A ESTRANHA PERSONAGEM QUE SURGE DO PASSADO ~
Girólamo somente dia alto recobrou a consciência. Ignorava
completamente como retornara ao Palácio T. Doíam-lhe a cabeça e todo o corpo,
sentindo-se amolentado, indisposto. Logo recuperou os sentidos, ocorreu-lhe
procurar os sogros, a fim de narrar as alucinações de que vinha sentindo-se
objecto nos últimos dias. O problema se lhe afigurava grave, por considerar que
nenhum mal-estar de ordem física o afligia. Jovem e animoso, aspirava viver
longos anos, no entanto… Além disso, desejava figurar no desfile do palio logo mais, e certamente seria
visto pelos familiares da esposa, que lhe não compreenderiam a atitude arredia,
desconcertante.
Nesse comenos, Francesco, que já se refizera da noite gasta
na insensatez, adentrou-se pela peça, saudando o amigo e fazendo-se acompanhar
de servidor doméstico que trazia o desjejum.
– Salve,
Girólamo!
– Buondi,
Francesco!
– Que farra, moço! Como consumiste tanto vinho? Trouxemos-te
desacordado, graças ao nosso paggio,
que nos deu as tuas notícias, informando-nos que estavas vencido…
Algo constrangido, o amigo não pôde ocultar a perturbação.
– Que se passa, Girólamo? Estás estranho como nunca. Vejo-te
empalidecer de súbito, e tremes. Estás enfermo?
– Sim! Creio estar enfermo – assentiu o hóspede, lívio.
– Se te sentes indisposto, chamarei o médico – redarguiu,
cortês, o amigo.
– Não, não é necessário. Antes que chegasses, eu reflectia
sobre a conveniência de visitar os Castaldi. Penso em desfilar nas solenidades
do palio, à tarde, e como toda a
família de Beatriz estará no palanque de honra, não passarei despercebido.
Justificar-me-ei da melhor forma possível, insistindo, todavia, para demorar-me
contigo, a instâncias tuas.
– Aprovado! Sabes que a nossa é também a tua casa. Após o
desjejum, espero-te em baixo. Se desejares, irei contigo, em caso contrário…
Coragem, homem! Hoje é o dia por que todos esperamos.
O bom humor do anfitrião contagiou Girólamo, que se ergueu
do leito para o ligeiro asseio e repasto. Não obstante as desagradáveis
enxaquecas resultantes da ressaca, a
juventude ajudou-o no refazimento e, pouco tempo depois, galopava na direcção
do Palácio Castaldi, no outro lado da cidade.
A construção antiga reflectia a opulência dos proprietários,
através da torre alta, característica da época. Um pouco recuada da linha de
construção na via de acesso, possuía belo jardim, e árvores frondosas davam-lhe
agradável sombra em redor.
Recebido com espontânea alegria, antes que lhe viessem perguntas
embaraçosas esclareceu Girólamo que a ausência da esposa se devia ao inesperado
da viagem.
O Conde Lorenzo, todavia, interrogou-o com malícia e
astúcia:
– Vieste ao palio
sem Beatriz?
– Razões imperiosas fizeram-me assim proceder, – atalhou,
com habilidade, o genro. – Estava em Florença, a negócios urgentes, e supunha
retornar antes, de modo a trazê-la a participar dos festejos. No entanto, fui
mortificado a demorar-me por mais tempo do que o previsto. De retorno a casa, aconteceram-me
sucessivos mal-estares, o que motivou a minha jornada directamente a esta casa,
para poupar Beatriz a preocupações desnecessárias. Logo que amanhã consulte
algum esculápio e me asserene, tornarei ao lar e a trarei para um recreio no
palácio dos seus pais…
– Sim, pareces-me cansado, – alvitrou o sogro. – Onde estão
a tua bagagem e compras? Vieste até aqui cavalgando?
– Não, – respondeu com naturalidade. – A viagem foi feita em coche. Encaminhei o empregado a uma
hospedaria e aceitei o convite de Francesco, meu velho amigo, para ficar em sua
casa, considerando a rapidez da viagem. Atribuí que tivésseis hóspedes aqui e
confesso que precisava demorar-me um pouco com o companheiro…
– Ora, não há problemas… Gostaria que soubesses que iremos
competir no palio.
O Conde mostrava-se descontraído e alegre.
– Que motivou a vossa atitude?
Um moço florentino que me veio oferecer serviços. Não o
conheces. E após uma pausa, com um sorriso: – Vem, Girólamo, vem comigo. Ele
está aprestando-se para o desfile. Representará o nosso contrada e desfilará com as cores da nossa casa: o branco, o verde,
e o vermelho. O contrada oca (*)
apresentar-se-á pela primeira vez e esperamos vencer.
Tomando o genro pelo braço, desceu às cavalariças e
apresentou um robusto e belo jovem de menos de 18 anos, aprumado e queimado de
sol, que parecia fogoso animal na raia da partida numa disputa hípica.
As cavalariças estavam movimentadas e, numa baia, admirável
palafrém recebia conveniente tratamento de escovas e ração, para o desfile da
tarde.
– Aproxima-te, Carlo! – O Conde Lorenzo chamou o moço, que
somente possuía atenções para o animal e para si mesmo. – Este é o Conde
Girólamo Cherubini, meu genro.
Fazendo uma curvatura respeitosa, o florentino saudou-os com
todo o respeito, ao amo e ao nobre visitante.
No afã do entusiasmo, Dom Lorenzo tagarelava efusivamente:
– Garanto-te que é o melhor ginete que já esteve por estas
bandas. Experimentámo-lo muitas vezes. Apostei expressiva soma de escudos e antegozo a vitória. Não te
entusiasmas?! Deves estar, mesmo, enfermo. Retornemos… Mal suporto aguardar a
hora… Aprontemo-nos, a nosso turno.
Quando o Conde Cherubini olhou, de relance, Carlo teve um
lampejo desagradável, que lesto dissimulou. A sua vez, Girólamo sentiu-se
desgostoso com a presença do florentino. Uma antipatia natural, recíproca,
flechou-os a ambos, naquele defrontar de espíritos, em circunstância grave,
embora a aparência contrária.
Dali saindo, Girólamo, despeitado com as homenagens que o
sogro demonstrava para com o estranho, bon
Gré, mal gré, indagou:
– Donde o conheceis? Trouxe-vos ele carta de recomendação?
Pareceu-me vulgar e atrevido. O quanto gostei do animal, detestei o cavaleiro.
– Não, meu caro, não é o que parece. Pelo contrário: é muito
servil e bajulador. Foi-me encaminhado por Schiapparelli, o milanês. Estás
cansado, enfadado. Preparemo-nos para a festa.
– Deverei apressar-me, também, retornando ao Palácio T.,
para reunir-me a Francesco. Estaremos no desfile entre as autoridades senenses,
disputando aplausos. (A vaidade fê-lo sorrir.) Como sabemos que estareis na
praça, entre as representações mais importantes… Voltarei depois, para
relatar-vos minha enfermidade e ouvir-vos.
– Não vais saudar a Senhora Condessa?
– Perdoai-me e pedi desculpa por mim. Logo voltarei. O tempo
urge…
Conduzido ao animal que o aguardava, logo partiu.
Carlo, porém, não pôde refrear as lembranças. Mesmo após o
afastamento do moço nobre, experimentou singular constrangimento. Tinha a
impressão de conhecê-lo. Começou a sindicar entre os cavalariços e informou-se
da origem do Conde Cherubini e das tragédias que aconteceram, alguns anos
recuados, no Solar di Bicci.
A tagarelice de servos e domésticos, bem como a leviandade
de amos e patrões são responsáveis por muitas desgraças, em todos os tempos. A
irresponsabilidade de uns e a frivolidade de outros têm veiculado muitas dores
em forma de intrigas, traições, delações, calúnias… e verdades de muitos
matizes, que poderiam ser evitadas.
Dando-se conta do peso de misérias que ocorriam a
personalidade do visitante, Carlo recordou-se de conhecer aquele rosto, aqueles
gestos nervosos, aquele porte… O importante, porém, no momento, era o desfile e
a tal entregou-se de mente e coração.
Enquanto galopava, Girólamo padecia de um presságio
desconcertante. Carlo parecia-lhe um inimigo que pela primeira vez defrontava.
A ousadia com que o jovem o fitara ferira-o mortalmente. Talvez nele se
defrontasse consigo mesmo: aventureiro, atrevido, pusilânime… A verdade é que
se sentia perturbado. Procurou banir da mente enferma as ideias deprimentes e
acelerou o passo do animal.
As ruas regurgitavam de gentes. O sol estava a pino, e o ar
parado, morno, desagradava. Havia, todavia, por toda a parte, algazarra e
movimento.
Logo chegou ao Palácio T., encontrou a vetusta construção
decorada, festivamente, com as cores da família, os pavilhões novos a
escorrerem das amplas janelas ogivais, e grande agitação dos visitantes e
amigos, que se apresentavam para acompanhar o grupo do nobre Francesco. Apressando-se,
Girólamo requisitou um servo para banhá-lo e trajou-se garboso, retirando da
arca que trouxera o estandarte da família Bicci, com as borlas características,
que eram herdadas da família M. Talvez a sua ousadia provocasse um atrito com
os descendentes de Buonaventura, na exibição pretendida. Desejava, entretanto,
firmar-se, em definitivo, no conceito geral da cidade, que esperava conquistar,
malgrado a disputa que se travava em todos os recantos, pela supremacia dos
novos donos do prazer…
Tivera anteriormente o cuidado de requerer às autoridades
modificação no brasão da família, visto que doravante ele se transformaria no
tronco de nova árvore genealógica, e adicionara o falcão – que bem representava
– aos símbolos do extinto duque.
Naquela ocasião, exibiria à cidade, com garbo, as suas insígnias: Conde e cavaliere Dom Girólamo Cherubini di
Bicci!
Enquanto pensava, sentiu-se intumescer de vaidade e orgulho.
Atingia, por fim, a ambicionada projecção social, pouco importando o preço que
pagara para colimar os objectivos a que se propusera, desde há muito tempo.
Enfrentaria a morte, os duelos e repetiria os homicídios, se necessário, para
preservar o património árduo, cruamente conquistado.
Francesco penetrou na peça do hóspede e gritou:
– Avia-te, homem, ou perdemos o melhor…
Era guapo o amigo, reconhecia Girólamo, que muito o
estimava. Alto e airoso, tinha a cabeleira abundante e encarcolada para dentro,
a cair, em tom de mel, sob o capuz de seda que ostentava. O traje colante e em
escumilha brilhante tornava-o um deus
grego, por momentos descido à Terra. O rosto, de zigomas salientes, e os olhos
fulgurantes traíam-lhe a masculinidade. Os lábios grossos, bem desenhados,
reflectiam a sensualidade e as narinas arfantes falavam das paixões dificilmente
reprimíveis.
– Estou pronto! Desçamos!
Os amigos se apoiaram jovialmente, braço a braço, e desceram
a larga escada, em ruidosa gargalhada. Em baixo, Lucrécia, cercada pelas damas
de companhia, estava deslumbrante. Os moços ficaram estonteados. A jovem dama
surpreendia-os, qual se fora um botão de rosa não colhido, saindo das primeiras
pétalas a se entreabrirem…
/…
(*) Contrada oca:
bairro do ganso.
VICTOR HUGO, Espírito “PÁRIAS EM REDENÇÃO” – LIVRO PRIMEIRO,
8. A
ESTRANHA PERSONAGEM QUE SURGE DO PASSADO (1 de 3) 26º fragmento da obra. Texto
mediúnico ditado a DIVALDO PEREIRA FRANCO.
(imagem de contextualização: L’âme de la forêt _1898,
tempera e folha de ouro sobre painel de Edgar Maxence)
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