Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

sábado, 14 de dezembro de 2019

~ em torno do mestre


Conversão ~

"Em verdade vos digo que se não vos converterdes e não vos fizerdes como crianças, de modo algum entrareis no reino de Deus." 
(Mateus, 18:3.)

Jesus, dirigindo as palavras supracitadas aos seus apóstolos, fazia-lhes ver da necessidade em que eles se encontravam de se converterem.

Mas, então, não seriam convertidos todos aqueles que acompanhavam o Mestre, ouvindo-lhe os ensinamentos, edificando-se nas suas exemplificações brilhantes? Não seriam convertidos todos aqueles que foram escolhidos pelo mesmo Jesus para seus colaboradores? Este caso merece ser ponderado. Dele ressalta uma edificante lição, digna do nosso maior acatamento.

Converter-se não importa tão-só abraçar este ou aquele credo religioso, nem tão-pouco em se filiar a esta ou àquela igreja, aceitando determinado corpo de doutrina qualquer. O incrédulo pode tornar-se crente sem que se verifique com isso um caso de conversão.

Converter significa transformar. Onde não há transformação, não há conversão. Quanto mais acentuada for a transformação, tanto mais positiva será a conversão. Se essa transformação for tão grande, ao ponto de se não reconhecer o objecto primitivo, podemos afirmar que se trata de um verdadeiro caso de conversão.

Na natureza, transformar quer dizer melhorar. "Nada se cria, nada se perde, tudo se transforma"; isto é, tudo sobe, tudo levita. Crescei e multiplicai — sentença aplicada à criação dos seres — tem sentido espiritual que não deve ser desprezado. "Para a frente e para o alto — tal é a legenda inscrita em cada átomo do Universo."

A conversão é um fenómeno vital de transformação constante para melhor. Tal fenómeno realiza-se tanto no plano físico quanto no moral, Os reinos da Natureza entrelaçam-se em movimento ascensional de contínuas transformações. O espírito progride, melhora e se aperfeiçoa através de ininterrupta série de conversões.

Saulo transforma-se em Paulo, Simão em Pedro, Magdala em Maria. O carácter destas personagens sofreu tal modificação que se tornaram o oposto do que eram. O fanatismo perigoso de Saulo, a fraqueza perniciosa de Simão e a voluptuosidade desenfreada de Magdala converteram-se na tolerância e no sacrifício de Paulo, na firmeza heróica de Pedro e na espiritualidade angélica de Maria. Tais são os tipos genuínos de convertidos.

Conversão importa também em valorização. Objecto convertido é objecto valorizado. O escultor toma um bloco de pedra bruta, um tronco tosco ou mesmo um punhado de argila e converte-os em belas estátuas onde refulgem os primores da arte. É incalculável o valor que o estatuário imprime, por efeito de conversão, àqueles materiais obscuros.

Qual o cálculo possível entre o valor do calcário, antes e depois de ser a Vénus de Milo ou o Discóbolo? E os gramas de tinta antes e depois de serem convertidos em quadros de Miguel Ângelo ou de Velásquez? Entretanto, um exame químico demonstrará tratar-se da mesma substância.

O mesmo acontece com o homem, antes e depois da sua conversão. O carácter se forma e consolida através da obra da conversão, obra que uma vez iniciada jamais deixa de prosseguir o seu curso eficiente de embelezamento e de valorização. O homem velho vai sendo absorvido pelo homem novo: é o renascimento espiritual que se opera.

De tal sorte, é possível voltar ao estado de inocência primitiva, conforme disse Jesus: "Se não vos converterdes, e não vos fizerdes como crianças, não entrareis no reino de Deus." A inocência revela-se sob dois aspectos distintos: a ignorância do mal e, a vitória do bem. A primeira forma é o estado da criança; a segunda representa a condição do justo.

A criança é inocente, porque desconhece o pecado; o justo é inocente, porque adquiriu a virtude. A inocência da criança é fruto da insipiência. A inocência do santo é filha da sabedoria.

Esta permanece, aquela passa. A transição de uma, para a outra espécie de inocência, é a maravilha da conversão. Sem conversão, portanto, ninguém logrará o reino de Deus.


Coragem moral ~

Um dos requisitos exigidos por Jesus, como condição indispensável àqueles que pretendessem seguir-lhe as pegadas, é a coragem moral.

Eu vos envio, disse ele aos discípulos, como ovelhas no meio de lobos. Esta frase é bastante eloquente e, por si só, define muito bem a posição dos cristãos na sociedade do século.

"Sereis entregues aos tribunais por minha causa. Suportareis perseguições, açoites e prisão. Haverá delações entre os próprios irmãos. Atraireis o ódio de todos. A vossa vida correrá risco iminente a cada instante.

"Todavia, não temais, pois até os cabelos de vossas cabeças estão contados. Nenhum receio deveis ter dos homens, cujo poder não vai além do seu corpo. Se chamaram Belzebu ao dono da casa, quanto mais aos seus domésticos. Portanto, nada de temores: o que vos digo à puridade proclamai-o dos eirados. Nada há encoberto que não seja descoberto; nada há oculto que se não venha a saber. Por isso, aquele que me confessar diante dos homens, eu o confessarei diante de meu Pai celestial; e o que me negar diante dos homens, eu o negarei perante meu Pai que está nos céus."

Tais expressões são de clareza meridiana. Para ser cristão, é preciso coragem, ânimo forte, atitude varonil. "Seja o teu falar: sim, sim; não, não". (Mateus, 5:37.) Não há lugar para composturas dúbias, indecisas, oscilantes. O crente em Cristo deve possuir convicção inabalável, têmpera rija, carácter positivo e franco.

Entre as virtudes, não há incompatibilidades. A mansuetude, a cordura e a humildade são predicados que podem (e devem) coexistir com a energia, com a intrepidez, com a varonilidade. Deus é infinitamente misericordioso e, ao mesmo tempo, é infinitamente justo.

O carácter do cristão há de ser forjado de aço de Toledo e de ouro do Transvaal. Assim disse Amado Nervo"Ouro sobre aço sejam a tua vontade e a tua conduta. Sobre o aço do teu pensamento há de luzir o arabesco de ouro das formas puras e gentis. Ouro e aço será a tua vida, serão os teus propósitos, serão os teus actos."

Abulia, indiferença e marasmo não são expressões de bondade. "Não és frio, nem quente; por isso, quero vomitar-te de minha boca." Passividade não é virtude. Entre o bem e o mal, a verdade e a impostura, a justiça e a iniquidade não há lugar para acomodações, nem para neutralidade. O cristão define-se sempre em tais conjunturas, confessando o seu Mestre. "Ninguém pode servir a dois senhores." Que relação pode haver entre Jesus e Baal? Dobrar os joelhos diante de todos os tronos, só porque são tronos; curvar-se perante todos os Césares, só porque são Césares; afazer-se às tiranias e às opressões, anuir directa ou indirectamente às tranquibérnias e vilezas da época; pactuar, enfim, com a injustiça de qualquer maneira e por quaisquer motivos, é negar a Jesus-Cristo no cenáculo social. "Não sejais escravos dos homens, nem das paixões; não sejais, igualmente, nem parasitas, nem bajuladores, nem mendigos" — disse o grande educador Hilário Ribeiro num dos seus excelentes livros didácticos. Não se triunfa na vida, sem ânimo viril. É a covardia moral que faz o homem escravizar-se a outros homens; que o faz escravo de vícios repugnantes e de paixões vis e soezes. É ainda por pusilanimidade e covardia que o homem bajula, mendiga e se torna parasita.

Sem boa dose de coragem (quase ia dizendo de audácia), o homem não cumpre o dever e menos ainda consegue sair-se airosamente das emergências difíceis da vida. O suicídio, seja por este ou por aquele motivo, é sempre um acto de covardia moral. A sentinela valorosa jamais abandona o posto que lhe foi confiado.

Os altos problemas da Vida, consubstanciados na sentença evangélica — Sede perfeitos como vosso Pai celestial é perfeito — requerem ânimo forte e vontade irredutível para serem solucionados. Não é fugindo aos perigos e às dificuldades que o homem há de vencê-las; é enfrentando-as.

coragem moral é a primeira virtude do homem de fé. Cumpre, porém, não confundir a verdadeira coragem com as caricaturas de coragem, que se ostentam por toda a parte. Estas são burlescas e vulgares, aquela é rara e cheia de nobreza. A coragem não consiste em atitudes violentas e belicosas. Nada tem de comum com a temeridade. É serena e íntima. Não se ostenta em bracejos, ou gesticulações espectaculosas, nem em vozeios e frases ameaçadoras e ofensivas. Revela-se antes em suportar, dó que em repelir a ofensa recebida. Energia não significa agressividade. Ser franco não é ser ferino, nem, sequer, contundente.

Quanto maior é a coragem, tanto mais calmo age o indivíduo. A consciência do valor próprio, aliada à fé no Supremo Poder, fez o homem tolerante e sofrido, paciente e tranquilo. Tal foi a atitude invariável de Jesus diante das conjunturas mais embaraçosas de sua vida terrena. Suportou todas as injúrias, todas as humilhações e iniquidades que lhe foram infligidas, conservando imaculada e intangível a pureza do alto ideal por que se bateu até ao extremo sacrifício.

Tal é a coragem de que precisam revestir-se os seus discípulos de hoje, como souberam fazer os discípulos do passado.

Saulo, antes de ser Paulo, não denotou coragem nenhuma perseguindo, aprisionando e consentindo no assassínio dos primeiros adeptos do Cristianismo nascente.

Saulo tinha às suas ordens gendarmes municiados; as altas autoridades civis e eclesiásticas lhe conferiam poderes discricionários. Os perseguidos eram párias sociais, sem protecção, pobres e desarmados. A atitude de Saulo era daquelas que confirmam o velho brocardo: Quer conhecer o vilão? Ponha-lhe nas mãos o bastão.

Após o célebre dia de Damasco, em que Saulo se transformou em Paulo, a vilania daquele se converteu na coragem moral deste. De algoz, passou a ser vítima. A seu turno perseguido, tendo agora contra si as armas e o rancor das autoridades detentoras do poder; correndo os maiores riscos, suportando prisões e açoites, afrontando a morte a cada momento, Paulo caminha intrépido e destemido, na defesa da causa santa da justiça e da liberdade personificadas no credo de Jesus.

O extraordinário Apóstolo das gentes oferece-nos, em si mesmo, exemplos da falsa e da legítima coragem, antes e depois da conversão.

Convertamo-nos, pois, nós os espíritas, os neo-cristãos, como se converteu Paulo.

Provemos em nós mesmos, com a transformação radical de nosso carácter, a eficiência e o poder de Jesus-Cristo, como redentor da Humanidade, como libertador do homem, mediante o exemplo de coragem moral que nos legou como herança preciosíssima.

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"Aos que comigo crêem e sentem as revelações do Céu, comprazendo-se na sua doce e encantadora magia, dedico esta obra."
                                                                                 Pedro de Camargo “Vinícius”


Pedro de Camargo “Vinícius” (i)Em torno do Mestre, Primeira Parte / Seixos e Gravetos; Conversão / Coragem moral, 7º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: Jesus em casa de Marta e Maria, óleo sobre tela (1654-1655), pintura de Johannes Vermeer)

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