 2 de Dezembro veio encontrar-me observador na minha estação celeste, tal qual eu o havia sido na minha torre solitária, e, sucessivamente, se escoaram assim acontecimentos que me haviam emocionado, e outros de mim desconhecidos.

   Quœrens – E esses acontecimentos passavam com rapidez ante vosso olhar?

   Lúmen – Não saberia apreciar a medida do tempo; mas todo esse panorama retrospectivo se sucedeu de certo em menos de um dia... ou horas, talvez.

   Quœrens – Nesse caso, não compreendo melhor! Perdoe a um velho amigo esta interrupção um tanto viva; mas, segundo havia imaginado, pareciam-me ser os próprios acontecimentos que se apresentavam aos vossos olhos, e não um simulacro unicamente, em virtude do tempo necessário ao trajecto da luz, esses sucessos estavam atrasados quanto ao momento da sua ocorrência. Se, pois, 864 meses terrestres passaram sob vosso olhar, eles deviam ter gasto esse período de tempo para vos aparecerem, e não algumas horas. Se o ano 1793 vos surgiu em 1864, o ano de 1864, em retrocesso, não deveria, consequentemente, aparecer antes de 1936.

   Lúmen – Vossa objecção, nova, tem fundamento e demonstra que haveis perfeitamente compreendido a teoria desse facto. Sei que estais satisfeito por havê-la formulado. Também vou explicar porque não me foi necessário aguardar 864 novos meses para rever minha vida, e por que, sob o impulso de uma força inconsciente, eu a pude rever em menos de um dia. Continuando a seguir o desenrolar da minha existência, cheguei aos últimos tempos, notáveis pela transformação radical feita em Paris. Vi meus velhos e queridos amigos, vós inclusive, minha filha e seus lindos filhinhos, minha família e meu círculo de conhecidos; e, enfim, chega o momento em que, pela percepção dos raios ultravioleta, atravessando os mundos, eu me vi, deitado no meu leito de morte. Penetrei na câmara mortuária e assisti à derradeira cena, o que equivale dizer que eu regressara à Terra.

   Atraída pela contemplação que a empolgava, minha alma havia depressa esquecido a montanha dos anciães e Capela. Tal qual acontece por vezes em sonho, abalava-se com o que via. Disso não me apercebi imediatamente, tanto a estranha visão absorvera todas as minhas faculdades.

   Não vos posso explicar qual o poder que permite às almas transportarem-se tão rapidamente de um lugar a outro; mas, a verdade é que eu voltara à Terra, em menos de um dia, e que penetrei em meu aposento de dormir, no preciso momento de ser amortalhado.

   Por isso que em tal viagem de regresso caminhava ao encontro de raios luminosos, eu encurtava sem cessar a distância que me separava da Terra; a luz tinha cada vez menos percurso a vencer e restringia assim a sucessão dos acontecimentos. No meio do caminho, os raios luminosos, chegando-me apenas com a metade do atraso (432 meses), não mais me mostravam a Terra dos 864 anteriores, mas a daquela metade de tempo. Nas três quartas partes do percurso, os aspectos eram os de 216 meses de retardo. Na metade do último quarto do tempo chegavam com a diferença de 108 meses decorridos, e assim por diante, de modo que a minha existência se condensou em menos de um dia, em consequência da volta rápida de minha alma vindo ao encontro dos raios luminosos.
/…


CAMILLE FLAMMARION, Narrações do Infinito, LÚMEN Primeira narrativa – III,
fragmento 9º (C. Flammarion faz falar uma alma liberta dos vínculos corporais, a que ele denominou Lúmen)
(imagem: Jungle Tales_1895, pintura de James Jebusa Shannon)

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