Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

sábado, 19 de fevereiro de 2022

~ em torno do mestre


Einstein e a Religião ~ 

  Dizia Bacon: Pouca ciência conduz ao ateísmo; muita ciência conduz a Deus. 

  Os grandes benfeitores da Humanidade, os homens que se têm distinguido pela inteligência, produzindo algo de bom e de útil para a Humanidade, foram indivíduos possuídos de espírito religioso. 

  Não devemos entender, porém, que esses indivíduos se achassem filiados aos dogmas desta ou daquela facção religiosa. A consciência, o espírito ou instinto religioso existe muitas vezes, em alto grau, em profunda vibração, fora dos limites estreitos do sectarismo ou da ortodoxia. 

  Ainda agora acabámos de ler uma notícia interessante acerca da teoria religiosa de Einstein, o célebre e famoso físico e matemático. Segundo a sua opinião, a religião se manifesta sob três aspectos distintos, a saber: 

a) a religião do temor; 
b) a religião da moral social;
c) a religião do senso cósmico. 

  A primeira e a segunda formas são passageiras. O controlo da ciência destrói a primeira e, substitui a segunda. Quanto, porém, à terceira, essa permanecerá para sempre porque, como concluíram os grandes génios, dentre eles Lang — o fundo do Universo é luminoso. 

  A presente notícia que ora comentamos nos traz à memória as consoladoras e doces palavras de Jesus: Crede em Deus, crede também em mim. Na casa do Pai há muitas moradas. 

  O Mestre não delimitou a fé, nem a circunscreveu dentro dos âmbitos pequeninos das tricas e das sofistarias clericais. Ele faz um apelo à razão do homem, induzindo-o a lobrigar o Autor da Vida, o Arquitecto do Universo. 

  Nesse Foco luminoso que resplende no âmago da Criação e, no Expoente de suas maravilhas — é que Jesus convida o homem a acreditar. 

  E que crença pede Ele? A fé cega, imposta por autoridade? Não. A fé raciocinada, aquela que nasce dos factos, que parte do que se vê para induzir ou deduzir o que se não vê. Por isso, o Mestre acrescenta: Na casa do Pai há muitas moradas. 

  — Sim — creia no Deus cuja existência e cuja obra se encontram manifestas no panorama celeste, nos turbilhões de sóis, de mundos e estrelas que rolam na imensidade atestando a munificência da obra, a omnipotência e omnisciência do seu Autor. 

  Partindo desse facto concreto, quanta dedução a inteligência do homem pode tirar! Transportando-nos nas asas do pensamento a essas regiões refulgentes, a essas terras do céu onde habita a justiça, como não admirar a imensidade do poder e a excelência do amor divino? Para quem foram criadas essas moradas, senão para os filhos daquele Pai, em quem o Filho dilecto nos aconselha a acreditar? 

  Eis aí a razão da fé raciocinada que, no dizer de Kardec — encara a razão face a face em todas as épocas da Humanidade. 

  Tal é a religião dos génios. Tal é a fé proclamada pela Terceira Revelação. 


Colóquio íntimo ~ 

  Jesus — tu me amas. Eu te amo. Não posso prescindir do teu amor, desse amor que significa a tua presença em mim. Em tal importa o testemunho do quanto me queres. Sim, do quanto me queres, digo bem pois tu te dignas de entrar em contacto comido, apesar mesmo da imensurável distância em que me encontro da tua perfeição. 

  Tu me amaste primeiro. Eu ainda não te conhecia e tu já me amavas. Eu nada sabia de ti e tu já te havias sacrificado por mim. 

  Um dia senti ao de leve, muito leve, a influência do teu amor. A minha alma começou desde logo a despertar e a perceber em si própria a alvorada de uma vida nova. 

  Só então compreendi que ninguém pode ser ingrato em todo o tempo, nem permanecer insensível à influência do teu amor. 

  Certamente por isso tu disseste: Quando eu for levantado na cruz, atrairei todos a mim. Eu senti em mim o poder irresistível dessa atracção, tal como a limalha que corre célere para o imã. 

  Perceber o teu amor é descobrir a fonte da vida eterna. Dizem que o amor é indefinível. João Evangelista confirma essa asserção, quando assim se exprime: "Deus é amor". Definiu o indefinível com o indefinível. Mas, tu, que és a luz do mundo, asseveraste com a autoridade da tua palavra, sempre confirmada, que nada há oculto que não seja revelado. É assim que me revelaste o mistério do amor, através da tua comunhão comigo. O contacto contigo esclarece perfeitamente o que seja aquele sentimento, de cujo cultivo depende a solução de todos os problemas da vida, por isso que encerra toda a lei e toda a profecia. 

  Portanto, definirei o amor como a emoção que o Espírito encerrado no ergástulo da carne experimenta, quando em comunhão com o divino. De ti aprendi que é assim; e, como eu, todos os que já te conhecem. 

  Toda a vez que tu me permites receber o ósculo celeste, percebo em mim o teu amor. 

  A Lei veio por Moisés, mas a verdade e a graça vieram por ti. Vejo na sanção da Lei a dor, como efeito de causas por nós mesmos geradas. Vejo na graça a expressão do amor divino, atraindo o homem às regiões da luz. 

  Pela dor e pelo amor — pela Lei e pela graça — a redenção (i) se opera e a morte é tragada na vitória. 

  Tu és o reflexo do amor de Deus, porque estás em íntima e perfeita comunhão com Ele. Sentir o teu amor é sentir o amor de Deus. 

  Não há dois amores: um só amor existe. Todavia, o amor se manifesta sob intensidades diversas, como a Luz. Neste particular, é-me dado operar com o amor uma maravilha que a ti, a despeito de todo o poder que o Pai te concedeu no Céu e na Terra, não te é dado. O meu amor por ti cresce, aumenta continuamente, à medida que mais e melhor te conheço; mas, tu não podes fazer o mesmo, porque o amor, em ti, se ostenta na sua plenitude. Tu não me podes amar mais do que me amas; porém, eu te posso amar e, realmente te amo e amar-te-ei cada vez mais, até que o meu amor alcance a plenitude do teu. 

  E assim se vem cumprindo a tua profecia: Quando eu for levantado na cruz, atrairei todos a mim. 


O pão e o vinho ~ 

  "E Jesus partiu o pão e, distribuindo-o aos seus discípulos, dizendo: Tomai e comei, este é o meu corpo, que é dado por vós. E, tomando o cálice, acrescentou: Tomai e bebei, este é o meu sangue... Quem não comer a minha carne e não beber o meu sangue não tem parte comigo, não pode ser meu discípulo... Fazei isto em memória de mim..." 

  A comunhão do crente com o Cristo não é uma comunhão platónica, que paira no terreno metafísico (i), vago, impreciso. É uma comunhão íntima, perfeita, integral. 

  A carne e o sangue de Jesus são a carne e o sangue do crente, isto é, a vida do Cristo é a vida do crente. Há entre o crente e o Cristo uma transfusão de vida, de ideal, de sentimento e de acção. A vida do Cristo há de ser a vida do crente; o sentimento do Cristo há de ser o sentimento do crente; o ideal do Cristo há de ser o ideal do crente; a acção do Cristo há de ser a acção do crente. Se não houver entre o Mestre e o discípulo esta identificação, os discípulos não terão parte com ele, pois não comeram ainda a sua carne e não beberam o seu sangue. Serão aspirantes ao Cristianismo, mas não serão cristãos. 

  Decorre, outrossim, dessa comunhão integral — idêntica àquela que se verifica entre a videira e as ramas — uma consequência lógica e natural: os crentes que tiverem a vida do Cristo, transfundida em si próprios, viverão uma vida comum. Todos viverão a vida de cada um e cada um viverá a vida de todos. Tal o supremo ideal do Cristianismo. 

  Esta doutrina, cumpre notar, não se ostenta apenas no plano teórico de um espiritualismo etéreo, idealístico. Ela tem, antes, cunho de realidade positiva e eminentemente prática, como só acontecer com todos os postulados cristãos. 

  Aparentemente, parece algo de bom e de prático aconselhar a comunhão de pensamento, a solidariedade espiritual, como pretendem os credos saturados de misticismo. Mas, parafraseando o apóstolo Tiago, podemos perguntar: semelhante comunhão mitiga a fome e a sede dos famintos e dos sedentos? Semelhante género de simpatia veste os nus, assiste os enfermos nas suas angústias, conforta os desesperados, enxuga o pranto dos aflitos? Tal espécie de solidariedade utópica defende os oprimidos, esclarece os ignorantes, combate a iniquidade, o vício, o crime, melhora, enfim, as condições da Humanidade? 

  É muito fácil pregar e mesmo praticar a comunhão de pensamento e outras tantas comunhões líricas, inspiradas no platonismo, mas não é essa, certamente, a comunhão ensinada, sentida e exemplificada por Jesus-Cristo. A comunhão cristã é um facto, é uma realidade viva e palpitante; é uma identificação perfeita da vida colectiva com a vida de cada indivíduo e da vida de cada indivíduo com a vida colectiva. Não paira nas alturas alcandoradas do idealismo estéril: desce ao plano da vida humana, penetra a sociedade terrena, os lares, o seio da família, o âmago dos corações. 

  A comunhão cristã é do Espírito, da carne e do sangue. Jesus é o Verbo encarnado que habitou entre os homens: sentiu as suas dores, experimentou as suas angústias, sondou as suas chagas, pensou as suas feridas. Foi com factos e não com pensamentos e palavras que Jesus estabeleceu a sua comunhão com a humanidade sofredora. Os mensageiros do Baptista tiveram ocasião de testemunhar a maneira pela qual Jesus se revelava o Cristo de Deus. A sua doutrina é bem diferente da doutrina engalanada de certos credos, cuja eficiência não vai além da sonoridade de frases estudadas, proferidas mais com o fito de fascinar a mente popular, do que de esclarecer a verdade e propugnar o advento da justiça na Terra. Jesus não deu joio aos homens, deu-lhes trigo: alimentou-os, não os enfeitiçou. 

  A comunhão do lirismo espiritualista, que deixa a carne e o sangue apodrecerem na dor e na angústia, não é aquela que Jesus determinou que se fizesse em sua memória e em substituição da Páscoa dos Judeus. O crente em Cristo há de sentir a dor moral e física de seu irmão, qual se fora em si mesmo. A fraternidade cristã importa numa questão de facto: nunca será demais repeti-lo. "Vinde a mim, benditos de meu Pai, porque tive fome e me destes de comer; tive sede e me saciastes; estive nu e me vestistes; estive enfermo e prisioneiro e me visitastes. Apartai-vos de mim, réprobos, porque permanecestes impassíveis diante de minhas angústias e de minhas aflições. Tanto estes quanto aqueles dirão: Senhor, quando te vimos em necessidade e te acudimos, ou te deixamos de valer? Jesus retrucará: Todas as vezes que valestes, ou deixastes de valer, aos mais pequenos e humildes da Terra, foi a mim que o fizestes." (Mateus, 25:34 a 36 e 41 a 45) Eis aí a lei e os profetas, segundo o conceito cristão. 

  O Cristianismo não responde pelas adulterações que os homens, no seu egoísmo, pretendem introduzir na sua estrutura doutrinária. 

  Tal é a verdade que o Espírito Consolador veio restabelecer, a propósito do pão e do vinho que Jesus deu a comer e a beber aos seus apóstolos, como símbolos do seu corpo e do seu sangue, imolados à causa da redenção humana. 

/… 

“Aos que comigo crêem e sentem as revelações do Céu, comprazendo-se na sua doce e encantadora magia, dedico esta obra.” 
                                                                                     Pedro de Camargo “Vinícius” 


Pedro de Camargo “Vinícius” (i)Em torno do Mestre, 1ª Parte / Seixos e Gravetos; Einstein e a Religião / Colóquio íntimo / O pão e o vinho, 13º fragmento desta obra. 
(imagem de contextualização: Jesus em casa de Marta e Maria, óleo sobre tela (1654-1655), pintura de Johannes Vermeer)

terça-feira, 8 de fevereiro de 2022

Diálogos de Kardec ~


§ Teoria da beleza ~ 

  Será a beleza uma coisa convencional e relativa a cada tipo? O que, para certos povos, constitui a beleza, não será, para outros, horrenda fealdade? Os negros consideram-se mais belos que os brancos e vice-versa. Nesse conflito de gostos, haverá uma beleza absoluta? Em que ela consiste? Somos, realmente, mais belos do que os hottentotes e os Cafres? Porquê? 

  Esta questão, à primeira vista, parece estranha ao objecto dos nossos estudos, mas ela se liga de forma directa e fundamental ao futuro da humanidade. Ela nos foi sugerida, bem como a sua solução, pela seguinte passagem de um livro muito interessante e muito instrutivo, intitulado: As Revoluções Inevitáveis no Globo e na Humanidade (i), de Charles Richard. 

  O autor combate a opinião dos que sustentam a degenerescência física do homem, desde os tempos primitivos; refuta vitoriosamente a crença na existência de uma raça primitiva de gigantes e empreende provar que, do ponto de vista físico e do talhe, os homens de hoje valem o mesmo que os antigos, se é que não os ultrapassam. 

  Tratando da beleza das formas, exprime-se ele assim, nas páginas 41 e seguintes: 

  “Pelo que toca à beleza do rosto, à graça da fisionomia, ao conjunto que constitui a estética do corpo, ainda é mais fácil comprovar-se uma melhoria operada. 

  “Basta, para isso, que se lance um olhar sobre os tipos que as medalhas e as estátuas antigas nos transmitiram intactas através dos séculos. 

  “A iconografia de Visconti e o museu do Conde de Claral são, entre muitas outras, duas fontes donde com facilidade se podem tirar variados elementos para este interessante estudo. 

  “O que mais chama a atenção nesse conjunto de figuras é a rudeza dos traços, a animalidade da expressãoa crueza do olhar. O observador sente, com involuntário frémito, que tem diante de si gente que o cortaria em pedaços, para dá-los de comer às suas moreias, como o fazia Pollio, rico apreciador de boas iguarias, cidadão de Roma e familiar de Augusto. 

  “O primeiro Brutus (Lucius Junius), o que mandou cortar a cabeça a seus filhos e assistiu a sangue-frio ao suplício de ambos, assemelha-se a uma fera. O seu perfil sinistro tem da águia e do mocho o que esses dois carniceiros do ar apresentam de mais feroz. Vendo-o, ninguém pode duvidar de que haja merecido a ignominiosa honra que a História lhe conferiu. Assim como matou os dois filhos, também teria estrangulado a própria mãe, pelo mesmo motivo. 

  “O segundo Brutus (Marcus), que apunhalou César, o seu pai adoptivo, precisamente na hora em que este mais contava com o seu reconhecimento e o seu amor, lembra, pelos traços, um asno fanático; não mostra, sequer, a beleza sinistra que o artista descobre muitas vezes, essa energia extremada que impele ao crime. 

  “Cícero, o orador brilhante, escritor espiritual e profundo, que deixou tão grande recordação da sua passagem por este mundo, tem um rosto acachapado e vulgar, que certamente tornava muito menos agradável vê-lo, do que ouvi-lo. 

  “Júlio César, o grande, o incomparável vencedor, o herói dos massacres, que deu entrada no reino das sombras com um cortejo de dois milhões de almas por ele previamente despachadas para lá, era tão feio como o seu predecessor, mas de outro género. O seu rosto magro e ossudo, posto sobre um pescoço comprido e enfeado por um pomo-de-adão saliente, parecia-se mais com um grande Gilles (*) do que com um grande guerreiro. 

  “GalbaVespasianoNervaCaracalaAlexandre SeveroBalbino, não eram apenas feios, mas horrendos. É com dificuldade que, nesse museu dos antigos tipos da nossa espécie, o observador logra descobrir, aqui e ali, algumas figuras que possam merecer um olhar de simpatia. 

  “As de Cipião o Africano, de Pompeu, de Cómodo, de Heliogábalo, de Antinoo o pequeno de Adriano, são desse reduzido número. Sem serem belos, no sentido moderno da palavra, essas figuras são, entretanto, regulares e de agradável aspecto. 

  “As mulheres não são melhor tratadas do que os homens e dão ensejo às mesmas notas. Lívia, filha de Augusto, tem o perfil pontudo de uma fuinhaAgripina mete medo e Messalina, como que para desconcertar a Cabanis e Lavater, parece uma serviçal gorduchona, mais amante de sopas suculentas, do que de outra coisa. 

  “Os gregos, é preciso dizê-lo, são, em geral, menos mal talhados que os romanos. As figuras de Temístocles e de Milcíades, entre outros, podem comparar-se aos mais belos tipos modernos. Mas Alcibíades, o avô longínquo dos nossos Richelieu e dos nossos Lauzun, cujas façanhas galantes, por si sós, enchem a crónica de Atenas, tinha, como Messalina, muito pouco do físico que corresponderia às suas actividades. Ao ver-lhe os traços solenes e a fronte grave, quem quer que seja o tomaria antes por um jurista agarrado a um texto de lei, do que pelo audacioso conquistador, que foi, de mulheres, que se fazia exilar em Esparta, unicamente para enganar o pobre rei Ágis e, depois, vangloriar-se de ter sido amante de uma rainha. 

  “Não obstante a pequena vantagem que, quanto a esse ponto, se possa conceder aos gregos sobre os romanos, quem se der ao trabalho de comparar esses velhos tipos com os do nosso tempo, reconhecerá sem esforço que nesse sentido, como em todos os outros, houve progresso. Apenas, convém não esquecer, nessa comparação, que aqui se trata de classes privilegiadas, sempre mais belas do que as outras e que, por conseguinte, os tipos modernos que se tenham de contrapor aos antigos deverão ser escolhidos nos salões e não nas pocilgas. É que a pobreza, ah!... em todos os tempos e sob todos os aspectos, jamais foi bela e não é, precisamente, para nos envergonhar e forçar-nos a um dia a nos libertarmos dela. 

  “Não quero, pois, dizer, longe disso, que a fealdade tenha desaparecido inteiramente das nossas frontes e que a marca divina se encontra afinal posta em todas as máscaras que velam uma alma. Longe de mim avançar uma afirmação que muito facilmente poderia ser contestada por toda a gente. A minha pretensão limita-se a verificar que, num período de dois mil anos, coisa tão pouca para uma humanidade que tanto tem de viver, a fisionomia da espécie melhorou de maneira já sensível. 

  “Creio, além disso, que as mais belas figuras da antiguidade são inferiores às que podemos diariamente admirar nas nossas reuniões públicas, nas nossas festas e até no trânsito das ruas. Se não fosse o receio de ofender certas modéstias e também o de excitar certos ciúmes, confirmaria a evidência do facto com algumas centenas de exemplos conhecidos de todos, no mundo contemporâneo. 

  “Os oradores do passado enchem constantemente a boca com a famosa Vénus de Médicis, que lhes parece o ideal da beleza feminina, sem se aperceberem de que essa mesma Vénus passeia todos os domingos pelas avenidas d’Arles, em mais de cinquenta exemplares e, poucas serão as nossas cidades, sobretudo do Sul, que não possuam algumas... 

  “...Em tudo o que vimos de dizer, limitamo-nos a comparar o nosso tipo actual com o dos povos que nos precederam de apenas alguns milhares de anos. Se, porém, remontarmos mais longe através das idades, penetrando nas camadas terrestres onde dormem os despojos das primeiras raças que habitaram o nosso globo, a vantagem a nosso favor se tornará de tal modo sensível que qualquer negação a esse respeito se desvanecerá por si mesma. 

  “Sob aquela influência teológica que deteve Copérnico e Tycho Brahe, que perseguiu Galileu e que, nestes tempos mais próximos, obscureceu por um instante o génio do próprio Cuvier, a Ciência hesitava em sondar os mistérios das épocas antediluvianas. A narrativa bíblica, admitida ao pé da letra, no mais estreito sentido, parecia haver dito a última palavra acerca da nossa origem e dos séculos que nos separam dela. Mas, a verdade, impiedosa nos seus acrescentamentos, acabou rompendo a veste de ferro em que a queriam aprisionar para sempre e pondo a nu formas até então ocultas. 

  “O homem que vivia, antes do dilúvio, em companhia dos mastodontes, do urso das cavernas e de outros grandes mamíferos hoje desaparecidos, o homem fóssil, numa palavra, por tão longo tempo negado, foi encontrado afinal, ficando fora de dúvida a sua existência. Os recentes trabalhos dos geólogos, particularmente os de Boucher de Perthes (**), de Filippi e de Lyell, permitem se apreciem os caracteres físicos desse venerável avô do género humano. 

  Ora, a despeito dos contos imaginados pelos poetas, sobre a beleza originária; malgrado ao respeito que lhe é devido, como chefe antigo da nossa raça, a Ciência é obrigada a atestar que ele era de prodigiosa fealdade. 

  “O seu ângulo facial não passava dos 70º; as suas mandíbulas, de considerável volume, eram armadas de dentes longos e salientes; tinha fugidia a fronte e as têmporas achatadas, o nariz esborrachado, largas as narinas. Em resumo, esse venerável pai devia assemelhar-se bem mais a um orangotango, do que aos seus afastados filhos de hoje; a tal ponto que, se não lhe tivessem encontrado ao lado as achas de sílex que fabricara e, em alguns casos, animais que ainda apresentavam traços das feridas causadas por essas armas informes, fora de duvidar-se do papel que ele desempenhava na nossa filiação terrestre. Não somente sabia fabricar achas de sílex, como também clavas e pontas de dardos, da mesma matéria. 

  “A galantaria antediluviana chegava mesmo a confeccionar braceletes e colares de pedrinhas arredondadas para adorno, naqueles tempos longínquos, dos braços e pescoços do sexo encantador, que depois se tornou muito mais exigente, como todos podem testemunhar. 

  “Não sei o que a respeito pensarão as elegantes dos nossos dias, cujas espáduas cintilam de diamantes; quanto a mim, confesso-o, não me posso forrar a uma emoção profunda, ao pensar nesse primeiro esforço que o homem, mal diferenciado do bruto, fez para agradar à sua companheira, pobre e nua como ele, no seio de uma natureza inóspita, sobre a qual a sua raça há de reinar um dia. Oh! distanciados avós! se já sabíeis amar, com as vossas faces rudimentares, como poderíamos nós duvidar da vossa paternidade, perante esse sinal divino da nossa espécie? 

  “É, pois, manifesto que aqueles humanos informes são nossos pais, uma vez que nos deixaram traços da sua inteligência e do seu amor, atributos essenciais que nos separam da besta. Podemos, então, examinando-os atentamente, despojados das aluviões que os cobrem, medir, como a compasso, progresso físico que a nossa espécie realizou, desde o seu aparecimento na Terra. Ora, esse progresso, que, há pouco, podia ser contestado pelo espírito de sistema e pelos prejuízos de educação, assume tal evidência que já não há como deixar de o reconhecer e proclamar. 

  “Alguns milhares de anos podiam permitir dúvidas, algumas centenas de séculos as dissipam irrevogavelmente... 

  “...Quão jovens e recentes somos em todas as coisas! Ainda ignoramos o nosso lugar e o nosso caminho na imensidade do Universo e ousamos negar progressos que, por falta de tempo, ainda não puderam ser reconhecidos. Crianças que somos, tenhamos um pouco de paciência e os séculos, aproximando-nos da meta, nos revelarão esplendores que, no seu afastamento, escapam aos nossos olhos apenas entreabertos. 

  “Mas, desde já, proclamemos em altas vozes, pois que a Ciência no-lo permite, o facto capital e consolador do progresso lento, mas seguro, do nosso tipo físico, rumo a esse ideal que os grandes artistas entreviram, graças às inspirações que o céu lhes envia, revelando-lhes os seus segredos. O ideal não é produto ilusório da imaginação, um sonho fugitivo destinado a dar, de tempos a tempos, compensação às nossas misérias. É um fim assinado por Deus aos nossos aperfeiçoamentos, fim infinito, porque só o infinito, em todos os casos, pode satisfazer ao nosso espírito e oferecer-lhe uma carreira digna dele.” 

  Destas judiciosas observações, resulta que a forma dos corpos se modificou em sentido determinado e segundo uma lei, à medida que o ser moral se desenvolveu; que a forma exterior está em relação constante com o instinto e os apetites do ser moral; que, quanto mais os seus instintos se aproximam da animalidade, tanto mais a forma igualmente dela se aproxima; enfim, que, à medida que os instintos materiais se depuram e dão lugar a sentimentos morais, o envoltório material, que já não se destina à satisfação de necessidades grosseiras, toma formas cada vez menos pesadas, mais delicadas, de harmonia com a elevação e a delicadeza das ideias. A perfeição da forma é, assim, consequência da perfeição do Espírito: donde se pode concluir que o ideal da forma há de ser a que revestem os Espíritos em estado de pureza, a com que sonham os poetas e os verdadeiros artistas, porque penetram, pelo pensamento, nos mundos superiores. 

  Diz-se, de há muito, que o semblante é o espelho da alma. Esta verdade, que se tornou axioma, explica o facto vulgar de desaparecerem certas fealdades debaixo do reflexo das qualidades morais do Espírito e o de, muito amiúde, se preferir uma pessoa feia, dotada de eminentes qualidades, a outra que apenas possua a beleza plástica. É que semelhante fealdade consiste unicamente em irregularidades de forma, mas sem excluir a finura dos traços, necessária à expressão dos sentimentos delicados. 

  Do que precede se pode concluir que a beleza real consiste na forma que mais afastada se apresenta da animalidade e que melhor reflecte a superioridade intelectual e moral do Espírito, que é o ser principal. Influindo o moral, como influi, sobre o físico, que ele apropria às suas necessidades físicas e morais, segue-se: 1º que o tipo da beleza consiste na forma mais própria à expressão das mais altas qualidades morais e intelectuais; 2º que, à medida que o homem se elevar moralmente, o seu envoltório se irá avizinhando do ideal da beleza, que é a beleza angélica. O negro pode ser belo para o negro, como um gato é belo para um gato; mas, não é belo em sentido absoluto, porque os seus traços grosseiros, os seus lábios espessos acusam a materialidade dos instintos; podem exprimir as paixões violentas, mas não podem prestar-se a evidenciar os delicados matizes do sentimento, nem as modulações de um espírito fino. 

  Daí o podermos, sem fatuidade, creio, dizer-nos mais belos do que os negros e os hottentotes. Mas, também pode ser que, para as gerações futuras, melhoradas, sejamos o que são os hottentotes com relação a nós. E quem sabe se, quando encontrarem os nossos fósseis, essas gerações não os tomarão pelos de alguma espécie de animais. 

~*~~ 

  Lido que foi este artigo na Sociedade de Paris, tornou-se objecto de grande número de comunicações, apresentando todas elas as mesmas conclusões. Transcreveremos apenas as duas seguintes, por serem as mais desenvolvidas: 

Paris, 4 de Fevereiro de 1869. 

(Médium: Sra. Malet

  Ponderastes com acerto que a fonte primária de toda a bondade e de toda a inteligência é também a fonte de toda a beleza. — O amor gera a beleza de todas as coisas, sendo, ele próprio, a perfeição. — O Espírito tem por dever adquirir essa perfeição, que é a sua essência e o seu destino. Ele tem que se aproximar, por seu trabalho, da inteligência soberana e da bondade infinita; tem, pois, também que revestir a forma cada vez mais perfeita, que caracteriza os seres perfeitos. 

  Se, nas vossas sociedades infelizes, no vosso globo ainda mal equilibrado, a espécie humana está tão longe dessa beleza física, é porque a beleza moral ainda está em início de desenvolvimento. A ligação entre essas duas belezas é facto certológico e do qual já neste mundo a alma tem a intuição. Com efeito, sabeis todos quão penoso é o aspecto de uma encantadora fisionomia, cujo encanto, porém, o carácter desmente. Se ouvis falar de uma pessoa de mérito comprovado, logo lhe atribuis os mais simpáticos traços e ficais dolorosamente impressionados, quando verificais que a realidade desmente as vossas conjecturas. 

  Que concluir daí, senão que, como todas as coisas que o futuro guarda de reserva, a alma tem a presciência da beleza, à medida que a Humanidade progride e se aproxima do seu tipo divino. Não procureis tirar, da aparente decadência em que se encontra a raça mais adiantada deste globo, argumentos contrários a essa afirmação. Sim, é verdade que a espécie parece degenerar, abastardar-se; sobre vós se abatem as enfermidades antes da velhice; mesmo a infância sofre as doenças que habitualmente só se manifestam noutra idade da vida. É isso, no entanto, simples transição. A vossa época é má; ela acaba e gera: acaba um período doloroso e gera uma época de regeneração física, de adiantamento moral, de progresso intelectual. A nova raça, de que já falei, terá mais faculdades, mais recursos para os serviços do espírito; será maior, mais forte, mais bela. Desde o princípio, pôr-se-á de harmonia com as riquezas da Criação que a vossa raça, descuidosa e fatigada, desdenha ou ignora. Ter-lhe-eis feito grandes coisas, das quais ela aproveitará, avançando pela estrada das descobertas e dos aperfeiçoamentos, com um ardor febril cujo poder desconheceis. 

  Mais adiantados também em bondade, os vossos descendentes farão desta infeliz terra o que não haveis sabido fazer: um mundo ditoso, onde o pobre não será repelido, nem desprezado, mas socorrido por vastas e liberais instituições. Já desponta a aurora dessas ideias; chega-nos, por momentos, a claridade delas. 

  Amigos, eis afinal o dia em que a luz brilhará na Terra obscura e miserável, em que a raça será boa e bela, de acordo com o grau de adiantamento que tenha alcançado, em que o sinal posto na fronte do homem já não será o da reprovação, mas um sinal de alegria e de esperança. Então, os Espíritos adiantados virão, em multidão, tomar lugar entre os colonos deste globo; estarão em maioria e tudo lhes cederá ao passo. Far-se-á a renovação e a face do globo será mudada, porquanto essa raça será grande e poderosa e o momento em que ela vier assinalará o começo dos tempos venturosos. 

Pamphile 
~*~~ 

Paris, 4 de Fevereiro de 1869. 

  A beleza, do ponto de vista puramente humano, é uma questão muito discutível e muito discutida. Para a apreciarmos bem, precisamos estudá-la como amadores desinteressadosAquele que estiver sob o encantamento não pode ter voz no capítulo. Também entra em linha de conta o gosto de cada um, nas apreciações que se fazem. 

  Belo, realmente belo só é o que o é sempre e para todos; e essa beleza eterna, infinita, é a manifestação divina nos seus aspectos incessantemente variados; é Deus nas suas obras e nas suas leis! Eis aí a única beleza absoluta. É a harmonia das harmonias e tem direito ao título de absoluta, porque nada de mais belo se pode conceber. 

  Quanto ao que se convencionou chamar belo e que é verdadeiramente digno desse título, não deve ser considerado senão como coisa essencialmente relativa, porquanto sempre se pode conceber alguma coisa mais bela, mais perfeita. Somente uma beleza existe e uma única perfeição: Deus. Fora dele, tudo o que adornarmos com esses atributos não passa de pálido reflexo do belo único, de um aspecto harmonioso das mil e uma harmonias da Criação. 

  Há tantas harmonias, quantos objectos criados, quantas belezas típicas, por conseguinte, determinando o ponto culminante da perfeição que qualquer das subdivisões do elemento animado pode alcançar. — A pedra é bela e bela de modos diversos. — Cada espécie mineral tem as suas harmonias e o elemento que reúne todas as harmonias da espécie possui a maior soma de beleza que a espécie possa alcançar. 

  A flor tem as suas harmonias; também ela pode possuí-las todas ou insuladamente e ser diferentemente bela, mas somente será bela quando as harmonias que concorrem para a sua criação se encontrarem harmonicamente fusionadas— Dois tipos de beleza podem produzir, por fusão, um ser híbrido, informe, de aspecto repulsivo. — Há então cacofonia! Todas as vibrações, insuladamente, eram harmónicas, mas a diferença de tonalidade entre elas produziu um desacordo, ao encontrarem-se as ondas vibrantes; daí o monstro!

  Descendo a escala criada, cada tipo animal dá lugar às mesmas observações e a ferocidade, a manha, até a inveja poderão dar origem a belezas especiais, se estiver sem mistura o princípio que determina a forma. A harmonia, mesmo no mal, produz o belo. Há o belo satânico e o belo angélico; a beleza enérgica e a beleza resignada. 

  Cada sentimento, cada feixe de sentimentos, contanto que seja harmónico, produz um particular tipo de beleza, cujos aspectos humanos são todos, não degenerescências, mas esboços. É, pois, certo dizermos, não que somos mais belos, porém que nos aproximamos cada vez mais da beleza real, à medida que nos elevamos para a perfeição. 

  Todos os tipos se unem harmonicamente no perfeito. Daí ser este o belo absoluto. — Nós que progredimos possuímos apenas uma beleza relativa, debilitada e combatida pelos elementos desarmónicos da nossa natureza. 

Lavater 

/... 

(*) Espécie de Pierrot parvo e poltrão que Watteau representou num quadro notavél (Louvre) – Apud “Petit Larousse Illustré”. Nota da Editora, à 13ª edição, em 1973. 
(**) Vejam-se as duas obras sábias de Boucher de PerthesDo Homem antediluviano e de suas obras; e Dos utensílios de pedra
Lavater, Johann Kaspar: (além de pastor, foi filósofopoetateólogo[1] e um entusiasta do magnetismo animal na Suíça). Fonte: Wikipédia / Wikiwand, a enciclopédia livre. Ler toda a notícia. 


ALLAN KARDEC, Obras Póstumas, Primeira Parte – Sobre as artes em geral; a sua regeneração por meio do Espiritismo – Teoria da beleza, 19º fragmento desta obra. 
(imagem de contextualização: Dança rebelde, 1965 – Óleo sobre tela, de Noêmia Guerra

terça-feira, 1 de fevereiro de 2022

O Mundo Invisível e a Guerra ~


XXIII 

A Experimentação Espírita: Escrita Mediúnica ~ 

~~ Janeiro de 1919 ~ 

(2 de 2)  

  A escrita automática é o recurso mais utilizado pelos grandes espíritos para nos darem os seus ensinamentos e foi por meio das mensagens escritas que Kardec elaborou a Doutrina Espírita. 

  Tais mensagens são notórias pela sua elevação e, embora obtidas em muitos pontos do mundo, pelos mais diversos médiuns, apresentam concordância perfeita quanto aos princípios fundamentais. 

Seria impossível considerá-las como obra pessoal desses médiuns, porque as opiniões e a educação de cada um deles, na maior parte dos casos, estavam em antagonismo com as tendências manifestadas nas comunicações. 

  A revelação espírita está, portanto, acima das revelações precedentes, graças ao carácter de simultaneidade e universalidade que possui. 

  Todavia, ela não contradiz as anteriores, ela completa-as, ampliando o campo dos nossos conhecimentos sobre o mundo invisível, a natureza e o destino dos seres.  

  As discordâncias que, no princípio, apareciam entre os espíritos latinos e os anglo-saxónicos sobre a reencarnação e as vidas sucessivas, tendem a suavizar-se e desaparecer, pois os anglo-saxónicos estão empenhados, provavelmente por inspiração de espíritos superiores, no estudo do seu passado e na pesquisa das suas vidas anteriores.  

  Disso resulta que as crenças do Oriente e do Ocidente se aproximam e se juntam numa poderosa unidade para maior bem-estar e progresso do género humano. A pouco e pouco (lentamente, mas com segurança) a humanidade vai formando uma mesma alma, uma mesma consciência e uma mesma fé. 

  Citámos três mensagens que destacam, com clareza impressionante, o carácter dos seus autores e, agora, eis uma outra comunicação, inédita, de ordem moral e sem assinatura. Por discrição, os espíritos superiores, excepto em casos de necessidade absoluta, vacilam em se apresentar de outro modo que não seja com termos alegóricos ou disfarçando-se com o véu do anonimato. Todavia, é fácil descobri-los pela elevação dos seus pensamentos e a profundidade dos seus juízos, enquanto que os espíritos frívolos gostam de aparecer com nomes célebres, que não lhes pertencem, nas mais insignificantes mensagens. 

  A comunicação a seguir foi conseguida em 16 de Julho de 1893, por Madame Hyver, já mencionada, a qual considero uma das melhores médiuns escreventes que existem. Eu vi-a, na penumbra, escrever numerosas páginas que, uma vez terminadas, atirava para trás de si, em movimentos febris. Essas páginas, juntas e coordenadas, traziam mensagens notáveis, tanto na forma como na essência. 


~~~ Mensagem sobre a Unidade de Crença ~~~ 

  A união mais perfeita que pode haver entre os homens é a união do pensamento, é a harmonia dos corações e das inteligências numa ideia comum. É isso, justamente, o que falta aos cultos actuais. Eles não possuem um vínculo comum que consiga fazer circular, no mesmo instante, por todos os fiéis, o mesmo sentimento, a mesma inspiração. São estranhos entre si, o sacerdote e os fiéis; sob a aparência da forma que se observa, o culto real é frio e morto. Os raros impulsos de fé individual perdem-se na onda confusa da multidão e, a religião deixa de ser uma expressão dos sentimentos de um povo. 

  A diferença das inteligências, da educação e das condições sociais cria, entre os indivíduos, muros muitas vezes intransponíveis, mas que podem ser demolidos pela comunhão da fé e pelo mesmo ideal religioso. 

  Para cada povo é necessária uma religião que seja a linguagem comum de todos os indivíduos, porém esse ideal quase não é entendido pelas actuais religiões, que se foram desviando dele no decorrer dos tempos. Nenhuma é realmente popular. A religião nova que a humanidade deseja, simples como tudo quanto é belo, poderosa como tudo o que é verdadeiro e grandiosa como tudo o que é justo, deve atender às aspirações do espírito mais amplo e ser compreendida pelos mais humildes. 

  Juntamente com o grande movimento de massas que se vai estendendo por toda a Terra, em busca da igualdade social, é preciso que corresponda a um movimento religioso; é isso o que falta às acções humanas que não são animadas pelo sopro de um ideal. 

  O povo tornou-se indiferente a todos os cultos e para novamente trazê-lo ao sentimento religioso é preciso abandonar todos os dogmas em favor da essência da religião e só procurar, nas formas antigas, os pontos gerais que constituem transcrições de uma mesma página, universalmente escrita para todos os homens. 

  A religião deve atender não apenas à vida social e à vida moral, como antigamente, mas também à ciência; deve penetrar em todas as camadas sociais, corresponder a todos os ramos do conhecimento humano e dar uma base comum a todas as aspirações humanas e a todos os seus trabalhos. 

  A França, particularmente, retornará ao ideal religioso, mas só depois de grandes provações que lhe gelarão nos lábios o costumeiro sorriso incrédulo. Mais do que qualquer outro país, ela pode dar à ideia religiosa essa forma popular que lhe é tão necessária. Pela sua língua, pelo génio de sua raça e pelo poder profundo de assimilação que possuem os franceses, a nossa pátria é uma nação privilegiada. 

  Por si mesma, a França é una e múltipla, pois cada província mostra um tipo particular de actividade humana e a raça inteira se encontra, apesar de tudo, poderosamente centralizada. 

  Colocado entre o norte e o sul, o francês escapa dos dois caracteres extremos, sendo, entre os outros povos, o tipo que os realiza a todos, sendo capaz de traduzir para todos o grande movimento das ideias. 

  Tal movimento está muito perto, porém, antes da sua realização, é necessário que aconteçam, na França e na Europa inteira, profundas crises sociais. 

  Essas revoluções, essas lutas dos povos, despertarão as faculdades superiores dos homens, fazendo nascer os grandes gestos de fraternidade e de caridade; as desgraças que as nações vierem a padecer irão reconduzi-las a Deus. 

  O papel da França será maravilhoso, porque ela estenderá o seu poder moral sobre todas as nações, do Norte ao Sul, de Leste a Oeste, combatendo em favor da justiça. 

  Ela introduzirá a ideia religiosa na vida social e trabalhará pela modificação das condições de vida dos seres, através das conquistas do verdadeiro progresso, o qual deverá suavizar todos os sofrimentos, respeitar a vida e educar a inteligência. 

  Se ainda parece vago o papel que a França vai representar é porque ela se prepara inconscientemente para desempenhá-lo e, os progressos que ela realizou foram exactamente para se libertar do jugo religioso e ampliar os direitos e poderes de cada indivíduo. 

  Os danos causados por essa nova situação impedem que se veja claramente o grande passo dado para a frente e o rompimento dos laços que prendiam a França a um passado morto. O materialismo que ora domina a França é antifrancês e anti ariano. O francês é artista e idealista em tão elevado grau que não pode permanecer muito tempo numa rota que só lhe oferece o lado inferior da criação. Ele possui um fundo de bondade, de generosidade e de grandeza que as circunstâncias farão reaparecer. 

  "A humanidade já chegou, no que se refere às raças civilizadas, ao ponto em que todas as verdades descobertas pelos homens acabam por convergir, formando um mesmo foco e iluminando toda a Terra. Cada nação será conclamada a participar desse grande trabalho, cada povo trará a sua pedra para o templo da religião universal. Essa religião nova surgirá pela própria força das coisas, nascendo do povo movido por um grande ideal, manifestando-se por vozes inspiradas. Ela há de ser dirigida por almas nobres, estendendo a sua influência pelo mundo inteiro. 

  Em cada povo do passado e em cada povo do presente nela aparecerão com o que tenham de mais puro e de mais belo, fundindo-se cada bíblia numa bíblia universal. Cada religião juntará a sua luz ao novo sol, apagando-se tudo o que separou os homens que, então, compreenderão que não existem ritos, dogmas nem livros; que a letra se apaga diante do espírito e que o espírito que sopra por sobre o mundo é o amor na sua dupla auréola de bondade e de inteligência."
(Não assinada) 

~~~ Outra Mensagem ~~~ 

(A mensagem seguinte foi obtida em 11 de Abril de 1910, do espírito de um académico, na Terra fervoroso católico, recém-falecido.) 

  "A minha espera não foi decepcionante, porque a morte me confiou o segredo supremo que a minha alma procurava, em vão, descobrir. 

  Acreditei sempre noutra vida que terminasse com perfeição a presente mas não pensei encontrar esse esplendor radiante do espírito divino, que aclara com os seus múltiplos raios a obscura inteligência humana permitindo-lhe contemplar a construção admirável do Universo e a harmonia sublime que coordena todas as suas partes. 

  Como é que é possível que tão refulgente revelação não se manifeste ao homem carnal para tirá-lo do limbo onde vegeta, no meio das brumas do seu pensamento e dos erros dos seus sentidos? É que o êxtase talvez o prostrasse, retirando-lhe toda a vontade de acção. Talvez essas névoas acumuladas à nossa volta, esses erros dos nossos sentidos sejam necessários ao progresso do nosso ser espiritual. Talvez o esforço seja a base desta vida universal, como indica o seu anseio para esse infinito que buscamos, mesmo através das mais simples manifestações de nossa personalidade, ainda inconsciente. 

  Muito novo ainda na vida espiritual, consigo apenas usufruir do grandioso espectáculo que se desdobra a meus olhos, sem conseguir aprofundar as causas secretas que transformam a humanidade terrena numa humanidade enclausurada, que vive na masmorra da matéria, enquanto que a humanidade celeste alça as suas asas de arcanjo nas imensidades siderais onde todas as forças do Universo se manifestam no seu conjunto maravilhoso, nos seus efeitos tão diversos, porém tão harmoniosos. 

  Os sonhos dos poetas, as visões dos místicos, as criações do génio, as comprovações e demonstrações da Ciência, as realizações mais perfeitas da arte são apenas ecos muito débeis e percepções pequeninas que os homens, com melhores dotes, captam como num relâmpago quando a matéria, dominada por poucos instantes, permite que a alma possa entrever alguns pálidos reflexos do mundo divino. 

  Como é doce a morte para quem confiou nela e a esperou, não como o fim de todas as coisas, porém como o prelúdio de uma ressurreição fulgurante! 

  Feliz aquele que, como eu, fechou as pálpebras sob a obscuridade de um mundo que apenas se esboça, tornando-as a abrir perante a glória de um mundo aperfeiçoado. 

  Nenhum ente vivo pode avaliar a alegria ardente que invade o recém-eleito; é a alma liberta que alça o seu voo na certeza e na vida, após ter errado na dúvida e na morte durante tanto tempo. 

  Ressurreição! Ressurreição! Glória ao Senhor! O homem, como Jesus, ressuscitou dos mortos para penetrar na cidade dos eleitos."
(Não assinada) 

  A inspiração de que certos escritores gozam pode ser considerada, em muitos casos, como já demonstramos, (*) como uma das formas de mediunidade, porque, quando uma onda de pensamentos nos invade e temos dificuldade de fixá-los no papel, podemos acreditar na manifestação do eu subliminal ou, mais frequentemente, numa acção exercida pelo mundo invisível, que nos envolve e penetra com os seus pensamentos. 

  O pensamento é uma força cujas vibrações se alastram como, na superfície da água, os círculos produzidos pela queda de um corpo. Em extensão e potência, as vibrações do pensamento variam conforme a causa que as produz. Os pensamentos das almas superiores alcançam incalculáveis distâncias; o pensamento de Deus anima e enche o Universo. 

  O pensamento exterior nos domina, não nos obedece. Assim que a alma humana se desapega das preocupações habituais e se eleva, começa a sentir as correntes de vibração que, aos milhares, se entrecruzam e percorrem o espaço. O médium sofre os seus efeitos mais do que os outros. 

  O pensamento superior se estende sobre todos, porém nem todos o sentem nem o manifestam da mesma maneira; da mesma maneira como uma máquina obedece à corrente eléctrica que a acciona, também o médium obedece a uma corrente de pensamentos que o invade. 

  O pensamento do espírito actuante é uno quanto à sua emissão, porém variável nas suas manifestações, conforme a maior ou menor perfeição dos instrumentos que emprega. 

  Como já foi visto, cada médium marca com o selo da sua personalidade o pensamento que lhe vem de mais alto. Quanto mais desenvolvida e espiritualizada se encontra a criatura, tanto mais se reprimem nela a matéria e os instintos e com maior pureza e fidelidade será transmitido o pensamento superior. O essencial, durante as reuniões, é a passividade e o abandono momentâneo da faculdade de pensar. 

  O Espiritismo tem por finalidade familiarizar-nos com esse mundo pouco conhecido, com essas aptidões da alma que, quando está purificada e se desprendeu dos ambientes grosseiros, pode reproduzir os ecos, as vozes e as harmonias dos mundos superiores, tornando-se fonte de inspiração, de socorro e de luz por onde o influxo exterior desce até nós para nos retemperar e nos robustecer. 

  O fundamental, para abrir essa fonte interior, promover essa comunhão e torná-la permanente é nos libertarmos, o quanto possível, das sugestões da matéria, de suas violentas paixões, eliminando em nós os ruídos do mundo. 

  É, principalmente, reprimindo tudo o que venha do eu egoísta que facilitamos a penetração das influências superiores. Quanto mais recusarmos as manifestações inferiores da personalidade, mais desenvolveremos os poderes e as faculdades inatas que fazem a nossa comunicação com os mundos celestes. 

  Encaminhemos, portanto, todos os nossos pensamentos e actos para um fim elevado e, isso é possível mesmo nas condições sociais mais humildes e no meio das ocupações mais vulgares. 

  Recorramos, à oração espontânea, por essa manifestação do pensamento que não é uma repetição mecânica de palavras, porém um grito do coração, a essa inspiração, a esse influxo do Alto que se irá avolumando, de tal maneira que a comunicação com o que existe de grande e elevado no invisível tornar-se-á familiar e constante para nós. 

  Seremos, assim, intermediários e agentes do pensamento superior. Dessa forma teremos tal força e tal apoio que, de agora em diante, já não teremos desânimo, vacilação nem fraqueza e nos sentiremos envolvidos por essa confiança e essa serenidade que a posse dos bens imorredouros do espírito nos garante. 

/… 
(*) Veja-se o último capítulo de No Invisível (Espiritismo e Mediunidade). 


Léon Denis, O Mundo Invisível e a Guerra, XXIII A Experimentação Espírita: Escrita Mediúnica (2); (Janeiro de 1919), (Mensagem sobre a Unidade de Crença, de 16 de Julho de 1893), (Outra Mensagem, de 11 de Abril de 1910). 39º fragmento desta obra. 
(imagem: Dois soldados um alemão e o outro britânico, no dia de Natal durante a primeira guerra mundial (1914), aquando de um cessar-fogo promovido pelos próprios soldados, alemães, britânicos e também franceses, ao longo de uma semana trocaram saudações, cantaram músicas e chegaram a trocar presentes)