Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

quarta-feira, 8 de julho de 2015

Deus na Natureza ~

A Força e a Matéria II – O Céu ~

  Estrelas, sóis, mundos errantes, cometas fúlgidos, sistemas estranhos, astros misteriosos, todos proclamariam harmonia, seriam todos os acusadores de quantos decretam não passar a força de cego atributo da matéria. E quando, acompanhando as relações numéricas que ligam todos esses mundos ao Sol – qual coração palpitante de um mesmo ser – houvermos personificado o sistema planetário do próprio Sol – foco colossal que a todos absorve na sua esplendente e poderosa personalidade – então, não tardaremos a ver nesse Sol, com o seu sistema, em trânsito pelos espaços infinitos, o atestado de que todas as estrelas são outros tantos sóis, cercados, como o nosso, de uma família que deles recebe luz e vida, e veremos que todas as estrelas são guiadas por movimentos diversos e que, muito longe de ficarem fixas na imensidade, caminham com velocidades terrificantes, ainda mais céleres que as atrás mencionadas.

 Só então, o Universo inteiro brilhará aos nossos olhos sob o verdadeiro prisma e as forças que o regem proclamarão, com a eloquência maravilhosamente brutal de facto concreto, o seu valor, a sua missão, autoridade e poder. Diante desses movimentos indescritíveis – inconcebíveis mesmo, poderíamos dizer – que transportam pelos desertos do infinito essa infinidade de sóis; diante dessa catadupa de estrelas do infinito; diante dessas rotas, dessas órbitas imensuráveis, seguidas com a passividade dos ponteiros de um relógio, da maçã que cai, ou da roda do moinho, obedientes à lei da gravidade; diante da submissão dos corpos celestes a regras que a mecânica e as fórmulas analíticas podem traçar de antemão, bem como da condição suprema de estabilidade e duração do mundo, quem ousará negar que a Força não governe, não dirija soberanamente a Matéria, em virtude de uma lei inerente ou afecta à própria Força? Quem pretenderá subordinar a Força à cegueira constitucional da Matéria e afirmar, à maneira retrógrada dos peripatéticos, que ela não passa de atributo oculto, reduzindo-a ao papel de escrava, quando ela se impõe de tal arte e reivindica credenciais de absoluta suserania? Que Deus tal nunca permita. Que sucederia se ela, a Força, deixasse de agir e abdicasse do seu ceptro? A só imaginação desta hipótese dissolve a harmonia do mundo e o faz esboroar-se num caos informe, digno resultado, aliás, de tão insensata tentativa.

 Leis universalmente demonstradas proclamam a unidade do Cosmos e evidenciam que o mesmo pensamento que regula as nossas marés oceânicas preside às revoluções siderais das estrelas duplas, nos latifúndios do céu. Tais duplos, triplos, quádruplos sóis giram em conjunto, em volta do centro comum de gravidade, obedecendo às mesmas leis que regem o nosso sistema planetário. Nada mais próprio do que esses sistemas para nos dar uma ideia da escala da construção dos mundos – diz John Herschel.

 Quando vemos esses corpos imensos, encasalados, descreverem órbitas enormes, cujo percurso lhes demanda séculos, somos levados a admitir simultaneamente que eles preenchem, na Criação, uma finalidade que nos escapa e que atingimos os limites da humana inteligência para confessar a nossa inópia e reconhecer que a mais fecunda imaginação não pode ter do mundo uma concepção aproximativa sequer, da grandeza do assunto.

  Os astrónomos que humildemente remontam ao princípio ignoto das causas não podem eximir-se de considerar nas mãos de um ser inteligente essa atracção universal, que rege inteligentemente o Cosmos. “A lei de gravitação – dizia o saudoso director do Observatório de Toulouse (i) – enfeixa implicitamente as grandes leis que regem os movimentos celestes e, por uma dessas coincidências notáveis que são o mais seguro índice da verdade – longe de temer as excepções aparentes, as perturbações dos movimentos normais, antes delas extrai as mais brilhantes confirmações. Assim é que vemos os geómetras modernos explicarem a precessão dos equinócios pela combinação da força centrífuga, oriunda da rotação da Terra, com a acção do Sol sobre o nosso menisco equatorial. Assim é que vemos, ainda, explicar-se a nutação por uma influência análoga, da Lua, sobre a luminescência mesma da Terra e, mais: – as atracções planetárias, a oscilação da eclíptica e do movimento do apogeu solar; do retardamento de Júpiter quando Saturno se acelera, e vice-versa, quando a aceleração se dá em Júpiter, etc. Finalmente, é assim que sabemos por que, sob a influência solar, a média do nosso movimento terráqueo se vai acelerando de século em século e deverá diminuir mais tarde, por que a linha dos nós da Lua perfaz a sua revolução em movimento retrógrado dentro de dezoito anos e por que o perigeu lunar se completa em pouco menos de nove anos, etc. (ii)

 (i) F. Petit – Traité d’Astronomie, 24º et dernlère leçon.

 (ii) Curioso é que Clairaut, tendo encontrado nos seus cálculos um período de dezoito em vez de nove anos, declarasse insuficiente, para este caso, a gravitação inversa ao quadrado da distância e que fosse precisamente um naturalista, Buffon, que, persuadido de que a Natureza não podia ter duas leis diferentes, insistisse com o geómetra para que revisse os seus cálculos. Clairaut, após um novo exame, reconheceu que a primeira assertiva estava errada, pois que havia negligenciado, nas séries, termos indispensáveis.

 Não somente, em resumo, esse princípio notável explica todos os fenómenos conhecidos, como permite, muitas vezes, descobrir efeitos que a observação não indica, de modo que se poderia estabelecer a priori, pela análise, a constituição do mundo e não nos socorrermos da observação senão em alguns pontos de referência, de que se utilizam os geómetras sob a denominação de constantes, nos seus cálculos. – Tudo pois, no Universo, marcha por efeito de uma organização admirável de simplicidade, visto que os movimentos, aparentemente mais complicados, resultam da combinação de impulsos primitivos com uma força única agindo sobre cada molécula material; força única, com a qual, e consequentemente, haja de ocupar-se, por assim dizer, o Criador. Mas, também, que desenvolvimento de poder não requer a produção incessante dessas forças, cuja existência não é essencialmente inerente à matéria! Oh! como deve ser vigilante a mão eterna que sabe, a cada momento, renovar tais forças, até nos mais impalpáveis átomos dos inumeráveis astros destinados a povoar as regiões de infinita imensidade. Não será o caso de dizer com o rei-profeta, inclinando-se perante tanta grandeza: Coeli enarrant gloriam Dei?

 A partir de Newton e Képler, sabemos que o Universo é um dinamismo imenso, cujos elementos na sua totalidade não cessam de agir e reagir na infinidade do tempo e do espaço, com actividade indefectível. Esta a grande verdade que a Astronomia, a Física e a Química nos revelam nas imponentes maravilhas da Criação.

 Tal o sublime espectáculo do mundo, tais as leis constitutivas da sua harmonia. Ora, qual a perfídia de linguagem, ou de raciocínio, que os materialistas utilizam para traduzir pró-domo sua esses factos e concluírem pela ausência de todo e qualquer pensamento divino?

 Eis aqui os argumentos inscritos em letras berrantes num catecismo materialista que, por seu colorido de Ciência, se tem imposto a muita gente: (iii)

 (iii) Büchner – Força e matéria.

 “Todos os corpos celestes, pequenos ou grandes, se conformam, sem relutância, sem excepções nem desvios, com esta lei inerente a toda a matéria e a toda partícula de matéria, como podemos experimentar a cada momento. É com uma precisão e certeza matemáticas que todos esses movimentos se fazem reconhecer, determinar e predizer. Os espiritualistas vêem nestes factos o pensamento de um Deus eterno, que impôs à Criação as leis imutáveis de sua perpetuidade. Os materialistas, porém, ao contrário, não vêem nisso senão a prova de que a ideia de Deus não passa de uma pilhéria. Outro fora o caso, se existissem corpos celestes caprichosos ou rebeldes, se a grande lei que os rege não fosse soberana. É fácil (diz Büchner) conciliar o nascimento, a constelação (?) e o movimento dos orbes com os processos mais simples que a matéria de si mesma nos possibilita. A hipótese de uma força pessoal criadora é inadmissível. Por que? Ninguém, jamais, pôde sabê-lo. Os espiritualistas admiram o movimento dos astros, a ordem e harmonia que a eles preside. Ingénuos! No Universo não há ordem nem harmonia e sim, pelo contrário, a irregularidade, os acidentes, a desordem, que excluem a hipótese de uma acção pessoal regida pelas leis da inteligência, mesmo humana.”

 Ponderemos: Copérnico publicou Revoluções Celestes, após trinta anos de árduos labores; Galileu só depois de vinte anos fecundou a lei do pêndulo; Képler não levou menos de dezassete para formular as suas leis e Newton, já octogenário, dizia não ter ainda chegado a compreender o mecanismo dos céus; e, depois disso, vêm propor-nos acreditar que essas leis sublimes e que tudo quanto esses génios possantes mal puderam encontrar e formular não revelam no ascendente que as impôs à matéria, uma inteligência sequer igual à do homem!

 E o Sr. Renan escreve então esta frase: “Por mim, penso não haver no Universo inteligência superior à humana.” E ousam compadrinhar-se com acidentes que propriamente o não são, para afirmarem que não existe harmonia na construção do mundo.

 Que seria, então, preciso para vos satisfazer, senhores críticos de Deus?

 Vamos dizê-lo: primeiro, que não houvesse espaço (!) ou que esse espaço fosse menos vasto, visto haver, decididamente, muito espaço no infinito: “se houvéramos de atribuir a uma força criadora individual – diz Büchner – a origem dos mundos para habitação de homens e animais, importaria saber para que serve esse espaço imenso, deserto, vazio, inútil, no qual flutuam planetas e sóis? Porque os outros planetas do sistema não se tornaram habitáveis para o homem?” Na verdade, formulais uma pergunta bem simples. E aí temos como esses senhores se dão à fantasia de declarar inútil o espaço, a querer que todos os globos se comuniquem entre si. O caricaturista Granville já tivera a mesma ideia, quando representou num dos seus encantadores desenhos os jupterianos em excursão a Saturno, atravessando uma ponte, de charuto na boca. E o anel de Saturno lá está como um grande alpendre, onde os saturninos vão à noite refrescar-se. Se esse é o desejado universo, cujo primeiro resultado seria imobilizar o sistema planetário, mais avisados andariam os inventores dirigindo-se seriamente à Escola de Pontes e Calçadas, antes que à Filosofia.

 Que esta, na verdade, nada tem com isso.

/…


Camille Flammarion, Deus na Natureza – Primeira Parte, A Força e a Matéria II – O Céu 2 de 3, 12º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: Jungle Tales_1895, pintura de James Jebusa Shannon)

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