Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

segunda-feira, 16 de outubro de 2023

Deus na Natureza ~


~ a vontade do homem ~
(VI)

 O apanágio mais glorioso da natureza humana não passaria de grosseiro engodo, se pudesse prevalecer a teoria mecânica do Universo. A Verdade, o Bem, o Belo desaparecem nela. Em vão os adversários nos alegam a sua conduta exemplar, inatacável.

 No caso, não se trata das consequências de sua vida pessoal e sim das de sua doutrina. Pois bem: logicamente, sem contradizer-se a si mesmo, não pode o ateísmo constituir-se em moral. “O materialismo – diz judiciosamente Patrice Larroque (i) – para mais nada serve, senão para tirar à vida humana a sua gravidade e o seu valor, dando razão aos seres miseráveis, cuja habilidade consiste em explicar, com a maior segurança possível, as misérias e fraquezas do próximo.”

 Queremos francamente acreditar que todos os materialistas, em o serem, não se tornem só por isso corrompidos. Não nos fazemos eco dos que os acusam de “viverem mergulhados na embriaguez e no deboche”. Conhecemos homens e mulheres cuja vida pode apontar-se como modelo de moralidade, embora não crendo na existência de Deus e da alma. Não, não podemos deixar de confessar que, no seu próprio sistema, essa honestidade é apenas uma questão de temperamento e que, justos e bons, conscienciosos e benevolentes, afectuosos e moralizados, em suma, se praticam a caridade, se não sacrificam ao bezerro de ouro, se preferem a integridade e a pureza de carácter à fortuna ilícita, não é devido ao seu sistema e sim a uma convicção íntima, que os guia a seu talante e protesta contra as suas palavras e a sua filosofia. Sim: não são moralizados por serem cépticos, mas, a despeito de o serem.

 Pois, na verdade, que significa uma moralidade sem base, sem motivo e sem finalidade?

 Certo, não duvidamos possa haver uma moral independente do Catolicismo, mesmo do Cristianismo e, em geral, de qualquer confissão religiosa. No que não cremos é numa moral independente da ideia de Deus. Se só existissem as verdades de ordem física, se fossem místicas as que possuímos como de ordem moral, a própria moral não passaria de utopia e a honestidade de mera tolice.

 Outras propensões, existem, porém, que não procedem da matéria.

 “O homem que passa os dias sofrivelmente a trabalhar, ou, antes, que não consome todo o tempo em prover a existência física – diz um grande astrónomo (ii) – experimenta necessidades nas quais não intervêm os sentidos, penas e gozos, que nada têm de comum com as misérias da vida. E, uma vez manifestadas com certa intensidade, ele não pode confundi-las com os apetites animais. Sente-as como de outra espécie e de uma ordem mais elevada. Mas isso não é tudo. O homem não é sensível somente aos jogos da imaginação, às suavidades dos costumes sociais, mas sim especulativo por natureza. Não contempla o mundo e tudo que o rodeia, passiva e admirativamente, como se fossem fenómenos seriados e apenas dignos de interesse pelas relações que mantêm com ele. Ao contrário, considera-os como sistematizados, dispostos e coordenados com desígnio. A harmonia das partes, a sagacidade das combinações, causam-lhe a mais viva admiração. Assim, é levado à conjectura de uma potência, de uma inteligência superior à sua e capaz de produzir e conceber, quanto se lhe depara na Natureza. Pode chamar a essa potência, infinita, uma vez que lhe não percebe limite nas obras com que se lhe manifesta. Quanto mais examina, observa, indaga, maiores magnificências descobre e mais grandezas entrevê.

 “Vê que tudo o que lhe pode facultar a mais longa existência e a maior inteligência, já como fruto de experiência própria, já como património de esforço alheio, só pode conduzi-lo aos limites da Ciência. Como estranhar, então, que um ser assim constituído comece por agasalhar a esperança e acabe convicto de que o seu princípio espiritual não acompanhe as vicissitudes da carcaça, que lhe sobreviva ao desaparecimento? Como admirar se convença ele, que, longe de extinguir-se, passará a uma vida nova, na qual, liberto dos mil entraves que aqui lhe tolhem o voo, dotado de sentidos mais subtis, de faculdades mais altas, matará a sede na fonte de sabedoria que tão sequioso buscara na Terra?”

 A hipótese materialista exclui todas estas grandezas morais, todas estas altas aspirações e esperanças consoladoras. Os nossos adversários, porém, tomam facilmente o seu partido: “Façamos abstracção – diz o autor de Força e Matéria – de toda a questão de moral e de utilidade. A Natureza não existe para a Religião, nem para a Moral, nem para os homens. Não seríamos ridículos – vejam bem, ridículos – se fôssemos chorar como crianças só porque as nossas torradas têm pouca manteiga?” Que tal vos parecem as... torradas? Pelo que nos toca, confessamos não compreender o gracejo em assunto de tamanha relevância.

 Diante dos grandes factos de ordem moral e intelectual, parece-nos haver perdido todo o senso da verdade para subordinar estas virtudes, as “virtudes”, aos movimentos da matéria. Como atribuir a esse predomínio, com Moleschott, que o “homem deva, em parte, o lugar privilegiado na escala zoológica, à faculdade de alimentar-se tanto de vegetais como de carne”? O mesmo vale dizer, com Helvétius, que “o homem só deve à conformação das mãos a superioridade que desfruta em relação aos outros animais”.

 Como admitir que Büchner, apregoando a matéria como base de toda a força espiritual, de toda a grandeza terrestre e humana – que aquele mesmo que reconheceu a igualdade do espírito e da matéria e julgue honroso o título de materialista, pois ao materialismo é que o mundo deve a sua grandeza? (iii)

 Como afinar com Spencer nestas declarações:

 “O que denominamos quantidade de consciência é determinado pelos elementos constitutivos do sangue; vemo-lo claramente na exaltação que se dá quando introduzimos na circulação uns quantos compostos químicos, como sejam o álcool e os alcalóides vegetais.” Como Compartilhar da opinião de Littré ao declarar que “a vontade é inerente à substância cerebral, assim como a contractilidade o é dos músculos e, que o livre-arbítrio não é mais que simples modalidade do trabalho cerebral”? (iv)

 Como reduzir a proporções da Física e da Química orgânicas, a simples fenómenos de nutrição e assimilação, essas realizações magníficas do génio e da virtude?

 Terminando este capítulo, regressemos ao objectivo com que o encetámos e constatemos a inconsequência desses filósofos que imaginam, arrogantemente, ter lançado uma ponte entre o espírito e a matéria, sem perceberem que apenas lançaram pedras no abismo. Descrevem eles o movimento atómico das substâncias, metamorfoses de combinações, processos de assimilação e desassimilação e pretendem que essas transformações que levam do pulmão ao cérebro uma molécula de ferro, são de molde a explicar claramente a formação do pensamento. Posto isto, não temem acrescentar: – “Temos provas tão concretas desta verdade, que uma profissão de fé materialista não deve ser considerada apenas como premissa de grande alcance, nem como arrojada profecia, mas como fruto de uma convicção profundamente enraizada” (v).

 Eis o que se pode chamar ousadia! Sabei assim todos vós, ó filósofos e moralistas! que o homem é manufactura do seu alimento, da sua paternidade, do seu clima, do seu solo e da sua educação. Se afagais o nobre intuito de colaborar para a melhoria humana, não é, precisamente, a graduação do nível moral e intelectual do indivíduo o que vos deve preocupar e, sim de como vive e como se alimenta. Se ele tem muito ferro (já que o ferro é uma das maiores apoquentações da época e as raparigas muito necessitam dele; (Carta 11ª) se tem fósforo que baste (já que sangue, cérebro, ovos e esperma, todas as partículas do corpo, em suma, que ocupam os mais altos postos na escala da vida devem à gordura fosforada (vi) o seu carácter mais essencial); (Carta 11ª) se tem bastante sal no espírito e açúcar no coração...

 A questão fundamental é alimentar-se bem e estabelecer uma conveniente harmonia entre os regimes vegetal e animal. Escolhamos então, nos elementos deste último, os mais ricos de substâncias nutrientes e, sobretudo, os que primam por abundância de fósforo, sem chegar, claro, aos extremos de engolir cabeças do dito.

 Mas, à batata, ao arroz, à cenoura, ao nabo, às verduras, prefiramos o feijão, as ervilhas e as lentilhas. Eis os três restauradores do espírito! e eis como se escreve a respeito desses beneméritos legumes.

 Ouçamos esta tirada: “As ervilhas, o feijão e as lentilhas continuam a florescer nos nossos olhos, elas contêm aproximadamente tanta albumina (legumina) quanto o nosso sangue; e duas ou três vezes mais matérias adipógenas que legumina. Embora mais caras e de preparação mais dispendiosa, as ervilhas, o feijão e as lentilhas dão melhor resultado que as batatas. Elas são de molde a produzir um bom sangue e a fortificar os músculos e o cérebro, qual o não faz a batata. As ervilhas, o feijão e as lentilhas, atendendo às suas qualidades nutritivas, são mais baratos que as batatas, pela mesma razão que o ferro é mais barato que a madeira, quando se trate de fabricar trilhos. Ervilha, feijão e lentilha dão energias para o trabalho, pagam por si mesmos o seu custo; ao passo que um regime longo de batatas acarreta debilidade e decadência. O homem que, durante quinze dias, só comesse batatas, ficaria impossibilitado de as arrancar por si mesmo” (vii).

 O prolator deve ter assinado contracto com algum hortelão (ou talvez hoteleiro), exclusivamente devotado a estes omnipotentes legumes. Que lhes faça bom proveito...

 Sob esse novo panegírico das ditas substâncias alimentares, o materialismo desliza suavemente e se insinua sem rumor. Compararam-no certa feita (mas nós temos cá as nossas dúvidas) àquela coisa de que nos fala D. Basílio: um leve ruído resvalando pelo solo, qual andorinha que, prenunciando tempestades, pipila e passa, a espalhar no seu curso a semente envenenada...

 Seja, porém, qual for o efeito dos miríficos farináceos, não será neles que havemos de procurar as manifestações do espírito humano.

 Quando, finalmente, concluem que a influência incontestável e incontestada do regime alimentar sobre o físico e o moral basta para justificar, em absoluto, a suserania da matéria, caem nos excessos do sistematismo, a negarem tudo que se não enquadra no seu sistema e a torcerem os factos para os ajeitar aos seus estreitos moldes. Bastaria, contudo, que ponderassem um pouco mais, para não sustentarem semelhantes erros.

 Quaisquer que sejam o carácter, o propósito e a persistência de ânimo daqueles de quem aqui temos falado, os seus exemplos valem como protesto de afirmações tão insensatas.

 Eis aqui o grande missionário das Índias, Francisco de Xavier. Sigamo-lo na nau que o levou às Índias portuguesas, por ordem de D.João III, a descer o Tejo, envolto na sua estamenha remendada e só com a bagagem do seu breviário – ele, o generoso gentil-homem, o sábio de 22 anos, o já consagrado professor de Filosofia na Universidade de Paris, que tudo abandonava para acompanhar um amigo. Durante o dia, trabalha com os marinheiros e aos marinheiros se devota; à noite, dorme no convés e tem por travesseiro um rolo de cordoalha.

 Em Goa, foi encontrar-se no meio de uma população miserável, sem outra preocupação que a de libertá-la do miasma moral e material. Mais tarde, no prosseguimento da abnegada missão, ei-lo a descer as costas de Comorim e a fundar uma igreja no Cabo. Depois encontramo-lo em Malaca e no Japão, a defrontar novas raças e novos climas. Sabemos que toda a sua vida foi um rosário de sofrimentos físicos e de conquistas espirituais. Fome, sede e torturas inauditas barraram a senda do peregrino da fé.

 Tudo vencia, porém, e avançava para diante como que impelido por uma vontade incoercível “Seja qual for a morte, o suplício que me reservem – dizia –, estou disposto a sofrê-lo mil vezes pela salvação de uma só alma.” A febre e a morte detiveram-no nas fronteiras da China. Em face de exemplos como este, que se poderia concluir das teorias do feijão, das ervilhas e das lentilhas? Em que, como e, quando o regime alimentar teria governado a alma do apóstolo? Teria ele encontrado nessas regiões desconhecidas aquela balança metódica que se oferece ao cidadão e que o capitalista preguiçoso pode encomendar ao seu Vatel? Que relação pode haver entre Brillat-Savarin e Grimodde la Reynière com um Inácio de Loyola e um Vicente de Paula? Os grandes exploradores, à cabeça dos quais se encontram um Dumont-d’Urville, um Cook, um Livingstone, etc., não vingaram, todos eles, os seus desígnios em circunstâncias e condições físicas as mais contrárias e variadas?

 Poder-se-á sustentar que, mudando de terra, de alimentação, de clima, de meio social, de outros elementos e até de corpo, dado a transformação molecular, mudassem também de alma, de fé e de coragem? Pois não é verdade que persistiram íntegros na consecução do ideal, através de vicissitudes tremendas e dos mais fortes obstáculos? (viii) Na verdade, insistirmos seria injuriar o leitor, os nossos sistemáticos adversários à parte, nenhum espírito sensato duvida que matéria e espírito sejam coisas diferentes. Ninguém ignora que, se a assimilação corporal actua no nosso pensamento, assim como a beleza do dia influi na serenidade de nossa alma, isso não impede que seja essa alma um ser pessoal, que chora às vezes quando as aves cantam e as flores exalam perfumes e, outras vezes se entrega serenamente ao estudo, enquanto o céu tempestuoso se funde em raios e trovões (ix).

 Entendam-nos bem e não venham interpretar infielmente as nossas alegações. Nós não dizemos que a matéria seja destituída de toda e qualquer influência sobre o espírito; não dizemos que a alma humana seja completamente independente do organismo e nem mesmo estamos com Platão, ao pretender que o espírito é estranho ao corpo e que há antipatia entre eles.

 Certo, ninguém dirá que uma criatura a morrer de fome esteja disposta a cantar. Quem duvidará de que, após uma jornada fatigante, cabeceando de sono, tenhamos disposição para dançar?

 Então não sabemos, todos, que a nossa alma se impressiona com e pelos aspectos exteriores? Que um dia luminoso nos alegra, que uma manhã sombria e chuvosa nos entristece? Que a placidez das belas noites nos penetra intimamente, proporcionando-nos gozos calmos? E dizei: os poemas sonoros, os encantos da música, sinfonias deliciosas, sonatas apaixonantes, nunca vos arrebataram, nunca vos sacudiram os nervos? Será que, nas vossas disposições habituais, tanto quanto nos sonhos que povoam as vossas noites, nunca experimentastes o efeito da alimentação e dos vossos hábitos e misteres? Dar-se-á que a maneira pela qual terminastes a vossa tarefa, não tenha afectado os vossos sonhos?

 Numa palavra: será possível ao observador negar a influência permanente e variável que o mundo exterior, sociedade, relações, alimento, frio, luz, obscuridade, cidade ou aldeia e outras causas mil, de nós independentes, não influam nos nossos pensamentos, sentimentos e sensibilidade? Não. Essas influências são reais, admitimo-las e indicamo-las. Montesquieu, cuja declaração é menos exclusiva do que supõem, escreveu: “Nos países frios haverá pouca tendência para os prazeres, que será mais acentuada nos climas temperados e, sempre exuberante nas regiões quentes. Ouvindo as mesmas óperas na Inglaterra e na Itália, notei que a mesma música produzia efeitos diferentes, isto é: enquanto na primeira o auditório se mantinha calmo, na segunda vibrava de forma inconcebível. O mesmo se dá com relação à dor... A grande estatura e os nervos enrijecidos dos povos do Norte são menos vibráteis que os da gente dos países quentes. Lá, há menos sensibilidade na dor. Para sensibilizar um moscovita, quase precisamos esfolá-lo.” Mais adiante, porém, acrescenta que, entre as coisas que governam o homem, importa distinguir “a religião, as leis, as máximas, os exemplos”. Concordaremos com o autor de O Espírito das Leis, com restrições, isto é, no que concerne a influências extrínsecas, por assim dizer; mas daí a admitir que só elas fazem o homem, vai todo um abismo. Uma coisa é dizer que a alma é impressionada por causas situadas fora dela, outra é dizer que essa alma não existe. Chegamos mesmo a nos perguntar como podem os adversários conciliar as duas proposições, quando, no fundo, imaginam que a alma não existe e os pensamentos não passam de produtos da substância cerebral, variáveis com as impressões recebidas. Eis ao que se reduz o homem!

 Abstraindo-nos de todas as provas precedentes acumuladas, a testificação da nossa liberdade viria, enfim, depor a favor da força pensante que nos anima.

 – O panteísmo, fazendo da alma uma partícula da substância divina, a escraviza e arrasta, inevitavelmente, ao fatalismo absoluto.

 – O ateísmo, negando a existência do espírito, faz da alma a escrava da matéria e a conduz, por outra via, ao mesmo fatalismo.

 Poderíamos, portanto, proceder por eliminação, demonstrando a inanidade dessas doutrinas, forçar o acolhimento da nossa, como a única que concilia os diversos imperativos de nossa consciência. Assim, permitiu de sorte fossem os adversários batidos em todos os quadrantes e que a negação da personalidade ficasse presa ao pelourinho por todos os elementos de nossa convicção.

 Concluindo o arrazoado sobre a existência da alma, afirmamos: a dignidade humana não permite um semelhante atentado ao que constitui o seu supremo farol; antes protesta contra essas tendências exageradas. As influências exageradas actuam mais ou menos em nós, conforme a nossa sensibilidade nervosa; mas, tanto quanto a composição química do cérebro, elas não constituem o nosso valor moral e intelectual. Para arrasar essa hipótese, bem como a precedente, basta considerar a potencialidade da nossa força mental. Com ela, só, podemos afrontar todas essas influências e seguir desdenhosos, de cabeça erguida, por entre essas acções e reacções ambientes.

 Quando a alma se acabrunha ao peso de uma dor profunda, pouco nos preocupamos com o estado do céu, se chove ou se faz vento.

 Quando nos abandonamos a um enlevo de alegrias íntimas, pouco se nos dá o dia e o mês em que nos encontramos.

 Quando estudos sérios nos absorvem a atenção, esquecemo-nos de jantar e até de dormir.

 Quando o som das fanfarras atroa os ares e a cidade em alvoroço festeja a liberdade, não lembra saber se estamos em Julho ou em Fevereiro.

 Quando a pátria periclita, o pavilhão francês não se preocupa com a data e o barómetro.

 A vontade suserana não cogita dessas pretensas causas. As profundas emoções do coração desprezam bagatelas. Se a saúde é condição excelente para bem pensar e sentir, não quer dizer que ela só por si promova o estado da alma. Há, na vida, horas mais deliciosas que as dos mais opíparos banquetes e, nas quais se esquecem as iguarias deleitosas aos paladares insaciáveis; horas que eclipsam câmaras sumptuosas, peles caras, jóias brilhantes, todos os prazeres do mundo, enfim, para só nos absorvermos em gozos mais íntimos e mais vivazes... Quantos, na Terra, fruíram esses momentos de felicidade, sabem que acima da esfera material existe uma região inacessível aos tormentos inferiores, onde as almas idealistas se encontram em comunhão com a beleza espiritual incriada.

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(ii) Discurso en the Study Natural Philosophy, by J. F. W. Herschel.
(iii) Force et Matière, ch. V. Dignité de la Matière.
(iv) Dictionaire de Nysten, article Volonté.
(v) Moleschott – Circulation de la Vie, t. 2º, página 57.
(vi) A propósito desta apologia dos alimentos fosforados, perguntaremos a esses entusiastas se imaginam que os pescadores da Picardia e da Bretanha, que comem muito pescado, se destacam por uma inteligência excepcional.
(vii) Moleschott – Loc. cit. conclus. t. 2º, página 225.
(viii) Moleschott ainda não se penitenciou do seu erro e continua sustentando as mesmas opiniões de 1852. Bom seria que imitasse, até ao fim, o exemplo de Cabanis. Depois dos exemplos que acabamos de citar, concebe-se que um observador de boa-fé proponha, por princípio geral, o seguinte conceito: – “Em toda a série animal vemos funções múltiplas da vida cerebral em correspondência com as fases de crescimento e decrescimento do órgão; vemos a sensibilidade, o “julgamento”, a “consciência”, a coragem e o amor mudarem com o regime alimentar e com o estado de saúde”. Curso de 1865 na Universidade de Zurich.
(ix) A Filosofia não se deixa dominar por esses mistérios. O vitae philosophia dux – exclamava Cícero. (Tese quaest). O virtutis indagatrix espultrixque vitiorun. (Tu urbe. peperisti; tu Inventrix legum, tu magistra morum et discipline fuisti: “ad te confugimus, a te opem pertimus”.)


Camille Flammarion, Deus na Natureza, Terceira Parte; (3) A Vontade do Homem (6 de 6), 32º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: Jungle Tales (Contos da Selva) 1895, pintura de James Jebusa Shannon

sábado, 7 de outubro de 2023

metapsíquica | humana


~~~ a propósito da “Introdução à Metapsíquica Humana”

Não me deterei em analisar o excelente tratado de metapsíquica publicado pelo Sr. René Sudre. Limitar-me-ei em notar que o autor conseguiu sintetizar, em um volume de proporções normais, uma exposição completa, erudita e bem feita de todas as categorias de fenómenos metapsíquicos. Pode mesmo dizer-se que o trabalho não só atinge o fim que o inspirou, senão que constitui também alguma coisa mais do que uma simples “Introdução ao estudo da metapsíquica”.

A sua utilidade torna-se indiscutível, mesmo para os competentes no assunto, que não teriam facilidade de encontrar disposto, com tanta clareza e êxito, o imponente cabedal da fenomenologia examinada.

Quanto à propaganda fecunda que um tratado como este pode exercer nos meios científicos, não lamentarei, sequer, o antiespiritismo superlativamente sofístico do autor, sem o qual a obra perderia, nesse sentido, toda a eficiência naqueles meios ainda dominados pelos preconceitos materialistas.

Sob o ponto de vista pessoal, o meu – que diametralmente diverge daquele em que se coloca Sudre –, é natural, entretanto, me disponha a analisar, discutir e refutar, uma por uma, as principais opiniões e hipóteses antiespíritas, emitidas pelo autor, mormente por me parecer estar ele bem enfronhado no assunto e ser um pensador de talento indiscutível. É, sem dúvida alguma, um valente contendor, com o qual a discussão será de grande proveito, pois que se apresenta na arena terçando as armas mais formidáveis dentre as que são usadas no campo em que milita.

Ernesto Bozzano

I. – O magnetismo animal e os fenómenos espíritas ~

Posto isso, começo, sem preâmbulos, a minha análise crítica, assinalando, desde logo, uma afirmação de natureza histórica feita pelo autor a respeito dos antigos magnetizadores e que é inexacta. Diz ele:

Deleuze e todos os magnetizadores não acreditavam, pois, houvesse comunicação entre os seus sonâmbulos e os seres invisíveis. Não contestavam a realidade das aparições espontâneas, mas as consideravam, em conformidade com a opinião religiosa, como excepcionais e, não acreditavam num intercâmbio possível entre os vivos e os mortos.

Ora, essa descrença geral se transmite aos seus pacientes, que apresentaram todos os fenómenos metapsíquicos completamente desprovidos do carácter espírita.” (pág. 342.)

O grifo do último período é do próprio autor e mostra bem o interesse teórico que ele atribui à circunstância assinalada. Ora, historicamente, essa circunstância é inexacta, ou, melhor ainda, diametralmente contrária ao que supõe Sudre. Se consultarmos os tratados de magnetismo animal, verificaremos, com efeito, as provas evidentes das prevenções que, a tal respeito, dominavam os magnetizadores, prevenções que encontram o motivo principal no medo que o conhecimento de tais manifestações fizesse surgir novos obstáculos à tarefa, que lhes cabia, de e para além disso convencer das curas maravilhosas, conseguidas pelas práticas magnéticas. Mas não é menos verdade que, não obstante tais prevenções, as manifestações de entidades de defuntos se davam repetidamente, pela intervenção sonambúlica. O próprio Deleuze, na sua correspondência (i) com o Dr. Billot, o reconhece e nos seguintes termos:

“Não vejo razão para negar a possibilidade da aparição de pessoas que, tendo deixado esta vida, se ocupam daqueles que aqui amaram e a eles se venham manifestar, para lhes transmitir salutares conselhos. Acabo de ter disso um exemplo, ei-lo...”

E Deleuze expõe o caso de uma sonâmbula, cujo finado pai a ela se manifestou, por duas vezes, a fim de aconselhá-la sobre o esposo que devia escolher; esses conselhos envolviam a realização remota de um facto que se veio a realizar, precisamente, na época indicada. (G. Billot, Correspondencesur le Magnétisme Animal, t. III.)

O Dr. Billot responde a Deleuze, relatando um facto maravilhoso, com ele próprio ocorrido: o do “transporte” de uma planta medicinal, que veio cair sobre os joelhos da sua sonâmbula, pela intervenção de uma “rapariga” que, repetidas vezes, se manifestava por intermédio da mesma sonâmbula.

Lembro, além disso, o facto do Barão Du Potet – que, pelo Journal du Magnétisme, provocava constantes polémicas com aqueles dos seus confrades que ousavam publicar qualquer episódio, sobre a manifestação de pessoas falecidas – haver confessado as suas íntimas convicções nesse sentido, quando, em carta particular a Alphonse Cahagnet e, por este último inserta na sua obra, assim se exprimiu: “Tratais, com uma antecipação de vinte anos, destas questões; a Humanidade não está ainda preparada para compreendê-las.”

Torna-se claro o fim oculto da sua pretendida incredulidade; temia que, não estando os homens de ciência absolutamente dispostos a levar a sério as manifestações dos mortos, pela intervenção sonambúlica, viessem as divulgações dessas manifestações criar grave obstáculo à tarefa, já de si tão difícil, de convencer o mundo científico das propriedades terapêuticas do “magnetismo animal”.

Acrescentarei que o Barão Du Potet, quando do seu encontro, anos mais tarde, em Londres, com o Rev. William Stainton Moses, ao mesmo confiou, sem reservas, as suas convicções espíritas, nascidas de factos por ele próprio verificados, sem qualquer provocação de sua parte.

Nessa mesma ocasião, aconteceu-lhe ter, juntamente com Stainton Moses, a visão de um homem, que se havia suicidado algumas horas antes, atirando-se debaixo das rodas de uma máquina a vapor.

Lembrarei, ainda, que o magnetizador Alphonse Cahagnet obteve, com a sonâmbula clarividente Adèle Maginot, longa série de verdadeiros episódios de identificação de pessoas mortas, sendo de notar que essas manifestações se revestiram de tal importância, que Frank Podmore resolveu sobre elas fazer um longo estudo, que fez transcrever no Proceedings of the Society for Psychical Research.

Lembrarei, mais, que o Dr. Charpignon, no seu livro Psysiologie, Médecine et Métaphysique du Magnétisme, na página 120, escreveu:

“A doente se encontra – quero dizer, parece encontrar-se – em comunicação com uma entidade que ninguém vê, ninguém ouve, ninguém toca e que, no entanto, somos quase levados a crer que fala e responde. O primeiro desses factos é extraordinário, o segundo, atordoante!”

E na página 363:

“O primeiro paciente magnético que observámos nunca respondia a qualquer das nossas perguntas sem primeiro dizer: “Vou consultar o outro.” Perguntámos quem era esse outro e foi-nos respondido: “É o Espírito encarregado de me guiar, de me esclarecer.” E de facto esse paciente adquiria, em estado de sonambulismo, faculdades e conhecimentos que lhe eram inteiramente estranhos, quando em estado normal e, que não podiam provir senão de uma entidade superior.”

Dr. Ricard, no seu Traité du Magnétisme Animal, pág. 275, diz:

“A sonâmbula que primeiro me ofereceu alguma coisa digna de nota, nesse género, foi Adéle Lefrey. Atingira ela o termo de sua cura, quando, por entre novas indicações terapêuticas, me disse, em tom de chamar à atenção:

– Ouvis bem, o que ele me ordena.

– Mas quem? – perguntei-lhe. – Quem o ordena?

– Ele, não o ouvis?

– Não, nada oiço, nem vejo.

– Também é natural – retorquiu – dormis; quem está acordada sou eu...”

E na página 282, o Dr. Ricard pergunta à sonâmbula:

“– Recordai-vos do que ontem me dissestes?

– Sim.

– Mas quem é essa personagem misteriosa?

– É o meu anjo da guarda... Vede, ele conversa agora com o vosso...

– Com o meu! Porventura, está o meu anjo assim de vós tão perto?

– Sim, mas ele vos está ainda mais próximo e, apesar de não o verdes, esclarecido sois pelos seus conselhos.”

Lembrarei, enfim, que na La Revue Spirite, número de Outubro, 1925, expus o interessante caso do Dr. Larkin que, tendo levado ao estado de sonambulismo uma jovem camponesa, com o fim de alcançar esclarecimentos sobre o diagnóstico de doentes seus, obteve uma longa série de manifestações da entidade de mortos que, na sua maioria, lhe eram desconhecidos. Delas colheu o Dr. Larkin elementos para ulteriores investigações que, revestidas do maior rigor, lhe trouxeram demonstrações irrefutáveis da autenticidade das personalidades que por essa forma se manifestam. Acabou por se convencer de que a sua sonâmbula recebia comunicações do mundo espiritual.

Não iremos mais adiante. Os exemplos apresentados bastam para destruir a primeira afirmativa do nosso autor, segundo a qual, não acreditando nos antigos magnetizadores em “um comércio possível entre os vivos e os mortos, essa descrença se transmitiu aos seus pacientes, que apresentaram todos os fenómenos metapsíquicos completamente desprovidos do carácter espírita”.

Dado nos foi ver, ao contrário, que não obstante as prevenções dos magnetizadores, os sonâmbulos da primeira metade do século passado viam os Espíritos dos mortos, com eles conversavam e disso produziam provas. Assim, pois, as conclusões pelo autor tiradas da inexacta afirmação feita caem irremissivelmente.

Ora, essas conclusões eram de grande importância, pois delas se podia depreender que, se os primeiros experimentadores do medianimismo moderno não houvessem acreditado nos “Espíritos”, os médiuns, como outrora os sonâmbulos, com os Espíritos nunca se teriam comunicado. Mas o que acabo de mostrar leva-nos, antes, a concluir que os médiuns, apesar de tudo, se comunicam com os “Espíritos”, como já os sonâmbulos da primeira parte do século findo o haviam feito, mau grado as prevenções dos magnetizadores. E se é verdade, como, de facto, é incontestável, que a circunstância assinalada por Sudre tivesse fundamento, viria admiravelmente confirmar o seu ponto de vista, sendo ela de natureza precisamente contrária à que ele lhe empresta, a conclusão se impõe no sentido exactamente oposto àquele a que havia chegado. Precisando melhor: a circunstância por Sudre assinalada, ao contrário de demonstrar que as personalidades medianímicas não passam do produto de uma sugestão combinada com a clarividência do médium (prosopopese-metagnomia), vem justamente provar que os antigos sonâmbulos se comunicavam com os mortos, apesar das prevenções, completamente contrárias, dos seus magnetizadores, o que constitui prova admirável em favor da existência dessas personalidades como seres estranhos aos sonâmbulos, assim como da realidade análoga daqueles que, na actualidade, se manifestam através dos médiuns.

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(Nesta obra, de natureza puramente científica, Bozzano faz uma minuciosa análise com o objectivo de refutar a obra anti-espírita de René Sudre, “Introdução ao Estudo da Metapsíquica". Desenvolvendo argumentação insofismável sobre aparições junto ao leito de morte, fenómenos de materialização e outros, o autor demonstra que a “prosopopese-metagnomia”, hipótese fundamental sustentada por Sudre, para explicar as manifestações metapsíquicas de efeitos inteligentes, de modo algum atinge o fim que teve em vista o autor.)


Ernesto Bozzano (1862-1943) (i)A propósito da Introdução à Metapsíquica Humana, Refutação do livro de René Sudre / Título Original em Italiano; Ernesto Bozzano - Per la difesa dello spiritismo (A proposito della "Introduction à la Métapsychique Humaine" di René Sudre) Società Editrice Partenopea, Napoli (1927). – A propósito da “Introdução à Metapsíquica Humana"; I – O magnetismo animal e os fenómenos espíritas, 1º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: Puro aire, uma pintura de Josefina Robirosa)