Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

quarta-feira, 11 de abril de 2012

Narrações do Infinito~



LÚMEN

Primeira narrativa – III
 
Resurrectio præteriti
(a
ressurreição
do
passado)

…/


   Lúmen – Depois de haver desviado meu olhar das cenas sangrentas da praça da Revolução, eu me senti atraído para uma habitação de antiquado estilo, fazendo face para a Notre Dame, e situada no terreno ora ocupado pelo átrio. Diante da porta interior (paravento), havia um grupo de cinco pessoas, que estavam meio deitadas sobre bancos de madeira, cabeça descoberta exposta ao Sol. E porque pouco depois se levantassem e se dirigissem a seus lugares, reconheci em uma a pessoa de meu pai, tão moço qual jamais eu imaginara, minha mãe, mais jovem ainda, e um de meus primos, falecido no mesmo ano da morte de meu pai, aproximadamente há 8 lustros. É difícil, à primeira vista, reconhecer as pessoas, pois, ao invés de serem vistas de face, são olhadas do alto, como que de um andar superior. Não me surpreendeu muito tal encontro. Recordei-me então ter ouvido dizer, na minha juventude, que meus parentes residiam, antes do meu nascimento, na praça Notre Dame.

   Com estupefacção maior no sentir do que no poder expressar, senti minha vista fatigada e cessei de distinguir qualquer coisa, tal qual nuvens se houvessem estendido sobre Paris. Acreditei, por minutos, que um turbilhão me arrastava. De resto, já o haveis decerto compreendido, não possuía mais a noção do tempo.

   Quando revi distintamente os objectos, notei um grupo de crianças correndo na praça do Panteão. Esses colegiais me pareciam saídos da aula, pois conduziam bolsas e livros, e tinham a aparência de regressar aos lares, saltitando e gesticulando. Dois entre eles atraíram minha atenção em especial, porque pareciam alterados por uma rixa qualquer e começavam uma luta particular. Um terceiro avançou para separá-los, mas recebeu um encontrão de ombros que o atirou ao chão. No mesmo instante vi uma senhora correr para o menino. Era minha mãe. Ah! jamais, nunca, em meus setenta e dois anos de existência terrestre, entre todas as peripécias, todos os espantos, todos os golpes imprevistos, todas as bizarrias de que foi tal existência pontilhada, entre todos os acontecimentos, todas as surpresas, acaso da vida – jamais experimentei comoção igual à que me sacudiu – quando, nesse menino, me reconheci eu mesmo!

   Quœrens – Vós mesmo?

   Lúmen – Sim, eu mesmo. Com os meus louros cabelos cacheados, aos cinco de idade, meu lencinho bordado pelas mãos daquela mãe que correra a me acudir, minha blusinha azul celeste e meus punhos sempre amarrotados. Estava lá, o mesmo menino do qual vistes a imagem meio esvaecida na pequena miniatura colocada na lareira. Minha mãe veio, tomou-me nos braços, ralhando a meus camaradas, e me conduzia pela mão à nossa casa, então situada na abertura actual da rua do Ulm. Depois, vi que, tendo atravessado o interior, nos achamos ambos num jardim onde havia muita gente.

   Quœrens – Mestre, perdoai uma reflexão crítica. Confesso que me parece impossível que alguém possa ver-se a si mesmo! Vós não vos podeis tornar em duas pessoas. E uma vez que havíeis atingido a idade septuagenária, a vossa condição infantil fora para o passado, estava desaparecida, anulada desde muito. Vós não podíeis ver uma coisa inexistente. Pelo menos, não posso compreender que, sendo velho, vos fosse possível ver a própria personalidade com a idade actual de criança.

   Lúmen – Qual razão vos impede de admitir esse ponto no mesmo grau dos precedentes?

   Quœrens – Porque ninguém se pode ver, num duplo, simultaneamente, criança e velho!

   Lúmen – Vós não raciocinais de modo completo, meu amigo. Haveis assimilado o facto geral, para admiti-lo, mas não observastes suficientemente que este último facto cabe de modo completo no primeiro. Admitis que o aspecto da Terra despende 864 meses para chegar a mim, não é certo ? que os acontecimentos não me chegam senão com este intervalo de tempo para sua actualidade? em uma palavra, que eu vejo o mundo tal qual ele era naquela época. Admitireis paralelamente que, vendo as ruas de tal tempo, eu veja, na mesma ocasião, os meninos que corriam então nas ditas ruas. Não está bem esclarecido?

   Quœrens – Inteiramente.

   Lúmen – Muito bem! Então, se eu vejo o grupo de crianças e eu fazia parte dessa infância, porque pretendeis não me veja tão bem quanto as outras?

   Quœrens – Mas vós não estais mais nesse grupo!

   Lúmen – Ainda uma vez, esse grupo não existe mais, actualmente; mas eu o vejo tal qual existia à época em que partiu o raio luminoso que hoje me chegou. E desde que diviso os 15 ou 18 meninos componentes do todo, não há razão para que o menino que era eu desaparecesse, pelo facto de ser eu mesmo quem observa. Outros observadores vê-lo-iam em companhia desses camaradas. Porque quereis houvesse uma excepção quando eu próprio olho? Eu os vejo a todos, e a mim com eles.

   Quœrens – Eu não havia apreendido inteiramente o caso. É a evidência, com efeito. Abrangendo um grupo de crianças do qual fizestes parte, não poderíeis deixar de ver a vós próprio, desde que víeis a todos os outros.

   Lúmen – Ora, compreendereis em que estranha estupefacção devia precipitar-me uma tal visão? Esse menino era bem eu, em carne e osso segundo a expressão vulgar e significativa. Era eu no início do meu segundo lustro de idade. Eu me via, tão bem quanto os companheiros do jardim que brincavam comigo. Não era miragem, visão, espectro, reminiscência, ilusão: era realidade pura, positivamente a minha personalidade, meu pensamento, meu corpo. Estava lá, sob meus olhos. Se meus outros sentidos tivessem tido a perfeição da minha vista, parece-me que eu teria podido tocar-me e ouvir-me a mim próprio. Eu saltava naquele jardim e corria em torno do lago rodeado de balaustrada. Algum tempo depois, meu avô me colocou sobre os joelhos e me fez ler em um grande livro.

   Mas, basta! Renuncio descrever essas impressões. Deixo-vos o cuidado de as experimentar em vós mesmo, se estais bem identificado com a realidade física desse facto, e me limito a declarar que jamais semelhante surpresa caiu sobre minha alma.
Uma reflexão principalmente me atarantou. Eu me dizia: esse menino sou eu, e bem vivo. Ele cresceu e deve viver mais onze vezes a idade que tem. Sou eu, real e incontestavelmente, eu mesmo.

   E, de outro lado, eu que estou aqui com os 72 de vida terrestre, eu que penso e vejo estas coisas, sou tanto eu quanto sou essa criança. Eis-me, pois, em dois: lá em baixo, na Terra; aqui, em pleno Espaço. Duas pessoas completas, e não menos distintas uma da outra. Observadores, colocados onde estou, poderiam ver esse menino no jardim tal qual o vejo e também me ver igualmente aqui: a mim, em dois. É incontestável. Minha alma está nessa criança, e igualmente aqui; é a mesma, a alma única, animando, no entanto, esses dois seres. Que estranha realidade! E não posso dizer que me engano, que estou em ilusão, que um erro óptico me domina. Ante a Natureza e ante a Ciência, eu me vejo, ora menino e ora velho, lá e aqui... lá, descuidado e alegre; aqui, pensativo e emocionado.

   Quœrens – É estranho realmente.

   Lúmen – E positivo. Buscai, na criação inteira, e encontrareis um paradoxo mais notável do que esse?
/…


CAMILLE FLAMMARION, Narrações do Infinito, LÚMEN Primeira narrativa – III, fragmento global 8º (C. Flammarion faz falar uma alma liberta dos vínculos corporais, a que ele denominou Lúmen)
(imagem: Jungle Tales_1895, pintura de James Jebusa Shannon)

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