Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

quarta-feira, 23 de setembro de 2015

O Mundo Invisível e a Guerra ~

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Respon-sabilidades

|Abril de 1917| 

  Estamos assistindo ao fracasso de todo um mundo, um mundo de preconceitos, de erros, de ilusões perdidas, de esperanças enganosas e de quimeras dissipadas. Porém, de tantas ruínas deve nascer uma nova ordem, pois a morte gera a vida e os túmulos, por caminho secreto, conduzem aos berços.

  A horrível tempestade que sopra sobre o globo fez incalculáveis devastações e mais de dez milhões de homens tombaram na sua juventude ou na sua virilidade. Povos inteiros foram despojados, degolados ou escravizados. Vastas regiões foram saqueadas sistematicamente, ficando os seus habitantes condenados à fome e à mais negra miséria, constrangidos a abandonarem os seus lares, vagando sem recursos nos caminhos do exílio. Milhares de navios permanecem no fundo das águas com os seus grandes carregamentos e os restos humanos que eles encerravam.

  À nossa volta só encontramos famílias de luto e a visão dos mutilados entristece as nossas cidades e os nossos campos.

  Não é menor a devastação moral experimentada. E em certas ocasiões, nos perguntamos se a justiça, a verdade, o direito, a liberdade e a fraternidade, luzes que partem do divino foco para iluminar o caminho dos homens, essas forças do Alto que nos amparam nas horas difíceis, poderiam ser espezinhadas, ultrajadas e aniquiladas.

  Poder-se-ia acreditar que a força bruta, a mentira, a hipocrisia e o ódio dominariam o mundo e que o vendaval do abismo passava sobre nós. De todos os cantos da Terra, gritos de angústia e de desespero sobem para o céu!

  Essa é a obra de Guilherme II e do seu povo!

  Se chegarmos à fonte, à causa moral, à origem de tantos males, que encontraremos? Inegavelmente, entre os alemães, um incontido orgulho, uma ânsia de dominação, um sentimento exaltado de superioridade que os leva a desconhecer e até a desprezar o real valor dos seus adversários.

  Todavia, ainda há mais, e aqui tocamos no lado fraco, no ponto mais delicado e mais sensível de nossa civilização, que a torna sempre precária e instável, pois enquanto existir tal causa, violentas correntes poderão originar-se no seio da humanidade, destruindo a laboriosa obra dos séculos.

  Queremos referir-nos à ausência de elementos reais sobre a finalidade da vida humana e da sua continuação no Além. Pensamos na ineficácia do ensino quanto às leis superiores, principalmente a lei da consequência dos actos que recai, automaticamente, sobre nós, traçando o caminho dos nossos destinos.

  Na igreja ou na escola, só encontramos hipóteses sobre esses pontos fundamentais, noções vagas e confusas, sem apoio em nenhuma demonstração real, em nenhuma prova concreta.

  Entretanto, faz mais de meio século que o espiritualismo experimental lança e proclama, para todos os quadrantes, as bases de uma doutrina clara e precisa, resultante das relações estabelecidas, em todas as partes do mundo, com os nossos parentes e amigos já mortos.

  Essa doutrina, confirmada por incontáveis provas de identidade, fornecidas pelas entidades comunicantes, proporciona ao homem o critério de certeza que até agora não o havia conseguido.

  Ora, qual foi a aceitação que essa revelação providencial e regeneradora recebeu? As igrejas fizeram tudo para abafá-la e as escolas só lhe votaram indiferença ou desprezo.

  Sem o esclarecimento necessário para iluminar a sua estrada, sem o fio de Ariadne para guiá-lo no labirinto da vida, exposto às contradições dos maus pastores, o homem deu livre expansão às paixões e aos desejos incontidos que lhe tumultuavam a alma, daí resultando os desastres e as catástrofes que se multiplicam e as espantosas revoluções que agitam fortemente o mundo.

  Envolvida pelo sombrio e grosseiro misticismo que lhe é próprio, a Alemanha se mostrou particularmente refractária à nova corrente de ideias. Ali os estudos psíquicos são muito pouco considerados e o imperador lançou suspeita sobre todos os seus funcionários que se interessavam pelo assunto.

  Caso o sinistro imperador houvesse conhecido melhor as condições da vida no Além, familiarizando-se com o mundo dos espíritos, se soubesse o que aguarda a cada um de nós e o que aguarda a ele mesmo depois da morte, teria assinado o decreto de mobilização do exército alemão, na trágica noite que iria desencadear sobre a Europa um tufão sem igual?

  Através de um bom médium, poderia ter evocado os espíritos ilustres dos génios protectores da antiga Alemanha: Goethe, Kant, Leibniz, Fichte, ou simplesmente a alma de seu pai, Frederico, o Sábio. Por certo, com os seus conselhos, esses nobres espíritos o teriam desviado do seu caminho sangrento.

  Se o Kaiser tivesse estudado, conhecido e se relacionado com o mundo invisível, teria podido ver, antecipadamente, a sorte que a inexorável lei lhe reserva, desdobrando-se-lhe perante os olhos, como em um quadro. Teria visto a sua própria alma, mergulhada no sangue derramado, transpondo os umbrais terríveis do Além e, diante dela, a imensa multidão das vítimas da guerra, acusando-a, esmagando-a, amaldiçoando-a.

  Inutilmente ela procura desviar-se e fugir. Em vão procura solitários e escuros sítios: a multidão a persegue por toda a parte, sem cessar, com as suas ameaças e os seus furores.

  Se, por excepção, o seu miserável espírito descobre algum refúgio tenebroso e desolado, ali se encontra frente a frente com a própria consciência que se tornou mais imperiosa ao desprender-se da matéria. O remorso o persegue e o despedaça! Incessantemente escuta vozes que lhe repetem: “Caim, que fizeste de teus irmãos?”

  Mais tarde haveria a perspectiva dos renascimentos, a longa série das vidas planetárias, quando o seu corpo deformado e a sua alma degradada deverão padecer todas as vergonhas, todas as humilhações, esvaziar o cálice da amargura, expiando as suas culpas com existências obscuras e atormentadas através dos séculos; o resgate do passado pelo rebaixamento, pelo sofrimento e pelas lágrimas.

  Se desse futuro aterrador ele volve os olhos para o momento actual, se pensa no apoio e no auxílio que pode esperar do mundo oculto, que verá?

  No lugar dos espíritos elevados que protegem a França, no lugar de um velho Deus imaginário, concebido pelo seu cérebro exaltado, só verá sobre os seus exércitos a legião negra dos espíritos das trevas, os espíritos atrasados da Idade Média, insuflando sobre os seus soldados o ódio e a perfídia, procurando descobrir com eles todas as possibilidades de uma química infernal e assassina. No espectáculo das atrocidades que provocam, todos esses agentes do mal encontram a satisfação dos seus instintos de violência e crueldade.

  No entanto, se ante essas visões de espanto e horror o Kaiser sentisse estremecer-lhe a carne e apertar-lhe o coração, lançaria para bem longe a sua pena, a fim de não fazer-se credor dos golpes do destino implacável, poupando a humanidade à mais terrível das catástrofes.

  A França também possui parte das responsabilidades; as nossas academias, as universidades e as igrejas não souberam valorizar as verdades e as forças morais que a Doutrina dos Espíritos lhes trazia. Recusaram a mão que, do Alto e desde há 50 anos, lhes era estendida a fim de conduzir o nosso país para uma fonte fecunda e regeneradora.

  Quais têm sido as consequências dos seus ensinos complexos e contraditórios sobre a vida actual?

  Antes da guerra, estávamos diante do espectáculo de uma sociedade sem ideal, sem elevação, sem grandeza e desprovida de beleza moral; as gerações lançavam-se ao acaso, sem finalidade, sem orientação certa e sem saber onde se fixar; pobres seres instáveis, percorrendo o desfiladeiro sombrio da vida, sem uma luz, sem paz no coração e enlameando-se cada dia mais na matéria e na sensualidade.

  O homem consumia todas as suas forças para assegurar a sua vida material e só ouvia, muito fracamente, a voz da alma, que também reclama o seu alimento.

  Diante de tantas doutrinas confusas, igualmente sem bases, sem provas e sem sanções, as grandes verdades ficaram veladas e foram lentamente desnaturadas.

  O erro e a mentira infiltraram-se aos poucos em toda a vida nacional, que se desfigurou por completo tanto na ordem política como nas relações sociais.

  As inteligências e as consciências, percebendo, por uma intuição secreta, que aqueles que tinham a missão de ensinar a verdade a estavam negando, esqueceram-se dela e como consequência lógica das coisas, modificou-se todo o nosso modo de viver, de pensar e de agir. Daí, a hipertrofia do eu, a necessidade irresistível de projectar-se, elogiar-se, de aparecer, de atribuir-se qualidades falsas e méritos fantasiosos que caracterizavam grande número dos nossos contemporâneos; tudo resultou em um transbordar dos apetites e das paixões.

  Não se podia mais, nas conversações, expressar uma opinião forte, um pensamento elevado e desinteressado, sem se ficar sujeito a sorrisos cépticos e zombadores. A virtude se tornava quase ridícula. O adultério e a libertinagem eram tolerados com indulgência.

  A exploração descarada e as trapaças financeiras, as práticas dos homens que especulam na Bolsa, a rapina, quando resultavam em fortuna, já não despertavam reprovação.

  No terreno político havia o assalto aos cargos oficiais e ao poder; a protecção e o favor substituíam as aptidões; os medíocres e os incapazes ocupavam os melhores postos. Quase sempre se confiava o governo aos menos dignos de exercê-lo. A imprevidência, a má administração dos recursos e a instabilidade ministerial anulavam as mais belas obras nacionais.

  Quando a grande lei moral – a dos deveres e das responsabilidades – cessou de brilhar aos olhos dos homens, obliteraram-se todos os princípios dela decorrentes. Fez-se noite nas consciências e o mal ampliou o seu domínio.

  Como a noção de lei é inseparável da ideia de Deus, que é o seu criador, enquanto se enfraquece o culto do poder supremo, vê-se crescer o do bezerro de ouro e se acentua a descida para o abismo da matéria!

  A borrasca veio e o seu sopro poderoso varreu muitas vaidades, valores falsos e juízos enganosos.

  A guerra descobriu todas as nossas feridas, fazendo ressaltar insuficiências e incapacidades, colocando no justo lugar os medíocres que ocupavam certas posições. Sem dúvida esses falsos valores não desapareceram completamente do nosso cenário político e do nosso país, pelos males que carrega, muito se apercebe disso. Pelo menos, já são julgados como merecem, a condenação está clara nos corações e o seu domínio está se acabando.

  Junto com os nossos vícios e defeitos, dormitam na alma francesa qualidades varonis que os acontecimentos destacaram. A nossa desmoralização era mais aparente que real, mais superficial do que profunda. O génio da raça reapareceu!

  As consciências honestas e os valores morais surgiram em quantidade, principalmente no meio das tropas, e foram elas, com a ajuda imensa do mundo invisível, que salvaram a honra da França, impedindo a sua ruína, a sua queda e o seu aniquilamento.

  Já apresentamos, em um artigo anterior, o papel importante que o mundo invisível desempenhou na actual guerra e mostramos o constante apoio que ele prestou aos nossos exércitos, mas essa exposição foi insuficiente.

  Não se saberá e não se compreenderá jamais toda a extensão dos esforços e das energias empregadas pelos espíritos protectores da França para animar e sustentar os seus soldados na terrível luta empenhada. Eles não somente lhes excitam e inflamam o vigor nos combates, como também lhes inspiram uma resignação heróica, nas longas horas de vigília e de espera na trincheira.

  A sua coragem no ataque era proverbial, mas qualidades ocultas de paciência e de perseverança se destacam agora na alma nacional.

  Indagavam se as nossas tropas ainda poderiam aguentar o rigor de um terceiro inverno, depois de dois anos de fadigas e sofrimentos. Pois bem, eles suportaram, com a mesma coragem, as rajadas de projécteis e as ondas de gases asfixiantes; em determinados dias, a fome, o frio, a humidade, causadoras de tantos males, e o contacto com insectos repugnantes.

  Em 1870-71, como soldado voluntário, pude verificar que a mentalidade das tropas era muito diferente, mas naquela ocasião o mundo invisível não nos sustentava com os seus fluidos poderosos e a França foi vencida.

  Ao rubro fulgor dos factos, como já afirmávamos, surgiram todas as nossas misérias morais, a fraqueza de carácter e das consciências, tudo quanto era vão, artificial e enganador na nossa sociedade.

  Por havermos falseado a verdade em quase todas as coisas, nos negócios, no ensino e na política, tivemos que suportar, como castigo, a mentira no que ela tem de mais odioso.

  O imperador alemão não parou de mentir, com prejuízo nosso, diante do Universo, invocando o nome de Deus. A partir de então, a verdade se mostrou como o único meio de assegurar a lealdade e a dignidade nas relações humanas. Por outro lado, os exemplos heróicos dos nossos soldados lograram imensa repercussão no país inteiro. O seu sacrifício em face do dever, a sua renúncia diante do sofrimento e da morte eram de tal monta que envergonhavam os egoístas e aqueles que só procuravam os gozos. A sua obra principal, sem qualquer dúvida, consiste em libertar o território, mas também possui uma grande lição moral que eles pensam continuar, mesmo após a guerra.

  Pelo menos é isso que se depreende das inúmeras cartas recebidas da linha de combate. Eles querem que um vento puro varra a espessa atmosfera que atrapalha o nosso olhar, ocultando-nos as realidades terríveis. Sonham com um ideal nobre e uma sociedade espiritualizada onde a vida da alma tenha livre expansão.

  Nos momentos trágicos, quais relâmpagos, ou paulatinamente na espera das trincheiras, entreviram a soberana lei que faz recair sobre cada um e sobre todos as consequências dos actos praticados.

  Entenderam que por havermos, durante muito tempo, acatado e acariciado as anti-verdades, temos agora de sofrer as mentiras do estrangeiro, bem mais pesadas e grosseiras.

  Compreenderam também que, por procurarmos demasiado a vida fácil, dourada pela fortuna e pelos prazeres, agora teremos de suportar as privações e as misérias.

  Afinal, sentiram que essa visão e compreensão das coisas superiores deve permanecer no pensamento e na consciência de todos, para amparar o nosso país na ladeira fatal por onde está resvalando.

  Essas almas generosas representam, por certo, somente pequena minoria do país, todavia podem agir como o fermento, que faz crescer a massa, pois os inimigos da espiritualidade são numerosos e desejarão manter o seu domínio de todas as maneiras.

  Após expulsarmos o invasor, deveremos ainda lutar contra as ideias perniciosas, as oposições e as rotinas do interior do nosso país. Pelo encargo de educar a infância haverá os mais sérios combates, porque quem encaminha a criança tem o futuro mais seguro.

  A educação oficial estará à altura de sua missão? É justo duvidar, mas os seus orientadores deveriam entender que não é através de negativas ou de uma moral vaga e sem sanções que se conseguirá o insucesso do obscurantismo e refazer a consciência popular.

  Aí então o Espiritismo poderá intervir e desempenhar o seu providencial papel. Ele oferece, simultaneamente, a base e o coroamento inexistentes para a educação popular, isto é, a prova em que repousa todo o edifício dos nossos conhecimentos e a doutrina moral que é o seu ápice e lhe garante a harmonia.

  Todavia, não está na sorte dos divinos enviados o facto de serem desprezados e zombados? Assim, o Espiritismo não foge a essa regra, entretanto a sucessão dos testemunhos e a adesão de eminentes homens, que lhe dão, aos poucos, um lugar na ciência inglesa, certamente terminarão impressionando o nosso país. Chegar-se-á a aceitar a sobrevivência da alma e o seu progresso pelas reencarnações, tal como se aceitam todos os axiomas científicos como, por exemplo, o movimento da Terra, sem que, entretanto, tenha havido uma verificação pessoal.

  Enquanto aguardamos essa época, cabe principalmente a nós, aos pais e aos chefes de família, velar para que a inteligência e a consciência das crianças não sejam falseadas por um mau ensino, destituído de nobres princípios.

  Terminada a guerra, as coisas permanecerão como dantes? Com o irresistível trabalho dos acontecimentos, haverá um esforço mental em muitos espíritos, varrendo-se muitos preconceitos e pontos de vista errados, sendo prudente não nos desesperarmos de nada, nem de ninguém. Na verdade quantos pensamentos estarão libertos da prepotência que até há pouco tempo suportavam!

  Quantas consciências, balançadas profundamente, abandonarão os artifícios e as convenções infantis que atrapalhavam o seu voo para uma luz mais viva!

  Parece que a vontade divina consiste em que o mundo se reforme e se regenere por meio da dor. Jamais, como agora, se oferecerá a ocasião mais propícia; aproveitemo-la, portanto, para divulgar por toda a parte a grande doutrina espiritualista que há de encorajar e pôr a humanidade de pé.

  Além do mundo invisível, na nossa árdua tarefa de divulgação da doutrina, temos dos companheiros de luta, que nos animam incessantemente e nos impulsionam para o Alto, o dever e a verdade.

  Durante 40 anos trabalhamos em conjunto com eles, seja por meio da escrita ou da palavra. Inicialmente, em particular no nosso trabalho como conferencistas, recolhemos mais zombarias do que aplausos. O Espiritismo então era tido como coisa ridícula, mas pouco a pouco a opinião pública se tornou mais favorável, concordando em nos ouvir, embora sem extrair grandes benefícios do nosso ensinamento.

  Actualmente já escutam, reflectem, estudam e compreendem, porém isso não basta: é necessário concretizar o conhecimento das leis superiores em exemplos.

  Mais tarde haverão de nos fazer inteira justiça. Entenderão que se houvessem conhecido e respeitado a lei das responsabilidades, muitos sofrimentos, desfalecimentos e fracassos teriam sido evitados.

  Chegará o tempo em que, calculando-se toda a extensão e consequência dos erros cometidos, serão aprisionados ao pelourinho da opinião pública os dirigentes de todas as espécies: os gozadores, os libertinos, os corruptos e os corruptores, cujos actos nos conduziram ao fundo do abismo.

  Os sacrifícios já realizados na luta e no alívio das misérias comuns frutificarão e do sangue que for derramado se levantará uma floração de novas virtudes.

  Vivemos num desses instantes graves, onde, no ardor dos acontecimentos, a história transforma a humanidade.

  Os aliados fazem um esforço supremo para conseguir uma vida mais nobre, mais digna da alma e dos seus destinos. Confiemos nos desígnios de Deus sobre a nossa pátria. A França purifica-se pela dor e não será inútil o sofrimento infinito que os seus filhos suportam.

/…


LÉON DENIS, O Mundo Invisível e a Guerra, X Responsabilidades, Abril de 1917, 26º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: Tanque de guerra britânico capturado pelos Alemães, durante a Primeira Guerra Mundial)

quinta-feira, 10 de setembro de 2015

O sentido da vida ~


Deus | e o Homem

As religiões apontam contra o Espiritismo aquilo que chamam de a palavra de Deus, citando os versículos do primeiro livro de Moisés, na Bíblia, a Génese, que afirma haver Deus criado o homem à sua imagem e semelhança. De acordo com esse princípio, aparentemente bíblico, o homem tem de ser elemento à parte na criação, porque é a própria imagem de Deus colocado dentro do Universo. O Espiritismo nos mostra, porém, que esse conceito, ao invés de elevar o homem, diminui a DeusKardec nos diz, por isso mesmo, no número 12 do capítulo XII de A Génese:

“Não rejeitemos, pois, a Génese bíblica; estudemo-la, ao contrário, como se estuda a história da infância dos povos”.

Em O Livro dos Espíritos, livro básico da doutrina, encontramos a seguinte definição de Deus: “... é a inteligência suprema, causa primária de todas as coisas.” Vemos, portanto, que Deus não foi esquecido, nem ficou à margem, mas continua colocado, com mais justeza e maior razão, na base de tudo quanto existe.

Comentando a teoria científica de que as coisas do Universo provêm das propriedades íntimas da matéria, sem intervenção de qualquer outro princípio, Kardec diz, nesse mesmo livro:

“Atribuir a formação primordial das coisas às propriedades intrínsecas da matéria seria tomar o efeito pela causa, pois que essas propriedades são, por sua vez, efeitos que devem ter uma causa.”

Sabemos, além disso, que a natureza do efeito decorre sempre da natureza da causa. Analisando o Universo, pelo que dele podemos aprender, vemos que os seus efeitos são de natureza inteligente, e se entrosam de maneira tão harmónica, tão perfeita, que só podem decorrer de uma causa inteligente.

Vemos, nesse ponto, que o Espiritismo estabelece uma estreita relação entre a Ciência e a Religião, por meio da Filosofia. Sem negar a existência de Deus, ele contraria a concepção antropomórfica das religiões e estabelece uma teoria que, embora não tenha carácter experimental imediato, não deixa de ser tipicamente científica. Deus já não é matéria de crença, simplesmente. É objecto de dedução filosófica, mas seguindo os métodos de observação do pensamento científico.

No tocante à formação do homem à imagem e semelhança de Deus, mais uma vez não vemos razão para o escrúpulo e o espanto dos religiosos. Diz a Génese bíblica que o homem foi feito de terra, e embora não aceitando literalmente a imagem de um boneco de barro feito por alguém, que seria Deus, o Espiritismo aceita o princípio de que o homem procede do barro terreno, de que a vida orgânica teve princípio, juntamente com o desenvolvimento mental e psíquico, na argila fecunda dos primeiros tempos da formação planetária. A Bíblia nos apresenta, pois, apenas uma imagem daquilo que teria ocorrido, na distância dos milénios. Deus falou, através da Bíblia, por meio de parábolas, como tantas vezes falou Cristo, na sua passagem terrena, para os homens de seu tempo.

“Mas – dirão os religiosos apegados ao texto –, e onde ficam a imagem e semelhança de Deus, na formação do homem?”

De facto, não podemos conceber Deus como um animal vertebrado, da classe dos mamíferos, embora superior ao homem, por atributos cósmicos que esse ainda não conseguiu obter. O Espiritismo não admite que a nossa forma orgânica, material, seja a forma do próprio Deus.

À pergunta formulada por Allan Kardec, no primeiro capítulo de O Livro dos Espíritos

“Pode o homem compreender a natureza íntima de Deus?”, responderam os espíritos que o assistiam no trabalho de codificação da doutrina:

“– Não, pois lhe falta o sentido necessário.”

Mais adiante, no mesmo capítulo, o próprio Kardec esclarece:

“A inferioridade das faculdades do homem não lhe permite compreender a natureza íntima de Deus. Na infância da Humanidade o homem o confunde muitas vezes com a criatura, cujas imperfeições lhe atribui; mas, à medida que nele se desenvolve o senso moral, o seu pensamento penetra melhor no âmago das coisas; então, faz ideia mais justa da Divindade e, ainda que sempre incompleta, mais conforme à sã razão.”

Não vemos nenhum motivo para negar que o homem tenha sido feito, se assim se pode realmente dizer, à imagem e semelhança de Deusembora não concordemos que Deus tenha a forma orgânica do homem. E é o próprio O Livro dos Espíritos que nos fornece os dados necessários a uma interpretação espírita desse problema. Encontramos no número 77 do seu primeiro capítulo a seguinte pergunta de Kardec e a respectiva resposta dos espíritos:

“Os espíritos têm forma determinada, limitada e constante?”

“– Para vós, não; para nós, sim. O espírito, se o quiserdes, é uma chama, um clarão, uma centelha etérea.”

Ora, se compreendermos que o homem não é o seu corpo animal, mas o espírito que anima esse corpo e realiza através dele a sua evolução na vida terrena, veremos que as palavras da Bíblia não foram prejudicadas pela interpretação espírita de Deus; e veremos também que há uma relação mais íntima e profunda, de essência e não de forma, entre Deus e o homem, do que a relação materialista estabelecida pelos exegetas bíblicos das várias religiões.

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José Herculano Pires, O Sentido da Vida, Deus e o Homem, 4º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: Platão e Aristóteles, pormenor d'A escola de Atenas de Rafael Sanzio, 1509)

terça-feira, 1 de setembro de 2015

| o grande enigma ~

as harmonias do Espaço (II)

As relações harmónicas que regem a situação dos planetas no Espaço representam, como o estabeleceu Azbel, (i) a extensão do nosso teclado sonoro e se encontram conforme a lei das distâncias e dos movimentos. O nosso sistema solar representa uma espécie de edifício de oito andares, isto é, oito oitavas, com uma escadaria formada de 320 degraus ou ondas harmónicas, sobre a qual os planetas estão colocados, ocupando “patamares indicados pela harmonia de um acorde perfeito e múltiplo”.

As dissonâncias são apenas aparentes ou transitórias. O acorde encontra-se no fundo de tudo. As regras da nossa harmonia musical parecem ser apenas consequência, aplicação muito imperfeita da lei da harmonia soberana que preside à marcha dos mundos. Podemos, pois, crer, logicamente, que a melodia das esferas seria inteligível para o nosso Espírito, se os nossos sentidos pudessem perceber as ondas sonoras que enchem o Espaço. (ii)

A regra geral, embora absoluta, não é, entretanto, estreita e rígida. Em certos casos, no de Neptuno, a harmonia relativa parece afastar-se do princípionunca, entretanto, de maneira a sair dele. O estudo dos movimentos planetários fornece a demonstração evidente desse facto.

Nessa ordem de estudos, mais do que em qualquer outra, vemos manifestar-se, em sua imponente grandeza, a lei do Belo que rege o Universo. Mal a nossa atenção é dirigida para as imensidades siderais, a sensação estética torna-se intensa. Essa sensação vai engrandecer-se agora e crescer, à medida que se precisarem as regras da harmonia universal, à proporção que se levantar para nós o véu que nos oculta os esplendores celestes.

Por toda a parte encontraremos essa concordância que encanta e comove; nesse domínio, nenhuma dessas discordâncias, dessas decepções, tão frequentes no seio da Humanidade.

Por toda a parte se desdobra essa potência de beleza que leva ao infinito as suas combinações, abrangendo em igual unidade todas as leis, em todos os sentidos: aritmética, geométrica, estética.

O Universo é um poema sublime do qual começamos a soletrar o primeiro canto. Apenas discernimos algumas notas, alguns murmúrios longínquos e enfraquecidos! Já essas primeiras letras do maravilhoso alfabeto musical nos enchem de entusiasmo. Que será quando, tornados mais dignos de interpretar a divina linguagem, percebermos, compreendermos as grandes harmonias do Espaço, o acorde infinito na variedade infinita, o canto modulado por esses milhões de astros que, na diversidade prodigiosa de seus volumes e dos seus movimentos, afinam as suas vibrações por uma simpatia eterna?

Perguntar-se-á, porém: Que diz essa música celeste, essa voz dos céus profundos?

Essa linguagem ritmada é o Verbo por excelência, aquele pelo qual todos os mundos e todos os seres superiores se comunicam entre si, se chamam através das distâncias; pelo qual nos comunicaremos um dia com as outras famílias humanas que povoam o Espaço estrelado.

É princípio mesmo das vibrações que servem para traduzir o pensamento, a telegrafia universal, veículo da ideia em todas as regiões do Universo, linguagem das almas elevadas, entretendo-se de um astro ao outro com as suas obras comuns, com o fim a atingir, com os progressos a realizar.

É ainda um hino que os mundos cantam a Deus, ora cântico de alegria, de adoração, ora de lamentações e de prece; é a grande voz das coisas, o grito de amor que sobe eternamente para a Inteligência ordenadora dos universos.

Quando, pois, saberemos destacar os nossos pensamentos e elevá-los para os cimos? Quando saberemos penetrar esses mistérios do céu e compreender que cada descobrimento realizado, cada conquista prosseguida nessa senda de luz e de beleza, contribui para enobrecer o nosso espírito e para engrandecer a nossa vida moral e nos proporcionar alegrias superiores a todas as da matéria?

Quando, pois, compreenderemos que é lá, nesse esplêndido Universo, que o nosso próprio destino se desenvolve, e estudá-lo é estudar o próprio meio onde somos chamados a reviver, a evolver sem cessar, penetrando-nos cada vez mais das harmonias que o enchem? Que em toda a parte a vida se expande em florescências de Almas? Que o Espaço é povoado de sociedades sem-número; às quais o ser humano está ligado pelas leis de sua natureza e de seu futuro?

Ah! Quanto são de lamentar aqueles que desviam os seus olhares desses espectáculos e o seu Espírito desses problemas! Não há estudo mais impressionante, mais comovente, revelação mais alta da ciência e da arte, mais sublime lição!

Não: o segredo da nossa felicidade, do nosso poder, do nosso futuro, não está nas coisas efémeras deste mundo; reside nos ensinamentos do Alto, do Além. E os educadores da Humanidade são muito inconscientes ou muito culpados, porque não cuidam de elevar as Almas para os cimos onde resplandece a verdadeira luz.

Se a dúvida ou a incerteza nos assediam; se a vida nos parece pesada; se tateamos na noite à procura do fim; se o pessimismo e a tristeza nos invadem; acusemos a nós próprios, porque o grande livro do Infinito está aberto aos nossos olhos, com as suas páginas magníficas, das quais cada palavra é um grupo de astros, cada letra um sol – o grande livro onde devemos aprender a ler o sublime ensinamento. A Verdade ali está escrita em letras de ouro e de fogo; chama solícita aos nossos olhos – Verdade –, realidade mais bela que todas as lendas e todas as ficções.

É ela quem nos conta a vida imperecível da Alma, as suas vidas renascentes na espiral dos mundos, as estações inumeráveis no trajecto radioso, o prosseguimento do eterno bem, a conquista da plena consciência, a alegria de sempre viver para sempre amar, sempre subir, sempre adquirir novas potências, virtudes mais altas, percepções mais vastas. E, acima da possessão da eterna Beleza, a felicidade de penetrar as leis, de associar-se mais estreitamente à obra divina e à evolução das Humanidades.

Desses magníficos estudos, a ideia de Deus se expande mais majestosa, mais serena. A ciência das harmonias celestes vale um pedestal grandioso sobre o qual se erige a augusta figura – Beleza soberana cujo brilho, muito ofuscante para os nossos fracos olhos, fica ainda velado, mas irradia docemente através da obscuridade que a envolve.

Ideia de Deus – centro inefável para onde verguem e se fundem, em síntese sem limites, todas as ciências, todas as artes, todas as verdades superiores –, tu és a primeira e a última palavra das coisas presentes ou passadas, próximas ou longínquas; tu és a própria Lei, a causa única de todas as coisas, a união absoluta, fundamental, do Bem e do Belo, que reclama o pensamento, que exige a consciência e na qual a Alma humana encontra a sua razão de ser e a fonte inesgotável de suas forças, de suas luzes, de suas inspirações.

/…

(i) Azbel, Harmonia dos Mundos, pág. 10.
(ii) “O Sr. Emílio Chizat, diz Azbel (A música no espaço), verifica que o jogo de órgão, chamado “vozes celestes”, é a aplicação musical intuitiva do papel importante das “ideias de estrela”. É provável que manifestações sinfónicas sejam feitas ulteriormente, a esse respeito, que poderão reservar ao público impressões inesperadas. Que possam elas levar os nossos músicos “terrestres”, que se extraviam, a noções um pouco mais altas e reais do sacerdócio da harmonia, que deveriam preencher entre nós.”


Léon Denis, O Grande Enigma, Primeira parte / Deus e o Universo, IV As harmonias do Espaço 2 de 2, 15º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: As majestosas e violentas palavras dos poemas, pintura em acrílico de Costa Brites)