A Força e a Matéria II – O Céu ~
Estrelas, sóis, mundos errantes, cometas fúlgidos,
sistemas estranhos, astros misteriosos, todos proclamariam harmonia, seriam
todos os acusadores de quantos decretam não passar a força de cego atributo da
matéria. E quando, acompanhando as relações numéricas que ligam todos esses
mundos ao Sol – qual coração palpitante de um mesmo ser – houvermos
personificado o sistema planetário do próprio Sol – foco colossal que a todos
absorve na sua esplendente e poderosa personalidade – então, não tardaremos a
ver nesse Sol, com o seu sistema, em trânsito pelos espaços infinitos, o
atestado de que todas as estrelas são outros tantos sóis, cercados, como o
nosso, de uma família que deles recebe luz e vida, e veremos que todas as
estrelas são guiadas por movimentos diversos e que, muito longe de ficarem
fixas na imensidade, caminham com velocidades terrificantes, ainda mais céleres
que as atrás mencionadas.
Só então, o Universo inteiro brilhará aos nossos olhos
sob o verdadeiro prisma e as forças que o regem proclamarão, com a eloquência
maravilhosamente brutal de facto concreto, o seu valor, a sua missão,
autoridade e poder. Diante desses movimentos indescritíveis –
inconcebíveis mesmo, poderíamos dizer – que transportam pelos desertos do
infinito essa infinidade de sóis; diante dessa catadupa de estrelas do
infinito; diante dessas rotas, dessas órbitas imensuráveis, seguidas com a
passividade dos ponteiros de um relógio, da maçã que cai, ou da roda do moinho,
obedientes à lei da gravidade; diante da submissão dos corpos celestes a regras
que a mecânica e as fórmulas analíticas podem traçar de antemão, bem como da
condição suprema de estabilidade e duração do mundo, quem ousará negar que a
Força não governe, não dirija soberanamente a Matéria, em virtude de uma lei
inerente ou afecta à própria Força? Quem pretenderá subordinar a Força
à cegueira constitucional da Matéria e afirmar, à maneira retrógrada dos
peripatéticos, que ela não passa de atributo oculto, reduzindo-a ao papel de
escrava, quando ela se impõe de tal arte e reivindica credenciais de absoluta
suserania? Que Deus tal nunca permita. Que sucederia se ela, a Força, deixasse
de agir e abdicasse do seu ceptro? A só imaginação desta hipótese
dissolve a harmonia do mundo e o faz esboroar-se num caos informe, digno
resultado, aliás, de tão insensata tentativa.
Leis universalmente demonstradas proclamam a unidade
do Cosmos e evidenciam que o mesmo pensamento que regula as nossas marés
oceânicas preside às revoluções siderais das estrelas duplas, nos latifúndios do
céu. Tais duplos, triplos, quádruplos sóis giram em conjunto, em volta do
centro comum de gravidade, obedecendo às mesmas leis que regem o nosso sistema
planetário. Nada mais próprio do que esses sistemas para nos dar uma ideia da
escala da construção dos mundos – diz John Herschel.
Quando vemos esses corpos imensos, encasalados,
descreverem órbitas enormes, cujo percurso lhes demanda séculos, somos levados
a admitir simultaneamente que eles preenchem, na Criação, uma finalidade que
nos escapa e que atingimos os limites da humana inteligência para confessar a
nossa inópia e reconhecer que a mais fecunda imaginação não pode ter do mundo
uma concepção aproximativa sequer, da grandeza do assunto.
Os astrónomos que humildemente remontam ao princípio
ignoto das causas não podem eximir-se de considerar nas mãos de um ser
inteligente essa atracção universal, que rege inteligentemente o Cosmos. “A
lei de gravitação – dizia o saudoso director do Observatório de Toulouse (i) –
enfeixa implicitamente as grandes leis que regem os movimentos celestes e, por
uma dessas coincidências notáveis que são o mais seguro índice da verdade –
longe de temer as excepções aparentes, as perturbações dos movimentos normais,
antes delas extrai as mais brilhantes confirmações. Assim é que vemos os
geómetras modernos explicarem a precessão dos equinócios pela combinação da
força centrífuga, oriunda da rotação da Terra, com a acção do Sol sobre o nosso
menisco equatorial. Assim é que vemos, ainda, explicar-se a nutação por uma
influência análoga, da Lua, sobre a luminescência mesma da Terra e, mais: – as
atracções planetárias, a oscilação da eclíptica e do movimento do apogeu solar;
do retardamento de Júpiter quando Saturno se acelera, e vice-versa, quando a
aceleração se dá em Júpiter, etc. Finalmente, é assim que sabemos por que, sob
a influência solar, a média do nosso movimento terráqueo se vai acelerando de
século em século e deverá diminuir mais tarde, por que a linha dos nós da Lua
perfaz a sua revolução em movimento retrógrado dentro de dezoito anos e por que
o perigeu lunar se completa em pouco menos de nove anos, etc. (ii)
(i) F. Petit – Traité
d’Astronomie, 24º et dernlère leçon.
(ii) Curioso é que Clairaut, tendo
encontrado nos seus cálculos um período de dezoito em vez de nove anos,
declarasse insuficiente, para este caso, a gravitação inversa ao quadrado da
distância e que fosse precisamente um naturalista, Buffon,
que, persuadido de que a Natureza não podia ter duas leis diferentes,
insistisse com o geómetra para que revisse os seus cálculos. Clairaut, após um
novo exame, reconheceu que a primeira assertiva estava errada, pois que havia
negligenciado, nas séries, termos indispensáveis.
Não somente, em resumo, esse princípio notável explica
todos os fenómenos conhecidos, como permite, muitas vezes, descobrir efeitos
que a observação não indica, de modo que se poderia estabelecer a
priori, pela análise, a constituição do mundo e não nos socorrermos da
observação senão em alguns pontos de referência, de que se utilizam os
geómetras sob a denominação de constantes, nos seus cálculos. – Tudo pois,
no Universo, marcha por efeito de uma organização admirável de
simplicidade, visto que os movimentos, aparentemente mais complicados,
resultam da combinação de impulsos primitivos com uma força única agindo sobre
cada molécula material; força única, com a qual, e consequentemente, haja de
ocupar-se, por assim dizer, o Criador. Mas, também, que desenvolvimento de
poder não requer a produção incessante dessas forças, cuja existência não é
essencialmente inerente à matéria! Oh! como deve ser vigilante a mão eterna que
sabe, a cada momento, renovar tais forças, até nos mais impalpáveis átomos dos
inumeráveis astros destinados a povoar as regiões de infinita imensidade. Não
será o caso de dizer com o rei-profeta, inclinando-se perante tanta grandeza: Coeli
enarrant gloriam Dei?
A partir de Newton e Képler, sabemos que o
Universo é um dinamismo imenso, cujos elementos na sua totalidade não cessam de
agir e reagir na infinidade do tempo e do espaço, com actividade indefectível. Esta
a grande verdade que a Astronomia, a Física e a Química nos revelam nas
imponentes maravilhas da Criação.
Tal o sublime espectáculo do mundo, tais as leis
constitutivas da sua harmonia. Ora, qual a perfídia de linguagem, ou de
raciocínio, que os materialistas utilizam para traduzir pró-domo sua esses
factos e concluírem pela ausência de todo e qualquer pensamento divino?
Eis aqui os argumentos inscritos em letras berrantes
num catecismo materialista que, por seu colorido de Ciência, se tem imposto a
muita gente: (iii)
(iii) Büchner – Força e matéria.
“Todos os corpos celestes, pequenos ou grandes, se
conformam, sem relutância, sem excepções nem desvios, com esta lei inerente a
toda a matéria e a toda partícula de matéria, como podemos experimentar a cada
momento. É com uma precisão e certeza matemáticas que todos esses movimentos se
fazem reconhecer, determinar e predizer. Os espiritualistas vêem nestes factos
o pensamento de um Deus eterno, que impôs à Criação as leis imutáveis de sua
perpetuidade. Os materialistas, porém, ao contrário, não vêem nisso senão a
prova de que a ideia de Deus não passa de uma pilhéria. Outro fora o caso, se
existissem corpos celestes caprichosos ou rebeldes, se a grande lei que os rege
não fosse soberana. É fácil (diz Büchner) conciliar o nascimento, a constelação
(?) e o movimento dos orbes com os processos mais simples que a matéria de si
mesma nos possibilita. A hipótese de uma força pessoal criadora é inadmissível.
Por que? Ninguém, jamais, pôde sabê-lo. Os espiritualistas admiram o movimento
dos astros, a ordem e harmonia que a eles preside. Ingénuos! No Universo não há
ordem nem harmonia e sim, pelo contrário, a irregularidade, os acidentes, a
desordem, que excluem a hipótese de uma acção pessoal regida pelas leis da
inteligência, mesmo humana.”
Ponderemos: Copérnico publicou Revoluções
Celestes, após trinta anos de árduos labores; Galileu só depois
de vinte anos fecundou a lei do pêndulo; Képler não levou
menos de dezassete para formular as suas leis e Newton, já octogenário, dizia
não ter ainda chegado a compreender o mecanismo dos céus; e, depois disso, vêm
propor-nos acreditar que essas leis sublimes e que tudo quanto esses génios
possantes mal puderam encontrar e formular não revelam no ascendente que as
impôs à matéria, uma inteligência sequer igual à do homem!
E o Sr. Renan escreve então esta frase: “Por mim,
penso não haver no Universo inteligência superior à humana.” E ousam
compadrinhar-se com acidentes que propriamente o não são, para afirmarem que
não existe harmonia na construção do mundo.
Que seria, então, preciso para vos satisfazer,
senhores críticos de Deus?
Vamos dizê-lo: primeiro, que não houvesse espaço (!)
ou que esse espaço fosse menos vasto, visto haver, decididamente, muito espaço
no infinito: “se houvéramos de atribuir a uma força criadora individual – diz
Büchner – a origem dos mundos para habitação de homens e animais, importaria
saber para que serve esse espaço imenso, deserto, vazio, inútil, no qual
flutuam planetas e sóis? Porque os outros planetas do sistema não se tornaram
habitáveis para o homem?” Na verdade, formulais uma pergunta bem
simples. E aí temos como esses senhores se dão à fantasia de declarar inútil o
espaço, a querer que todos os globos se comuniquem entre si. O
caricaturista Granville já tivera a mesma ideia, quando representou num dos
seus encantadores desenhos os jupterianos em excursão a Saturno, atravessando
uma ponte, de charuto na boca. E o anel de Saturno lá está como um
grande alpendre, onde os saturninos vão à noite refrescar-se. Se esse
é o desejado universo, cujo primeiro resultado seria imobilizar o sistema
planetário, mais avisados andariam os inventores dirigindo-se seriamente à
Escola de Pontes e Calçadas, antes que à Filosofia.
Que esta, na verdade, nada tem com isso.
/…
Camille Flammarion, Deus na Natureza – Primeira Parte, A Força
e a Matéria II – O Céu 2 de 3, 12º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: Jungle Tales_1895,
pintura de James
Jebusa Shannon)
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