Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

segunda-feira, 14 de abril de 2014

~~~Párias em Redenção~~~


A ESTRANHA PERSONAGEM QUE SURGE DO PASSADO ~


  Girólamo somente dia alto recobrou a consciência. Ignorava completamente como retornara ao Palácio T. Doíam-lhe a cabeça e todo o corpo, sentindo-se amolentado, indisposto. Logo recuperou os sentidos, ocorreu-lhe procurar os sogros, a fim de narrar as alucinações de que vinha sentindo-se objecto nos últimos dias. O problema se lhe afigurava grave, por considerar que nenhum mal-estar de ordem física o afligia. Jovem e animoso, aspirava viver longos anos, no entanto… Além disso, desejava figurar no desfile do palio logo mais, e certamente seria visto pelos familiares da esposa, que lhe não compreenderiam a atitude arredia, desconcertante.

  Nesse comenos, Francesco, que já se refizera da noite gasta na insensatez, adentrou-se pela peça, saudando o amigo e fazendo-se acompanhar de servidor doméstico que trazia o desjejum.

  – Salve, Girólamo!

  – Buondi, Francesco!

  – Que farra, moço! Como consumiste tanto vinho? Trouxemos-te desacordado, graças ao nosso paggio, que nos deu as tuas notícias, informando-nos que estavas vencido

  Algo constrangido, o amigo não pôde ocultar a perturbação.

  – Que se passa, Girólamo? Estás estranho como nunca. Vejo-te empalidecer de súbito, e tremes. Estás enfermo?

  – Sim! Creio estar enfermo – assentiu o hóspede, lívio.

  – Se te sentes indisposto, chamarei o médico – redarguiu, cortês, o amigo.

  – Não, não é necessário. Antes que chegasses, eu reflectia sobre a conveniência de visitar os Castaldi. Penso em desfilar nas solenidades do palio, à tarde, e como toda a família de Beatriz estará no palanque de honra, não passarei despercebido. Justificar-me-ei da melhor forma possível, insistindo, todavia, para demorar-me contigo, a instâncias tuas.

  – Aprovado! Sabes que a nossa é também a tua casa. Após o desjejum, espero-te em baixo. Se desejares, irei contigo, em caso contrário… Coragem, homem! Hoje é o dia por que todos esperamos.

  O bom humor do anfitrião contagiou Girólamo, que se ergueu do leito para o ligeiro asseio e repasto. Não obstante as desagradáveis enxaquecas resultantes da ressaca, a juventude ajudou-o no refazimento e, pouco tempo depois, galopava na direcção do Palácio Castaldi, no outro lado da cidade.

  A construção antiga reflectia a opulência dos proprietários, através da torre alta, característica da época. Um pouco recuada da linha de construção na via de acesso, possuía belo jardim, e árvores frondosas davam-lhe agradável sombra em redor.

  Recebido com espontânea alegria, antes que lhe viessem perguntas embaraçosas esclareceu Girólamo que a ausência da esposa se devia ao inesperado da viagem.

  O Conde Lorenzo, todavia, interrogou-o com malícia e astúcia:

  – Vieste ao palio sem Beatriz?

  – Razões imperiosas fizeram-me assim proceder, – atalhou, com habilidade, o genro. – Estava em Florença, a negócios urgentes, e supunha retornar antes, de modo a trazê-la a participar dos festejos. No entanto, fui mortificado a demorar-me por mais tempo do que o previsto. De retorno a casa, aconteceram-me sucessivos mal-estares, o que motivou a minha jornada directamente a esta casa, para poupar Beatriz a preocupações desnecessárias. Logo que amanhã consulte algum esculápio e me asserene, tornarei ao lar e a trarei para um recreio no palácio dos seus pais…

  – Sim, pareces-me cansado, – alvitrou o sogro. – Onde estão a tua bagagem e compras? Vieste até aqui cavalgando?

  – Não, – respondeu com naturalidade. – A viagem foi feita em coche. Encaminhei o empregado a uma hospedaria e aceitei o convite de Francesco, meu velho amigo, para ficar em sua casa, considerando a rapidez da viagem. Atribuí que tivésseis hóspedes aqui e confesso que precisava demorar-me um pouco com o companheiro…

  – Ora, não há problemas… Gostaria que soubesses que iremos competir no palio.

  O Conde mostrava-se descontraído e alegre.

  – Que motivou a vossa atitude?

  Um moço florentino que me veio oferecer serviços. Não o conheces. E após uma pausa, com um sorriso: – Vem, Girólamo, vem comigo. Ele está aprestando-se para o desfile. Representará o nosso contrada e desfilará com as cores da nossa casa: o branco, o verde, e o vermelho. O contrada oca (*) apresentar-se-á pela primeira vez e esperamos vencer.

  Tomando o genro pelo braço, desceu às cavalariças e apresentou um robusto e belo jovem de menos de 18 anos, aprumado e queimado de sol, que parecia fogoso animal na raia da partida numa disputa hípica.

  As cavalariças estavam movimentadas e, numa baia, admirável palafrém recebia conveniente tratamento de escovas e ração, para o desfile da tarde.

  – Aproxima-te, Carlo! – O Conde Lorenzo chamou o moço, que somente possuía atenções para o animal e para si mesmo. – Este é o Conde Girólamo Cherubini, meu genro.

  Fazendo uma curvatura respeitosa, o florentino saudou-os com todo o respeito, ao amo e ao nobre visitante.

  No afã do entusiasmo, Dom Lorenzo tagarelava efusivamente:

  – Garanto-te que é o melhor ginete que já esteve por estas bandas. Experimentámo-lo muitas vezes. Apostei expressiva soma de escudos e antegozo a vitória. Não te entusiasmas?! Deves estar, mesmo, enfermo. Retornemos… Mal suporto aguardar a hora… Aprontemo-nos, a nosso turno.

  Quando o Conde Cherubini olhou, de relance, Carlo teve um lampejo desagradável, que lesto dissimulou. A sua vez, Girólamo sentiu-se desgostoso com a presença do florentino. Uma antipatia natural, recíproca, flechou-os a ambos, naquele defrontar de espíritos, em circunstância grave, embora a aparência contrária.

  Dali saindo, Girólamo, despeitado com as homenagens que o sogro demonstrava para com o estranho, bon Gré, mal gré, indagou:

  – Donde o conheceis? Trouxe-vos ele carta de recomendação? Pareceu-me vulgar e atrevido. O quanto gostei do animal, detestei o cavaleiro.

  – Não, meu caro, não é o que parece. Pelo contrário: é muito servil e bajulador. Foi-me encaminhado por Schiapparelli, o milanês. Estás cansado, enfadado. Preparemo-nos para a festa.

  – Deverei apressar-me, também, retornando ao Palácio T., para reunir-me a Francesco. Estaremos no desfile entre as autoridades senenses, disputando aplausos. (A vaidade fê-lo sorrir.) Como sabemos que estareis na praça, entre as representações mais importantes… Voltarei depois, para relatar-vos minha enfermidade e ouvir-vos.

  – Não vais saudar a Senhora Condessa?

  – Perdoai-me e pedi desculpa por mim. Logo voltarei. O tempo urge…

  Conduzido ao animal que o aguardava, logo partiu.

  Carlo, porém, não pôde refrear as lembranças. Mesmo após o afastamento do moço nobre, experimentou singular constrangimento. Tinha a impressão de conhecê-lo. Começou a sindicar entre os cavalariços e informou-se da origem do Conde Cherubini e das tragédias que aconteceram, alguns anos recuados, no Solar di Bicci.

  A tagarelice de servos e domésticos, bem como a leviandade de amos e patrões são responsáveis por muitas desgraças, em todos os tempos. A irresponsabilidade de uns e a frivolidade de outros têm veiculado muitas dores em forma de intrigas, traições, delações, calúnias… e verdades de muitos matizes, que poderiam ser evitadas.

  Dando-se conta do peso de misérias que ocorriam a personalidade do visitante, Carlo recordou-se de conhecer aquele rosto, aqueles gestos nervosos, aquele porte… O importante, porém, no momento, era o desfile e a tal entregou-se de mente e coração.

  Enquanto galopava, Girólamo padecia de um presságio desconcertante. Carlo parecia-lhe um inimigo que pela primeira vez defrontava. A ousadia com que o jovem o fitara ferira-o mortalmente. Talvez nele se defrontasse consigo mesmo: aventureiro, atrevido, pusilânime… A verdade é que se sentia perturbado. Procurou banir da mente enferma as ideias deprimentes e acelerou o passo do animal.

  As ruas regurgitavam de gentes. O sol estava a pino, e o ar parado, morno, desagradava. Havia, todavia, por toda a parte, algazarra e movimento.

  Logo chegou ao Palácio T., encontrou a vetusta construção decorada, festivamente, com as cores da família, os pavilhões novos a escorrerem das amplas janelas ogivais, e grande agitação dos visitantes e amigos, que se apresentavam para acompanhar o grupo do nobre Francesco. Apressando-se, Girólamo requisitou um servo para banhá-lo e trajou-se garboso, retirando da arca que trouxera o estandarte da família Bicci, com as borlas características, que eram herdadas da família M. Talvez a sua ousadia provocasse um atrito com os descendentes de Buonaventura, na exibição pretendida. Desejava, entretanto, firmar-se, em definitivo, no conceito geral da cidade, que esperava conquistar, malgrado a disputa que se travava em todos os recantos, pela supremacia dos novos donos do prazer…

  Tivera anteriormente o cuidado de requerer às autoridades modificação no brasão da família, visto que doravante ele se transformaria no tronco de nova árvore genealógica, e adicionara o falcão – que bem representava – aos símbolos do extinto duque. Naquela ocasião, exibiria à cidade, com garbo, as suas insígnias: Conde e cavaliere Dom Girólamo Cherubini di Bicci!

  Enquanto pensava, sentiu-se intumescer de vaidade e orgulho. Atingia, por fim, a ambicionada projecção social, pouco importando o preço que pagara para colimar os objectivos a que se propusera, desde há muito tempo. Enfrentaria a morte, os duelos e repetiria os homicídios, se necessário, para preservar o património árduo, cruamente conquistado.

  Francesco penetrou na peça do hóspede e gritou:

  – Avia-te, homem, ou perdemos o melhor…

  Era guapo o amigo, reconhecia Girólamo, que muito o estimava. Alto e airoso, tinha a cabeleira abundante e encarcolada para dentro, a cair, em tom de mel, sob o capuz de seda que ostentava. O traje colante e em escumilha brilhante tornava-o um deus grego, por momentos descido à Terra. O rosto, de zigomas salientes, e os olhos fulgurantes traíam-lhe a masculinidade. Os lábios grossos, bem desenhados, reflectiam a sensualidade e as narinas arfantes falavam das paixões dificilmente reprimíveis.

  – Estou pronto! Desçamos!

  Os amigos se apoiaram jovialmente, braço a braço, e desceram a larga escada, em ruidosa gargalhada. Em baixo, Lucrécia, cercada pelas damas de companhia, estava deslumbrante. Os moços ficaram estonteados. A jovem dama surpreendia-os, qual se fora um botão de rosa não colhido, saindo das primeiras pétalas a se entreabrirem…

/…

(*) Contrada oca: bairro do ganso.




VICTOR HUGO, Espírito “PÁRIAS EM REDENÇÃO” – LIVRO PRIMEIRO, 8. A ESTRANHA PERSONAGEM QUE SURGE DO PASSADO (1 de 3) 26º fragmento da obra. Texto mediúnico ditado a DIVALDO PEREIRA FRANCO.
(imagem de contextualização: L’âme de la forêt _1898, tempera e folha de ouro sobre painel de Edgar Maxence)

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