A ESTRANHA PERSONAGEM QUE SURGE DO PASSADO (III)
Electrificado pelo impacto da descoberta e encorajado pela
inspiração perniciosa, Carlo retomou ao casino
e fitou o homem semi-embriagado, que o humilhara. De temperamento venal e
orgulhoso, ele também não admitia competidor. Olhou-o de vários ângulos e quanto
mais o observava, com severidade, mais se lhe acentuava a certeza sobre a
procedência das suspeitas. No íntimo conturbado e na mente exacerbada, agora,
pela dupla força da raiva pessoal e do ódio que lhe era transmitido,
ocorreu-lhe – por transmissão mental – vender o silêncio, apavorando o
criminoso, táctica eficaz para vingar-se demoradamente, e – quem sabe? –
denunciá-lo depois. A denúncia, é claro – reflectia –, não surtiria o efeito
desejado. Quem iria acreditar num cavalariço, ante a palavra do jovem Conde e
do respectivo sogro? Dar-se-ia até que ele seria chibateado em público e
atirado a um cárcere, até à morte. O melhor e mais eficiente método seria
inquietar-lhe a consciência – se é que a tinha –, obrigando-o a denunciar-se, ele
próprio, mediante o conciliábulo da chantage.
Doía-lhe o corpo pela ansiedade e tremiam-lhe os músculos.
Acercou-se exultante e disse, sem maiores delongas:
– Com vossa permissão, Senhor Conde. Necessito falar-vos.
– A mim? – interrogou Girólamo. – Conseguiste mais dinheiro
ou desejas pedi-lo a mim?
Algumas mulheres de aparência grotesca, na pintura e nos
trajes, vários homens de vida duvidosa que se encontravam em torno do
dissipador gargalharam, zombeteiros.
Dominando a impetuosidade e fazendo-se humilde, submisso, o
florentino tornou:
– Perdão, senhor! Trata-se de assunto grave, se me permitis.
– Dize, homem. Que acanhamento é esse, após o prejuízo?
Novas gargalhadas em troça espocaram. Girólamo realizava-se,
ferindo e macerando o opositor vencido.
– Com vossa aquiescência, senhor, trata-se de problema da
vossa família…
– Que tem minha família…
Girólamo saltou e mesmo ubriaco
(i) aproximou-se do parlamentário e perguntou:
– Vens do Palácio Castaldi?
– É mais grave, senhor. Diz respeito à vossa vida, vossa
paz.
– Saiamos, então, daqui, – acudiu o quase borracho.
Alguns vadios do casino,
que cobiçavam a presa, a meio caminho da bebedeira total, para roubar-lhe as
moedas, explodiram em exclamações de aborrecimento e enfado.
Os dois homens saíram à rua. Logo à porta, o senense
inquiriu molesto:
– De que perigo se trata? Avia-te, ordeno!
– Calma, senhor. Não nos devem ouvir pessoas levianas.
– Que aparência de mistério é essa?
– Trata-se realmente de um mistério.
Avançaram alguns passos e, na semi-obscuridade da viela,
entre as pilastras de pedra de cantaria, sob os arcos superiores, onde os
vultos pareciam mais estranhos, Carlo arengou:
– Necessito de vossa ajuda. Somente uma questão de tal monta
me obrigaria…
– Qual é o mistério que me envolve? – vociferou Girólamo.
Sentindo-se detentor de poderosa arma, Carlo reflectiu sobre
o velho provérbio: “Chi va piano, va sano. Chi va sano va lontano.” (ii) Logo
explicou:
– Trata-se de uma ocorrência que vos envolve. – Fez uma
pausa, para atingir melhores e seguros resultados.
Girólamo, enfadado, empurrou o contendor e pôs-se a caminho,
de volta ao casino, protestando:
– Cavalariço imundo, incomodar-me!... Atrevido…
– Lembrai-vos de um domingo de primavera nas colinas de San Miniato, em Florença, senhor? –
gritou-lhe. (Era sua grande cartada: vida ou desgraça. A sorte estava lançada,
pensou com sofreguidão.) – Eu estava lá…
Girólamo estancou o passo. Cambaleou. Um fogo de febre
subiu-lhe À cabeça, os ouvidos zumbiram, como se as veias se agitassem, quase a
estourar. Rodopiou sobre os calcanhares e volveu. Apesar de quase vencido pela
bebida, crispou as mãos e avançou na direcção do ginete dos Castaldi,
segurando-o pelas vestes com vigor e, face a face, ardendo de ira, com os
dentes travados em rito de ódio, indagou, com a voz subitamente enrouquecida:
– Não ouvi bem, miserável, canalha. Repeti! Fala! Que
desejas, verme asqueroso?...
– Acalmai-vos, senhor. (Carlo estava convicto de que atingia
o objectivo. Vingar-se-ia, agora, em longo curso de desforra.)
Tentando oferecer naturalidade à voz, falou com fingida
humildade:
– Desejava que o Senhor Conde soubesse… Gostaria de ser-vos
útil… As circunstâncias da fortuna
me colocaram em San Miniato, naquele
dia…
Os olhos de Girólamo fuzilavam. Mesmo na sombra, Carlo, igualmente
robusto, viu o folgor estranho daqueles olhos e sentiu as mãos de ferro, agora
em torno do seu pescoço, enquanto a voz rouquenha gritava:
– Que viste, bandido? Abre-te, antes que eu mesmo te esgane!
Tentando desvencilhar-se daquelas mãos de aço, crispadas,
Carlo retrucou, atordoado:
– Eu estava em San
Miniato quando…
– Quando?!...
– Quando o Senhor Conde matou aquela mulher… Eu vi. (E ante
o espanto de Girólamo, colhido pela surpresa do inesperado, que afrouxou um
pouco a constrição, Carlo, de um golpe, desarmou o desafecto.)
Aparentando desconhecer a que se referia o florentino, o
senense acercou-se e, fulminante, esbordoou-o com violência.
– Se fosses um homem da nobreza – aduziu com desprezo –, eu
te convidava a um duelo. Mas, um réptil dessa classe eu entrego às autoridades…
Sobrepondo a arrogância à razão, ensaiou alguns passos na
direcção do casino, esfogueado, em
convulsão. O inesperado colhia-o em circunstância jamais desejada, cravando-lhe
a lança de incomparável choque e dor. Não conseguia raciocinar com o necessário
acerto. A violência da emoção superou o desalinho das forças pelo álcool, e,
como suasse em bagas, passou a eliminar o tóxico. Parou a meio passo. Voltou-se
e enfrentou o olhar do inimigo, imóvel, lábios contraídos, desafiador.
– Serei eu, Senhor Conde – revidou Carlo –, quem irá
procurar as autoridades para narrar o vosso hediondo segredo. É certo que não
sou nobre, mas posso sê-lo como vós o sois, lavando a condição plebeia no
sangue das vítimas, como o fizestes com a vossa ganância. Não vos temo! Somos
do mesmo estofo, cavaliere. (E
gargalhou com mofa.)
– Matar-te-ei, miserável! (Girólamo avançou, estertorando.)
– Parai ou matar-vos-ei eu. (O lépido moço recuou num salto
felino, colocando-se à distância do agressor.) Não me interessa a vossa vida…
– E que desejas, cão?
– Vender-vos o meu silêncio.
– A calúnia só merece chibata e cárcere.
– Veremos como a cidade reagirá ao saber a notícia e
relacioná-la com as tragédias do Solar di Bicci…As circunstâncias da morte dos
vossos parentes… (Sardónico e igualmente impiedoso, continuou a gargalhar.)
No mesmo momento em que se sentia desvairar, Girólamo ouviu a gargalhada de Assunta e
distinguiu a voz do duque
invectivar: “Assassino! Pagarás agora, assassino!”
O infeliz mancebo, por sua vez, trovejou expressões de louco e
sem qualquer lucidez invadiu o casino,
transtornado, perseguido pelas Erínias (iii). Palavras desconexas saíam-lhe dos
lábios intumescidos. Segurando a cabeça com as duas mãos, correu de um lado
para o outro, perdido no mundo das sombras, nas quais perpetrara os crimes, e
ululava. Nos ouvidos superaguçados, continuava ouvindo as acusações do tio e as imprecações de Assunta. Gritos
e doestos sórdidos espocavam-lhe no cérebro e ele, açoitado pelo desespero, arrancou
em direcção a uma parede e arrojou-se de encontro a ela.
O pavor tomou conta do recinto. Dois dos seus muitos
companheiros de orgias, surpreendidos pelo nefasto acontecimento, levantaram-se
de repente e seguraram-no a contorcer-se no solo, a gemer, a sangrar, olhar
perdido, músculos e carnes trémulos: era um trapo, sacudido violentamente pela
tempestade da insânia íntima.
O cavaliere Conde
Dom Girólamo Cherubini di Bicci experimentava a segunda crise de loucura.
Através dos olhos sem luminosidade, ele via, além da realidade objectiva, o duque de pé, à sua frente, dedo em riste, empunhando longa chibata,
com a qual o surrava desapiedadamente e, ao lado, Assunta, louca, megera
nauseante, bailava e cachinava impudente, vingadora. Sofrendo o cilício que o tio lhe infligia, sentiu-se arrancado
ao corpo, à força, e foi obrigado a enfrentar as circunstâncias em que se
arrojara voluntariamente. O corpo, exânime, tombou quase sem vida.
Recostaram-no em um leito, no andar superior do
cassino-bordel, e alguém foi providenciar uma carruagem, para conduzi-lo ao lar
dos sogros. A villa dos Castaldi
estava em silêncio. Ante a gritaria dos que se encontravam fora, o guarda da
entrada acordou e, cientificado do que acontecera, Dom Lorenzo e a senhora,
tomados de inquietação, recolheram o genro ainda ensanguentado, promovendo
meios de atendê-lo e diminuir os danos daquele insucesso, constatando que na
agitação em que se debatia o genro este deveria estar bêbado, não dando maior
importância ao incidente.
Dois lacaios foram designados a acompanhar a noite do
mancebo, que continuou estremunhado, estertorado.
Carlo, o zagal florentino, quando viu o furor que se
apossara do antagonista, fruiu a vã satisfação da vitória, comprovando,
simultaneamente, que aquele homem não passava de um louco assassino. Agora,
tinha certeza da legitimidade da sua observação e não o perderia de vista.
Era-lhe uma presa fácil, que poderia modificar o seu destino. Propor-lhe-ia
mudança de vida… Fá-lo-ia, sim.
“Agora, vamos ao prazer interrompido.” – planeou.
Abandonando a rua deserta, demandou outros sítios.
A cidade acordou pachorrentamente, vagarosamente, exausta,
no dia seguinte. O lixo abundava e as ruas estavam imundas…
Girólamo despertou febril, sem recobrar a lucidez,
alquebrado, expressão de demente, olhar parado, fácies desconcertante. Às
vezes, ria sem motivo ou se deixava vencer por crises nervosas que o sacudiam
violentamente.
Dom Lorenzo despachou um moço de recados à herdade Bicci,
encarregue de trazer a Condessa Beatriz. A jovem senhora, notificada da
enfermidade do esposo, acudiu aflita a socorrê-lo. No palácio paterno.
A notícia chegou igualmente ao Palácio T., provocando em
Francesco e Lucrécia sincera preocupação.
Por intermédio dos lacaios, Carlo manteve-se informado do
que acontecia na intimidade do palácio, gozando interiormente a desforra e
aguardando acontecimentos novos. Tinha a certeza de que os bons génios, que lhe
auguraram o destino futuro, premeditaram tais cometimentos para ensejar-lhe
fortuna e regalias, Girólamo possuía mais do que podia dissipar e não lhe
custava muito repartir com o comparsa, elegendo-o amigo e preferido da sua
casa. Reservou o tempo, esperando.
Logo chamado, o esculápio examinou detidamente o enfermo e,
como este se encontrasse vitimado por febre e constantes delírios, nos quais o
corpo em desequilíbrio sofria as vicissitudes do espírito aturdido, a sofrer o
império do desconforto que proporcionava a si mesmo, foi taxativo: maremma toscana! Recomendou repouso
excessivo e silêncio, prescrevendo clisteres e outras mezinhas. Comprometeu-se
a retornar com assiduidade, acompanhando a marcha da enfermidade do paciente.
Sentindo o êxito do programa em plena execução, o
desencarnado duque di Bicci, no
fragor da loucura de que também se via possuído, experimentou júbilo, o júbilo
que, à semelhança de ácido, queima e requeima os que o conduzem. Considerava a
partida ganha: Girólamo, à semelhança de Assunta, estava em suas mãos. Na
ferocidade do ódio em que se consumia, não desejava que o desditoso jovem morresse
de imediato. Comprazer-se-ia em vê-lo sofrer lentamente, como a cobrar a
asfixia que padeceram seus filhinhos e Lúcia nas mãos ímpias do assassino.
Assim, reflexionando, a entidade folgou a constrição psíquica e a influenciação
exercida sobre a vítima, a qual, vendo-se parcialmente livre dos fluidos
danosos, recobrou alento, recuperando o controlo sobre os órgãos dos sentidos
físicos, a consciência, as lembranças…
Passaram pela sua mente os últimos acontecimentos, em esfera
penumbrosa de sonho pernicioso. Recordava-se da agressão espiritual sofrida,
sem a compreender, todavia, evocou as ameaças e revelações de Carlo. A simples
lembrança do móvel das dores que experimentava fê-lo desesperar. Possuidor de
um carácter venal, tentou recompor-se para cuidar do desafecto, na ocasião
oportuna.
As melhoras do enfermo, repentinas, foram saudadas
festivamente com êxito do médico.
Uma semana depois, ainda convalescente, Girólamo,
acompanhado pelo carinho da esposa, retorna ao solar altaneiro, nas colinas do pequeno
ducado…
/…
(i) Ubriaco:
bêbado.
(ii) “Quem vai devagar vai seguro. Quem vai seguro vai
longe.”
(iii) As Erínias
ou Eumênides eram deusas gregas a
que os romanos chamavam Fúrias. Eram
filhas da Terra, que viviam no Tártaro, com a missão de punir os crimes dos
homens. Faziam-se representar com os cabelos entrelaçados de serpentes, tendo
um punhal numa mão e um facho aceso noutra. Tinham como nomes: Tisífone, Alecto e Megera.
Pertencem à Mitologia.
VICTOR HUGO, Espírito “PÁRIAS EM REDENÇÃO” – LIVRO
PRIMEIRO, 8. A ESTRANHA PERSONAGEM QUE SURGE DO PASSADO (3 de 3) 28º
fragmento da obra. Texto mediúnico, ditado a DIVALDO PEREIRA
FRANCO.
(imagem de contextualização: L’âme de la forêt
| 1898, tempera e folha de ouro sobre painel de Edgard Maxence)
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