Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

domingo, 21 de abril de 2019

O Mundo Invisível e a Guerra ~

XVII

~~~ O Espiritismo e a renovação das vidas anteriores |

(Setembro de 1918)

De entre as experiências que diariamente vêm aumentando o número das provas e dos testemunhos com que se fortalece o Espiritismo, devem ser citadas as que visam a renovação da memória, isto é, a reconstituição no ser humano das lembranças anteriores ao nascimento. Mergulhado num sono hipnótico, o indivíduo se desprende do seu invólucro físico, se exterioriza e, nesse estado psíquico, sente que o círculo de sua memória normal se dilata. Todo o seu passado remoto se desenrola diante dele, em sucessivas fases, podendo reproduzir; reviver as suas cenas principais e mesmo os mais simples acontecimentos, à vontade do experimentador.

Há pouco chamei a atenção do coronel de Rochas para os factos dessa espécie, conseguidos por experimentadores espanhóis e apresentados ao Congresso Espírita e Espiritualista de 1900, realizado em Paris. O coronel, já conhecido pelos seus trabalhos sobre a exteriorização da sensibilidade e da motricidade, prosseguiu as suas pesquisas no sentido que eu lhe indicara e alcançou notáveis resultados. O conjunto desses factos está narrado em sua obra As Vidas Sucessivas.

Os factos obtidos em Aix-en-Provence, na presença do Dr. Bertrand, prefeito da cidade, e do Sr. Lacoste, engenheiro, cujos testemunhos posteriores recolhi no decorrer de uma série de conferências, possuem sérias garantias de autenticidade.

Nessas sessões, a pessoa adormecida era uma jovem de 18 anos, que falava a respeito das suas existências passadas, revivendo-lhe os acontecimentos com realismo e com uma vivacidade de impressões e de sensações que não podem ser fingidas, porque para tanto seriam necessários profundos conhecimentos de patologia, que a pessoa não podia possuir, segundo todas as testemunhas.

As experiências de Grenoble, com outra pessoa, de nome Josephine, permitiram a verificação das condições no tempo e nos lugares onde viveu uma das suas existências anteriores com o nome de Bourdon.

Em compensação, algumas narrativas do livro nos parecem muito menos certas, menos aceitáveis, devidas, em grande parte, à imaginação da sujet, elemento contra o qual devemos estar sempre prevenidos no trato com esses fenómenos. O coronel de Rochas nem sempre foi feliz na escolha dos seus médiuns.

As informações colhidas em Valence e em Hérault mostram que algumas delas não são dignas de confiança. Desse livro colhemos certas observações que achamos poder reproduzir aqui:

“As lembranças – diz o autor – concentram-se em factos mais ou menos distantes, à medida que a hipnose se aprofunda.

A sugestão tem menos domínio quando o sono é mais profundo e, ao despertar, o indivíduo não guarda nenhuma recordação do que disse ou do que fez em transe. Cada vez que o indivíduo passa por uma vida diferente, a sua fisionomia fica de acordo com a personalidade manifestada. Tratando-se de um homem, a palavra, o tom e as maneiras diferem sensivelmente do tom e dos gestos de uma mulher. O mesmo acontece quando passa pela fase infantil.”

Os experimentadores espanhóis, dos quais já falamos, haviam feito a mesma verificação, pois à medida que os seus pacientes remontavam às existências passadas, a expressão do seu olhar se tornava cada vez mais selvagem.

O coronel de Rochas narra as impressões pessoais que teve em Roma e em Tivoli, a respeito do que ele considera lembranças de vidas passadas, terminando a sua obra dizendo o seguinte:

“A teoria espírita baseia-se em fundamentos sólidos e, em qualquer caso, é a melhor das hipóteses de estudo que temos formulado.”

Devo confessar que participei em experiências dessa espécie por muito tempo, com a diferença de que, ao contrário de agir fluidicamente sobre os médiuns, deixava que os meus protectores invisíveis os adormecessem, limitando-me a estimulá-los com as minhas perguntas e observações. Com efeito, seria errado acreditar que a presença de um magnetizador seja imprescindível. Ao contrário, se a pureza das suas intenções não é completa, a sua intervenção pode ser prejudicial, pois introduz nas sessões um elemento de perturbação que compromete a veracidade dos resultados.

Quando estamos certos de uma protecção segura do Além, é melhor entregarmos a direcção das experiências às entidades invisíveis. Os meus guias deram-me tais provas do seu poder, do seu saber e de sua elevação que a minha confiança neles foi absoluta.

Deixo por relatar aqui os pormenores dos factos obtidos nessas condições, porque com eles se mistura um elemento pessoal e muito íntimo que me tira a liberdade de os divulgar.

As experiências do coronel de Rochas, assim como as da mesma natureza que acabamos de apresentar, devem ser consideradas como ensaios, tentativas de reconstituição de lembranças de vidas passadas, porque os resultados ainda são parciais e limitados. Mesmo que não se veja nelas senão experiências, deve reconhecer-se que nos dão indicações valiosas sobre os processos a serem empregados e nos demonstram que existe ali um vasto campo de investigações, um conjunto de elementos capazes de renovar toda a Psicologia, desfazendo o mistério vivo que trazemos em nós.

Essas experiências são delicadas e complicadas; exigem muita prudência, em virtude das inúmeras dificuldades com que nos deparamos. Pode ler-se na Revue Spirite, de Julho de 1918 (i), as instruções do espírito William Stead (*) sobre os processos aplicáveis a tal género de pesquisas. Não insistiremos mais nesse ponto, todavia voltaremos às enormes consequências que tais estudos terão quando adquiram desenvolvimento suficiente, não se podendo negar que existe ali o gérmen de uma verdadeira revolução no conhecimento do ser.

É um fenómeno que impressiona (nas experiências bem dirigidas) vermos o passado aparecer, pouco a pouco, dos cantos obscuros de nossa memória e, nos seus acontecimentos, acompanhar o rigoroso encadeamento das causas e dos efeitos que regem todos os nossos actos, que dominam o mundo moral tanto quanto o mundo físico e que representam a trama, a própria lei dos nossos destinos. Nela aparece evidente a lei de justiça e ninguém a pode contestar.

Essas experiências ainda têm outra consequência, não menos importante: ensinam que a personalidade humana é muito mais vasta e mais profunda do que se pensava. O homem possui não apenas elementos vitais pouco conhecidos, mas também faculdades latentes, desconhecidas, cuja manifestação, plena e total, o nosso organismo não permite, mas em certos casos se revelam: a telepatia (i), a premonição (i) e a visão à distância (i). O mesmo acontece com as camadas de nossa memória onde dorme o passado; no decorrer das experiências de que falamos este reaparece saindo da sombra.

A nossa própria história se desenvolve automaticamente e as recordações acordam aos montes, revelando energias ocultas. Podemos apoderar-nos delas, colocá-las em acção para uma boa direcção de nossa vida, para a transformação do nosso porvir e de nosso destino.

Ali, na imortal consciência individual, reside a sanção de todas as coisas. A consciência se recupera no Além, não limitada e abafada como no mundo terreno, mas na sua plenitude, tal qual se nos aparece no transe, com uma tamanha intensidade que o ser evolvido revive o seu passado nas suas alegrias e dores, com tal poder, que se torna para ele uma fonte de venturas ou de tormentos.

Eis aí o que todo o homem deve saber, e um dia saberá, esse conhecimento profundo do ser que o Espiritismo proporcionou. Ele foi o primeiro a orientar a atenção dos experimentadores para esse conhecimento, mostrando-lhe os lados misteriosos, inexplorados da nossa natureza, ensinando o homem a medir a extensão do seu poder, de toda a sua grandeza e de todo o seu porvir.

Não existe, portanto, exagero ao dizer que o Espiritismo, depois de 50 anos de vida, exerce e exercerá, cada vez mais, uma crescente influência, trazendo transformações consideráveis à Ciência, à Literatura e até às Igrejas, como o apresentaremos em próximo artigo.

A grande doutrina das vidas sucessivas da alma, divulgada na França por todos os espíritos nas suas mensagens e comunicações, constitui uma revelação, um ensinamento filosófico de grande importância.

Ela também se apoia em testemunhos quase universais, porque, com excepção do neocristianismo, todas as religiões e quase todas as filosofias, em princípio, a admitem.

Além disso, se beneficia com a possibilidade, que só ela possui, de resolver logicamente os antagonismos aparentes e os obscuros problemas da vida. É verdade que, no campo das provas e dos factos, essa doutrina, até aqui, não possuía senão as reminiscências de alguns homens especialmente dotados, recordações infantis e renascimentos ocorridos em condições anunciadas e bem marcadas.

Graças aos fenómenos de renovação da memória, abre-se, proveitosamente, um vasto campo de observações e nessas experiências se obterá a força e a certeza necessárias para enfrentar e desafiar todas as críticas e ataques.

À medida que as etapas se desenrolam, enquanto o sujet se encontra em transe, entendemos melhor o encadeamento dos destinos do ser. A lei do progresso, por exemplo, destaca-se com mais evidência no conjunto de nossas vidas individuais do que na história das nações que, muitas vezes, são levadas para abismos, pela cobiça desmedida dos seus soberanos e dos seus déspotas, como actualmente está a suceder.

Nos fenómenos tratados, é interessante verificar-se a personalidade humana sair, gradativamente, da vida selvagem e da barbárie e ir se esclarecendo, aos poucos, com a civilização.

livre-arbítrio do homem frequentemente se exerce ao contrário da lei do progresso, prejudicando-a; entretanto as suas consequências são mais sensíveis para o indivíduo do que para a colectividade, que se renova de tempos em tempos por elementos inferiores, provenientes de mundos mais atrasados do que a Terra.

Sucede o mesmo, como já afirmámos, com a ideia de justiça, encontrada, em inteira aplicação, na sucessão de novas vidas. As recordações comprovam que todas as nossas vidas são solidárias umas com as outras e unidas entre si pelo liame de causa e efeito.

Poderíamos comparar cada uma delas a uma corrente que carrega ora o lodo do fundo, ora as pepitas de ouro e as pedras preciosas que trazemos das nossas vidas passadas.

Qualquer acto importante, cedo ou tarde, tem inevitável influência nos nossos destinos. Um devasso sedutor renascerá no outro sexo, para sofrer, por sua vez, os danos que causou.

Um homem que detinha um segredo de Estado e o divulgando, traiu o seu país, retornará surdo e mudo noutra existência. Outros, ainda mais culpados, desde a infância serão feridos pela cegueira, porque cada falta grave determina uma privação de liberdade que se traduz pela colocação de nossas almas em corpos disformes, doentes e miseráveis.

Não se conclua daí que todos os doentes são criminosos do passado! Muitos bons espíritos, sabendo que as provações ajudam o nosso aperfeiçoamento, escolhem existências difíceis e dolorosas, para alcançar um grau a mais na hierarquia espiritual.

Compete, sabermos, sofrer para nos juntarmos às almas nobres que progrediram pela dor; sabermos sofrer para conseguir o direito de participar da existência delas, do seu trabalho e da sua missão. Além disso, a vida é um meio de educação e de progresso, sendo a provação um cadinho onde se aperfeiçoam as criaturas.

Diante de nós, não temos os notáveis exemplos dos mártires de todas as grandes causas, os exemplos de Jeanne d’Arc na prisão e o de Jesus no calvário, estendendo os braços sobre o mundo, do alto da cruz, perdoando e abençoando? Eles não eram culpados, porém espíritos heróicos que desejavam subir mais alto na vida celestial, dando-nos uma grande lição!

A reconstituição das reminiscências está concorde com as revelações dos espíritos, apresentando-nos no padecimento humano, em muitos casos, o resgate das faltas cometidas, a reparação do passado, através do meio por onde se realiza a soberana justiça.

Realizado o resgate, a criatura se prepara para novos progressos, porém a sua memória não desaparece integralmente e os nossos actos surgem e revivem, ao comando do espírito, com espantosa intensidade. Quanta emoção, quando, invocando o passado, desfila perante o tribunal da consciência o cortejo das desagradáveis recordações! Como fugir de tal obsessão, das tristezas e remorsos e dos sofridos arrependimentos?

No ocaso da vida, o homem passa em revista os actos que constituíram o seu curso. Quantos motivos para a amargura e sofrimento moral vai neles encontrar!

O que não representará para o espírito, na análise da sua longa série de existências passadas, a recordação de seus pormenores?

Pouquíssimas almas jovens no início, na sua fraqueza e na sua ignorância, conseguiram evitar as quedas, os desfalecimentos e até os crimes. Para tais males só existe um remédio: juntar tantas vidas úteis e proveitosas, tantas obras de dedicação e de sacrifício que, comparadas às faltas primitivas, estas passem a ter pouco valor.

As reminiscências mais distantes permanecem vivas para o espírito, da mesma forma que as impressões da infância para o velho. É que, na sua essência, o espírito escapa ao tempo; volvendo à vida do espaço, o tempo já não existe para ele; o passado e o futuro se misturam no eterno presente.

Tal constância das recordações tem valor moral: durante o seu progresso o espírito adquire faculdades e poderes dos quais se envaideceria, caso não se lembrasse do pouco que foi e do mal que praticou.

Tais lembranças são uma punição para o orgulho e, ao mesmo tempo, motivo de indulgência para com os erros e os desfalecimentos do próximo. Realmente, como poderíamos ser duros e inclementes com os outros, por causa de suas fraquezas, se nós mesmos as cometemos?

Geralmente as vidas culpadas, pelas reparações que acarretam, convertem-se, para o ser, noutros tantos estimulantes, noutras tantas provações, obrigando-o a se adiantar na senda do progresso, sendo que as vidas apáticas, incolores, vacilantes entre o bem e o mal, são de pouco proveito para ele.

Graças às vidas de lutas e provações, os caracteres se fortalecem, a experiência se consegue, as riquezas da alma se desenvolvem. O mal transforma-se, aos poucos, em força para o bem. Na imensa evolução humana tudo se transforma, se depura e se eleva. Tão logo chegados às celestes alturas, os elementos das nossas vidas sucessivas se fundem em uma unidade harmoniosa e divina.

/…
(*) William Thomas Stead (1849-1912), foi um editor de um jornal inglês, pioneiro do jornalismo investigativo (i) e pacifista. Stead estava a bordo do RMS Titanic (i) e morreu durante o naufrágio do transatlântico (i). Era considerado um dos mais famosos ingleses a bordo. Na década de 1890, Stead, se foi tornando cada vez mais interessado no espiritualismo (i). Fonte: Wikiwand, ver notícia completa (i). Nota desta publicação.


LÉON DENIS, O Mundo Invisível e a Guerra, XVII O Espiritismo e a Renovação das Vidas Anteriores, Setembro de 1918, 32º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: Willim Stead, foi um editor de um jornal inglês, pioneiro do jornalismo investigativo, pacifista, interessado espiritualista pesquisador e editor, que ia a bordo do Titanic e morreu no naufrágio do transatlântico.

segunda-feira, 8 de abril de 2019

Da sombra do dogma à luz da razão ~


O instinto e a inteligência ~

     Que diferença existe entre o instinto e a inteligência? Onde acaba um e começa o outro? O instinto é uma inteligência rudimentar ou uma fatalidade distinta, um atributo exclusivo da matéria?

   O instinto é a força oculta que instiga os seres orgânicos a actos espontâneos e involuntários para a sua conservação. Nos actos instintivos não há nem reflexão, nem combinação, nem premeditação.

   É assim que a planta procurara o ar, se volta para a luz, orienta as suas raízes para a água e para a Terra alimentadora; que a flor se abre e se fecha alternadamente consoante a necessidade; que as plantas trepadeiras se enrolam à volta do suporte ou se agarram com as gavinhas. É por instinto que os animais são prevenidos quanto ao que lhes é útil ou prejudicial; que se dirigem consoante as estações para os climas propícios; que constroem, sem lições prévias, com mais ou menos arte, consoante as espécies, ninhos macios e abrigos para a sua progenitura, dispositivos para apanharem em armadilhas as presas com que se alimentam; que manobram com perícia as armas ofensivas ou defensivas com que estão dotados; que os sexos se aproximam; que a mãe mima os seus meninos e que estes procuram o seio da mãe. No homem, o instinto domina exclusivamente o início da vida; é por instinto que a criança faz os seus primeiros movimentos, que toma os primeiros alimentos, que chora para exprimir as suas necessidades, que imita o som da voz, que tenta falar e andar. Mesmo no adulto, alguns actos são instintivos; são assim os movimentos espontâneos para evitar um risco, para se afastar de um perigo, para manter o equilíbrio; são também assim o fechar das pálpebras para suavizar o clarão da luz, a abertura maquinal da boca para respirar, etc.

   A inteligência revela-se por actos voluntários, reflectidos, premeditados, combinados, segundo a oportunidade das circunstâncias. É incontestavelmente um atributo exclusivo da alma.

   Qualquer acto maquinal é instintivo; o que revela reflexão, combinação, uma deliberação, é inteligente; um é livre, o outro não o é.

   O instinto é um guia seguro que nunca engana; já a inteligência, pelo facto de ser livre, está por vezes sujeita ao erro.

   Se o acto instintivo não tem o carácter do acto inteligente, revela pelo menos uma causa inteligente essencialmente previdente. Se admitirmos que o instinto tem a sua origem na matéria, teremos de admitir que a matéria é inteligente, mesmo mais seguramente inteligente e previdente do que a alma, dado que o instinto não se engana, enquanto a inteligência se engana.

   Se considerarmos o instinto como uma inteligência rudimentar como é que, em certos casos, é superior à inteligência reflectida? Que lhe permite fazer coisas que a inteligência não pode produzir?

   Se é atributo de um princípio espiritual especial, que acontece a esse princípio? Dado que o instinto se apaga, esse princípio seria então anulado? Se os animais só são dotados de instinto, o seu futuro não tem portanto saída; os seus sofrimentos não têm qualquer compensação. Não estaria conforme com a justiça nem com a bondade de Deus (Capítulo II, n.º 19).

   Segundo uma outra teoria, o instinto e a inteligência teriam um só e igual princípio, chagado a um certo grau de desenvolvimento, este princípio, que primeiro só teria possuído as qualidades do instinto, sofreria uma transformação que lhe daria as da inteligência livre.

   Se assim fosse, no homem inteligente que perde a razão e já só é guiado pelo instinto, a inteligência regressaria ao seu estado primitivo; e quando recuperasse a razão o instinto tornar-se-ia de novo inteligência e assim alternadamente em cada acesso, o que não é admissível.

   De resto, a inteligência e o instinto mostram-se muitas vezes simultaneamente no mesmo acto. No andamento, por exemplo, o movimento das pernas é instintivo; o homem coloca um pé à frente do outro instintivamente, sem pensar nisso; mas quando quer acelerar ou retardar o andamento, levantar um pé ou voltar-se para evitar um obstáculo, há nisso cálculo, combinação; age deliberadamente. O impulso involuntário do movimento é o acto instintivo; a direcção calculada do movimento é o acto inteligente. O animal carnívoro é levado pelo instinto a alimentar-se de carne; mas as precauções que toma consoante as circunstâncias para apanhar a presa, a sua previsão das eventualidades, são actos da inteligência.

   Outra hipótese que aliás se alia perfeitamente à ideia de unidade do princípio, resulta do carácter essencialmente previdente do instinto, e estou de acordo com o que o Espiritismo nos ensina no que se refere às relações do mundo espiritual com o mundo corporal.

   Sabemos agora que Espíritos não encarnados têm por missão velar pelos encarnados de que são os protectores e os guias; que os rodeiam com os seus eflúvios; que o homem age muitas vezes de forma inconsciente sob a acção destes eflúvios.

   Sabemos além disso que o instinto, que produz ele mesmo actos inconscientes, predomina nas crianças e, em geral, nos seres de razão fraca. Ora, segundo esta hipótese, o instinto não seria um atributo nem da alma nem da matéria; não pertenceria exclusivamente ao ser vivo, mas seria um efeito da acção directa dos protectores invisíveis que compensariam a imperfeição da inteligência provocando eles mesmos os actos inconscientes necessários à conservação do ser. Seria como os suspensórios com a ajuda dos quais sustentamos a criança que não sabe ainda andar. Mas, tal como suprimimos gradualmente o uso dos suspensórios à medida que a criança se sustem sozinha, os Espíritos protectores, à medida que estes se vão podendo orientar pela sua própria inteligência, deixam os seus protegidos entregues a si mesmos.

   Assim, o instinto, longe de ser produto de uma inteligência rudimentar e incompleta, seria produto de uma inteligência estranha na plenitude da sua força; inteligência protectora, suprindo as influências tanto de uma inteligência mais jovem que influenciaria para fazer inconscientemente, para seu bem, o que ela é ainda incapaz de fazer por si, como as de uma inteligência madura, mas momentaneamente impedida do uso das suas faculdades, tal como acontece no homem durante a infância e nos casos de idiotice ou de afecções mentais.

    Dizemos proverbialmente que há um Deus para as crianças, para os loucos e para os bêbados; este ditado é mais verdadeiro do que julgamos; este Deus não é outro se não o Espírito protector que vela pelo ser incapaz de se proteger pela sua própria razão.

   Por esta ordem de ideias, podemos ir mais longe. Esta teoria, por muito racional que seja, não explica todas as dificuldades da questão.

   Se observarmos os efeitos do instinto, começamos por notar uma unidade de ideias e de conjunto, uma segurança de resultados que deixa de existir quando o instinto é substituído pela inteligência livre; além disso, na adequação tão perfeita e tão constante das faculdades instintivas às necessidades de cada espécie, reconhecemos uma profunda sabedoria. Esta unidade de ideias não poderia existir sem unidade de pensamentos, e a unidade de pensamentos é incompatível com a diversidade de aptidões individuais; só ela poderia produzir este conjunto tão perfeitamente harmonioso que se manifesta desde a origem dos tempos e em todos os climas, com uma regularidade e uma precisão matemáticas, sem nunca falhar. A uniformidade no resultado das faculdades instintivas é um facto característico que implica forçosamente a unidade da causa; se esta causa fosse inerente a cada individualidade haveria tantas variedades de instintos como há de indivíduos, desde a planta até ao homem. Um efeito geral, uniforme e constante; um efeito que acusa sabedoria e precaução deve ter uma causa sábia e previdente. Ora, uma causa sábia e previdente, sendo necessariamente inteligente, não pode ser exclusivamente material.

   Não encontrando nas criaturas, encarnadas ou não, as qualidades necessárias para produzirem um resultado assim, é necessário ir mais alto, isto é, até ao próprio Criador. Se nos limitamos à explicação que foi dada sobre a maneira como podemos conceber a acção providencial (Capítulo II, n.º 24); se imaginarmos todos os seres penetrados de fluído divino, soberanamente inteligente, compreenderemos a sabedoria previdente e a unidade de ideias que presidem a todos os movimentos instintivos para o bem de cada indivíduo. Esta solicitude é tanto mais activa quanto menos recursos o indivíduo possui em si e na sua inteligência; é por isso que se revela maior e mais absoluto nos animais e nos seres inferiores do que nos homens.

   Segundo esta teoria, compreendemos que o instinto seja um guia sempre seguro. O instinto maternal, o mais nobre de todos, que o materialismo rebaixa ao nível das forças atraentes da matéria, encontra-se elevado e enobrecido. Devido às suas consequências, não podia ser deixado às eventualidades caprichosas da inteligência e do livre-arbítrio. Através do organismo da mãe, Deus vela pelas suas criaturas que vão nascer.

   Esta teoria não destrói de modo nenhum o papel dos Espíritos protectores cujo concurso é um facto adquirido e provado pela experiência; mas é de notar que a acção destes é essencialmente individual, que se modifica consoante as qualidades próprias do protector e do protegido e que em sítio nenhum tem a uniformidade e a generalidade do instinto. Deus, na sua sabedoria, conduz ele mesmo os cegos, mas confia a inteligências livres o cuidado de conduzir os clarividentes, para deixar a cada um a responsabilidade dos seus actos. A missão dos espíritos protectores é um dever que aceitam voluntariamente e que é para eles um meio de evolução, consoante a forma como a cumprem.

   Todas estas formas de considerar o instinto são necessariamente hipotéticas e nenhuma tem um carácter de autoridade suficiente para ser dada como solução definitiva. A questão será certamente solucionada um dia, quando tivermos reunido os elementos de observação que ainda nos faltam; até lá, temos de nos limitar a submeter as várias opiniões ao cadinho da razão e da lógica e esperar que se faça luz; a solução que mais se aproxima da verdade será necessariamente aquela que corresponde melhor aos atributos de Deus, isto é, à soberana bondade e à soberana justiça (Capítulo II, n.º 19).

   Sendo o instinto o guia e as paixões a energia das almas no primeiro período do seu desenvolvimento, confundem-se às vezes nos seus afectos. Há no entanto entre estes dois princípios diferenças que é essencial considerarmos. O instinto é um guia seguro, sempre bom; numa determinada altura, pode tornar-se inútil, mas nunca prejudicial; enfraquece com a predominância da inteligência.

   As paixões, nos primeiros anos da alma, têm isto de comum com o instinto, no que os seres são para isso solicitados por uma força igualmente inconsciente. Nascem mais particularmente das necessidades do corpo e estão mais ligadas ao organismo do que o instinto. O que sobretudo as distingue do instinto é que são individuais e não produzem, como este último, efeitos gerais uniformes, pelo contrário, vemo-las variar de intensidade e de natureza consoante os indivíduos. São úteis como estimulante até à eclosão do sentido moral que, de um ser passivo, faz um racional; nesse momento, não só se tornam inúteis como são prejudiciais à evolução do Espírito, a que retardam a desmaterialização; enfraquecem com o desenvolvimento da razão.

   O homem que agisse constantemente por instinto poderia ser muito bom, mas deixaria a sua inteligência adormecer, seria como uma criança que não largasse os suspensórios e não soubesse servir-se dos seus membros. Quem não domina as suas paixões pode ser muito inteligente mas, ao mesmo tempo, muito mau. O instinto anula-se por si; as paixões só se dominam com força de vontade.

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ALLAN KARDEC, A GÉNESE – Os Milagres e as Profecias Segundo o Espiritismo, Capítulo III, O Bem e o Mal – O instinto e a inteligência (de 11 a 19), 20º fragmento da obra. Tradução portuguesa de Maria Manuel Tinoco, Editores Livros de Vida.
(imagem de contextualização: Diógenes e os pássaros de pedra, pintura em acrílico de Costa Brites).