Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

sábado, 22 de dezembro de 2018

agonia das religiões ~


Do Princípio inteligente

Tratei até agora da relação directa do pensamento de Deus com a matéria. Essa relação é necessária, da mesma maneira que é necessária a relação directa do pintor com o quadro que ele pinta, e portanto do trabalho que ele realiza no quadro, orientado pelo seu pensamento. Na verdade, o seu pensamento se projecta no quadro e ali se materializa, passa do plano do inteligível para o plano do sensível. Ao completar a sua obra, cessa a relação directa ou activa, mas permanece a relação passiva ou indirecta. Assim, a relação directa caracteriza o acto de pintar, ou de criar. Pode alegar-se a existência de intermediários: as mãos, a paleta e o pincel, as tintas. Mas convêm lembrar que todos esses instrumentos fazem parte da obra em execução, sobre a qual o pensamento do pintor actua directamente.

Na acção de Deus sobre a matéria o processo é o mesmo. O pensamento divino aglutina a matéria, dando-lhe estrutura, através da qual temos a passagem do pensamento do plano do inteligível para o plano do sensível. Uso a divisão de Platão neste sentido: o inteligível é o intelecto divino e o sensível é o plano do sensório, das sensações humanas. Dessa maneira, Deus materializa o seu pensamento para atingir a sensibilidade do campo material em que o homem vai ser criado. No fiat ou acto inicial da criação temos a acção directa e activa do pensamento divino a estruturar a matéria. Uma vez formada essa estrutura, surge um elemento novo que é designado pela expressão princípio inteligente. O pensamento divino ligado à matéria adquire autonomia, sem com isso se desligar da fonte que o alimenta. Transforma-se na mónadaelemento básico e estrutural da matéria, de que são compostas as próprias partículas atómicas. A palavra mónada procede de Pitágoras, foi empregada por Platão como ideia e desenvolvida modernamente por LeibnizRenouvier como uma substância inteiramente simples (pura indivisível e refractária a qualquer influência exterior. A mónada é dotada de uma força interior que a transforma, de potencialidades que se desenvolvem continuamente e de capacidade de percepção e vontade. As mónadas são diferentes entre si no tocante a essas potências internas.

Estas correlações filosóficas são necessárias para se entender o que é o principio inteligente da concepção espírita. Trata-se, como se vê, do princípio básico de toda a realidade, responsável pela formação dos reinos da Natureza, pelo desenvolvimento da vida e de todas as faculdades vitais e anímicas dos seres. O admirável poder de intuição dos gregos captou não só a existência dos átomos, como também das mónadas, que a Ciência actual já está a conseguir atingir nas profundezas da misteriosa estrutura da matéria, na pesquisa sobre as partículas atómicas. A teoria espírita do princípio inteligente é explicada de maneira sintética no “O Livro dos Espíritos”. No item 23 desta obra lemos o seguinte: O que é o espírito? É o princípio inteligente do Universo. Seguem-se outras explicações nas quais a inteligência se define como um atributo essencial do espírito. Geralmente confundimos a substância (espírito) com a inteligência, que é o seu atributo.

Colocado assim o problema, parece-me explicada a razão pela qual os Espíritos Superiores não esmiuçaram esta questão fundamental. Na própria tradição filosófica, desde bem antes da era cristã, já dispúnhamos dos elementos necessários de intuições capazes de nos fornecerem os dados para uma equação futura. Faltava-nos, porém, o desenvolvimento, que só mais tarde poderia ocorrer, das pesquisas cientificas em profundidade. Actualmente já podemos compreender com mais clareza a dinâmica do processo criador. A teoria filosófica da mónadaque antes poderia ser considerada como simples hipótese inverificável, adquire hoje a condição de uma teoria científica ao alcance de comprovação pela pesquisa. Teorias como a do físico inglês Paul Dirac, por exemplo, segundo a qual o Universo está mergulhado num oceano de electrões livres, ou a dos físicos soviéticos, de que esse oceano parece ser de uma luz violácea proveniente dos primórdios da criação, mostram-nos as possibilidades novas que as pesquisas espaciais estão a abrir neste campo. O mesmo se pode dizer da teoria dos campos de força que preenchem todo o espaço sideral.

É evidente que, diante destas novas posições conceptuais, toda a nossa cultura entra em crise, prenunciando o advento de um novo mundo. A inteligência humana se abre para dimensões mais amplas e profundas da realidade universal, exigindo a reformulação de conceitos e estruturas culturais envelhecidas. Já não podemos pensar em Deus como uma figura humana, nem do ponto de vista formal, nem do substancial. Só podemos considerá-lo como o Ser Absoluto, como a Inteligência Suprema, mas assim mesmo sem lhe atribuir nenhuma das limitações humanas. Os teólogos do Cristianismo Ateu, da Teologia Radical da Morte de Deus, sentem isso na própria pele, mas faltam-lhes os dados para uma equação mais positiva do problema. Divagam através de suposições ameaçadoras e caem irremediavelmente num torvelinho de contradições. Se tivessem a humildade de consultar a Filosofia Espírita, essa pedra rejeitada da parábola evangélica, encontrariam nela a pedra angular do novo edifício a construir.

O Espírito a que a Bíblia se refere em numerosos tópicos e que nos Evangelhos toma o nome de Espírito Santo é o Espírito de Deus na sua manifestação universal. A Criação tem dois aspectos, o material e o espiritual. O sopro de Deus é o espírito criado no fiat e o homem de barro, o Adão terreno, o ápice da criação nos mundos em desenvolvimento, como a Terra. O sopro de Deus nas ventas do homem de barro, para infundir-lhe o princípio da vida e da inteligência, é a ligação do espírito com a matéria na formação da mónada. No pensamento divino todo o quadro da criação estava presente desde o princípio. E tudo era perfeito. A perfeição do ideal constituía o modelo da realidade (o mundo da rés, das coisas) que devia projectar-se no Infinito. Por isso, as mónadas diferenciadas, com características específicas, seriam semeadas no espaço, para a germinação lenta, mas segura e contínua, dos conteúdos essenciais de cada uma delas. A mónada é a semente do ser, da criatura humana e divina que dela surgirá nas dimensões da temporalidade.

Não se pode conceber, na nossa relatividade humana, mais grandiosa e perfeita concepção do acto criador. Podemos perguntar porque Deus, que é o supremo poder, precisa do tempo para realizar essa obra gigantesca. Mas o Espiritismo ensina que a nossa relatividade decorre de necessidades nossas e não de Deus. O que para nós são séculos e milénios, para Deus pode ser apenas aquele instante que, para Kierkegaard, era o encontro do tempo com a eternidade. Um instante de profundidade e extensão imensas, que resume para o homem todas as suas existências nas duas dimensões do Universo que hoje nos são acessíveis: a espiritual e a material.

É, sem dúvida, espantoso pensar, com Gustave Geley, que tudo quanto consideramos inconsciente, desde o grão de areia aos mundos que giram em torno dos sóis, possui a potencialidade da consciência em desenvolvimento no seu interior. Mas quando compreendemos que a mónadasíntese de espírito e matéria, é uma unidade infinitesimal, sobre a qual se apoia toda a realidade – o que corresponde à concepção atómica da Ciência nos nossos dias –, a nossa mente começa a abrir-se para um entendimento superior. Se o poder do átomo nos espanta, a potencialidade da mónada nos aturdiria. E ambos estes poderes nada mais são do que fragmentos do poder de Deus. Quando pensamos nisso, a teoria do princípio inteligente começa a revelar-nos a grandeza da doutrina espírita.

E no entanto os seus fundamentos estão nos princípios evangélicos, sobre os quais milhares de teólogos, filósofos, místicos e pregadores escreveram e falaram sem cessar, numa catadupa de páginas e palavrórios ao longo de dois mil anos? Essa opacidade da inteligência humana, esse embotamento da capacidade de compreensão poderia fazer-nos descrer das potencialidades do principio inteligente se não soubéssemos que o instinto gregário do homem o leva à imitação e à repetição dos papagaios. Quando Kardec se atreveu, utilizando-se de todos os recursos de sensatez e equilíbrio, apoiando-se na cultura do Século XIX – para não provocar reacções precipitadas que lhe prejudicariam a obra – ao publicar “O Livro dos Espíritos”, todos os anátemas da Religião, da Ciência e da Filosofia caíram sobre ele como as bombas norte-americanas sobre o Vietname. Somente agora se abre uma perspectiva favorável, em todos aqueles campos reaccionários, para uma possível compreensão do seu gigantesco trabalho de reposição das coisas nos seus lugares. Mas então aparecem os que pretendem reformar, actualizar e introduzir técnicas nas suas obras ao invés de estudá-las e aprofundar-lhes o sentido. Isso nos prova quanto necessitamos do tempo para que a mónada oculta se abra e se actualize em nós.

Todas as coisas têm a sua origem no mundo das ideias, como Platão, levado pelas mãos de Sócrates, percebeu claramente. Nos planos superiores do Universo não se usa a linguagem articulada das hipóstases inferiores. Fala-se do pensamento, na linguagem telepática pura. Sócrates descobriu essa linguagem ao encontrar o conceito no fundo de cada palavra. Podemos assim conceber que a linguagem de Deus seja puramente mental. Na mente divina a ideia do Universo delineia-se perfeita, mas a projecção dessa ideia no plano inferior da matéria tem de vencer os obstáculos e as resistências da materialidade. Foi o que Hegel viu e descreveu com precisão na sua teoria estética, mostrando a luta do belo para se sobrepor, no tempo, às imperfeições materiais.

O mesmo se dá com o princípio inteligente, que, para vencer a opacidade da matéria, para lhe dar inteligência, segundo Kardec, tem de lutar na temporalidade. Mas, podemos perguntar, porque Deus não fez em condições transparentes a matéria, ao invés de opaca? O Espiritismo explica que a matéria se torna transparente na proporção em que visualizamos os planos superiores, de tal maneira que a confundimos com o espírito. Isso nos mostra que a técnica dos contrastes desaparece naquilo que Buda chamou de Nirvana e que a nossa apoucada inteligência considerou como o nada. Kant teve razão ao localizar os limites da razão humana no momento em que cessam as contradições dialécticas. Mas nesse momento, nesta linha divisória entre o mundo real e o mundo ideal, começa a razão angélica. Os homens transformados em anjos – não com asas nem com estrelas na testa, mas com a mente e o coração purificados – passam a ver e a compreender a realidade pela intuição directa e global. Nesse momento descobrem a perfeição do Universo, aquela perfeição que, desde o princípio, estava na concepção ideal de Deus, mas que nas hipóstases materiais se tornava irreconhecível como a Vénus de Milo coberta de terra e lama quando a arrancaram do subsolo.

O próprio tempo desaparece neste momento. Já não há necessidade do véu de Ísis da temporalidade para encobrir a verdade das coisas e dos seres. Mergulhamos no eterno, que não é estático e inerte como o supomos, mas tem a dinâmica e a lucidez de que o pensamento nos pode dar um vago exemplo. Kardec verificou, nas suas pesquisas espíritas, que a esquematização do sensório humano, com a divisão das faculdades sensoriais em órgãos específicos e rigidamente localizados no corpo, não existe para os espíritos libertos das impressões materiais. Os espíritos percebem, vêem e sentem de maneira global, por todo o seu ser em sintonia com toda a realidade. As deslocalizações e transferências das sensações nas práticas hipnóticas comprovam, no nosso plano, a veracidade desta descoberta efectuada nas suas pesquisas mediúnicas. O seu ensaio sobre a sensação nos espíritos, que se encontra no livro básico da doutrina, é uma peça de esclarecimento lúcido e didáctico deste problema.

As pesquisas actuais da Parapsicologia, que até agora só puderam refazer o caminho percorrido por Kardec, representam uma confirmação da validade das suas afirmações de mais de um século. Apesar disso, e no interesse inferior da defesa de posições sectárias, toda uma multidão de falsos cientistas se empenha na tarefa ingrata de desmentir o Espiritismo através de capciosos argumentos temperados na panela da mentira ou nos caldeirões da trapaça diabólica. Mas nada disso impedirá que a verdade triunfe, pois a verdade é, existe por si mesma e não pede licença a nenhum censor religioso ou ateu para se revelar como ela é, aos olhos de todos os que se fizerem dignos dela.

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José Herculano Pires, Agonia das Religiões / Capítulo 7 – Do Princípio inteligente, 8º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: Paraíso Perdido, estudo do Anjo, lápis e giz de Alexandre Cabanel).

domingo, 2 de dezembro de 2018

~ em torno do mestre


Renúncia ~

Não pode haver progresso integral sem renúncia. A obra do aperfeiçoamento do nosso Espírito é urdida de renúncias sob aspectos multiformes. Não há carácter consolidado que se não funde numa série de renúncias. Quem não sabe renunciar, jamais firmará as bases seguras da sua evolução. Renunciar é vencer, vencer é viver. A redenção é impraticável fora da órbita das renúncias: só nesse ambiente o Espírito conquista a liberdade e firma o seu império.

O homem é um animal que se espiritualiza. Veio do império dos instintos e, caminha para o reino da razão. O desenvolvimento harmónico dos atributos do Espírito — inteligência, razão, vontade e sentimentos — determina naturalmente o recuo do instinto. À medida que o Espírito assegura o seu poder, a animalidade restringe-se. Semelhante transição, de um para o outro reino, é obra da renúncia.

O instinto representa o domínio da carne; a razão, o do Espírito. Há estágios na vida dos seres em que o instinto tem a primazia: é a época da irracionalidade. Outros há em que o despotismo do instinto constitui a fonte de todos os males: o ciclo racional. O animal tem no instinto o seu guia. Para o homem o guia deve ser a razão. Sempre que esta fraqueja, cedendo lugar àquele, o homem erra e sofre. Erra porque se deixa arrastar, tendo já o leme e a bússola para orientar-se, ao sabor das vagas que o desviam do roteiro normal da vida. Sofre, porque o erro é a causa cujo efeito é a dor.

O instinto não reúne os requisitos necessários para satisfazer as aspirações do Espírito, antes constitui-lhe embaraço. Daí a necessidade de restringi-lo, impondo-lhe limites cada vez mais restritos às suas exigências. E isso só se consegue pela renúncia.

A grande maioria dos homens vegeta entre duas tiranias: uma a que actua no seu interior e, se denomina instinto; a outra que age de fora para dentro e, se chama sentidos. Subjugado pelo instinto e fascinado pelos sentidos, o homem torna-se um ser híbrido, incoerente e extravagante, capaz de todas as aberrações. Só a renúncia, jugulando a cobiça e refreando os instintos, poderá quebrar os grilhões desse duplo e aviltante cativeiro.

É o que S. Paulo aconselha na sua epístola aos Romanos, sob os seguintes dizeres: "Rogo-vos, irmãos, pela compaixão de Deus, que apresenteis os vossos corpos como um sacrifício vivo, santo e agradável a Deus, pois em tal importa o culto racional e; não vos conformeis com este mundo, mas transformai-vos pela renovação da vossa mente, para que proveis qual é a boa, agradável e perfeita vontade de Deus."

Para que o nosso corpo seja um sacrifício vivo em oferenda perpétua é, indispensável manter aceso o fogo da renúncia na imolação do instinto e da cobiça.

"Se alguém vem a mim e não renuncia a seu pai, mãe, mulher, filhos, irmãos e irmãs e, ainda à sua própria vida, não pode ser meu discípulo... Assim, pois, todo aquele que dentre vós não renuncia a tudo o que possui, não pode ser meu discípulo. Quem tem ouvidos de ouvir, que oiça."

Sempre que o incomparável Mestre concluía a sua pregação com as palavras — quem tem ouvidos de ouvir, que oiça — queria, com isso, dizer: quem for capaz de penetre o sentido destas palavras, porque o meu ensino não está na letra que mata, mas no espírito que vivifica. O trecho, acima inscrito, encontra-se nessas condições.

Jesus tinha o lar e a família na mais alta consideração. Segundo a sua maneira de ver, no lar e na família se consubstanciavam os maiores bens, aqueles a que o homem se encontrava mais Intimamente ligado. Daí citar precisamente o lar e a família, a par da própria vida, como os objectos que fazem jus aos nossos maiores afectos e ao nosso mais profundo e radicado apego.

Todavia, esses tesouros devem ser renunciados quando constituam embaraço à obra da redenção dos nossos Espíritos…

Mas, afinal, de que consta essa renúncia e como deve ser executada? Aqui cumpre lembrar a observação do Senhor: Quem tiver ouvidos de ouvir, que oiça.

A renúncia, tal como Jesus a estabelece, não significa, no que respeita à família, o seu abandono nem o arrefecimento do afecto que une os corações destinados a viverem sob o mesmo tecto e; no que concerne aos bens temporais, a renúncia não importa tão pouco em abrirmos mão de tudo o que possuímos, transformando-nos em párias ou mendigos.

Renúncia, segundo o critério evangélico, quer dizer capacidade moral, força de carácter capaz de sobrepor, em qualquer emergência ou conjuntura, a causa da justiça e da verdade acima de todos os interesses, de todas as volições e prazeres e, mesmo acima das nossas mais legítimas e caras afeições. Tal é a condição — sine qua non — estabelecida por Jesus para nos tornarmos seus discípulos.

Esta importantíssima questão tem sido mal interpretada pela teologia de certos credos cristãos. Do estrabismo teológico nasceram os conventos. Os reclusos das celas supõem, com isso, apressar o dia da redenção de suas almas. Enganam-se redondamente, pois, antes, retardam a aurora desse dia glorioso. Não é fugindo da sociedade e isolando-se egoisticamente entre as paredes de um cubículo que aceleraremos a evolução dos nossos Espíritos. Os trânsfugas perdem a oportunidade de avançar, na senda do progresso, porque evitam as lutas. É enfrentando os nossos inimigos, dentre os quais a morte é o derradeiro a vencer, no conceito de Paulo, que caminharemos com passo seguro na conquista do porvir.

Os tabernáculos (i) eternos não se abrem, com gazua. E o que pretendem os habitantes do claustro senão abri-los com chaves falsas? Os instintos amortecidos pelos cilícios e pelos jejuns contínuos não foram vencidos, não foram subjugados; encontram-se apenas impossibilitados de acção mediante processos anormais, e, portanto, condenáveis. A virtude de convento é como a planta de estufa: só medra a coberto das intempéries.

Não é tal a renúncia ensinada por Jesus, que deu os mais inequívocos exemplos de sociabilidade convivendo com os pecadores, tomando parte nos seus jantares, bodas e festins, a despeito das censuras acrimoniosas do farisaísmo que o cobria de zombaria por isso.

A filha que deixa os seus pais, que abandona o lar e a sociedade para sepultar-se num convento, comete um acto de fanatismo. Ela não renunciou ao pai, à mãe, aos irmãos, às irmãs e a tudo quanto tem, no sentido em que o divino Mestre preceitua; ela deixou de cumprir o seu dever junto da família e da sociedade, fugindo às lutas e às vicissitudes da vida humana e social. O arrefecimento e o repúdio às afeições de família, consequentes ao enclausuramento, são antes delito que virtude. Já dizia o apóstolo João, sábia e judiciosamente: Se não amas a teu irmão que vês, como amarás a Deus que não vês?

O que Jesus pede não é o desafecto aos membros de nossa família; não é o repúdio do lar, essa mansão sagrada onde se forjam as virtudes fundamentais do Cristianismo; não é a abstinência de tudo o que nos alegra, conforta e refrigera a alma; não é a privação do conforto, do bem-estar e da independência material ou financeira; não é o estrangulamento de todas as aspirações do melhor por que o nosso "ser" naturalmente almeja, porque isso seria uma monstruosidade, seria a nossa morte moral como efeito do embrutecimento, da abulia a que condenássemos o nosso espírito.

O que Jesus requer dos seus discípulos é, como já ficou dito acima, a coragem moral, a disposição de ânimo capaz de resistir a todas as seduções do mundo, colocando acima de tudo, inclusive dos nossos mais santos afectos e da nossa própria vida, o ideal de justiça e de amor que a sua doutrina encerra e do qual ele mesmo é o símbolo e o exemplo.


Avareza ~

Guardai-vos e acautelai-vos de toda a avareza, porque a vida de um homem não consiste na abundância dos bens que possui — disse o maior expoente da Verdade que os homens conheceram. Em seguida, para corroborar aquela assertiva, propôs a seguinte parábola aos seus discípulos:

As terras de um homem rico produziram muitos frutos. E ele discorria consigo: Que farei, pois não tenho onde recolher os meus frutos? E concluiu: Farei isto: derribarei os meus celeiros e os reconstruirei maiores e, aí guardarei toda a colheita e os meus bens; e, em seguida, direi: Minha alma, tens largos bens em depósito para longos e dilatados anos: descansa, come, bebe e regala-te. Mas, Deus disse-lhe: Néscio (i), esta noite te exigirão a tua alma; e as fazendas que ajuntaste, para quem serão?

Quanta sabedoria em tão singela parábula!

Quão transcendente lição nesta frase tão simples: A vida do homem não consiste nos bens que possui!

Se a longevidade dependesse dos cabedais, seria justificável que o homem se empenhasse para os obter a todo o custo.

Se, de outra sorte, a felicidade tivesse uma relação directa com as riquezas, compreender-se-ia que o homem procurasse conquistá-las, envidando, para isso, os seus melhores esforços.

Mas, o facto indiscutível é que a vida e a felicidade do homem (felicidade, que outra coisa não é senão alegria de viver) independem dos bens que ele consegue obter e amontoar.

Ora, se as fazendas e os haveres não asseguram vida longa nem venturosa, como se explica a fascinação que exercem sobre os homens? De onde procede tanto apego às temporalidades do século?

Jesus responde: vem da avareza. E, não só aponta a origem de tal vesânia, como adverte: Guardai-vos e acautelai-vos de toda a avareza.

Sim, de toda a avareza, isto é, das várias formas que essa terrível paixão assume, dominando o coração do homem.

Alexandre Herculano, impressionado com os diversos aspectos do orgulho, exclamou: Orgulho humano! que serás tu mais: estúpido, feroz ou ridículo?

Pois a avareza comporta aqueles três qualificativos: pode ser estúpida, ridícula ou feroz.

estúpida é aquela modalidade sórdida e mesquinha que faz o homem privar-se do conforto, do necessário e até do indispensável, perecendo à míngua para conservar intacta a pecúnia avaramente amealhada.

A avareza ridícula é a do homem que tem no dinheiro o seu ídolo, a sua preocupação constante e absorvente, empregando-o, embora, no luxo, na ostentação, ou simplesmente na satisfação dos seus apetites e caprichos.

feroz (de todas a mais perniciosa) é a avareza dos açambarcadores, dos organizadores de monopólios e trustes, cuja ambição e cupidez desmedidas não se contentam com menos que possuir o mundo inteiro, ainda que para tanto seja mister reduzir à miséria toda a Humanidade. Outrora, essa avareza gerou os conquistadores e os latifúndios. Actualmente, ostenta-se nas grandes organizações comerciais e industriais, nas companhias, nos sindicatos e empresas poderosas cujos tentáculos se alongam em todas as direcções.

Esta classe de avareza é geralmente peculiar a homens inteligentes, ricos, astutos e de alta cotação social. Das três, é, como ficou dito, a mais perniciosa e a que mais danos tem acarretado à sociedade de todos os tempos. Um só avaro dessa categoria, ou uma comandita (i) de meia dúzia deles, pode reduzir à fome uma cidade, um povo inteiro.

É a responsável pela carestia e pelas crises económicas que convulsionam o mundo, dando origem às lutas fratricidas que, por vezes, estendem o negro véu da orfandade e da viuvez sobre milhares de crianças e de mulheres indefesas. É também obra sua, nos tempos que correm, os milhões de desocupados (desempregados) nos países industriais e, as pretensas superproduções nos países agrícolas.

O trabalho suspenso; o legítimo comércio (que significa a livre troca de produtos entre as nações), quase de todo paralisado graças às odiosas barreiras alfandegárias, são outros tantos crimes de lesa humanidade praticados pela avareza da terceira espécie, isto é, a feroz.

As outras duas formas são mais estados mórbidos ou doentios da alma; a feroz é que caracteriza a verdadeira avareza. Aquelas prejudicam somente os indivíduos que as alimentam; ao passo que os maléficos efeitos desta atingem um raio de acção considerável, incalculável mesmo.

Todavia, os escravizados por esta cruel paixão são dignos de piedade. Vivem iludidos; agitam-se, como todos os homens, em busca da sonhada felicidade. Julgam encontrá-la na satisfação dos desejos, na expansão do egoísmo. Cobiçando sempre, vão alimentando ambições, que jamais chegam a ser satisfeitas.

Entretanto, a nossa alma, para ser feliz, não precisa construir celeiros de proporções desmesuradas como fez o rico da parábola; não precisa mesmo de um céu imenso, recamado (i) de sóis refulgentes, basta-lhe uma nesga de azul, onde "brilhe a estrela do amor".

/…

" Aos que comigo crêem e sentem as revelações do Céu, comprazendo-se na sua doce e encantadora magia, dedico esta obra. 
                                                                                   Pedro de Camargo “Vinícius”


Pedro de Camargo “Vinícius” (i)Em torno do Mestre, Primeira Parte / Seixos e Gravetos; Renúncia / Avareza, 5º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: Jesus em casa de Marta e Maria, óleo sobre tela (1654-1655), de Johannes Vermeer)

sexta-feira, 16 de novembro de 2018

Hippolyte Léon Denisard Rivail

Introdução

~~ Revista Espírita ~ primeiro número ~ Jornal de Estudos Psicológicos ~ Paris ~ Janeiro de 1858 ~

A rapidez com que se propagaram, em todos os lugares do mundo, os estranhos fenómenos das manifestações espíritas é uma prova evidente do interesse que despertam. A princípio simples objecto de curiosidade, não tardaram a chamar a atenção de homens sérios que neles vislumbraram, desde o início, a influência inevitável que viriam a ter sobre o estado moral da sociedade. As novas ideias que surgem desses fenómenos popularizam-se cada dia mais, e nada lhes pode deter o progresso, pela simples razão de que estão ao alcance de todos, ou de quase todos, e nenhum poder humano lhes impedirá que se manifestem. Se os abafam aqui, reaparecem em cem outros pontos. Aqueles, pois, que neles vissem um inconveniente qualquer, seriam constrangidos, pela própria força dos factos, a sofrer-lhes as consequências, como costuma acontecer às indústrias novas que, na sua origem, ferem interesses particulares, logo absorvidos, pois não poderia ser de outro modo. O que já não se fez e disse contra o magnetismo! Entretanto, todos os raios lançados contra ele, todas as armas com que foi ferido, mesmo o ridículo, desfizeram-se perante a realidade e apenas serviram para colocá-lo ainda mais em evidência. É que o magnetismo é uma força natural e, perante as forças da Natureza, o homem é um pigmeu, semelhante aos cachorrinhos que ladram inutilmente contra tudo o que os possa amedrontar.

Dá-se com as manifestações espíritas a mesma coisa que se dá com o sonambulismo: se não se produzirem à luz do dia e publicamente, ninguém impedirá que ocorram na intimidade, pois cada família pode descobrir um médium entre os seus membros, das crianças aos velhos, assim como pode encontrar um sonâmbulo. Quem, pois, poderá impedir que a primeira pessoa que encontremos seja médium e ou sonâmbula? Certamente, os que o combatem não pensaram nisso. Insistimos: quando uma força está na Natureza, podemos detê-la por momentos, porém, jamais aniquilá-la! Apenas poderá ser desviado o seu curso. Ora, a força que se revela no fenómeno das manifestações, seja qual for a sua causa, está na Natureza, da mesma forma que o magnetismo, e não poderá ser exterminada, como a força eléctrica também o não será. O que importa é que seja observada e estudada em todas as suas fases, a fim de se deduzirem as leis que a regem. Se for um erro, uma ilusão, o tempo fará justiça; se, porém, for verdadeira, a verdade é como o vapor: quanto mais se o comprime, tanto maior será a sua força de expansão.

Causa admiração justificada que, enquanto na América, somente os Estados Unidos possuem dezassete jornais consagrados a esse assunto (estamos em 1858), sem contar com um sem-número de escritos não periódicos, a França, o país da Europa onde tais ideias mais rapidamente se aclimataram, não possui nenhum (*)Não se pode contestar a utilidade de um órgão especial, que ponha o público a par do progresso desta nova Ciência e o previna contra os excessos da credulidade, bem como do cepticismo. É essa lacuna que nos propomos preencher com a publicação desta Revista, visando oferecer um meio de comunicação a todos quantos se interessam por estas questões, ligando, através de um laço comum, os que compreendem a Doutrina Espírita sob o seu verdadeiro ponto de vista moral: a prática do bem e a caridade evangélica para com todos.

Se não se tratasse senão de uma colecta de factos, a tarefa seria fácil; eles se multiplicam por toda a parte com tal rapidez que não faltaria matéria; mas os factos, por si mesmos, se tornam monótonos pela repetição e, sobretudo, pela similitude. O que é necessário ao homem racional é algo que lhe fale à inteligência. Poucos anos se passaram desde o surgimento dos primeiros fenómenos, e já estamos longe da época das mesas girantes e falantes, que foram as suas manifestações iniciais. Hoje, é uma ciência que revela todo um mundo de mistérios, tornando patentes as verdades eternas que apenas pelo nosso espírito eram pressentidas; é uma doutrina sublime, que mostra ao homem o caminho do dever, abrindo o mais vasto campo até então jamais apresentado à observação filosófica. A nossa obra seria, pois, incompleta e estéril se nos mantivéssemos nos estreitos limites de uma revista anedótica, cujo interesse rapidamente se esgotasse.

Talvez nos contestem a qualificação de ciência, que damos ao Espiritismo. Certamente não teria ele, em nenhum caso, as características de uma ciência exacta, e é precisamente aí que reside o erro dos que o pretendem julgar e experimentar como uma análise química ou um problema matemático; já é bastante que seja uma ciência filosófica. Toda a ciência deve basear-se em factos, mas os factos, por si sós, não constituem a ciência; ela nasce da coordenação e da dedução lógica dos factos: é o conjunto de leis que os regem. Chegou o Espiritismo ao estado de ciência? Se por isto se entende uma ciência acabada, seria sem dúvida prematuro responder afirmativamente; entretanto, as observações já são hoje bastante numerosas para nos permitirem deduzir, pelo menos, os princípios gerais, onde começa a ciência.

O exame raciocinado dos factos e das consequências que deles decorrem é, pois, um complemento sem o qual a nossa publicação seria de medíocre utilidade, não oferecendo senão um interesse muito secundário para quem quer que reflicta e queira inteirar-se daquilo que vê. Todavia, como o nosso fim é chegar à verdade, acolheremos todas as observações que nos forem dirigidas e tentaremos, tanto quanto no-lo permita o estado dos conhecimentos adquiridos, dirimir as dúvidas e esclarecer os pontos ainda obscuros. A Nossa Revista será, assim, uma tribuna livre, em que a discussão jamais se afastará das normas da mais estrita conveniência. Numa palavra: discutiremos, mas não disputaremos. As inconveniências de linguagem nunca foram boas razões aos olhos de pessoas sensatas; é a arma dos que não possuem algo melhor, voltando-se contra aqueles que dela se servem.

Embora os fenómenos de que nos ocupamos se tenham produzido, nos últimos tempos, de maneira mais geral, tudo prova que têm ocorrido desde as eras mais recuadas. Não há fenómenos naturais nas invenções que acompanham o progresso do espírito humano; desde que estejam na ordem das coisas, a sua causa é tão velha quanto o mundo e os seus efeitos devem ter-se produzido em todas as épocas. O que testemunhamos, hoje, portanto, não é uma descoberta moderna: é o despertar da Antiguidade, desembaraçada do envoltório místico que engendrou as superstições; da Antiguidade esclarecida pela civilização e pelo progresso nas coisas positivas.

A consequência capital que ressalta desses fenómenos é a comunicação que os homens podem estabelecer com os seres do mundo incorpóreo e, dentro de certos limites, o conhecimento que podem adquirir sobre o seu estado futuro. O facto das comunicações com o mundo invisível encontra-se, em termos inequívocos, nos livros bíblicos; mas, de um lado, para certos cépticos, a Bíblia não tem autoridade suficiente; do outro, para os crentes, são factos sobrenaturais, suscitados por um favor especial da Divindade. Não haveria aí, para toda a gente, uma prova da generalidade dessas manifestações, se não as encontrássemos em milhares de outras fontes diferentes. A existência dos Espíritos, e a sua intervenção no mundo corpóreo, está atestada e demonstrada já não como um facto excepcional, mas como um princípio geral, em Santo Agostinho, São Jerónimo, São João Crisóstomo, São Gregório Nazianzeno e tantos outros Pais da Igreja. Essa crença forma, além disso, a base de todos os sistemas religiosos. Admitiram-na os mais sábios filósofos da Antiguidade: Platão, Zoroastro, Confúcio, Apuleio, Pitágoras, Apolónio de Tiana e tantos outros. Nós a encontramos nos mistérios e nos oráculos, entre os gregos, os egípcios, os hindus, os caldeus, os romanos, os persas, os chineses. Vemo-la sobreviver a todas as vicissitudes dos povos, a todas as perseguições e a desafiar todas as revoluções físicas e morais da Humanidade. Mais tarde a encontramos entre os adivinhos e feiticeiros da Idade Média, nos Willis e nas Walkírias dos escandinavos, nos Elfos dos teutões, nos Leschios e nos Domeschnios Doughi dos eslavos, nos Ourisks e nos Brownies da Escócia, nos Poulpicans e nos Tensarpoulicts dos bretões, nos Cemis dos caraíbas, numa palavra, em toda a falange de ninfas, de génios bons e maus, nos silfos, gnomos, fadas e duendes, com os quais todas as nações povoaram o espaço. Encontramos a prática das evocações entre os povos da Sibéria, no Kamtchatka, na Islândia, entre os indígenas da América do Norte e os aborígenes do México e do Peru, na Polinésia e até entre os enfadonhos selvagens da Nova Holanda.

Sejam quais forem os absurdos que cercam essa crença e a desfiguram segundo os tempos e os lugares, não se pode discordar de que ela parte de um mesmo princípio, mais ou menos deturpado. Ora, uma doutrina não se torna universal, não sobrevive a milhares de gerações, não se implanta de um pólo ao outro, entre os povos mais diversificados, pertencentes a todos os graus da escala social, se não estiver fundada em algo de positivo. O que será esse algo? É o que nos demonstram as recentes manifestações. Procurar as relações que possam existir entre tais manifestações e todas essas crenças, é buscar a verdade. A história da Doutrina Espírita, de certo modo, é a história do espírito humano; teremos que estudá-la em todas as fontes, que elas nos fornecerão uma mina inesgotável de observações tão instrutivas quão interessantes, sobre factos geralmente pouco conhecidos. Essa parte nos dará oportunidade de explicar a origem de uma porção de lendas e de crenças populares, delas destacando o que toca a verdade, a alegoria e a superstição.

No que concerne às manifestações actuais, daremos explicação de todos os fenómenos patentes que testemunharmos ou que chegarem ao nosso conhecimento, quando nos parecerem merecer a atenção dos nossos leitores. De igual modo o faremos em relação aos efeitos espontâneos que por vezes se produzem entre pessoas alheias às práticas espíritas e que revelam, seja a acção de um poder oculto, seja a emancipação da alma; tais são as visões, as aparições, a dupla vista, os pressentimentos, os avisos íntimos, as vozes secretas, etc. À narração dos factos acrescentaremos a explicação, tal como ressalta do conjunto dos princípios. A esse respeito faremos notar que esses princípios decorrem do próprio ensinamento dado pelos Espíritos, fazendo sempre abstracção das nossas próprias ideias. Não será, pois, uma teoria pessoal que exporemos, mas a que nos tiver sido comunicada e da qual não seremos senão meros intérpretes.

Um grande espaço será igualmente reservado às comunicações escritas ou verbais dos Espíritos, sempre que tiverem um fim útil, assim como às evocações de personagens antigas ou modernas, conhecidas ou obscuras, sem negligenciar as evocações íntimas que, muitas vezes, não são menos instrutivas; numa palavra: abarcaremos todas as fases das manifestações materiais e inteligentes do mundo incorpóreo.

A Doutrina Espírita oferece-nos, enfim, a única solução possível e racional de uma multidão de fenómenos morais e antropológicos, dos quais somos testemunhas diariamente e para os quais se procuraria, inutilmente, a explicação em todas as doutrinas conhecidas. Nesta categoria classificaremos, por exemplo, a simultaneidade de pensamentos, a anomalia de certos caracteres, as simpatias e antipatias, os conhecimentos intuitivos, as aptidões, as propensões, os destinos que parecem marcados pela fatalidade e, num quadro mais geral, o carácter distintivo dos povos, o seu progresso ou a sua degenerescência, etc. À citação dos factos acrescentaremos a pesquisa das causas que os poderiam ter produzido. Da apreciação desses factos ressaltarão, naturalmente, ensinamentos úteis quanto à linha de conduta mais conforme à sã moral. Nas suas instruções, os Espíritos Superiores têm sempre por objectivo despertar nos homens o amor do bem, através dos preceitos evangélicos; por isso mesmo eles nos traçam o pensamento que deve presidir à redacção dessa colectânea.

O nosso quadro, como se vê, compreende tudo quanto se liga ao conhecimento da parte metafísica do homem; estudá-la-emos no seu estado presente e no futuro, porquanto estudar a natureza dos Espíritos é estudar o homem, tendo em vista que ele deverá fazer parte, um dia, do mundo dos Espíritos. Eis por que acrescentamos, ao nosso título principal, o de jornal de estudos psicológicos, a fim de fazer compreender toda a sua importância.

Nota: Por mais abundantes que sejam as nossas observações pessoais e as fontes onde as recolhemos, não dissimulamos as dificuldades da tarefa, nem a nossa insuficiência. Para suplementá-la, contamos com o concurso benevolente de todos quantos se interessam por essas questões; seremos, pois, bastante reconhecidos pelas comunicações que houverem por bem transmitir-nos acerca dos diversos assuntos de nossos estudos; a esse respeito chamamos a atenção para os seguintes pontos, sobre os quais poderão fornecer documentos:

1. Manifestações materiais ou inteligentes obtidas nas reuniões às quais assistirem;

2
. Factos de lucidez sonambúlica e de êxtase;

3.
 Factos de segunda vista, previsões, pressentimentos, etc;

4.
 Factos relativos ao poder oculto, atribuídos com ou sem razão a certos indivíduos;

5.
 Lendas e crenças populares;

6.
 Factos de visões e aparições;

7.
 Fenómenos psicológicos particulares, que por vezes ocorrem no momento da morte;

8.
 Problemas morais e psicológicos a resolver;

9.
 Factos morais, actos notáveis de devotamento e abnegação, dos quais possa ser útil propagar o exemplo;

10.
 Indicação de obras antigas ou modernas, francesas ou estrangeiras, onde se encontrem factos relativos à manifestação de inteligências ocultas, com a designação e, se possível, a citação das passagens. Do mesmo modo, no que diz respeito à opinião emitida sobre a existência dos Espíritos e as suas relações com os homens, por autores antigos ou modernos, cujo nome e saber lhes possam dar autoridade.

Não daremos a conhecer o nome das pessoas que nos enviarem as comunicações, a não ser que, para isso, sejamos formalmente autorizados.

/…
(*) Até agora só existe na Europa um jornal consagrado à Doutrina Espírita – o Journal de l´âme, publicado em Genebra pelo Dr. Boessinger. Na América, o único jornal em francês é o Spiritualiste de la Nouvelle Orléans, publicado pelo Sr. Barthès.


Allan Kardec (i), aliás, Hippolyte Léon Denisard Rivail, Introdução, Revista Espírita (primeiro número) Jornal de Estudos Psicológicos, Paris, Janeiro de 1858, 4º fragmento da Revista objecto do presente titulo desta publicação.
(imagem de contextualização: Dança rebelde, 1965 – Óleo sobre tela, de Noêmia Guerra)

terça-feira, 6 de novembro de 2018

O Mundo Invisível e a Guerra ~


XVI
O Espiritismo e a Ciência ~

(Agosto de 1918)

  Allan Kardec, nas suas Obras Póstumas, garantiu que o futuro pertencia ao Espiritismo. Depois de meio século de provações e de trabalho, esta afirmativa, verifica-se hoje e podemos repeti-la com a certeza de que tais palavras de esperança e de fé profunda nunca serão desmentidas. Afirmaremos nós, por nosso turno: o futuro pertence ao Espiritismo, saibamos prepará-lo...

  Quais são os progressos obtidos pelo Espiritismo? Primeiramente, verificamos que a própria Ciência oficial é afectada por ele, a tal ponto que terá necessidade de reformar os seus métodos e renovar os seus sistemas.

  Há 50 anos que os espíritos nos ensinam, teoricamente, e nos demonstram, experimentalmente, a existência do que eles denominam fluidos e que são estados especiais da matéria, de forças imponderáveis que os sábios rejeitavam unanimemente.

  Quem os comprovou, em primeiro lugar, foi Sir William Crookes que, com as suas experiências espíritas (como diz no seu livro Recherches sur les Phénomènes du Spiritualisme) entrou no caminho dessa descoberta.

  A partir de então, a Ciência não parou de reconhecer a diversidade e o poder dessas forças: Roentgen, com os raios X; BecquerelCurieLe Bon, ao descobrirem as energias intra-atómicasBlondlot, os raios N.

  É preciso fazer constar que as forças radioactivas não dimanam apenas dos corpos materiais, mas também dos seres vivos e pensantes. Trata-se da preparação para se constatar a vida invisível e o perispírito. Allan Kardec (i) já afirmava nas suas obras a existência de tais forças.

  Dessas descobertas resulta que todas as bases da Física, da Química e até da Psicologia vêm sendo abaladas seriamente. O Espiritismo beneficia largamente com as recentes comprovações feitas nessas áreas.

   Hoje a Ciência reconhece a existência de todas as forças subtis, manipuladas pelos espíritos nas manifestações.

   Lembremos o fenómenos dos transportes, a reconstituição espontânea de diversos objectos em ambientes fechados, os casos de levitação de móveis e de pessoas vivas, as experiências de penetração da matéria pela matéria realizadas por AksakofZöllner e outros, com anéis de metal e tiras de pano lacradas.

   De uma maneira geral, a passagem dos espíritos através das paredes, as aparições e materializações em todos os graus, todos esses factos comprovaram, desde o princípio, a acção de prodigiosas forças, ainda desconhecidas, além da possibilidade de uma dissociação da matéria, até então ignorada e, que a Ciência actual se vê forçada a admitir, após os trabalhos de CurieBecquerelLe Bon, etc.

   Um escritor católico, num recente livro onde, pela rudez da forma, se nota em cada página o verdadeiro interesse do autor, (*) que nos contesta, afirmando que outros inovadores haviam notado a existência do fluido humano muito antes de Kardec, por exemplo Mesmer, com a sua famosa selha.

   Ele esqueceu-se, certamente, da aceitação sarcástica que se deu a essa inovação e da violenta hostilidade das instituições científicas a seu respeito.

   Semelhante hostilidade persistiu a tal ponto que não seria preciso recuarmos muito para recordar as zombarias de algumas academias contra o magnetismo.

    Foi necessário todo o génio de um Crookes para derrubar as portas que permaneciam hermeticamente fechadas.

   Aquilo que os sábios se obstinaram em condenar durante tanto tempo, os espíritas já conheciam e aceitavam, há mais de 50 anos. Estes não deixaram de prosseguir na demonstração e na prova experimental de tais factos e, neste momento, informam-me da descoberta de dois investigadores da cidade de Lyon, que encontraram a forma de reproduzir a fotografia dos desdobramentos fluídicos de membros humanos amputados e até mesmo do duplo etéreo completo de um médium exteriorizado, por meio da espectroscopia e dos raios ultravioleta.

   Dessas pesquisas e experiências resultou, obrigatoriamente, uma profunda modificação das teorias clássicas sobre as energias e a matéria, caindo o dogma da indivisibilidade do átomo e com ele toda a ciência materialista, que se encontra em completa desordem. Veja-se, por exemplo, esta declaração do presidente de um Congresso para o Progresso das ciências, que se realizou pouco antes da guerra, o Sr. Laisant, ex-deputado pelo Departamento de Sena e, quem conhecemos pessoalmente como positivista, isto é, fiel discípulo de Auguste Comte:

   “Vivemos desde a infância uma vida científica tranquila, conformados com as nossas teorias, qual velha casa um tanto avariada, à qual estamos apegados pelo hábito, que amamos e onde habitamos. Mas apareceu um tufão sob a forma de novos factos, que são incompatíveis com as teorias admitidas. Caíram as hipóteses, a casa desmoronou-se e ficámos inteiramente desorientados e tristes, esperando novas tempestades e, sem saber o que fazer.”

  Que confissão de incapacidade e de esterilidade encontramos nestas palavras!

  Quando estudamos a evolução do Espiritismo, somos levados a constatar que, passo a passo, apesar de suas hesitações e repulsas, a Ciência se aproxima, gradualmente, das teorias espíritas.

   Na Física e na Química, por exemplo, elas reconhecem a existência da matéria subtil, radiante e, das forças radioactivas, que fazem a própria base, a essência e o modo de manifestar-se do mundo invisível.

   Agora, a Psicologia, ei-la obrigada a aceitar o hipnotismo e a sugestão, após tê-los negado por muito tempo. Depois veio a telepatia e a transmissão de pensamento. Ora, esses factos não são senão a demonstração do domínio humano e experimental, do princípio afirmado e aplicado, há 50 anos, pelos espíritas: a acção possível da alma sobre a alma, a qualquer distância, sem o auxílio dos órgãos e do cérebro.

   A Ciência oficial, que se inspirava nas teorias materialistas, recusava, em princípio, essa explicação; desde há poucos anos que ela rejeitava qualquer possibilidade de manifestação da inteligência fora do cérebro e, portanto, todo e qualquer meio pelo qual um ser pudesse comunicar-se com outro sem o concurso dos órgãos e dos meios correspondentes.

 Actualmente a Ciência é obrigada a reconhecer os factos telepáticos e de transmissão do pensamento e, reconhecendo-os, dá um passo notável para a frente inferindo um golpe mortal no materialismo.

   A telepatia demonstra que a comunicação é possível, entre dois seres, sem o auxílio dos sentidos físicos, assim como a sugestão comprova a possível influência de um espírito sobre outro, sem o auxílio dos órgãos correspondentes.

   Tais influências e funções foram confirmadas por milhares de experiências e, desde então, a teoria materialista tem falido e a Ciência já se encontra a meio caminho para aceitar a possibilidade de comunicação entre os homens e os espíritos. A segunda metade do caminho vencer-se-á pelo estudo da mediunidade.

   Ora, essa renovação poderosa da Psicologia, que possibilitará ao ser humano conhecer-se melhor, a quem a Ciência deverá isso?

   Aos espíritas e aos magnetizadores, que foram os pioneiros, chamando a atenção dos sábios para os fenómenos da sugestão, da telepatia e da transmissão de pensamentos, forçando, de certo modo, a evolução científica a orientar-se nessa senda, que a conduzirá, seguramente, ao Espiritismo.

   Um facto notável mostra-nos já o caminho por ele percorrido no meio docente. O Dr. Gustave Geley conseguiu realizar no Colégio de França, sob os auspícios do Instituto Psicológico e perante um selecto auditório, em 28 de Janeiro de 1918, uma conferência sobre fenómenos psíquicos, onde afirmava a realidade das materializações dos espíritos.

   Como se sabe, o Colégio de França é a mais alta expressão do ensino superior e os seus professores são dos mais ilustres: RenanMicheletClaude Bernard e Berthelot ocuparam ali as suas cátedras. Ainda hoje toda a Paris intelectual segue com interesse apaixonado os cursos ali ministrados pelos professores BergsonIzouletRévilleCamille Jullian, etc. O programa e o objectivo do Colégio de França é divulgar, tornar públicas as novas descobertas e os trabalhos efectuados recentemente em todas as esferas do saber humano.

   Assim, a conferência do Dr. Geley é um acontecimento importante, a consagração oficial dos nossos estudos e pesquisas.

  Mesmo aplaudindo francamente o movimento que encaminha os homens instruídos no estudo dos fenómenos psíquicos, não podemos afastar de nós certa preocupação quando reflectimos nas prevenções e nas repetidas rotinas que reinam em certos meios académicos, pois muitos sábios ainda querem impor a esse tipo de factos as mesmas regras dadas às combinações físicas e químicas.

   Todavia é um ponto de vista errado e cheio de consequências desastrosas considerar-se tais experiências como um terreno cujos elementos e forças se apresentam sempre idênticos e de maneira que possamos dispor deles à nossa vontade. Dessa forma nos expomos a pesquisas inúteis e resultados incoerentes.

   No campo psíquico as condições de experiência são absolutamente diferentes, pois ali tudo é incerto e mutável, sendo que os resultados, conforme a composição dos círculos e as influências reinantes, podem variar ao infinito. Os esforços dos psiquistas oficiais correriam o perigo de resultar estéreis se continuassem com pontos de vista tão pouco conformes à realidade.

   Devemos reconhecer que os sábios ingleses deram um vigoroso impulso ao Espiritismo no mundo. As qualidades de observação, os métodos prudentes e a perseverança de um Crookes, de um Russel Wallace, um Myers e um Lodge estão acima de qualquer elogio, porém o que é ainda mais notável é o valor moral que permitiu a esses homens eminentes enfrentarem durante 20 anos as perseguições das academias e das igrejas e, finalmente, obrigarem a opinião pública a inclinar-se diante dos seus trabalhos, aceitando-lhes as conclusões.

   Crookes, entre outros, nunca modificou a sua opinião sobre as aparições de Katie King e, apesar das insinuações de certos críticos mal-intencionados, escreveu e publicou, em diversas datas, cartas onde reproduz e até destaca as suas primeiras afirmativas.

   Entre outros sábios de outros países, que se ocuparam do psiquismo, não encontramos essas qualidades no mesmo grau de entusiasmo. Charles Richet, que é um espírito inteligente e franco, após comprovar inúmeras vezes os fenómenos que se davam nas sessões com Eusápia Paladino e ter assinado as actas que atestavam a sua realidade, declarava que a sua convicção, profunda no princípio, se enfraquecia, tornando-se instável algum tempo depois, sob a influência dos hábitos espirituais contraídos no meio que frequentava. Desde então, ele se tornou mais categórico a respeito dos fantasmas.

   Também Camille Flammarion teve as suas horas de vacilação e alguém nos fez notar que na última edição de seu livro As Forças Naturais Desconhecidas, aparecida em 1917, mostra uma tendência em explicar todos os fenómenos apenas pela exteriorização dos médiuns.

   Acreditamos que, quando publicar as investigações que realiza no momento acerca de factos da mesma ordem, recolhidos no correr da guerra, ele nos dará explicações mais completas e mais satisfatórias.

   Contamos, principalmente, com a nova geração de estudiosos para firmar o espiritualismo experimental na França. Sem os preconceitos das escolas e das rotinas seculares, os seus representantes compreenderão que, para triunfar nessa ordem de estudos é preciso que se esteja animado de imparcialidade, já não confundindo médiuns com histéricos, tendo um sentimento mais respeitoso para com os seres inteligentes que, embora invisíveis, interferem na produção dos fenómenos, merecendo as nossas considerações, às vezes mais até do que as pessoas humanas.

   O Dr. Geley e os seus colegas sabem que essas questões só devem ser tratadas com reflexão e respeito, considerando-se que o mundo invisível é um reservatório imenso de forças e inteligências que, conforme as nossas disposições, estarão connosco ou contra nós.

   O bem e o mal tanto se encontram no plano invisível como no visível. Eles se buscam e se atraem tanto num como noutro lado da morte e o único recurso para se conseguir fenómenos elevados, fazendo do Espiritismo uma ciência útil e um meio de progresso, é aproximarmo-nos desse domínio somente com um sentimento grave e nobre.

   A desenvoltura com que certos experimentadores fazem alarde diante dos espíritos tem como consequência afastar as entidades benfazejas e elevadas, capazes de trazerem um poderoso auxílio para as sessões. Em compensação atrai os vadios do Espaço, sempre dispostos a mistificarem, provocando até obsessões terríveis, como aquelas de que quase foi vítima o Dr. Paul Gibier, como nos descreve no seu livro Espiritismo ou Faquirismo Ocidental.

   A Ciência tem as suas manias e os velhos espíritas kardecistas ficam desnorteados com as denominações exóticas com que ela designa os nossos fenómenos. Nomes gregos como telecinesiacriptomnésiaectoplasmia e outros tantos semelhantes não lhes dizem nada que satisfaça.

   Porém, temos que nos submeter aos hábitos dos sábios que, a seu capricho, sempre mudaram os nomes dos factos novos, procedendo a classificações, às vezes arbitrárias, que a natureza não conhece. Afirmam que tais processos são necessários para introduzir um pouco de clareza nos estudos. Portanto devemos aceitá-los, mas não deixando de usar os termos que nos são familiares e que o tempo consagrou.

   Quaisquer que sejam os vocábulos e os processos adoptados, não se perca de vista que no nosso mundo, onde tudo é relativo, não se poderia atingir, em matéria alguma, o conhecimento integral e absoluto.

   É preciso experimentar com método e rigor, porém, por muito que se faça, não se poderá encerrar dentro das estreitas regras humanas a ciência do invisível, que sempre superará as nossas classificações, tanto como a grandeza do Céu infinito supera a Terra.

  No seu conjunto, o conhecimento do além só pertence aos que nele se encontram. Apesar disso podemos, pelo menos, receber dele as luzes necessárias para iluminar a nossa caminhada na Terra.

/…
(*) Le Merveilleux Spirite, de Lucien Roure.


LÉON DENIS, O Mundo Invisível e a Guerra, XVI O Espiritismo e a Ciência, Agosto de 1918, 31º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: Tanque de guerra britânico capturado pelos Alemães, durante a Primeira Guerra Mundial)

quarta-feira, 24 de outubro de 2018

Da sombra do dogma à luz da razão ~


fonte do bem e do mal ~

  Sendo Deus o princípio de todas as coisas e sendo este princípio toda a sabedoria, toda a bondade, toda a justiça, tudo o que daí procede deve partilhar estes atributos, pois o que é infinitamente sábio, justo e bom, não pode produzir nada de insensato, mau e injusto. 

  O mal que observamos não pode portanto ter nele a sua origem.

  Se o mal fizesse parte das atribuições de um ser especial, quer lhe chamemos Arimane ou Satanás, das duas uma: ou esse ser seria igual a Deus e, por consequência, tão poderoso como ele e para toda a eternidade como ele, ou ser-lhe-ia inferior.

  No primeiro caso, haveria duas forças rivais lutando constantemente, procurando cada uma desfazer o que a outra fez e confrontando-se mutuamente. Esta hipótese é inconciliável com a unidade de concepção que se revela na ordenação do Universo.

  No segundo caso, sendo esse ente inferior a Deus, estar-lhe-ia subordinado; não podendo ter estado, como ele, por toda a eternidade sem lhe ser igual, teria tido um princípio; se tiver sido criado, só o pode ter sido por Deus; Deus teria assim criado o espírito do mal, o que seria a negação da infinita bondade. (Ver O Céu e Inferno, Capítulo IX, Os Demónios.)

  No entanto, o mal existe e tem uma causa.

  Os males de todos os géneros, físicos ou morais, que afligem a humanidade apresentam duas categorias que interessa distinguir: são os males que os homens podem evitar e os que são independentes da sua vontade. Entre estes últimos, temos de situar as calamidades naturais.

  O homem, cujas faculdades são limitadas, não pode penetrar nem abarcar a totalidade das ideias do Criador; avalia as coisas segundo a sua personalidade, os interesses fictícios e de convenção que imaginou e que não estão de maneira nenhuma na ordem da natureza; é por isso que, muitas vezes, acha mau e injusto o que acharia justo e admirável se lhe percebesse a causa, a finalidade e o resultado definitivo. Ao procurar a razão de ser e a utilidade de cada coisa, reconhecerá que tudo traz a marca da sabedoria infinita e inclinar-se-á perante essa sabedoria, mesmo para as coisas que não perceba.

  O homem recebeu em herança uma inteligência, com a ajuda da qual pode esconjurar ou, pelo menos, atenuar grandemente os efeitos de todos os flagelos naturais; quanto mais sabedoria adquire e mais avança em civilização, menos desastrosos são estes flagelos; com uma organização social sabiamente previdente poderia até neutralizar as consequências quando elas não possam ser totalmente evitadas. Assim, para esses mesmos flagelos que têm a sua utilidade na ordem geral da natureza e para o futuro, mas que ocorrem no presente, Deus deu ao homem, através das faculdades com que lhe dotou o espírito, os meios para lhe neutralizar os efeitos.

  É assim que saneia regiões insalubres, que anula os miasmas pestíferos, que fertiliza as terras incultas e se esforça por as preservar das inundações; que constrói habitações mais salubres, mais sólidas para resistirem aos ventos tão necessários à purificação da atmosfera, que se coloca ao abrigo das intempéries; é assim, enfim, que pouco a pouco a necessidade o fez criar as ciências com a ajuda das quais melhora as condições de habitabilidade do globo e aumenta o somatório do seu bem-estar.

  Devendo o homem progredir, os males a que está exposto são um estímulo para o exercício da sua inteligência, de todas as suas faculdades físicas e morais, incitando-o à procura de meios para os evitar. Se não tivesse nada a temer, nenhuma necessidade o levaria à busca do melhor; o seu espírito amoleceria na inactividade; não inventaria nada e não descobria nada. A dor é o aguilhão que empurra o homem para a frente na via do progresso.

  Mas os males numerosos são os que o homem cria com os seus próprios vícios, os que resultam do seu orgulho, do seu egoísmo, da sua ambição, da sua cupidez, dos seus excessos em todas as coisas: reside nisso o motivo das guerras e das calamidades que arrastam consigo, das dissensões, das injustiças, da opressão do fraco pelo forte; enfim, da maior parte das doenças.

  Deus estabeleceu leis plenas de sabedoria que só têm como objectivo o bem; o homem encontra em si mesmo o que lhe falta para as seguir; o seu caminho é traçado pela sua consciência; a lei divina está gravada no seu coração; e, além disso, Deus lembra-lhas constantemente através dos seus messias e dos seus profetas, de todos os Espíritos encarnados que receberam como missão esclarecê-lo, moralizá-lo, aperfeiçoá-lo e, nestes últimos tempos, através da quantidade de Espíritos não encarnados que se manifestam por todo o lado. Se o homem se conformasse rigorosamente com as leis divinas, não restam dúvidas de que evitaria os males mais pungentes e que viveria feliz na Terra. Se não o faz, é graças ao seu livre-arbítrio e sofre disso as consequências (O Evangelho Segundo o Espiritismo, Capítulo V, nºs 4, 5, 6 e segs.).

  Mas Deus, cheio de bondade, colocou o remédio ao lado do mal. Quer dizer que, o próprio mal, faz sair o bem. Chega uma altura em que o excesso de mal moral se torna intolerável e faz com que o homem sinta a necessidade de mudar de caminho; ensinado pela experiência, é levado a procurar remédio no bem, sempre como consequência do seu livre-arbítrio; quando entra num caminho melhor é por ser essa a sua vontade e porque reconheceu os inconvenientes do outro caminho. A necessidade obriga-o então a melhorar moralmente para ser mais feliz, tal como esta mesma necessidade o obrigou a melhorar as condições materiais da existência.

  Pode dizer-se que o mal é a ausência do bem, tal como o frio é a ausência do calor. O mal não é um atributo distinto, tal como o frio não é um fluido especial; um é a negação do outro. Onde o bem não existe, existe forçosamente o mal; não praticar o mal é já o começo do bem. Deus só quer o bem; só do homem vem o mal. Se houvesse na Criação um ser predisposto ao mal, nada o poderia evitar; mas tendo o homem a causa do mal EM SI MESMO e tendo ao mesmo tempo o seu livre-arbítrio e por guia as leis divinas, evitá-lo-á quando quiser.

  Tomemos um facto vulgar como comparação. Um proprietário sabe que, na extremidade do seu campo, existe um sítio perigoso onde se poderia ferir ou morrer quem ali se aventurasse. Que faz ele para evitar os acidentes? Coloca junto ao local um cartaz com a proibição de avançar mais por causa do perigo. Aí está a lei, que é sábia e previdente. Se, apesar disso, um imprudente não ligar e passar para lá e se lhe acontecer um acidente, a quem poderá culpar senão a si mesmo?

  Assim é com todo o mal; o homem evitá-lo-ia se observasse as leis divinas. Deus, por exemplo estabeleceu um limite à satisfação das necessidades; o homem é avisado pela saciedade; se ultrapassar esse limite, fá-lo voluntariamente. As doenças, as enfermidades, a morte que podem ser disso consequência são portanto resultado da sua imprevidência e não de Deus.

  Sendo o mal o resultado das imperfeições do homem e sendo o homem criado por Deus, Deus, dir-se-á, se não criou o mal, criou pelo menos a causa do mal; se tivesse feito o homem perfeito, o mal não existiria.

  Se o homem tivesse sido criado perfeito, seria fatalmente levado para o bem; ora, devido ao seu livre-arbítrio, não é fatalmente levado para o bem nem para o mal. Deus quis que fosse submetido à lei da evolução e que essa evolução fosse o fruto do seu próprio trabalho, para que o mérito fosse seu, assim como é responsável pelo mal que é resultado da sua vontade. A questão é então saber qual é, no homem, a fonte da propensão para o mal. (*)

(*) O erro consiste em pretender que a alma saiu perfeita das mãos do Criador, enquanto este, pelo contrário, quis que a perfeição fosse o resultado da purificação gradual do Espírito e sua própria obra. Deus quis que a alma, por virtude do seu livre-arbítrio, pudesse optar entre o bem e o mal e que chegasse aos seus fins últimos por via militante e resistindo ao mal. Se tivesse feito a alma perfeita como ele e se, ao sair das suas mãos, a tivesse associado à beatitude eterna, tê-la-ia feito não à sua imagem, mas igual a si mesmo. (Bonnamy, juiz de instrução, A Razão do Espiritismo, Capítulo VI). (N. do A.)

  Se estudarmos todas as paixões e até todos os víciosverificaremos que têm a sua origem no instinto de conservação. Este instinto está em toda a sua força nos animais e nos seres primitivos que se aproximam mais da animalidade; aí domina sozinho, porque neles não existe ainda como contrapeso o sentido moral; o ser ainda não nasceu para a vida intelectual. Pelo contrário, o instinto enfraquece à medida que a inteligência se desenvolve, porque esta domina a matéria.

  O destino do Espírito é a vida espiritual; mas, nas primeiras fases da sua existência corporal, existem unicamente necessidades materiais a satisfazer e, com este fim, o exercício das paixões é uma necessidade para a conservação da espécie e dos indivíduos, materialmente falando. Mas saído deste período, tem outras necessidades, primeiro semimorais e semimateriais, depois exclusivamente morais. É então que o Espírito domina a matéria; se lhe sacode o jugo, avança na sua via providencial e aproxima-se do seu destino final. Se, pelo contrário, se deixa dominar por ela, fica para trás, assemelhando-se à besta. Nesta situação, o que outrora era um bem, porque era uma necessidade da natureza, torna-se um mal, não só por não ser uma necessidade, mas porque isso se torna prejudicial à espiritualização do ser. Assim como o que é qualidade na criança passa a ser defeito no adulto. O mal é deste modo relativo e a responsabilidade proporcional ao grau de evolução.

  Todas as paixões têm portanto a sua utilidade providencial; sem isso, Deus teria feito qualquer coisa de inútil e prejudicial. É o abuso que constitui o mal e o homem abusa devido ao seu livre-arbítrio. Mais tarde, esclarecido pelo seu próprio interesse, escolhe livremente o bem e o mal.

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ALLAN KARDEC, A GÉNESE – Os Milagres e as Profecias Segundo o Espiritismo, Capítulo III, O Bem e o Mal – Fonte do bem e do mal (de 01 a 10), 19º fragmento da obra. Tradução portuguesa de Maria Manuel Tinoco, Editores Livros de Vida.
(imagem de contextualização: Diógenes e os pássaros de pedra, pintura em acrílico de Costa Brites)

quinta-feira, 11 de outubro de 2018

o sentido da vida ~


Do Empirismo | à Ciência

Até ao aparecimento do Espiritismo em forma de doutrina filosófica, bem definida, apoiada num sistema científico de observação, de pesquisa e de experimentação, as questões relativas à sobrevivência do homem e ao seu destino no além-túmulo pertenciam exclusivamente ao empirismo. E nem se poderia esperar outra coisa, de um mundo que estava a sair inteirinho do empirismo, e que mal começara a trilhar, com Galileu, o terreno das ciências positivas. Se em medicina, até Claude Bernard, a clínica se fazia ao sabor de velhos tabus e sistemas quase instintivos, como se desejar que, em matéria muito mais subtil, difícil e complexa, como a ciência do espírito, pudessem os homens se ter adiantado mais rapidamente?

Espiritismo abriu a primeira picada no matagal cerrado das superstições, derrubando a golpes de bom senso, como diz o poeta leproso Jésus Gonçalves, os tabus do velho misticismo imponente, enclausurado nas igrejas dominantes. Graças a ele, ao formidável surto de fenómenos que se verificou por toda a parte, na ocasião do seu aparecimento – como os rubores do horizonte e a brisa matinal aparecem no momento de raiar o sol –, foi possível, embora com as maiores dificuldades, um rápido avanço nesse terreno. O ambiente, aliás, já estava preparado, através das lutas cada vez maiores e mais sérias contra a dominação clerical e as absurdas imposições de uma crença destituída de qualquer base racional. As igrejas estavam, na verdade, vacilantes nos seus alicerces seculares, incapazes de resistir à investida arrasadora do raciocínio científico, que parecia destinado a desnudar por completo as formas mumificadas da religião, mostrando-as ao povo na hediondez de sua esterilidade e do seu artificialismo de sarcófago.

Allan Kardeco bom senso encarnado, compreendeu prontamente o alcance da tarefa que os espíritos lhe depositavam nas mãos. Ele ia enfrentar o mundo, ia enfrentar todo o convencionalismo da época, desde os mais velhos sistemas da liturgia religiosa, até aos mais modernos princípios afoitamente proclamados pelo materialismo nascente. Cabia-lhe uma luta gigantesca, tinha ele de enfrentar, em campo raso, sem auxílio de uma única fortificação, o exército dos padres, dos cientistas, dos filósofos, dos jornalistas e escritores, dos intelectuais e dos crentes, o bombardeio dos púlpitos, das cátedras e das tribunas. Mas era preciso enfrentar a tarefa, não havia por onde fugir. Como Galileu, ele havia tocado fundo o mistério, sabia que as mesas giravam e sabia por que o faziam. Como Pasteur, ele tinha visto a acção física, discreta, concreta, dos agentes invisíveis. E contava, além disso, com o auxílio dos companheiros espirituais, sempre dispostos a ampará-lo e esclarecê-lo. Foi por isso que, sem nenhuma atitude espectacular de vidente ou predestinado, sem qualquer encenação oracular, o sereno professor de pedagogia iniciou o seu trabalho, na cidade de Paris, centro do mundo e da cultura, que ele transformaria, para escândalo dos judeus, como diria Paulo, no quartel-general do Espiritismo.

No seu pequeno livro O que é o Espiritismo, Kardec revela a natureza da doutrina e mostra-nos mais uma vez a firmeza e a serenidade de sua atitude, dizendo claramente que o Espiritismo não veio ao mundo para se transformar num sistema novo de religião ou se constituir numa nova igreja.

“O Espiritismo – diz ele – é ao mesmo tempo, ciência experimental e doutrina filosófica. Como ciência prática, tem a sua essência nas relações que se podem estabelecer com os espíritos. Como filosofia, compreende todas as consequências morais decorrentes dessas relações. Pode ser definido assim: O Espiritismo é uma ciência que trata da natureza, origem e destino dos espíritos, bem como das suas relações com o mundo corporal.”

Assim definida a natureza da doutrina, Kardec reafirmava que não pretendia convertê-la numa escola religiosa. As religiões estavam ameaçadas e tinham o flanco descoberto. Que podiam elas opor aos ataques arrasadores do racionalismo a todos os seus dogmas, cânones e sacramentos? Como se desenvencilharem da acusação de que não eram outra coisa senão as antigas superstições tribais revestidas de aparatos modernos? O Espiritismo surgia como tábua de salvação para todas elas. Era o meio de que elas podiam se servir para justificar racionalmente os seus velhos princípios, e mais do que isso – maravilha! –, para o demonstrar cientificamente, objectivamente, experimentalmente, aos homens da era científica a existência da alma, a realidade demonstrável da sobrevivência. Demonstrado isso, estavam salvas as religiões. Provada a existência da vida depois da morte, quem se atreveria a negar a necessidade de um preparo do homem, nesta vida, para enfrentar depois os problemas da outra, quando se desenvencilhasse do corpo material?

Os homens de cultura desertavam dos templos. Apenas o povo, na sua simplicidade natural, continuava apegado, pelo coração, às velhas crenças. Mas esse mesmo povo começava a ser trabalhado profundamente por ideologias revolucionárias, que lhe ofereciam, em lugar de um paraíso depois da morte, outro paraíso, muito mais apetecível, nesta própria vida, aqui mesmo, na Terra. Para que os homens cultos voltassem aos templos, era necessário que a religião lhes oferecesse uma arma nova, com que pudessem justificar a sua crença diante da zombaria dos novos profetas da razão. Para que o povo não se desviasse, era preciso mostrar-lhe que o paraíso, no espaço ou na Terra, não se conquista por meros actos exteriores. Essas respostas – que as velhas religiões não possuíam – O Espiritismo trazia-as na palma da mão, como um anjo salvador.

Mas... Sim, havia um “mas”. Para que as religiões pudessem utilizar-se do Espiritismo, era também necessário que aceitassem uma modificação de atitude, em face dos problemas da razão. O Espiritismo nascia com características nitidamente racionais. As religiões eram ilógicas, irracionais, dogmáticas. Vacilaram, a princípio, mas terminaram, como a igreja judaica diante do Cristianismo nascente, recusando-se a mudar de atitude. E, por fim – ironia da ingratidão e do egoísmo humano! – quando o Espiritismo, por si só, independente de qualquer auxílio, levou de vencida os primeiros obstáculos, reuniu os primeiros sábios e obteve os primeiros êxitos, arredou de sua atitude negativista e agressiva os primeiros materialistas, as igrejas, já então, reforçadas pela evidência dos factos, que ele e só ele produzira, despejaram sobre ele os raios outrora fulminantes da sua maldição. Os espíritas, que haviam aberto a possibilidade de retorno dos homens, cientes e inscientes, ao recinto dos templos, foram corridos dali como os apóstolos das sinagogas foram expulsos como inimigos e hereges. E foi então, só então, diante da repulsa cada vez mais forte das religiões constituídas, que as consequências morais da doutrina, de que fala Kardec, começaram a levar os homens para um novo conceito de religião, para o terreno mais amplo e livre da religião espírita. Esta não é, propriamente uma religião, no sentido clássico do termo, que implicaria organização sacerdotal, sistema litúrgico e sacramental, mas é religião no sentido natural do termo, como norma espiritual de conduta humana.

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José Herculano Pires, O Sentido da Vida / Do Empirismo à Ciência 1 de 2, 11º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: Platão e Aristóteles, pormenor d'A escola de Atenas de Rafael Sanzio, 1509)