Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

terça-feira, 3 de abril de 2012

Inquietações Primaveris ~


Páscoa da ressurreição ~

O pavor maior da morte provém da ideia de solidão e escuridão.

Mas os teólogos acharam que isso era pouco e oficializaram as lendas remotas do Inferno, do Purgatório e do Limbo, a que não escapam nem mesmo as crianças mortas sem baptismo.

De tal maneira se aumentaram os motivos do pavor da morte, que ela chegou a significar desonra e vergonha.

Para os judeus, a morte se tornou a própria impureza. Os túmulos e os cemitérios foram considerados impuros. Os cenotáfios, túmulos vazios construídos em honra aos profetas, mostram bem essa aversão à morte.

Como podiam eles aceitar um Messias que vinha da Galileia dos Gentios, onde o Palácio de Herodes fora construído sobre terra de cemitérios? Como aceitar esse Messias que morreu na cruz, vencido pelos romanos impuros, que arrancara Lázaro da sepultura (já cheirando mal) e o fizera seu companheiro nas lides sagradas do messianismo?

Ainda em nossos dias o respeito aos mortos está envolvido numa forma velada de repulsa e depreciação.

A morte transforma o homem em cadáver, risca-o do número dos vivos, tira-lhe todas as possibilidades de acção e, portanto, de significação no meio humano. “O morto está morto”, dizem os materialistas e o populacho ignaro.

O Papa Paulo VI declarou, e a imprensa mundial divulgou em toda parte, que “existe uma vida após a morte, mas não sabemos como ela é”. Isso quer dizer que a própria Igreja nada sabe da morte, a não ser que morremos.

A ideia cristã da morte, sustentada e defendida pelas diversas igrejas, é simplesmente aterradora.

Os pecadores ao morrer se vêem diante de um Tribunal Divino que os condena a suplícios eternos. Os santos e os beatos não escapam às condenações, não obstante a misericórdia de Deus, que não sabemos como pode ser misericordioso com tanta impiedade. As próprias crianças inocentes, que não tiveram tempo de pecar, vão para o Limbo misterioso e sombrio pela simples falta do baptismo.

Os criminosos broncos, ignorantes e todo o grosso da espécie humana são atirados nas garras de Satanás, um anjo decaído que só não encarna o mal porque não deve ter carne.

Mas com dinheiro e a adoração interesseira a Deus essas almas podem ser perdoadas, de maneira que só para os pobres não há salvação, mas para os ricos o Céu se abre ao impacto dos tedéuns sumptuosos, das missas cantadas e das gordas contribuições para a Igreja. Nunca se viu soberano mais venal e tribunal mais injusto.

A depreciação da morte gerou o desabrido comércio dos traficantes do perdão e da indulgência divina. O vil dinheiro das roubalheiras e injustiças terrenas consegue furar a Justiça Divina, de maneira que o desprestígio dos mortos chega ao máximo da vergonha. A felicidade eterna depende do recheio dos cofres deixados na Terra.

Diante de tudo isso, o conceito da morte se azinhavra nas mãos dos cambistas da simonia, esvazia-se na descrença total, transforma-se no conceito do nada, que Kant definiu como conceito vazio. O morto apodrece enterrado, perdeu a riqueza da vida, virou pasto de vermes e sua misteriosa salvação depende das condições financeiras da família terrena. O morto é um fraco, um falido e um condenado, inteiramente dependente dos vivos na Terra.

O povo não compreende bem todo esse quadro de misérias em que os teólogos envolveram a morte, mas sente o nojo e o medo da morte, introjectados em sua consciência pela farsa dos poderes divinos que o ameaçam desde o berço ao túmulo e ao além-túmulo. Não é de admirar que os pais e as mães, os parentes dos mortos se apavorem e se desesperem diante do facto irremissível da morte.

Jesus ensinou e provou que a morte se resolve na Páscoa da ressurreição, que ninguém morre, que todos temos o corpo espiritual e vivemos no além-túmulo como vivos mais vivos que os encarnados.

Paulo de Tarso proclamou que o corpo espiritual é o corpo da ressurreição (cap. 12 da primeira Epístola aos Coríntios), mas a permanente imagem do Cristo crucificado, das procissões absurdas do Senhor Morto, – heresia clamorosa –, as cerimónias da Via-Sacra e as imagens aterradoras do Inferno Cristão – mais impiedoso e brutal do que os Infernos do Paganismo – marcados a fogo na mente humana através de dois milénios, esmagam e envilecem a alma supersticiosa dos homens.

Não é de admirar que os teólogos actuais, divididos em várias correntes de sofistas cristãos moderníssimos, estejam hoje proclamando, com uma alegria leviana de debilóides, a Morte de Deus e o estabelecimento do Cristianismo Ateu. Para esses novos teólogos, o Cadáver de Deus foi enterrado pelo Louco de Nietsche, criação fantástica e infeliz do pobre filósofo que morreu louco.

O clero cristão, tanto católico como protestante, tanto do Ocidente como do Oriente, perdeu a capacidade de socorrer e consolar os que se desesperam com a morte de pessoas amadas. Seus instrumentos de consolação perderam a eficiência antiga, que se apoiava no obscurantismo das populações permanentemente ameaçadas pela Ira de Deus.

A Igreja, Mãe da Sabedoria Infusa, recebida do Céu como graça especial concedida aos eleitos, confessa que nada sabe sobre a vida espiritual e só aconselha aos fiéis as práticas antiquadas das rezas e cerimónias pagas, para que os mortos queridos sejam beneficiados no outro Mundo ao tinir das moedas terrenas.

O Messias espantou a chicote os animais do Templo que deviam ser comprados para o sacrifício redentor no altar simoníaco e derrubou as mesas dos cambistas, que trocavam no Templo as moedas gregas e romanas pelas moedas sagradas dos magnatas dispenseiros da misericórdia divina.

O episódio esclarecedor foi suplantado na mente popular pelo impacto esmagador das ameaças celestiais contra os descrentes, esses rebeldes demoníacos.

Em vão Cristo ensinou que as moedas de César só valem na Terra. Há dois mil anos essas moedas impuras vêm sendo aceites por Deus para o resgate das almas condenadas.

Quem pode, em sã consciência, acreditar hoje em dia numa Justiça Divina que funciona com o mesmo combustível da Justiça Terrena? Os sacerdotes foram treinados a falar com voz empostada, melíflua e fingida, para, à semelhança da voz das antigas sereias, embalar o povo nas ilusões de um amor venal e sem piedade. Voz doce e gestos compassivos não conseguem mais, em nossos dias, do que irritar as pessoas de bom senso.

O Cristo Consolador foi traído pelos agentes da misericórdia divina que desceu ao banco das pechinchas, no comércio impuro das consolações fáceis. Os homens preferem jogar no lixo as suas almas, que Deus e o Diabo disputam não se sabe porquê.

/…



José Herculano Pires – Educação para a Morte, Educação para a Morte 1.
2º fragmento.
(imagem de conrtextualização: O caranguejo, pintura de William-Adolphe Bouguereau)

2 comentários:

palavra luz disse...

Caríssimo lugar@zul,

Neste sub-apelidado “espaço do invisível…” atravancam-se as mais diversas sugestões de percepção e visibilidade (sem aspas), das coisas mais importantes que há no mundo.

As inquietações primaveris fazem aqui aparição entre a figura de uma criança-menina que explora ingenuamente os segredos da natureza e o discurso explicativo daquilo que – para muitos incautos negligentes – não tem explicação possível, isto é: a própria morte.

O tempo de Páscoa é o período ideal para tais questionamentos, dado o espaço simbólico que esse tempo emocional ocupa na memória, animado aqui pelo discurso sempre incisivo de Herculano Pires.

Era eu criança e lembro-me de minha querida avó, regressada da horta com um generoso braçado de hortaliça, em véspera de Sexta-feira Santa.
Rezava a lenda que Cristo fugitivo se teria refugiado por certo tempo numa horta e que, por esse facto, não era permitido por esses dias de Paixão ir às hortas, não fosse correr-se o risco de perturbar-Lo, recolhido por entre a frescura verde…

Lembro-me das minhas tias, das primas e primo Alvaro, gente por essa altura na rosada frescura da mais intensa idade, desfolhando rosas para um largo cesto, para mais tarde aspergir de odores a manhã de Aleluia…
E tenho ainda medo, muito medo, da figura esquálida e penosamente imposta à sensibilidade vulnerável dos pobres aldeões e das crianças, de um Cristo lastimavelmente coberto de tecido roxo acetinado, sopesando uma cruz artificialmente pintada de negro de fumo, sem o palpitar do lenho de que viriam a ser "fabricados" os milhões de lucrativas relíquias de altares e altares sem conta…

De tudo isso e de muito mais nos fala este precioso momento de divulgação doutrinária e cultural que nos oferece “lugar@zul”, a quem entrego a minha gratidão e o voto de Feliz Páscoa.
Voto que fica extensivo a todos os amigos visitantes, pedindo-lhes que disponham de tempo para ler com prazer e proveito mais este valioso pedaço de informação cultural e formativa

palavra luz

Gilberto Ferreira disse...

Caríssimo palavra luz,

Lisonjeado e reconhecido por – no teu dizer generoso – veres neste espaço o levantar do véu das coisas mais importantes do mundo.

Ao de mais, cumpres aqui, a volta simbólica e ternurenta – com um braçado – de “frescura verde” em dias de Paixão.

Em jeito de comunhão – fechemos os olhos – e desfolhemos muitas mais rosas brancas perfumadas com que aspergiremos flutuando a manhã de Aleluia…

Grato pelos teus melhores votos.

Feliz Páscoa para ti e para todos os visitantes.

Fraternamente,

Gilberto Ferreira