Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

domingo, 2 de dezembro de 2018

~ em torno do mestre


Renúncia ~

Não pode haver progresso integral sem renúncia. A obra do aperfeiçoamento do nosso Espírito é urdida de renúncias sob aspectos multiformes. Não há carácter consolidado que se não funde numa série de renúncias. Quem não sabe renunciar, jamais firmará as bases seguras da sua evolução. Renunciar é vencer, vencer é viver. A redenção é impraticável fora da órbita das renúncias: só nesse ambiente o Espírito conquista a liberdade e firma o seu império.

O homem é um animal que se espiritualiza. Veio do império dos instintos e, caminha para o reino da razão. O desenvolvimento harmónico dos atributos do Espírito — inteligência, razão, vontade e sentimentos — determina naturalmente o recuo do instinto. À medida que o Espírito assegura o seu poder, a animalidade restringe-se. Semelhante transição, de um para o outro reino, é obra da renúncia.

O instinto representa o domínio da carne; a razão, o do Espírito. Há estágios na vida dos seres em que o instinto tem a primazia: é a época da irracionalidade. Outros há em que o despotismo do instinto constitui a fonte de todos os males: o ciclo racional. O animal tem no instinto o seu guia. Para o homem o guia deve ser a razão. Sempre que esta fraqueja, cedendo lugar àquele, o homem erra e sofre. Erra porque se deixa arrastar, tendo já o leme e a bússola para orientar-se, ao sabor das vagas que o desviam do roteiro normal da vida. Sofre, porque o erro é a causa cujo efeito é a dor.

O instinto não reúne os requisitos necessários para satisfazer as aspirações do Espírito, antes constitui-lhe embaraço. Daí a necessidade de restringi-lo, impondo-lhe limites cada vez mais restritos às suas exigências. E isso só se consegue pela renúncia.

A grande maioria dos homens vegeta entre duas tiranias: uma a que actua no seu interior e, se denomina instinto; a outra que age de fora para dentro e, se chama sentidos. Subjugado pelo instinto e fascinado pelos sentidos, o homem torna-se um ser híbrido, incoerente e extravagante, capaz de todas as aberrações. Só a renúncia, jugulando a cobiça e refreando os instintos, poderá quebrar os grilhões desse duplo e aviltante cativeiro.

É o que S. Paulo aconselha na sua epístola aos Romanos, sob os seguintes dizeres: "Rogo-vos, irmãos, pela compaixão de Deus, que apresenteis os vossos corpos como um sacrifício vivo, santo e agradável a Deus, pois em tal importa o culto racional e; não vos conformeis com este mundo, mas transformai-vos pela renovação da vossa mente, para que proveis qual é a boa, agradável e perfeita vontade de Deus."

Para que o nosso corpo seja um sacrifício vivo em oferenda perpétua é, indispensável manter aceso o fogo da renúncia na imolação do instinto e da cobiça.

"Se alguém vem a mim e não renuncia a seu pai, mãe, mulher, filhos, irmãos e irmãs e, ainda à sua própria vida, não pode ser meu discípulo... Assim, pois, todo aquele que dentre vós não renuncia a tudo o que possui, não pode ser meu discípulo. Quem tem ouvidos de ouvir, que oiça."

Sempre que o incomparável Mestre concluía a sua pregação com as palavras — quem tem ouvidos de ouvir, que oiça — queria, com isso, dizer: quem for capaz de penetre o sentido destas palavras, porque o meu ensino não está na letra que mata, mas no espírito que vivifica. O trecho, acima inscrito, encontra-se nessas condições.

Jesus tinha o lar e a família na mais alta consideração. Segundo a sua maneira de ver, no lar e na família se consubstanciavam os maiores bens, aqueles a que o homem se encontrava mais Intimamente ligado. Daí citar precisamente o lar e a família, a par da própria vida, como os objectos que fazem jus aos nossos maiores afectos e ao nosso mais profundo e radicado apego.

Todavia, esses tesouros devem ser renunciados quando constituam embaraço à obra da redenção dos nossos Espíritos…

Mas, afinal, de que consta essa renúncia e como deve ser executada? Aqui cumpre lembrar a observação do Senhor: Quem tiver ouvidos de ouvir, que oiça.

A renúncia, tal como Jesus a estabelece, não significa, no que respeita à família, o seu abandono nem o arrefecimento do afecto que une os corações destinados a viverem sob o mesmo tecto e; no que concerne aos bens temporais, a renúncia não importa tão pouco em abrirmos mão de tudo o que possuímos, transformando-nos em párias ou mendigos.

Renúncia, segundo o critério evangélico, quer dizer capacidade moral, força de carácter capaz de sobrepor, em qualquer emergência ou conjuntura, a causa da justiça e da verdade acima de todos os interesses, de todas as volições e prazeres e, mesmo acima das nossas mais legítimas e caras afeições. Tal é a condição — sine qua non — estabelecida por Jesus para nos tornarmos seus discípulos.

Esta importantíssima questão tem sido mal interpretada pela teologia de certos credos cristãos. Do estrabismo teológico nasceram os conventos. Os reclusos das celas supõem, com isso, apressar o dia da redenção de suas almas. Enganam-se redondamente, pois, antes, retardam a aurora desse dia glorioso. Não é fugindo da sociedade e isolando-se egoisticamente entre as paredes de um cubículo que aceleraremos a evolução dos nossos Espíritos. Os trânsfugas perdem a oportunidade de avançar, na senda do progresso, porque evitam as lutas. É enfrentando os nossos inimigos, dentre os quais a morte é o derradeiro a vencer, no conceito de Paulo, que caminharemos com passo seguro na conquista do porvir.

Os tabernáculos (i) eternos não se abrem, com gazua. E o que pretendem os habitantes do claustro senão abri-los com chaves falsas? Os instintos amortecidos pelos cilícios e pelos jejuns contínuos não foram vencidos, não foram subjugados; encontram-se apenas impossibilitados de acção mediante processos anormais, e, portanto, condenáveis. A virtude de convento é como a planta de estufa: só medra a coberto das intempéries.

Não é tal a renúncia ensinada por Jesus, que deu os mais inequívocos exemplos de sociabilidade convivendo com os pecadores, tomando parte nos seus jantares, bodas e festins, a despeito das censuras acrimoniosas do farisaísmo que o cobria de zombaria por isso.

A filha que deixa os seus pais, que abandona o lar e a sociedade para sepultar-se num convento, comete um acto de fanatismo. Ela não renunciou ao pai, à mãe, aos irmãos, às irmãs e a tudo quanto tem, no sentido em que o divino Mestre preceitua; ela deixou de cumprir o seu dever junto da família e da sociedade, fugindo às lutas e às vicissitudes da vida humana e social. O arrefecimento e o repúdio às afeições de família, consequentes ao enclausuramento, são antes delito que virtude. Já dizia o apóstolo João, sábia e judiciosamente: Se não amas a teu irmão que vês, como amarás a Deus que não vês?

O que Jesus pede não é o desafecto aos membros de nossa família; não é o repúdio do lar, essa mansão sagrada onde se forjam as virtudes fundamentais do Cristianismo; não é a abstinência de tudo o que nos alegra, conforta e refrigera a alma; não é a privação do conforto, do bem-estar e da independência material ou financeira; não é o estrangulamento de todas as aspirações do melhor por que o nosso "ser" naturalmente almeja, porque isso seria uma monstruosidade, seria a nossa morte moral como efeito do embrutecimento, da abulia a que condenássemos o nosso espírito.

O que Jesus requer dos seus discípulos é, como já ficou dito acima, a coragem moral, a disposição de ânimo capaz de resistir a todas as seduções do mundo, colocando acima de tudo, inclusive dos nossos mais santos afectos e da nossa própria vida, o ideal de justiça e de amor que a sua doutrina encerra e do qual ele mesmo é o símbolo e o exemplo.


Avareza ~

Guardai-vos e acautelai-vos de toda a avareza, porque a vida de um homem não consiste na abundância dos bens que possui — disse o maior expoente da Verdade que os homens conheceram. Em seguida, para corroborar aquela assertiva, propôs a seguinte parábola aos seus discípulos:

As terras de um homem rico produziram muitos frutos. E ele discorria consigo: Que farei, pois não tenho onde recolher os meus frutos? E concluiu: Farei isto: derribarei os meus celeiros e os reconstruirei maiores e, aí guardarei toda a colheita e os meus bens; e, em seguida, direi: Minha alma, tens largos bens em depósito para longos e dilatados anos: descansa, come, bebe e regala-te. Mas, Deus disse-lhe: Néscio (i), esta noite te exigirão a tua alma; e as fazendas que ajuntaste, para quem serão?

Quanta sabedoria em tão singela parábula!

Quão transcendente lição nesta frase tão simples: A vida do homem não consiste nos bens que possui!

Se a longevidade dependesse dos cabedais, seria justificável que o homem se empenhasse para os obter a todo o custo.

Se, de outra sorte, a felicidade tivesse uma relação directa com as riquezas, compreender-se-ia que o homem procurasse conquistá-las, envidando, para isso, os seus melhores esforços.

Mas, o facto indiscutível é que a vida e a felicidade do homem (felicidade, que outra coisa não é senão alegria de viver) independem dos bens que ele consegue obter e amontoar.

Ora, se as fazendas e os haveres não asseguram vida longa nem venturosa, como se explica a fascinação que exercem sobre os homens? De onde procede tanto apego às temporalidades do século?

Jesus responde: vem da avareza. E, não só aponta a origem de tal vesânia, como adverte: Guardai-vos e acautelai-vos de toda a avareza.

Sim, de toda a avareza, isto é, das várias formas que essa terrível paixão assume, dominando o coração do homem.

Alexandre Herculano, impressionado com os diversos aspectos do orgulho, exclamou: Orgulho humano! que serás tu mais: estúpido, feroz ou ridículo?

Pois a avareza comporta aqueles três qualificativos: pode ser estúpida, ridícula ou feroz.

estúpida é aquela modalidade sórdida e mesquinha que faz o homem privar-se do conforto, do necessário e até do indispensável, perecendo à míngua para conservar intacta a pecúnia avaramente amealhada.

A avareza ridícula é a do homem que tem no dinheiro o seu ídolo, a sua preocupação constante e absorvente, empregando-o, embora, no luxo, na ostentação, ou simplesmente na satisfação dos seus apetites e caprichos.

feroz (de todas a mais perniciosa) é a avareza dos açambarcadores, dos organizadores de monopólios e trustes, cuja ambição e cupidez desmedidas não se contentam com menos que possuir o mundo inteiro, ainda que para tanto seja mister reduzir à miséria toda a Humanidade. Outrora, essa avareza gerou os conquistadores e os latifúndios. Actualmente, ostenta-se nas grandes organizações comerciais e industriais, nas companhias, nos sindicatos e empresas poderosas cujos tentáculos se alongam em todas as direcções.

Esta classe de avareza é geralmente peculiar a homens inteligentes, ricos, astutos e de alta cotação social. Das três, é, como ficou dito, a mais perniciosa e a que mais danos tem acarretado à sociedade de todos os tempos. Um só avaro dessa categoria, ou uma comandita (i) de meia dúzia deles, pode reduzir à fome uma cidade, um povo inteiro.

É a responsável pela carestia e pelas crises económicas que convulsionam o mundo, dando origem às lutas fratricidas que, por vezes, estendem o negro véu da orfandade e da viuvez sobre milhares de crianças e de mulheres indefesas. É também obra sua, nos tempos que correm, os milhões de desocupados (desempregados) nos países industriais e, as pretensas superproduções nos países agrícolas.

O trabalho suspenso; o legítimo comércio (que significa a livre troca de produtos entre as nações), quase de todo paralisado graças às odiosas barreiras alfandegárias, são outros tantos crimes de lesa humanidade praticados pela avareza da terceira espécie, isto é, a feroz.

As outras duas formas são mais estados mórbidos ou doentios da alma; a feroz é que caracteriza a verdadeira avareza. Aquelas prejudicam somente os indivíduos que as alimentam; ao passo que os maléficos efeitos desta atingem um raio de acção considerável, incalculável mesmo.

Todavia, os escravizados por esta cruel paixão são dignos de piedade. Vivem iludidos; agitam-se, como todos os homens, em busca da sonhada felicidade. Julgam encontrá-la na satisfação dos desejos, na expansão do egoísmo. Cobiçando sempre, vão alimentando ambições, que jamais chegam a ser satisfeitas.

Entretanto, a nossa alma, para ser feliz, não precisa construir celeiros de proporções desmesuradas como fez o rico da parábola; não precisa mesmo de um céu imenso, recamado (i) de sóis refulgentes, basta-lhe uma nesga de azul, onde "brilhe a estrela do amor".

/…

" Aos que comigo crêem e sentem as revelações do Céu, comprazendo-se na sua doce e encantadora magia, dedico esta obra. 
                                                                                   Pedro de Camargo “Vinícius”


Pedro de Camargo “Vinícius” (i)Em torno do Mestre, Primeira Parte / Seixos e Gravetos; Renúncia / Avareza, 5º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: Jesus em casa de Marta e Maria, óleo sobre tela (1654-1655), de Johannes Vermeer)

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