Não me deterei em analisar o excelente tratado de
metapsíquica publicado pelo Sr. René Sudre.
Limitar-me-ei em notar que o autor conseguiu sintetizar, em um volume de
proporções normais, uma exposição completa, erudita e bem feita de todas as
categorias de fenómenos metapsíquicos. Pode mesmo dizer-se que o trabalho não
só atinge o fim que o inspirou, senão que constitui também alguma coisa mais do
que uma simples “Introdução ao estudo da metapsíquica”.
A sua utilidade torna-se indiscutível, mesmo para os
competentes no assunto, que não teriam facilidade de encontrar disposto, com
tanta clareza e êxito, o imponente cabedal da fenomenologia examinada.
Quanto à propaganda fecunda que um tratado como este pode
exercer nos meios científicos, não lamentarei, sequer, o antiespiritismo
superlativamente sofístico do autor, sem o qual a obra perderia, nesse sentido,
toda a eficiência naqueles meios ainda dominados pelos preconceitos
materialistas.
Sob o ponto de vista pessoal, o meu – que diametralmente
diverge daquele em que se coloca Sudre –, é natural, entretanto, me disponha a
analisar, discutir e refutar, uma por uma, as principais opiniões e hipóteses
antiespíritas, emitidas pelo autor, mormente por me parecer estar ele bem
enfronhado no assunto e ser um pensador de talento indiscutível. É, sem dúvida
alguma, um valente contendor, com o qual a discussão será de grande proveito,
pois que se apresenta na arena terçando as armas mais formidáveis dentre as que são usadas
no campo em que milita.
Ernesto Bozzano
I. – O magnetismo animal e os fenómenos espíritas ~
Posto isso, começo, sem preâmbulos, a minha análise crítica,
assinalando, desde logo, uma afirmação de natureza histórica feita pelo autor a
respeito dos antigos magnetizadores e que é inexacta. Diz ele:
“Deleuze e todos os magnetizadores não acreditavam,
pois, houvesse comunicação entre os seus sonâmbulos e os seres invisíveis. Não
contestavam a realidade das aparições espontâneas, mas as consideravam, em
conformidade com a opinião religiosa, como excepcionais e, não acreditavam num
intercâmbio possível entre os vivos e os mortos.
Ora, essa descrença geral se transmite aos seus
pacientes, que apresentaram todos os fenómenos metapsíquicos completamente
desprovidos do carácter espírita.” (pág. 342.)
O grifo do último período é do próprio autor e mostra bem o
interesse teórico que ele atribui à circunstância assinalada. Ora,
historicamente, essa circunstância é inexacta, ou, melhor ainda, diametralmente
contrária ao que supõe Sudre. Se consultarmos os tratados de magnetismo
animal, verificaremos, com efeito, as provas evidentes das prevenções que,
a tal respeito, dominavam os magnetizadores, prevenções que encontram o motivo
principal no medo que o conhecimento de tais manifestações fizesse surgir novos
obstáculos à tarefa, que lhes cabia, de e para além disso convencer das curas
maravilhosas, conseguidas pelas práticas magnéticas. Mas não é menos verdade
que, não obstante tais prevenções, as manifestações de entidades de defuntos se
davam repetidamente, pela intervenção sonambúlica. O próprio Deleuze, na
sua correspondência (i) com
o Dr. Billot, o reconhece e nos seguintes termos:
“Não vejo razão para negar a possibilidade da aparição de
pessoas que, tendo deixado esta vida, se ocupam daqueles que aqui amaram e a
eles se venham manifestar, para lhes transmitir salutares conselhos. Acabo de
ter disso um exemplo, ei-lo...”
E Deleuze expõe o caso de uma sonâmbula, cujo finado pai a
ela se manifestou, por duas vezes, a fim de aconselhá-la sobre o esposo que
devia escolher; esses conselhos envolviam a realização remota de um facto que
se veio a realizar, precisamente, na época indicada. (G. Billot, Correspondencesur
le Magnétisme Animal, t. III.)
O Dr. Billot responde a Deleuze, relatando um facto
maravilhoso, com ele próprio ocorrido: o do “transporte” de
uma planta medicinal, que veio cair sobre os joelhos da sua sonâmbula, pela
intervenção de uma “rapariga” que, repetidas vezes, se manifestava por
intermédio da mesma sonâmbula.
Lembro, além disso, o facto do Barão Du
Potet – que, pelo Journal du Magnétisme, provocava
constantes polémicas com aqueles dos seus confrades que ousavam publicar
qualquer episódio, sobre a manifestação de pessoas falecidas – haver confessado
as suas íntimas convicções nesse sentido, quando, em carta particular a Alphonse
Cahagnet e, por este último inserta na sua obra, assim se exprimiu:
“Tratais, com uma antecipação de vinte anos, destas questões; a Humanidade não
está ainda preparada para compreendê-las.”
Torna-se claro o fim oculto da sua pretendida
incredulidade; temia que, não estando os homens de ciência
absolutamente dispostos a levar a sério as manifestações dos mortos, pela
intervenção sonambúlica, viessem as divulgações dessas manifestações criar
grave obstáculo à tarefa, já de si tão difícil, de convencer o mundo
científico das propriedades terapêuticas do “magnetismo animal”.
Acrescentarei que o Barão Du Potet, quando do seu encontro,
anos mais tarde, em Londres, com o Rev. William Stainton Moses, ao mesmo confiou, sem reservas, as
suas convicções espíritas, nascidas de factos por ele próprio
verificados, sem qualquer provocação de sua parte.
Nessa mesma ocasião, aconteceu-lhe ter, juntamente com
Stainton Moses, a visão de um homem, que se havia suicidado algumas horas
antes, atirando-se debaixo das rodas de uma máquina a vapor.
Lembrarei, ainda, que o magnetizador Alphonse Cahagnet
obteve, com a sonâmbula clarividente Adèle Maginot, longa série de verdadeiros episódios de
identificação de pessoas mortas, sendo de notar que essas manifestações se
revestiram de tal importância, que Frank Podmore resolveu
sobre elas fazer um longo estudo, que fez transcrever no Proceedings of
the Society for Psychical Research.
Lembrarei, mais, que o Dr.
Charpignon, no seu livro Psysiologie, Médecine et Métaphysique du
Magnétisme, na página 120, escreveu:
“A doente se encontra – quero dizer, parece encontrar-se –
em comunicação com uma entidade que ninguém vê, ninguém ouve, ninguém toca e
que, no entanto, somos quase levados a crer que fala e responde. O primeiro
desses factos é extraordinário, o segundo, atordoante!”
E na página 363:
“O primeiro paciente magnético que observámos nunca
respondia a qualquer das nossas perguntas sem primeiro dizer: “Vou consultar o
outro.” Perguntámos quem era esse outro e foi-nos respondido: “É o
Espírito encarregado de me guiar, de me esclarecer.” E de facto esse
paciente adquiria, em estado de sonambulismo, faculdades e conhecimentos que
lhe eram inteiramente estranhos, quando em estado normal e, que não podiam
provir senão de uma entidade superior.”
O Dr.
Ricard, no seu Traité du Magnétisme Animal, pág. 275, diz:
“A sonâmbula que primeiro me ofereceu alguma coisa digna de
nota, nesse género, foi Adéle Lefrey. Atingira ela o termo de sua
cura, quando, por entre novas indicações terapêuticas, me disse, em tom de
chamar à atenção:
– Ouvis bem, o que ele me ordena.
– Mas quem? – perguntei-lhe. – Quem o ordena?
– Ele, não o ouvis?
– Não, nada oiço, nem vejo.
– Também é natural – retorquiu – dormis; quem está acordada
sou eu...”
E na página 282, o Dr. Ricard pergunta à sonâmbula:
“– Recordai-vos do que ontem me dissestes?
– Sim.
– Mas quem é essa personagem misteriosa?
– É o meu anjo da guarda... Vede, ele conversa agora com o
vosso...
– Com o meu! Porventura, está o meu anjo assim de vós tão
perto?
– Sim, mas ele vos está ainda mais próximo e, apesar de não
o verdes, esclarecido sois pelos seus conselhos.”
Lembrarei, enfim, que na La Revue Spirite,
número de Outubro, 1925, expus o interessante caso do Dr. Larkin que, tendo
levado ao estado de sonambulismo uma jovem camponesa, com o fim de alcançar
esclarecimentos sobre o diagnóstico de doentes seus, obteve uma longa série de
manifestações da entidade de mortos que, na sua maioria, lhe eram
desconhecidos. Delas colheu o Dr. Larkin elementos para ulteriores
investigações que, revestidas do maior rigor, lhe trouxeram demonstrações
irrefutáveis da autenticidade das personalidades que por essa forma se
manifestam. Acabou por se convencer de que a sua sonâmbula recebia comunicações do
mundo espiritual.
Não iremos mais adiante. Os exemplos apresentados bastam
para destruir a primeira afirmativa do nosso autor, segundo a qual, não
acreditando nos antigos magnetizadores em “um comércio possível entre os vivos
e os mortos, essa descrença se transmitiu aos seus pacientes, que apresentaram
todos os fenómenos metapsíquicos completamente desprovidos do carácter
espírita”.
Dado nos foi ver, ao contrário, que não obstante as
prevenções dos magnetizadores, os sonâmbulos da primeira metade do século
passado viam os Espíritos dos mortos, com eles conversavam e disso produziam
provas. Assim, pois, as conclusões pelo autor tiradas da inexacta
afirmação feita caem irremissivelmente.
Ora, essas conclusões eram de grande importância, pois delas
se podia depreender que, se os primeiros experimentadores do medianimismo
moderno não houvessem acreditado nos “Espíritos”, os médiuns, como outrora os sonâmbulos, com os Espíritos nunca
se teriam comunicado. Mas o que acabo de mostrar leva-nos, antes, a
concluir que os médiuns, apesar de tudo, se comunicam com os “Espíritos”, como
já os sonâmbulos da primeira parte do século findo o haviam feito, mau grado as
prevenções dos magnetizadores. E se é verdade, como, de facto, é
incontestável, que a circunstância assinalada por Sudre tivesse
fundamento, viria admiravelmente confirmar o seu ponto de vista, sendo
ela de natureza precisamente contrária à que ele lhe empresta, a conclusão se
impõe no sentido exactamente oposto àquele a que havia chegado. Precisando
melhor: a circunstância por Sudre assinalada, ao contrário de demonstrar que as
personalidades medianímicas não passam do produto de uma sugestão combinada com
a clarividência do médium (prosopopese-metagnomia), vem justamente
provar que os antigos sonâmbulos se comunicavam com os mortos, apesar das
prevenções, completamente contrárias, dos seus magnetizadores, o que constitui
prova admirável em favor da existência dessas personalidades como seres
estranhos aos sonâmbulos, assim como da realidade análoga daqueles
que, na actualidade, se manifestam através dos médiuns.
/…
(Nesta obra, de natureza puramente científica, Bozzano faz uma minuciosa
análise com o objectivo de refutar a obra anti-espírita de René Sudre,
“Introdução ao Estudo da Metapsíquica". Desenvolvendo argumentação insofismável
sobre aparições junto ao leito de morte, fenómenos de materialização e outros,
o autor demonstra que a “prosopopese-metagnomia”, hipótese fundamental
sustentada por Sudre, para explicar as manifestações metapsíquicas de efeitos
inteligentes, de modo algum atinge o fim que teve em vista o autor.)
Ernesto Bozzano (1862-1943) (i), A propósito da Introdução à Metapsíquica
Humana, Refutação do livro de René Sudre / Título
Original em Italiano; Ernesto Bozzano - Per la difesa dello
spiritismo (A proposito della "Introduction à la
Métapsychique Humaine" di René Sudre) Società Editrice Partenopea, Napoli
(1927). – A propósito da “Introdução à Metapsíquica
Humana"; I – O magnetismo animal e os fenómenos espíritas, 1º
fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: Puro aire, uma
pintura de Josefina Robirosa)
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