Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

sábado, 22 de dezembro de 2018

agonia das religiões ~


Do Princípio inteligente

Tratei até agora da relação directa do pensamento de Deus com a matéria. Essa relação é necessária, da mesma maneira que é necessária a relação directa do pintor com o quadro que ele pinta, e portanto do trabalho que ele realiza no quadro, orientado pelo seu pensamento. Na verdade, o seu pensamento se projecta no quadro e ali se materializa, passa do plano do inteligível para o plano do sensível. Ao completar a sua obra, cessa a relação directa ou activa, mas permanece a relação passiva ou indirecta. Assim, a relação directa caracteriza o acto de pintar, ou de criar. Pode alegar-se a existência de intermediários: as mãos, a paleta e o pincel, as tintas. Mas convêm lembrar que todos esses instrumentos fazem parte da obra em execução, sobre a qual o pensamento do pintor actua directamente.

Na acção de Deus sobre a matéria o processo é o mesmo. O pensamento divino aglutina a matéria, dando-lhe estrutura, através da qual temos a passagem do pensamento do plano do inteligível para o plano do sensível. Uso a divisão de Platão neste sentido: o inteligível é o intelecto divino e o sensível é o plano do sensório, das sensações humanas. Dessa maneira, Deus materializa o seu pensamento para atingir a sensibilidade do campo material em que o homem vai ser criado. No fiat ou acto inicial da criação temos a acção directa e activa do pensamento divino a estruturar a matéria. Uma vez formada essa estrutura, surge um elemento novo que é designado pela expressão princípio inteligente. O pensamento divino ligado à matéria adquire autonomia, sem com isso se desligar da fonte que o alimenta. Transforma-se na mónadaelemento básico e estrutural da matéria, de que são compostas as próprias partículas atómicas. A palavra mónada procede de Pitágoras, foi empregada por Platão como ideia e desenvolvida modernamente por LeibnizRenouvier como uma substância inteiramente simples (pura indivisível e refractária a qualquer influência exterior. A mónada é dotada de uma força interior que a transforma, de potencialidades que se desenvolvem continuamente e de capacidade de percepção e vontade. As mónadas são diferentes entre si no tocante a essas potências internas.

Estas correlações filosóficas são necessárias para se entender o que é o principio inteligente da concepção espírita. Trata-se, como se vê, do princípio básico de toda a realidade, responsável pela formação dos reinos da Natureza, pelo desenvolvimento da vida e de todas as faculdades vitais e anímicas dos seres. O admirável poder de intuição dos gregos captou não só a existência dos átomos, como também das mónadas, que a Ciência actual já está a conseguir atingir nas profundezas da misteriosa estrutura da matéria, na pesquisa sobre as partículas atómicas. A teoria espírita do princípio inteligente é explicada de maneira sintética no “O Livro dos Espíritos”. No item 23 desta obra lemos o seguinte: O que é o espírito? É o princípio inteligente do Universo. Seguem-se outras explicações nas quais a inteligência se define como um atributo essencial do espírito. Geralmente confundimos a substância (espírito) com a inteligência, que é o seu atributo.

Colocado assim o problema, parece-me explicada a razão pela qual os Espíritos Superiores não esmiuçaram esta questão fundamental. Na própria tradição filosófica, desde bem antes da era cristã, já dispúnhamos dos elementos necessários de intuições capazes de nos fornecerem os dados para uma equação futura. Faltava-nos, porém, o desenvolvimento, que só mais tarde poderia ocorrer, das pesquisas cientificas em profundidade. Actualmente já podemos compreender com mais clareza a dinâmica do processo criador. A teoria filosófica da mónadaque antes poderia ser considerada como simples hipótese inverificável, adquire hoje a condição de uma teoria científica ao alcance de comprovação pela pesquisa. Teorias como a do físico inglês Paul Dirac, por exemplo, segundo a qual o Universo está mergulhado num oceano de electrões livres, ou a dos físicos soviéticos, de que esse oceano parece ser de uma luz violácea proveniente dos primórdios da criação, mostram-nos as possibilidades novas que as pesquisas espaciais estão a abrir neste campo. O mesmo se pode dizer da teoria dos campos de força que preenchem todo o espaço sideral.

É evidente que, diante destas novas posições conceptuais, toda a nossa cultura entra em crise, prenunciando o advento de um novo mundo. A inteligência humana se abre para dimensões mais amplas e profundas da realidade universal, exigindo a reformulação de conceitos e estruturas culturais envelhecidas. Já não podemos pensar em Deus como uma figura humana, nem do ponto de vista formal, nem do substancial. Só podemos considerá-lo como o Ser Absoluto, como a Inteligência Suprema, mas assim mesmo sem lhe atribuir nenhuma das limitações humanas. Os teólogos do Cristianismo Ateu, da Teologia Radical da Morte de Deus, sentem isso na própria pele, mas faltam-lhes os dados para uma equação mais positiva do problema. Divagam através de suposições ameaçadoras e caem irremediavelmente num torvelinho de contradições. Se tivessem a humildade de consultar a Filosofia Espírita, essa pedra rejeitada da parábola evangélica, encontrariam nela a pedra angular do novo edifício a construir.

O Espírito a que a Bíblia se refere em numerosos tópicos e que nos Evangelhos toma o nome de Espírito Santo é o Espírito de Deus na sua manifestação universal. A Criação tem dois aspectos, o material e o espiritual. O sopro de Deus é o espírito criado no fiat e o homem de barro, o Adão terreno, o ápice da criação nos mundos em desenvolvimento, como a Terra. O sopro de Deus nas ventas do homem de barro, para infundir-lhe o princípio da vida e da inteligência, é a ligação do espírito com a matéria na formação da mónada. No pensamento divino todo o quadro da criação estava presente desde o princípio. E tudo era perfeito. A perfeição do ideal constituía o modelo da realidade (o mundo da rés, das coisas) que devia projectar-se no Infinito. Por isso, as mónadas diferenciadas, com características específicas, seriam semeadas no espaço, para a germinação lenta, mas segura e contínua, dos conteúdos essenciais de cada uma delas. A mónada é a semente do ser, da criatura humana e divina que dela surgirá nas dimensões da temporalidade.

Não se pode conceber, na nossa relatividade humana, mais grandiosa e perfeita concepção do acto criador. Podemos perguntar porque Deus, que é o supremo poder, precisa do tempo para realizar essa obra gigantesca. Mas o Espiritismo ensina que a nossa relatividade decorre de necessidades nossas e não de Deus. O que para nós são séculos e milénios, para Deus pode ser apenas aquele instante que, para Kierkegaard, era o encontro do tempo com a eternidade. Um instante de profundidade e extensão imensas, que resume para o homem todas as suas existências nas duas dimensões do Universo que hoje nos são acessíveis: a espiritual e a material.

É, sem dúvida, espantoso pensar, com Gustave Geley, que tudo quanto consideramos inconsciente, desde o grão de areia aos mundos que giram em torno dos sóis, possui a potencialidade da consciência em desenvolvimento no seu interior. Mas quando compreendemos que a mónadasíntese de espírito e matéria, é uma unidade infinitesimal, sobre a qual se apoia toda a realidade – o que corresponde à concepção atómica da Ciência nos nossos dias –, a nossa mente começa a abrir-se para um entendimento superior. Se o poder do átomo nos espanta, a potencialidade da mónada nos aturdiria. E ambos estes poderes nada mais são do que fragmentos do poder de Deus. Quando pensamos nisso, a teoria do princípio inteligente começa a revelar-nos a grandeza da doutrina espírita.

E no entanto os seus fundamentos estão nos princípios evangélicos, sobre os quais milhares de teólogos, filósofos, místicos e pregadores escreveram e falaram sem cessar, numa catadupa de páginas e palavrórios ao longo de dois mil anos? Essa opacidade da inteligência humana, esse embotamento da capacidade de compreensão poderia fazer-nos descrer das potencialidades do principio inteligente se não soubéssemos que o instinto gregário do homem o leva à imitação e à repetição dos papagaios. Quando Kardec se atreveu, utilizando-se de todos os recursos de sensatez e equilíbrio, apoiando-se na cultura do Século XIX – para não provocar reacções precipitadas que lhe prejudicariam a obra – ao publicar “O Livro dos Espíritos”, todos os anátemas da Religião, da Ciência e da Filosofia caíram sobre ele como as bombas norte-americanas sobre o Vietname. Somente agora se abre uma perspectiva favorável, em todos aqueles campos reaccionários, para uma possível compreensão do seu gigantesco trabalho de reposição das coisas nos seus lugares. Mas então aparecem os que pretendem reformar, actualizar e introduzir técnicas nas suas obras ao invés de estudá-las e aprofundar-lhes o sentido. Isso nos prova quanto necessitamos do tempo para que a mónada oculta se abra e se actualize em nós.

Todas as coisas têm a sua origem no mundo das ideias, como Platão, levado pelas mãos de Sócrates, percebeu claramente. Nos planos superiores do Universo não se usa a linguagem articulada das hipóstases inferiores. Fala-se do pensamento, na linguagem telepática pura. Sócrates descobriu essa linguagem ao encontrar o conceito no fundo de cada palavra. Podemos assim conceber que a linguagem de Deus seja puramente mental. Na mente divina a ideia do Universo delineia-se perfeita, mas a projecção dessa ideia no plano inferior da matéria tem de vencer os obstáculos e as resistências da materialidade. Foi o que Hegel viu e descreveu com precisão na sua teoria estética, mostrando a luta do belo para se sobrepor, no tempo, às imperfeições materiais.

O mesmo se dá com o princípio inteligente, que, para vencer a opacidade da matéria, para lhe dar inteligência, segundo Kardec, tem de lutar na temporalidade. Mas, podemos perguntar, porque Deus não fez em condições transparentes a matéria, ao invés de opaca? O Espiritismo explica que a matéria se torna transparente na proporção em que visualizamos os planos superiores, de tal maneira que a confundimos com o espírito. Isso nos mostra que a técnica dos contrastes desaparece naquilo que Buda chamou de Nirvana e que a nossa apoucada inteligência considerou como o nada. Kant teve razão ao localizar os limites da razão humana no momento em que cessam as contradições dialécticas. Mas nesse momento, nesta linha divisória entre o mundo real e o mundo ideal, começa a razão angélica. Os homens transformados em anjos – não com asas nem com estrelas na testa, mas com a mente e o coração purificados – passam a ver e a compreender a realidade pela intuição directa e global. Nesse momento descobrem a perfeição do Universo, aquela perfeição que, desde o princípio, estava na concepção ideal de Deus, mas que nas hipóstases materiais se tornava irreconhecível como a Vénus de Milo coberta de terra e lama quando a arrancaram do subsolo.

O próprio tempo desaparece neste momento. Já não há necessidade do véu de Ísis da temporalidade para encobrir a verdade das coisas e dos seres. Mergulhamos no eterno, que não é estático e inerte como o supomos, mas tem a dinâmica e a lucidez de que o pensamento nos pode dar um vago exemplo. Kardec verificou, nas suas pesquisas espíritas, que a esquematização do sensório humano, com a divisão das faculdades sensoriais em órgãos específicos e rigidamente localizados no corpo, não existe para os espíritos libertos das impressões materiais. Os espíritos percebem, vêem e sentem de maneira global, por todo o seu ser em sintonia com toda a realidade. As deslocalizações e transferências das sensações nas práticas hipnóticas comprovam, no nosso plano, a veracidade desta descoberta efectuada nas suas pesquisas mediúnicas. O seu ensaio sobre a sensação nos espíritos, que se encontra no livro básico da doutrina, é uma peça de esclarecimento lúcido e didáctico deste problema.

As pesquisas actuais da Parapsicologia, que até agora só puderam refazer o caminho percorrido por Kardec, representam uma confirmação da validade das suas afirmações de mais de um século. Apesar disso, e no interesse inferior da defesa de posições sectárias, toda uma multidão de falsos cientistas se empenha na tarefa ingrata de desmentir o Espiritismo através de capciosos argumentos temperados na panela da mentira ou nos caldeirões da trapaça diabólica. Mas nada disso impedirá que a verdade triunfe, pois a verdade é, existe por si mesma e não pede licença a nenhum censor religioso ou ateu para se revelar como ela é, aos olhos de todos os que se fizerem dignos dela.

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José Herculano Pires, Agonia das Religiões / Capítulo 7 – Do Princípio inteligente, 8º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: Paraíso Perdido, estudo do Anjo, lápis e giz de Alexandre Cabanel).

domingo, 2 de dezembro de 2018

~ em torno do mestre


Renúncia ~

Não pode haver progresso integral sem renúncia. A obra do aperfeiçoamento do nosso Espírito é urdida de renúncias sob aspectos multiformes. Não há carácter consolidado que se não funde numa série de renúncias. Quem não sabe renunciar, jamais firmará as bases seguras da sua evolução. Renunciar é vencer, vencer é viver. A redenção é impraticável fora da órbita das renúncias: só nesse ambiente o Espírito conquista a liberdade e firma o seu império.

O homem é um animal que se espiritualiza. Veio do império dos instintos e, caminha para o reino da razão. O desenvolvimento harmónico dos atributos do Espírito — inteligência, razão, vontade e sentimentos — determina naturalmente o recuo do instinto. À medida que o Espírito assegura o seu poder, a animalidade restringe-se. Semelhante transição, de um para o outro reino, é obra da renúncia.

O instinto representa o domínio da carne; a razão, o do Espírito. Há estágios na vida dos seres em que o instinto tem a primazia: é a época da irracionalidade. Outros há em que o despotismo do instinto constitui a fonte de todos os males: o ciclo racional. O animal tem no instinto o seu guia. Para o homem o guia deve ser a razão. Sempre que esta fraqueja, cedendo lugar àquele, o homem erra e sofre. Erra porque se deixa arrastar, tendo já o leme e a bússola para orientar-se, ao sabor das vagas que o desviam do roteiro normal da vida. Sofre, porque o erro é a causa cujo efeito é a dor.

O instinto não reúne os requisitos necessários para satisfazer as aspirações do Espírito, antes constitui-lhe embaraço. Daí a necessidade de restringi-lo, impondo-lhe limites cada vez mais restritos às suas exigências. E isso só se consegue pela renúncia.

A grande maioria dos homens vegeta entre duas tiranias: uma a que actua no seu interior e, se denomina instinto; a outra que age de fora para dentro e, se chama sentidos. Subjugado pelo instinto e fascinado pelos sentidos, o homem torna-se um ser híbrido, incoerente e extravagante, capaz de todas as aberrações. Só a renúncia, jugulando a cobiça e refreando os instintos, poderá quebrar os grilhões desse duplo e aviltante cativeiro.

É o que S. Paulo aconselha na sua epístola aos Romanos, sob os seguintes dizeres: "Rogo-vos, irmãos, pela compaixão de Deus, que apresenteis os vossos corpos como um sacrifício vivo, santo e agradável a Deus, pois em tal importa o culto racional e; não vos conformeis com este mundo, mas transformai-vos pela renovação da vossa mente, para que proveis qual é a boa, agradável e perfeita vontade de Deus."

Para que o nosso corpo seja um sacrifício vivo em oferenda perpétua é, indispensável manter aceso o fogo da renúncia na imolação do instinto e da cobiça.

"Se alguém vem a mim e não renuncia a seu pai, mãe, mulher, filhos, irmãos e irmãs e, ainda à sua própria vida, não pode ser meu discípulo... Assim, pois, todo aquele que dentre vós não renuncia a tudo o que possui, não pode ser meu discípulo. Quem tem ouvidos de ouvir, que oiça."

Sempre que o incomparável Mestre concluía a sua pregação com as palavras — quem tem ouvidos de ouvir, que oiça — queria, com isso, dizer: quem for capaz de penetre o sentido destas palavras, porque o meu ensino não está na letra que mata, mas no espírito que vivifica. O trecho, acima inscrito, encontra-se nessas condições.

Jesus tinha o lar e a família na mais alta consideração. Segundo a sua maneira de ver, no lar e na família se consubstanciavam os maiores bens, aqueles a que o homem se encontrava mais Intimamente ligado. Daí citar precisamente o lar e a família, a par da própria vida, como os objectos que fazem jus aos nossos maiores afectos e ao nosso mais profundo e radicado apego.

Todavia, esses tesouros devem ser renunciados quando constituam embaraço à obra da redenção dos nossos Espíritos…

Mas, afinal, de que consta essa renúncia e como deve ser executada? Aqui cumpre lembrar a observação do Senhor: Quem tiver ouvidos de ouvir, que oiça.

A renúncia, tal como Jesus a estabelece, não significa, no que respeita à família, o seu abandono nem o arrefecimento do afecto que une os corações destinados a viverem sob o mesmo tecto e; no que concerne aos bens temporais, a renúncia não importa tão pouco em abrirmos mão de tudo o que possuímos, transformando-nos em párias ou mendigos.

Renúncia, segundo o critério evangélico, quer dizer capacidade moral, força de carácter capaz de sobrepor, em qualquer emergência ou conjuntura, a causa da justiça e da verdade acima de todos os interesses, de todas as volições e prazeres e, mesmo acima das nossas mais legítimas e caras afeições. Tal é a condição — sine qua non — estabelecida por Jesus para nos tornarmos seus discípulos.

Esta importantíssima questão tem sido mal interpretada pela teologia de certos credos cristãos. Do estrabismo teológico nasceram os conventos. Os reclusos das celas supõem, com isso, apressar o dia da redenção de suas almas. Enganam-se redondamente, pois, antes, retardam a aurora desse dia glorioso. Não é fugindo da sociedade e isolando-se egoisticamente entre as paredes de um cubículo que aceleraremos a evolução dos nossos Espíritos. Os trânsfugas perdem a oportunidade de avançar, na senda do progresso, porque evitam as lutas. É enfrentando os nossos inimigos, dentre os quais a morte é o derradeiro a vencer, no conceito de Paulo, que caminharemos com passo seguro na conquista do porvir.

Os tabernáculos (i) eternos não se abrem, com gazua. E o que pretendem os habitantes do claustro senão abri-los com chaves falsas? Os instintos amortecidos pelos cilícios e pelos jejuns contínuos não foram vencidos, não foram subjugados; encontram-se apenas impossibilitados de acção mediante processos anormais, e, portanto, condenáveis. A virtude de convento é como a planta de estufa: só medra a coberto das intempéries.

Não é tal a renúncia ensinada por Jesus, que deu os mais inequívocos exemplos de sociabilidade convivendo com os pecadores, tomando parte nos seus jantares, bodas e festins, a despeito das censuras acrimoniosas do farisaísmo que o cobria de zombaria por isso.

A filha que deixa os seus pais, que abandona o lar e a sociedade para sepultar-se num convento, comete um acto de fanatismo. Ela não renunciou ao pai, à mãe, aos irmãos, às irmãs e a tudo quanto tem, no sentido em que o divino Mestre preceitua; ela deixou de cumprir o seu dever junto da família e da sociedade, fugindo às lutas e às vicissitudes da vida humana e social. O arrefecimento e o repúdio às afeições de família, consequentes ao enclausuramento, são antes delito que virtude. Já dizia o apóstolo João, sábia e judiciosamente: Se não amas a teu irmão que vês, como amarás a Deus que não vês?

O que Jesus pede não é o desafecto aos membros de nossa família; não é o repúdio do lar, essa mansão sagrada onde se forjam as virtudes fundamentais do Cristianismo; não é a abstinência de tudo o que nos alegra, conforta e refrigera a alma; não é a privação do conforto, do bem-estar e da independência material ou financeira; não é o estrangulamento de todas as aspirações do melhor por que o nosso "ser" naturalmente almeja, porque isso seria uma monstruosidade, seria a nossa morte moral como efeito do embrutecimento, da abulia a que condenássemos o nosso espírito.

O que Jesus requer dos seus discípulos é, como já ficou dito acima, a coragem moral, a disposição de ânimo capaz de resistir a todas as seduções do mundo, colocando acima de tudo, inclusive dos nossos mais santos afectos e da nossa própria vida, o ideal de justiça e de amor que a sua doutrina encerra e do qual ele mesmo é o símbolo e o exemplo.


Avareza ~

Guardai-vos e acautelai-vos de toda a avareza, porque a vida de um homem não consiste na abundância dos bens que possui — disse o maior expoente da Verdade que os homens conheceram. Em seguida, para corroborar aquela assertiva, propôs a seguinte parábola aos seus discípulos:

As terras de um homem rico produziram muitos frutos. E ele discorria consigo: Que farei, pois não tenho onde recolher os meus frutos? E concluiu: Farei isto: derribarei os meus celeiros e os reconstruirei maiores e, aí guardarei toda a colheita e os meus bens; e, em seguida, direi: Minha alma, tens largos bens em depósito para longos e dilatados anos: descansa, come, bebe e regala-te. Mas, Deus disse-lhe: Néscio (i), esta noite te exigirão a tua alma; e as fazendas que ajuntaste, para quem serão?

Quanta sabedoria em tão singela parábula!

Quão transcendente lição nesta frase tão simples: A vida do homem não consiste nos bens que possui!

Se a longevidade dependesse dos cabedais, seria justificável que o homem se empenhasse para os obter a todo o custo.

Se, de outra sorte, a felicidade tivesse uma relação directa com as riquezas, compreender-se-ia que o homem procurasse conquistá-las, envidando, para isso, os seus melhores esforços.

Mas, o facto indiscutível é que a vida e a felicidade do homem (felicidade, que outra coisa não é senão alegria de viver) independem dos bens que ele consegue obter e amontoar.

Ora, se as fazendas e os haveres não asseguram vida longa nem venturosa, como se explica a fascinação que exercem sobre os homens? De onde procede tanto apego às temporalidades do século?

Jesus responde: vem da avareza. E, não só aponta a origem de tal vesânia, como adverte: Guardai-vos e acautelai-vos de toda a avareza.

Sim, de toda a avareza, isto é, das várias formas que essa terrível paixão assume, dominando o coração do homem.

Alexandre Herculano, impressionado com os diversos aspectos do orgulho, exclamou: Orgulho humano! que serás tu mais: estúpido, feroz ou ridículo?

Pois a avareza comporta aqueles três qualificativos: pode ser estúpida, ridícula ou feroz.

estúpida é aquela modalidade sórdida e mesquinha que faz o homem privar-se do conforto, do necessário e até do indispensável, perecendo à míngua para conservar intacta a pecúnia avaramente amealhada.

A avareza ridícula é a do homem que tem no dinheiro o seu ídolo, a sua preocupação constante e absorvente, empregando-o, embora, no luxo, na ostentação, ou simplesmente na satisfação dos seus apetites e caprichos.

feroz (de todas a mais perniciosa) é a avareza dos açambarcadores, dos organizadores de monopólios e trustes, cuja ambição e cupidez desmedidas não se contentam com menos que possuir o mundo inteiro, ainda que para tanto seja mister reduzir à miséria toda a Humanidade. Outrora, essa avareza gerou os conquistadores e os latifúndios. Actualmente, ostenta-se nas grandes organizações comerciais e industriais, nas companhias, nos sindicatos e empresas poderosas cujos tentáculos se alongam em todas as direcções.

Esta classe de avareza é geralmente peculiar a homens inteligentes, ricos, astutos e de alta cotação social. Das três, é, como ficou dito, a mais perniciosa e a que mais danos tem acarretado à sociedade de todos os tempos. Um só avaro dessa categoria, ou uma comandita (i) de meia dúzia deles, pode reduzir à fome uma cidade, um povo inteiro.

É a responsável pela carestia e pelas crises económicas que convulsionam o mundo, dando origem às lutas fratricidas que, por vezes, estendem o negro véu da orfandade e da viuvez sobre milhares de crianças e de mulheres indefesas. É também obra sua, nos tempos que correm, os milhões de desocupados (desempregados) nos países industriais e, as pretensas superproduções nos países agrícolas.

O trabalho suspenso; o legítimo comércio (que significa a livre troca de produtos entre as nações), quase de todo paralisado graças às odiosas barreiras alfandegárias, são outros tantos crimes de lesa humanidade praticados pela avareza da terceira espécie, isto é, a feroz.

As outras duas formas são mais estados mórbidos ou doentios da alma; a feroz é que caracteriza a verdadeira avareza. Aquelas prejudicam somente os indivíduos que as alimentam; ao passo que os maléficos efeitos desta atingem um raio de acção considerável, incalculável mesmo.

Todavia, os escravizados por esta cruel paixão são dignos de piedade. Vivem iludidos; agitam-se, como todos os homens, em busca da sonhada felicidade. Julgam encontrá-la na satisfação dos desejos, na expansão do egoísmo. Cobiçando sempre, vão alimentando ambições, que jamais chegam a ser satisfeitas.

Entretanto, a nossa alma, para ser feliz, não precisa construir celeiros de proporções desmesuradas como fez o rico da parábola; não precisa mesmo de um céu imenso, recamado (i) de sóis refulgentes, basta-lhe uma nesga de azul, onde "brilhe a estrela do amor".

/…

" Aos que comigo crêem e sentem as revelações do Céu, comprazendo-se na sua doce e encantadora magia, dedico esta obra. 
                                                                                   Pedro de Camargo “Vinícius”


Pedro de Camargo “Vinícius” (i)Em torno do Mestre, Primeira Parte / Seixos e Gravetos; Renúncia / Avareza, 5º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: Jesus em casa de Marta e Maria, óleo sobre tela (1654-1655), de Johannes Vermeer)