Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

domingo, 29 de dezembro de 2019

agonia das religiões ~


A Dúvida e A Certeza

A dúvida é uma encruzilhada nos caminhos da razão. Quando o pensamento se lança na busca de um objecto e depara com dois caminhos divergentes, pode ficar indeciso. Essa indecisão é a dúvida. Para Sexto Empírico a dúvida é a hesitação entre afirmar e negar, o que vale dizer entre aceitar e rejeitar. Descartes fez da dúvida a condição primeira da busca da verdade, considerando-a como uma suspensão do juízo para se verificar se ele está certo ou errado. Para John Dewey a dúvida nasce de uma situação problemática estimulando a pesquisa. Dessa maneira, Dewey confirma a posição de Descartes, que iniciou a filosofia moderna com a prática da dúvida metódica. Mas como a dúvida criou muitas dificuldades ao pensamento dogmático, as religiões dogmáticas acabaram por condená-la como de origem diabólica. A frase de Tertulianocredo quia absurdum (creio mesmo que absurdo) teve um curso longo no combate às heresias. Como os dogmas eram considerados de origem divina, pontos fundamentais da revelação feita por Deus aos homens, estes não tinham o direito de duvidar, mesmo que os dogmas fossem aparentemente absurdos.

Ainda hoje, essa posição é, comum em numerosas seitas e religiões, até mesmo entre pessoas cultas. Alega-se que a sabedoria humana é loucura para Deus, como Paulo afirmou, o que vale dizer que a sabedoria divina pode parecer loucura para os homens. No Espiritismo a dúvida é considerada como condição necessária à busca da verdade. Kardec a aconselha como método de controlo das manifestações mediúnicas e do estudo dos princípios doutrinários. Tendo mostrado que os espíritos são criaturas humanas desencarnadas, libertas do corpo material pela morte, e que muitos deles se manifestam para sustentar ainda opiniões erradas que defendiam na Terra, aconselha a análise constante e o exame atencioso das manifestações, que devem ser rejeitadas quando revelarem conceitos absurdos.

A crítica torna-se, assim, elemento básico da filosofia e da prática espírita. Mas é evidente que deve ser exercida por pessoas que tenham condições de cultura e bom senso para criticar. Descartes afirmou que o bom senso é a coisa mais bem repartida do mundo, mas advertiu que o emprego do bom senso depende da boa orientação do entendimento. Kardec dá, em toda a sua obra, instruções e exemplos para o uso do bom julgamento e aconselha a consulta, em casos de dificuldade, de pessoas reconhecidamente capazes de resolver problemas com lucidez. Não havendo no Espiritismo dogmas de fé, tudo pode ser apreciado e discutido em termos de bom senso ou boa razão. Descartes aconselhava a se evitarem dois elementos perigosos ao raciocínio, que são o preconceito e a precipitação. Kardec acrescenta a necessidade de vigilância no tocante à vaidade humana, que leva pessoas cultas ou incultas a se considerarem capazes de reformulações doutrinárias com base apenas nas suas opiniões pessoais.

Estabelecendo o consensus gentium, de Aristóteles, como regra para a aceitação de revelações espirituais, não o fez no sentido aristotélico do termo, mas no sentido espiritual, com o nome de consenso universal. A aplicação desse consenso não implica a aceitação da vox populi ou da opinião das gentes como verdade, mas apenas a coincidência de manifestações mediúnicas sobre os mesmo tema, para médiuns diversos, desconhecidos entre si, em locais diversos e ao mesmo tempo. É esse um meio de controlo a ser usado sob as condições de verificação racional do tema e de confronto do mesmo com os conhecimentos já adquiridos no meio espírita e na cultura geral. Levantou, assim, uma barreira à autoridade individual de um médium isolado que, por mais famoso e seguro que tenha sido nas suas actividades, nem por isso está livre de se deixar empolgar por ideias erróneas. De um critério de verdade que era evidentemente de natureza opiniática, Kardec extraiu uma norma inegavelmente válida para facilitar o uso do bom senso pelos espíritas.

A necessidade de certeza na orientação do conhecimento, num mundo em que tudo se passa no plano das relações, exige um critério científico de avaliação dos dados obtidos na prática doutrinária. Ao não aceitar a revelação espiritual de maneira gratuita, mas submetendo-a ao controlo da razão, Kardec não violentou a intenção dos Espíritos superiores, que desejavam dele precisamente essa atitude. Tanto assim que desde o inicio o estimularam nesse caminho, esclarecendo que a Humanidade terrena atingira a maturidade suficiente para se libertar do ciclo de revelações pessoais e locais, dadas sempre de maneira mística, através de um mestre, profeta ou Messias, numa determinada região e a um determinado povo. A última dessas revelações havia sido a do Cristo, que apesar de pessoal e local já se abria ostensivamente para a universalidade, escandalizando os judeus apegados a um sócio-centrismo milenar. A Terra entrava numa fase nova de sua evolução; as civilizações isoladas deviam fundir-se através de processos mais amplos e eficientes de comunicação; o mundo greco-romano chegava ao fim objectivado pelo seu desenvolvimento; um longo e doloroso processo de fusão das suas conquistas no campo do pensamento, do direito, da justiça e da espiritualidade deveria iniciar-se no caldeirão da História que foi a Idade Média, segundo a concepção de Dilthey. Essa fusão resultaria na Idade da Razão com o Renascimento, preparando o desenvolvimento da Era da Ciência e da Tecnologia, que levaria o mundo a um progresso cada vez mais acelerado. A influência do Cristianismo impregnaria todas as latitudes do planeta, arrancando da apatia nirvânica as grandes civilizações orientais e obrigando-as a seguir os padrões ocidentais. Era necessário que a passividade mística, fosse substituída pela actividade racional, na luta dos homens em busca da compreensão de suas próprias responsabilidades, na direcção da vida humana.

Cumprida essa programação, a Terra já estava, em pleno século XIX, em condições de receber as luzes renovadoras de uma doutrina de unificação espiritual, capaz de guiá-la aos objectivos mais elevados da sua integração na comunidade cósmica. Muitas inteligências terrenas, aturdidas com as inquietações do nosso tempo, com as crises ameaçadoras de uma fase de transição acelerada, e portanto violenta, perguntam se não estamos errados ao aceitar essa previsão histórica. O mesmo aconteceu na fase de desenvolvimento do Cristianismo. Realmente, a Terra não parece ainda preparada para o salto cósmico que já vem tentando. Mas podemos notar, ao longo da História, que a técnica divina parece apoiar-se num princípio de tensão-máxima para nos fazer avançar. A preguiça humana, a tendência à acomodação, o apego à vida como ela é, só podem ser removidos por meios compulsórios. O chicote do Templo tem de ser vibrado contra os vendilhões que o transformam em mercado, que não pensam em Deus mas apenas no dinheiro. Só pelo impacto da dor o homem se liberta das suas mazelas para encontrar a vida em abundância de que Jesus falou. Os anos, os séculos, os milénios passam rápido na direcção da eternidade sem limites. Não podemos fermentar na Terra indefinidamente, como o faríamos se as leis divinas não nos forçassem a buscar com maior rapidez os objectivos reais da nossa existência.

Kardec viu tudo isso com extrema lucidez, como podemos constatar na leitura das suas obras. Por isso não converteu o Espiritismo numa nova religião estática, segundo o conceito de Bergson, mas ligou-o a todos os campos da cultura para que possa agir como uma religião dinâmica, aquela religião em espírito e verdade de que Jesus falou à mulher samaritana. Não há razão nenhuma para que a religião continue como um departamento estanque e privado, condicionada em sistemas arcaicos, marginalizada no campo cultural em favor de interesses sectários. A religião é um dos campos vitais da cultura e deve integrar-se nela em plenitude. Os seus princípios não podem manter-se alheios ao progresso geral. Por isso, o Espiritismo fundou a Ciência do Espírito, que agora está sendo confirmada pelas conquistas mais recentes das ciências da matéria. Chegámos tarde à complementação do fiat da criação, mas estamos agora no momento em que o espírito se liga à matéria no campo das concepções humanas.

certeza, no nosso mundo, nunca pode ser absoluta. É também relativa, mas corresponde ao máximo possível de exactidão. Esse máximo é indispensável em todo o campo do conhecimento. Não poderíamos ficar no terreno das hipóteses inverificáveis ao tratar de assuntos tão graves como a origem do homem, a sua natureza íntima e o seu destino no sistema cósmico. Kardec, à maneira de Descartes, pôs em dúvida todo o conhecimento religioso. Os fenómenos espíritas, como ele mesmo observou, estavam na moda. Instigado por amigos que conheciam a sua capacidade científica, relutou a princípio – pois duvidara da veracidade desses fenómenos – mas acabou aceitando o convite para assistir a uma experimentação. Ali constatou a realidade, mas não aceitou a sua interpretação espiritual. Procurou explicar a chamada dança das mesas como possível efeito de forças conhecidas: a electricidade, a gravidade, o magnetismo, um suposto poder emanado das pessoas reunidas para aquele fim e assim por diante. Mas não ficou nas hipóteses. Pôs-se a pesquisar. O seu encontro com as meninas da família Boudin, uma de 14 e a outra de 16 anos, médiuns excelentes, permitiu-lhe uma série de experiências decisivas. Foi com elas que recebeu todo o texto de “O Livro dos Espíritos”. Pelas mãos dessas duas jovens nasceu o Espiritismo. E renasceu Allan Kardec, o druida das Gálias antigas, para substituir o Prof. Denizard Rivail (o seu nome verdadeiro) o discípulo emérito de Pestalozzi e sucessor do mestre no desenvolvimento da sua Pedagogia Filantrópica. Dali por diante, durante 15 anos, as pesquisas prosseguiram, 12 anos na Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas, por ele fundada e dirigida. Nesse período de 15 anos Kardec elaborou os cinco volumes da Codificação do Espiritismo, três volumes de introdução à doutrina, um manual de introdução à prática mediúnica, numerosos artigos para a imprensa e os doze volumes da Revista Espírita, contendo em média 400 páginas cada volume.

Em todos esses trabalhos ele foi sempre orientado pelos Espíritos superiores, como se pode ver nas suas anotações em Obras Póstumas. E a sua conduta de pesquisador foi louvada pelo próprio Richet, o fisiologista do século, que discordava das conclusões de Kardec mas reconheceu, no seu Tratado de metapsíquica, o valor do homem que iniciara as Ciências Psíquicas na França e no Mundo. Partindo da dúvida, Kardec chegara à certeza psicológica da sobrevivência do homem à morte corporal. Richet fizera um caminho paralelo, o da sua especialidade científica, para chegar à certeza fisiológica dos fenómenos espantosos de materialização. Depois dele, outros muitos comprovariam a sua descoberta mas não ficariam no meio do caminho. Avançariam como Crookes, Notzing, Zollner, Ochorowicz, Geley, Osty, Aksakov, até à certeza final de Kardec. Estava aberta nas Ciências a fronteira da imortalidade. Dali em diante, os que pretendiam reduzir o homem a ossos e cinzas lutariam sem cessar – até mesmo nas religiões – contra a maior e mais fecunda certeza científica da cultura terrena. Do Espiritismo nasceram todas as ciências do paranormal, até a Parapsicologia contemporânea. Mas os inimigos da certeza ainda continuam, nos nossos dias, diante da evidência fulminante das últimas descobertas científicas – físicas, biológicas, psicológicas e astronáuticas –, a insuflar com as suas bochechas em fúria o fantasma superado da dúvida anti-metódica. Fingem não perceber que esse fantasma é um balão furado com o pavio queimado.

A superação da dúvida no Espiritismo não se fez através dos métodos subjectivos da meditação religiosa e do êxtase místico, mas do método científico de pesquisa. Foi o que Richet reconheceu e louvou em Kardec, como se vê logo no início do seu Tratado de Metapsíquica. Integrado na tradição da busca metodológica, que vinha do século XVI, com a revolução cientifica de Bacon e Descartes, Allan Kardec encarou o problema espiritual de maneira objectiva e, numa posição tipicamente existencial, criou o método apropriado à pesquisa dos fenómenos espíritas. Ao contrario do que alegam até hoje os seus contraditores, demonstrou de maneira exaustiva que os fenómenos espíritas podem ser repetidos quantas vezes for necessário para a confrontação dos resultados experimentais, como os grandes cientistas da época iriam comprovar logo em seguida e como as pesquisas parapsicológicas actuais uma vez mais comprovaram e demonstraram.

Essa subversão metodológica no campo do conhecimento espiritual, até então submetido aos princípios da fé, despertou violenta reacção que ainda hoje não se extinguiu. Kardec partia do homem vivo, do homem no mundo, da criatura de carne e osso para elevar-se a Deus através da indução lógica, desprezando os processos dedutivos da tradição. Atrevia-se a investigar o espírito dos mortos e dos vivos com a mesma naturalidade, sustentando que a alma nada mais era do que o espírito que anima um corpo. E ousava dar uma nova explicação da Génese que incluía a criação do homem por Deus como um facto natural, dialecticamente explicável. A morte perdia o aspecto misterioso alimentado pelas religiões, os videntes e profetas eram considerados como criaturas em que uma faculdade humana natural, a mediunidade, se havia desenvolvido de maneira mais intensa.

Pacientes e incessantes pesquisas – e não revelações místicas – levaram Kardec à descoberta científica da natureza espiritual do homem. E a prova de que realmente o levaram, foi dada posteriormente pelas pesquisas científicas desencadeadas em todo o mundo e hoje confirmadas até mesmo pelo avanço das investigações materiais, por cientistas modernos que alargam a dimensão das Ciências. É assim que a dúvida sobre a continuidade da vida, após a morte, foi vencida pela certeza no campo das investigações espíritas. As religiões que ignorarem este facto culminante da evolução humana na Terra acabarão asfixiadas, por falta do oxigénio da verdade, nos seus círculos estreitos de fanatismo e exclusivismo. Não há somente crise nas religiões, há sinais evidentes de agonia.

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José Herculano Pires, Agonia das Religiões / Capítulo 9 – Dúvida e Certeza, 10º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: Paraíso Perdido, estudo do Anjo, lápis e giz de Alexandre Cabanel)

sábado, 14 de dezembro de 2019

~ em torno do mestre


Conversão ~

"Em verdade vos digo que se não vos converterdes e não vos fizerdes como crianças, de modo algum entrareis no reino de Deus." 
(Mateus, 18:3.)

Jesus, dirigindo as palavras supracitadas aos seus apóstolos, fazia-lhes ver da necessidade em que eles se encontravam de se converterem.

Mas, então, não seriam convertidos todos aqueles que acompanhavam o Mestre, ouvindo-lhe os ensinamentos, edificando-se nas suas exemplificações brilhantes? Não seriam convertidos todos aqueles que foram escolhidos pelo mesmo Jesus para seus colaboradores? Este caso merece ser ponderado. Dele ressalta uma edificante lição, digna do nosso maior acatamento.

Converter-se não importa tão-só abraçar este ou aquele credo religioso, nem tão-pouco em se filiar a esta ou àquela igreja, aceitando determinado corpo de doutrina qualquer. O incrédulo pode tornar-se crente sem que se verifique com isso um caso de conversão.

Converter significa transformar. Onde não há transformação, não há conversão. Quanto mais acentuada for a transformação, tanto mais positiva será a conversão. Se essa transformação for tão grande, ao ponto de se não reconhecer o objecto primitivo, podemos afirmar que se trata de um verdadeiro caso de conversão.

Na natureza, transformar quer dizer melhorar. "Nada se cria, nada se perde, tudo se transforma"; isto é, tudo sobe, tudo levita. Crescei e multiplicai — sentença aplicada à criação dos seres — tem sentido espiritual que não deve ser desprezado. "Para a frente e para o alto — tal é a legenda inscrita em cada átomo do Universo."

A conversão é um fenómeno vital de transformação constante para melhor. Tal fenómeno realiza-se tanto no plano físico quanto no moral, Os reinos da Natureza entrelaçam-se em movimento ascensional de contínuas transformações. O espírito progride, melhora e se aperfeiçoa através de ininterrupta série de conversões.

Saulo transforma-se em Paulo, Simão em Pedro, Magdala em Maria. O carácter destas personagens sofreu tal modificação que se tornaram o oposto do que eram. O fanatismo perigoso de Saulo, a fraqueza perniciosa de Simão e a voluptuosidade desenfreada de Magdala converteram-se na tolerância e no sacrifício de Paulo, na firmeza heróica de Pedro e na espiritualidade angélica de Maria. Tais são os tipos genuínos de convertidos.

Conversão importa também em valorização. Objecto convertido é objecto valorizado. O escultor toma um bloco de pedra bruta, um tronco tosco ou mesmo um punhado de argila e converte-os em belas estátuas onde refulgem os primores da arte. É incalculável o valor que o estatuário imprime, por efeito de conversão, àqueles materiais obscuros.

Qual o cálculo possível entre o valor do calcário, antes e depois de ser a Vénus de Milo ou o Discóbolo? E os gramas de tinta antes e depois de serem convertidos em quadros de Miguel Ângelo ou de Velásquez? Entretanto, um exame químico demonstrará tratar-se da mesma substância.

O mesmo acontece com o homem, antes e depois da sua conversão. O carácter se forma e consolida através da obra da conversão, obra que uma vez iniciada jamais deixa de prosseguir o seu curso eficiente de embelezamento e de valorização. O homem velho vai sendo absorvido pelo homem novo: é o renascimento espiritual que se opera.

De tal sorte, é possível voltar ao estado de inocência primitiva, conforme disse Jesus: "Se não vos converterdes, e não vos fizerdes como crianças, não entrareis no reino de Deus." A inocência revela-se sob dois aspectos distintos: a ignorância do mal e, a vitória do bem. A primeira forma é o estado da criança; a segunda representa a condição do justo.

A criança é inocente, porque desconhece o pecado; o justo é inocente, porque adquiriu a virtude. A inocência da criança é fruto da insipiência. A inocência do santo é filha da sabedoria.

Esta permanece, aquela passa. A transição de uma, para a outra espécie de inocência, é a maravilha da conversão. Sem conversão, portanto, ninguém logrará o reino de Deus.


Coragem moral ~

Um dos requisitos exigidos por Jesus, como condição indispensável àqueles que pretendessem seguir-lhe as pegadas, é a coragem moral.

Eu vos envio, disse ele aos discípulos, como ovelhas no meio de lobos. Esta frase é bastante eloquente e, por si só, define muito bem a posição dos cristãos na sociedade do século.

"Sereis entregues aos tribunais por minha causa. Suportareis perseguições, açoites e prisão. Haverá delações entre os próprios irmãos. Atraireis o ódio de todos. A vossa vida correrá risco iminente a cada instante.

"Todavia, não temais, pois até os cabelos de vossas cabeças estão contados. Nenhum receio deveis ter dos homens, cujo poder não vai além do seu corpo. Se chamaram Belzebu ao dono da casa, quanto mais aos seus domésticos. Portanto, nada de temores: o que vos digo à puridade proclamai-o dos eirados. Nada há encoberto que não seja descoberto; nada há oculto que se não venha a saber. Por isso, aquele que me confessar diante dos homens, eu o confessarei diante de meu Pai celestial; e o que me negar diante dos homens, eu o negarei perante meu Pai que está nos céus."

Tais expressões são de clareza meridiana. Para ser cristão, é preciso coragem, ânimo forte, atitude varonil. "Seja o teu falar: sim, sim; não, não". (Mateus, 5:37.) Não há lugar para composturas dúbias, indecisas, oscilantes. O crente em Cristo deve possuir convicção inabalável, têmpera rija, carácter positivo e franco.

Entre as virtudes, não há incompatibilidades. A mansuetude, a cordura e a humildade são predicados que podem (e devem) coexistir com a energia, com a intrepidez, com a varonilidade. Deus é infinitamente misericordioso e, ao mesmo tempo, é infinitamente justo.

O carácter do cristão há de ser forjado de aço de Toledo e de ouro do Transvaal. Assim disse Amado Nervo"Ouro sobre aço sejam a tua vontade e a tua conduta. Sobre o aço do teu pensamento há de luzir o arabesco de ouro das formas puras e gentis. Ouro e aço será a tua vida, serão os teus propósitos, serão os teus actos."

Abulia, indiferença e marasmo não são expressões de bondade. "Não és frio, nem quente; por isso, quero vomitar-te de minha boca." Passividade não é virtude. Entre o bem e o mal, a verdade e a impostura, a justiça e a iniquidade não há lugar para acomodações, nem para neutralidade. O cristão define-se sempre em tais conjunturas, confessando o seu Mestre. "Ninguém pode servir a dois senhores." Que relação pode haver entre Jesus e Baal? Dobrar os joelhos diante de todos os tronos, só porque são tronos; curvar-se perante todos os Césares, só porque são Césares; afazer-se às tiranias e às opressões, anuir directa ou indirectamente às tranquibérnias e vilezas da época; pactuar, enfim, com a injustiça de qualquer maneira e por quaisquer motivos, é negar a Jesus-Cristo no cenáculo social. "Não sejais escravos dos homens, nem das paixões; não sejais, igualmente, nem parasitas, nem bajuladores, nem mendigos" — disse o grande educador Hilário Ribeiro num dos seus excelentes livros didácticos. Não se triunfa na vida, sem ânimo viril. É a covardia moral que faz o homem escravizar-se a outros homens; que o faz escravo de vícios repugnantes e de paixões vis e soezes. É ainda por pusilanimidade e covardia que o homem bajula, mendiga e se torna parasita.

Sem boa dose de coragem (quase ia dizendo de audácia), o homem não cumpre o dever e menos ainda consegue sair-se airosamente das emergências difíceis da vida. O suicídio, seja por este ou por aquele motivo, é sempre um acto de covardia moral. A sentinela valorosa jamais abandona o posto que lhe foi confiado.

Os altos problemas da Vida, consubstanciados na sentença evangélica — Sede perfeitos como vosso Pai celestial é perfeito — requerem ânimo forte e vontade irredutível para serem solucionados. Não é fugindo aos perigos e às dificuldades que o homem há de vencê-las; é enfrentando-as.

coragem moral é a primeira virtude do homem de fé. Cumpre, porém, não confundir a verdadeira coragem com as caricaturas de coragem, que se ostentam por toda a parte. Estas são burlescas e vulgares, aquela é rara e cheia de nobreza. A coragem não consiste em atitudes violentas e belicosas. Nada tem de comum com a temeridade. É serena e íntima. Não se ostenta em bracejos, ou gesticulações espectaculosas, nem em vozeios e frases ameaçadoras e ofensivas. Revela-se antes em suportar, dó que em repelir a ofensa recebida. Energia não significa agressividade. Ser franco não é ser ferino, nem, sequer, contundente.

Quanto maior é a coragem, tanto mais calmo age o indivíduo. A consciência do valor próprio, aliada à fé no Supremo Poder, fez o homem tolerante e sofrido, paciente e tranquilo. Tal foi a atitude invariável de Jesus diante das conjunturas mais embaraçosas de sua vida terrena. Suportou todas as injúrias, todas as humilhações e iniquidades que lhe foram infligidas, conservando imaculada e intangível a pureza do alto ideal por que se bateu até ao extremo sacrifício.

Tal é a coragem de que precisam revestir-se os seus discípulos de hoje, como souberam fazer os discípulos do passado.

Saulo, antes de ser Paulo, não denotou coragem nenhuma perseguindo, aprisionando e consentindo no assassínio dos primeiros adeptos do Cristianismo nascente.

Saulo tinha às suas ordens gendarmes municiados; as altas autoridades civis e eclesiásticas lhe conferiam poderes discricionários. Os perseguidos eram párias sociais, sem protecção, pobres e desarmados. A atitude de Saulo era daquelas que confirmam o velho brocardo: Quer conhecer o vilão? Ponha-lhe nas mãos o bastão.

Após o célebre dia de Damasco, em que Saulo se transformou em Paulo, a vilania daquele se converteu na coragem moral deste. De algoz, passou a ser vítima. A seu turno perseguido, tendo agora contra si as armas e o rancor das autoridades detentoras do poder; correndo os maiores riscos, suportando prisões e açoites, afrontando a morte a cada momento, Paulo caminha intrépido e destemido, na defesa da causa santa da justiça e da liberdade personificadas no credo de Jesus.

O extraordinário Apóstolo das gentes oferece-nos, em si mesmo, exemplos da falsa e da legítima coragem, antes e depois da conversão.

Convertamo-nos, pois, nós os espíritas, os neo-cristãos, como se converteu Paulo.

Provemos em nós mesmos, com a transformação radical de nosso carácter, a eficiência e o poder de Jesus-Cristo, como redentor da Humanidade, como libertador do homem, mediante o exemplo de coragem moral que nos legou como herança preciosíssima.

/...

"Aos que comigo crêem e sentem as revelações do Céu, comprazendo-se na sua doce e encantadora magia, dedico esta obra."
                                                                                 Pedro de Camargo “Vinícius”


Pedro de Camargo “Vinícius” (i)Em torno do Mestre, Primeira Parte / Seixos e Gravetos; Conversão / Coragem moral, 7º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: Jesus em casa de Marta e Maria, óleo sobre tela (1654-1655), pintura de Johannes Vermeer)

domingo, 1 de dezembro de 2019

Hippolyte Léon Denisard Rivail


Sr. Home
(primeiro artigo)

Os fenómenos realizados pelo Sr. Home produziram tanta sensação como vieram confirmar os maravilhosos relatos chegados do outro lado do mar, a cuja veracidade se ligava uma certa desconfiança. Mostrou-nos ele que, colocando de lado a maior margem possível devida ao exagero, ainda ficava o bastante para atestar a realidade dos factos que se cumpriam fora de todas as leis conhecidas.

Tem-se falado do Sr. Home e, de diversas maneiras; pensamos que seria exigir demais, que toda a gente lhe fosse simpática, uns por espírito de sistema, outros por ignorância. Queremos até admitir, nestes últimos, uma opinião conscienciosa, visto que por si mesmos não puderam constatar os factos; mas se, em tal caso, é permitida a dúvida, uma hostilidade sistemática e apaixonada é sempre inconveniente. Em toda a relação de causa, julgar o que não se conhece é falta de lógica e, difamar sem provas é esquecer as conveniências. Façamos por um momento, abstracção da intervenção dos Espíritos ao ponto de não vermos nos factos relatados, senão apenas simples fenómenos físicos; merecendo tanto mais atenção quanto mais estranhos forem. Então, explicai-os como quiserdes, mas não os contesteis a priori, se não quiserdes que ponham em dúvida o vosso julgamento. O que deve espantar, o que nos parece ainda mais anormal que os próprios fenómenos em questão, é ver esses mesmos que debateram, sem cessar, contra a oposição de certos núcleos académicos, com relação às ideias novas que continuamente lhes são propostas – e isso em termos pouco comedidos – os dissabores experimentados pelos autores das mais importantes descobertas, como FultonJenner e Galileu, que citam a todo o momento, eles próprios caírem em erro semelhante, logo eles que dizem e, com razão, que até há poucos anos atrás teria passado por insensato quem tivesse falado em corresponder-se de um extremo ao outro da Terra em alguns segundos. Se acreditam no progresso, do qual se dizem apóstolos, que sejam, pois, coerentes consigo mesmos e não atraiam para si a censura que dirigem aos outros, negando o que não compreendem.

Voltemos ao Sr. Home. Chegado a Paris no mês de Outubro de 1855, encontrou-se, desde o início, envolvido no mundo mais elevado, circunstância que deveria ter imposto mais circunspecção no julgamento que lhe fazem, porque, quanto mais elevado e esclarecido é esse mundo, menor é a suspeita de se deixar benevolamente enganar por um aventureiro. Esta mesma posição suscitou comentários. Pergunta-se quem é o Sr. Home. Para viver aqui, para fazer viagens dispendiosas, diz-se, seria necessário ter fortuna. Se não a tem, deve ser sustentado por pessoa poderosa. Sobre este tema se levantou um sem-número de suposições, cada uma mais ridícula que a outra. O que não se disse de sua irmã, que ele foi buscar há cerca de um ano! Comentou-se que era uma médium mais poderosa que ele; que ambos deveriam realizar prodígios de fazer empalidecer os de Moisés. Várias vezes nos fizeram perguntas a esse respeito; eis a nossa resposta.

Vindo à França, o Sr. Home não se dirigiu ao público em geral; ele não gosta, nem procura a publicidade. Se tivesse vindo com propósitos especulativos, teria corrido o país, lançando mão de propaganda em seu auxílio; teria procurado todas as ocasiões para se promover, enquanto as evita; teria estabelecido um preço para as suas manifestações, contudo, ele nada pede a ninguém. Malgrado a sua reputação, o Sr. Home não é, pois, de forma alguma, o que se pode chamar de um homem do mundo; a sua vida privada pertence-lhe exclusivamente. Uma vez que nada pede, ninguém tem o direito de indagar como vive, sem cometer uma indiscrição. É mantido por pessoas poderosas? Isso não nos diz respeito; tudo quanto podemos dizer é que, nesta sociedade de elite ele conquistou amizades verdadeiras e fez amigos devotados, ao passo que, com um prestidigitador, a gente paga, diverte-se e ponto final. Não vemos, pois, no Sr. Home, mais que o seguinte: um homem dotado de uma faculdade notável. O estudo desta faculdade é tudo quanto nos interessa e tudo quanto deve interessar a quem quer que não seja movido apenas pela curiosidade. Sobre ele a História ainda não abriu o livro dos seus segredos; até lá ele pertence à Ciência. Quanto à sua irmã, eis a verdade: É uma menina de onze anos, que ele trouxe a Paris para a sua educação, de que está encarregada ilustre pessoa. Sabe apenas em que consiste a faculdade do irmão. É bem simples, como se vê, muito prosaico para os amantes do maravilhoso.

Agora, por que teria o Sr. Home vindo à França? Certamente não foi para procurar fortuna, como acabámos de provar. Para conhecer o país? Mas ele não o percorre; pouco sai e não tem absolutamente hábitos de turista. O motivo patente é o conselho dos médicos, que acreditam ser o ar da Europa necessário à sua saúde, mas os factos mais naturais são por vezes providenciais. Pensamos, pois, que, se veio aqui é porque deveria vir. A França, ainda em dúvida no que diz respeito às manifestações espíritas, necessitava que lhe fosse aplicado um grande golpe; foi o Sr. Home que recebeu essa missão e, quanto mais alto for o golpe, maior será a sua repercussão. A posição, o crédito, as luzes dos que o acolheram e que foram convencidos pela evidência dos factos, abalaram as convicções de uma multidão de pessoas, mesmo entre aquelas que não puderam ser testemunhas oculares. A presença do Sr. Home terá sido, portanto, um poderoso auxiliar para a propagação das ideias espíritas; se não convenceu a todos, espalhou sementes que frutificarão tanto mais quanto mais se multiplicarem os próprios médiuns. Como já dissemos alhures, essa faculdade não constitui um privilégio exclusivo; existe em estado latente e em diversos graus entre muita gente, não aguardando senão a ocasião para se desenvolver; o princípio está em nós, por efeito próprio da nossa organização; está na Natureza; dele todos temos o gérmen, não estando longe o dia em que veremos os médiuns surgirem em todos os pontos, no nosso meio, nas nossas famílias, tanto entre os pobres como entre os ricos, a fim de que a verdade seja de todos conhecida, pois, segundo nos anunciaram, trata-se de uma nova era, de uma nova fase que começa para a Humanidade. A evidência e a vulgarização dos fenómenos espíritas imprimirão um novo curso às ideias morais, como aconteceu com o vapor com relação à indústria.

Se a vida privada do Sr. Home deve estar fechada às investigações de uma indiscreta curiosidade, há certos detalhes que podem, com toda a razão, interessar ao público e, que são de utilidade para a apreciação dos factos.

Sr. Daniel Dunglas Home nasceu perto de Edimburgo no dia 15 de Março de 1833. Tem, pois, hoje 24 anos. Descende de uma antiga e nobre família dos Dunglas da Escócia, outrora soberana. É um rapaz de estatura mediana, louro, cuja fisionomia melancólica nada tem de excêntrica; é de compleição muito delicada, de maneiras simples e suaves, de carácter afável e benevolente, sobre o qual o contacto com os poderosos não gerou arrogância nem ostentação. Dotado de excessiva modéstia, jamais fez alarde da sua maravilhosa faculdade, nunca fala de si e se, numa expansão de intimidade, conta coisas pessoais, é com simplicidade que o faz e jamais com a ênfase própria das pessoas com as quais a malevolência procura compará-lo. Diversos factos íntimos, do nosso conhecimento pessoal, provam os seus sentimentos nobres e uma grande elevação de alma; nós o constatamos com tanto maior prazer quanto se conhece a influência das disposições morais sobre a natureza das manifestações.

Os fenómenos dos quais o Sr. Home é instrumento involuntário por vezes têm sido contados por amigos muito zelosos com um entusiasmo exagerado, do qual se apoderou a malevolência. Tais como são, não necessitam de amplificação, mais nociva do que a útil à causa. Sendo o nosso fim o estudo sério de tudo quanto se liga à ciência espírita, fechar-nos-emos na estrita realidade dos factos por nós próprios constatados ou por testemunhas oculares mais dignas de fé. Podemos, assim, comentá-los com a certeza de não estar raciocinando sobre coisas fantásticas.

Sr. Home é um médium do género dos que produzem manifestações ostensivas, sem, por isso, excluir as comunicações inteligentes; contudo, as suas predisposições naturais lhe dão para as primeiras uma aptidão mais especial. Sob a sua influência, ouvem-se os mais estranhos ruídos, o ar se agita, os corpos sólidos se movem, levantam-se, transportam-se de um lugar ao outro no espaço, instrumentos de música produzem sons melodiosos, seres do mundo extra-corpóreo aparecem, falam, escrevem e, frequentemente, nos abraçam até causar dor. Na presença de testemunhas oculares, muitas vezes ele mesmo se viu elevado no ar, sem qualquer apoio e a vários metros de altura.

Do que nos foi ensinado sobre a classe dos Espíritos que em geral produzem este tipo de manifestações, não se deve concluir que o Sr. Home esteja em contacto somente com a classe ínfima do mundo espírita. O seu carácter, bem como as qualidades morais que o distinguem, devem, ao contrário, granjear-lhe a simpatia dos Espíritos superiores; para estes últimos, ele não passa de um instrumento destinado a abrir os olhos dos cegos de maneira enérgica, sem que, para isso, seja privado das comunicações de ordem mais elevada. É uma missão que aceitou, missão que não está isenta de tribulações nem de perigos, mas que cumpre com resignação e perseverança, sob a égide do Espírito de sua mãe, seu verdadeiro anjo-da-guarda.

A causa das manifestações do Sr. Home lhe é inata; a sua alma, que parece prender-se ao corpo apenas por fracos liames, tem mais afinidade com o mundo dos Espíritos que com o mundo corpóreo; eis por que se desprende sem esforço, entrando mais facilmente que os outros em comunicação com os seres invisíveis. Essa faculdade revelou-se-lhe desde a mais tenra infância. Com a idade de seis meses, o seu berço balançava sozinho, na ausência da ama de leite e, mudava de lugar. Nos seus primeiros anos ele era tão débil que mal podia suster-se; sentado num tapete, os brinquedos que não podia apanhar deslocavam-se por si mesmos e vinham pôr-se ao alcance das suas mãos. Aos três anos teve as suas primeiras visões, não lhes conservando, porém, a lembrança. Tinha nove anos quando a sua família se fixou nos Estados Unidos; ali, os mesmos fenómenos continuaram com intensidade crescente, à medida que avançava em idade, embora a sua reputação como médium não se tenha estabelecido senão em 1850, época em que as manifestações espíritas começaram a popularizar-se naquele país. Em 1854 foi à Itália, por razões de saúde, como dissemos; surpreendeu Florença e Roma com verdadeiros prodígios. Convertido à fé católica nesta última cidade, viu-se obrigado a romper relações com o mundo dos Espíritos. Com efeito, durante um ano, o seu poder oculto pareceu tê-lo abandonado; mas, como esse poder está acima de sua vontade, terminado esse tempo, conforme lhe anunciara o Espírito de sua mãe, as manifestações reapareceram com nova energia. A sua missão estava traçada; deveria distinguir-se entre aqueles que a Providência escolheu para revelar-nos, por meio de sinais patentes, o poder que domina todas as grandezas humanas.

Se o Sr. Home, como o pretendem certas pessoas que julgam sem ter visto, fosse apenas um hábil prestidigitador, sem dúvida teria sempre à sua disposição, na sua sacola, algumas peças com que pudesse simular as suas mágicas, ao passo que não é senhor de produzi-las à vontade. Ser-lhe-ia impossível dar sessões regulares, pois muitas vezes, justamente no momento em que tivesse necessidade da sua faculdade, esta lhe faltaria. Algumas vezes os fenómenos se manifestam espontaneamente, no momento em que menos se espera, enquanto que, noutras, é incapaz de os provocar, circunstância pouco favorável a quem quisesse fazer exibições a horas certas. O facto seguinte, tomado entre mil, é disto uma prova. Havia mais de quinze dias que o Sr. Home não tinha obtido nenhuma manifestação, quando, almoçando em casa de um dos seus amigos, com mais duas ou três pessoas do seu conhecimento, de repente se ouviram golpes nas paredes, nos móveis e no tecto. Parece que voltaram, disse ele. Nesse momento o Sr. Home estava sentado num canapé com um amigo. Um doméstico trazia uma bandeja de chá e preparava-se para colocá-la sobre a mesa, situada no meio do salão; embora bastante pesada, a mesa se elevou subitamente, destacando-se do solo a uma altura de 20 a 30 centímetros, como se tivesse sido atraída pela bandeja. Apavorado, o criado deixou-a escapar e a mesa, de um pulo, lançou-se em direcção ao canapé, vindo a cair diante do Sr. Home e do seu amigo, sem que nada do que estava em cima se tivesse desarrumado. Este facto não é, absolutamente, o mais curioso dentre aqueles que temos para relatar, mas apresenta essa particularidade digna de nota: a de ter-se produzido espontaneamente, sem provocação, num círculo íntimo, do qual nenhum dos assistentes, cem vezes testemunhas de factos semelhantes, necessitava de novas provas; e, seguramente, não era caso para o Sr. Home exibir as suas habilidades, se habilidades existem.

No próximo artigo citaremos outras manifestações.

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Allan Kardec (i), aliás, Hippolyte Léon Denisard Rivail, Sr. Home, primeiro artigo, Jornal de Estudos Psicológicos, Paris, Fevereiro de 1858, 6º fragmento da Revista objecto do presente título desta publicação.
(imagem de contextualização: Daniel Dunglas Home, o médium de efeitos físicos mais célebre de sempre)