Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

quinta-feira, 5 de abril de 2012

~~~Párias em Redenção~~~


4. FÚRIA ASSASSINA
.../

   De retorno,
na sege
especial,
Assunta meditava
quanto ao
próprio destino.

   As circunstâncias
precipitaram-se
e ela,
repentinamente,
se vira
envolvida
por densa treva interior, que a amargurava agora.

É certo que não sentia o clamor do remorso convocando-a a outra atitude mental, por enquanto. Todavia, quando recordava as personagens assassinadas, um estranho arrepio a fazia gelar. As crianças se lhe entregaram confiantemente e aqueles haviam sido dias de dor no palácio. As suas mãos, sim, aquelas mãos bem talhadas e mimosas adicionaram o entorpecente ao chá, preparando o caminho para o bandido.Ocorria, porém, que o bandido era o homem amado. Que não faria por ele!? Amava-o até à loucura, apesar de saber que ele não a amava. Por estranho sortilégio, sabia-se apenas um meio de exploração para o prazer, utilizado por Girólamo.

   E reflectia, enquanto a carruagem vencia as estradas tortuosas, lamacentas e mal cuidadas: amava o rapaz há mais de um ano e a ele se entregara, desde então. Por que somente agora essa volúpia a desgraçara? Ele nunca lhe prometera fidelidade nem matrimónio e ela pouco se importara com as consequências. Ante o aceno de uma ventura, sim, impossível, ela fora capaz de trair aqueles aos quais muito devia e acumpliciar-se num hediondo assassínio, em que sua amiga e as crianças pequeninas foram vítimas indefesas!

   Recordando os dias que precediam a trágica acção, as lágrimas lhe saltaram dos olhos, desmesuradamente, pôs a mão espalmada sobre o peito ofegante, comprimindo a efígie de delicada madona, uma desconhecida sensação de horror e culpa que lhe estrangulava a garganta, quase impedindo a respiração, que se tornou entrecortada e difícil.

   – Assassina! – pareceu escutar de momento.

   Seria a consciência atormentada? Era má, sem dúvida, no entanto, era também jovem e inexperiente, e se deixara vencer pela impiedade do rapaz cruel. Recordou-se do amante que lhe impunha essa fuga, exactamente a ela que também era vítima e, num relance, veio-lhe a ideia fuzilante de que o companheiro desejava libertar-se dela, para, então, gozar. Por que Girólamo a desposaria, havendo tantas mulheres ricas, formosas, e sendo ele contumaz explorador? Sacudida por essa lembrança violenta, a mágoa e o receio foram substituídos pelo ódio, que lhe irrompeu em catadupa. Desejou retornar, enfrentar o verdugo da sua paz e intimidá-lo, fazendo-o compreender devidamente, repetindo-lhe na face e demonstrando com todo o vigor do seu espírito desesperado a intrepidez com que o enfrentaria, indo até aos últimos lances, na tentativa de o não perder. Contraiu os lábios e sentiu o amargor da situação em que se enleara. Dominou-se, porém, recobrando um pouco a serenidade.

   Longas horas se passaram e o cansaço, o relaxamento repentino substituíram a tensão e a ansiedade dos últimos dias, fazendo-a mergulhar em pesado e incómodo sono.

   Com o espírito atribulado, a moça, logo adormeceu, experimentou a lucidez do despertamento espiritual e viu-se diante da Senhora duquesa, cujo olhar penetrava-a dolorosamente. Sentia-se no corpo e fora dele: cansada e consciente. A tez pálida e os grandes olhos nublados pelas lágrimas, na senhora, falavam, sem palavras, duras recriminações. Aquele olhar desnudava-a inteiramente. A veneranda Entidade, que a recebera no seu solar anos antes e que lhe dera a mão de auxílio, quando a adversidade obrigara os seus pais a situar as filhas nos burgos florescentes da Toscana, vítimas que haviam sido das surpresas do destino, parecia perguntar-lhe em silêncio: “Que fora feito do sentimento da gratidão, na tua alma infeliz?” Fitando a protectora, parecia rever as crianças alegres, que brincavam nos seus braços e que dias antes estiveram sob a sua guarda, quando do velório e do sepultamento do Senhor duque. O sorriso inocente e cristalino dos pequeninos percutia nos seus ouvidos, como se os despedaçasse por dentro, e as suas vozes infantis brincavam melodias na acústica do seu espírito atormentado. Revia Lúcia, confiante, deixando-se tranquilizar ante a sua assistência fingida, – Lúcia, que se fizera cão devotado e zeloso dos pequenos rebentos dos di Bicci. Vencida pela tristeza infinita daquela face marmórea, desfigurada e silenciosa, a sequaz de Girólamo ajoelhou-se, visivelmente infeliz, e rogou perdão…

   – Como pudeste, Assunta – indagou, com inexcedível expressão de voz, a Senhora di Bicci –, transformar em veneno o licor da amizade que eu depus na taça do teu coração? Como te foi possível adicionar às minhas dores as brasas do desconforto e da amargura, para que eu acompanhe o duque, hoje esmagado de angústia, transformado em fera impiedosa e irracional, que persegue seu caçador e terminará por destruí-lo? Os meus filhinhos não morreram: libertaram-se de dura canga; Lúcia não desapareceu nem se consumiu, apenas dorme sob os meus cuidados. Hoje, sou-lhe a servidora devotada e reconhecida. Tenho-a como filha do meu coração, sacrificada pela sanha criminosa de alguém a quem nutri com o leite da misericórdia e da compaixão… Ela resgata e ele se infelicita. Ela sublima a vida e ele aniquila a esperança. Onde colocaste o sentimento, Assunta? Não te comoveu o sono inocente e confiante dos meus filhos? Acreditas em felicidade sobre cadáveres? Crês que o assassino da infância não será, também, oportunamente, o destruidor da viciada? Confias a vida a quem destrói vidas? Apiado-me de ti, e venho em teu socorro.

   Emocionada, compungida, a matrona pôs a mão muito delicada sobre a atormentada mulher e prosseguiu:

   – Foge de Girólamo, enquanto é tempo. Evade-te da Toscana. És jovem e bela. O futuro diminuirá a chama do presente e poderás carpir e resgatar os teus crimes sem te afundares noutros. Utiliza a vida e aprende a amar como Jesus nos amou. Só o amor verdadeiro, fundamentado na compaixão, na misericórdia, na consciência tranquila e na devoção até ao sacrifício, redime a criatura. O teu crime, nascido na insensatez e na lubricidade, exigirá de ti um tributo pesado de dores que poderás pagar se fugires, evitando a hiena que virá, logo mais, despedaçar o cadáver das tuas esperanças, tripudiar sobre a vã loucura dos teus desejos, já desprezados por ele… Girólamo está louco, e a sua é uma enfermidade sem remédio, no momento; sem esperança, por enquanto. Evita ficar em Florença…

   – Perdoai-me, senhora! Desgraçada que sou, – bradou a infortunada.

   – Perdão, minha filha, só o do Nosso Pai e, depois, o da nossa consciência. Quando sentires a isenção da culpa, estarás, então, perdoada. Eu não te culpo, nem te exprobro a conduta leviana, cujas consequências, imprevisíveis de momento, não me cabe ajuizar. Distendo-te mãos de socorro, conforme a recomendação do Senhor: “Fazer todo o bem a quem nos faz todo o mal.” O coração materno, fundamente lanhado, vem beber contigo a taça da amargura desmedida. De certo modo, contribuíste para a felicidade e a libertação dos meus amados – lamento profundamente o esposo inditoso, que continua dormindo no desespero! –, liberdade essa que os redime de pesadas culpas, esquecidas, todavia não resgatadas, que clamavam há muito por regularização… Não seria, porém, necessário que fosse o adverso  instrumento da Justiça, pois que a Divina Providência possui recursos para cobrança sem criar novos devedores… Não te compliques ainda mais… Foge, portanto, enquanto é tempo e urge a oportunidade.

   – Para onde, senhora, deverei fugir, se atei, inexoravelmente, o meu ao destino do bandido, que amo como obsessão sem lucidez nem raciocínio?! A simples memória de Girólamo me entontece, como licor cujo aroma anuncia a madureza do vinho no barril de carvalho… Agora irei até à destruição total com ele, e se me trair…

   – Nada poderás, minha filha, nada. És fraca e ignorante. Como pode a humilde rolinha, presa no olhar da serpente que prepara o bote, fugir ao esmagamento, ao veneno traiçoeiro, à morte horrível? Não conheces Girólamo, quanto eu conheço. Foge, Assunta, e que Deus tenha piedade da tua alma!

   Aos sacolejos, a carruagem, derrapando e batendo nas pedras da estrada real, foi sacudida com maior violência e a moça, fortemente arrojada do assento veludoso, acordou banhada por álgido e pegajoso suor… Abriu os olhos, fitou a paisagem sombreada por nuvens carregadas e, accionando pequena campainha, que soava ao lado do cocheiro, fê-lo parar o veículo. Muito pálida, abriu a porta e semicambaliante ensaiou alguns passos, para cair…

   O cocheiro saltou pressuroso e carregou-a para dentro do veículo, com receio de algo mau. Após aspergir água fria sobre o seu rosto, despertou-a, indagando quanto ao seu estado de saúde.

   – Sofri um pesadelo, – asseverou Assunta, preocupada. – Não há de ser nada, pois logo passará. Façamos uma pausa, para um pouco de repouso. O ar frio me fará melhor.

   O restante da viagem transcorreu normalmente, não obstante a preocupação continuasse crescente, no cérebro da jovem.

   Chegando a Florença, onde moravam a genitora e diversos parentes outros, que residiam em sítio próximo à cidade, fronteiriço ao rio, a sege, por indicação sua, seguiu directamente para a casa que a acolheria.

   Recebida com alacridade e júbilo natural pela mãe e demais familiares, relatou em sucintas palavras o ocorrido no Palácio di Bicci e a orientação que lhe dera Dom Girólamo, quanto à necessidade de um repouso, enquanto ele reorganizaria o solar, mandando buscá-la mais tarde. Perfeitamente aceita a explicação – embora todos lamentassem as desgraças que desabaram sobre aquela mansão –, Assunta foi acolhida com carinho e contentamento geral. Novamente no lar, refez-se um pouco dos acontecimentos, apesar de não olvidar o estranho sonho que a acometera na viagem, como se fora pressaga anunciação de novas dores. Mesmo desejando demonstrar alegria, sentia-se interiormente conturbada. As paisagens queridas da infância, conquanto nascida em Chiusi, o clima em renovação, embora frio e húmido, a natureza despertando ainda encharcada do inverno torrencial, não lhe podiam apagar os sinais da preocupação duramente suportada. Os familiares atribuíam que fossem as consequências do drama horripilante, as saudades da companheira e das crianças, evitando atormentá-la com perguntas inoportunas e descabidas…
/…


VICTOR HUGO, Espírito “PÁRIAS EM REDENÇÃO” – LIVRO PRIMEIRO, 4. FÚRIA ASSASSINA (fragmento 2 de 3) texto mediúnico recebido por DIVALDO PEREIRA FRANCO
(imagem: L’âme de la forêt _1898, pintura de Edgar Maxence)

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