Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...
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terça-feira, 13 de maio de 2025

Da sombra do dogma à luz da razão ~


~ Uranografia Geral (*) 
O espaço e o tempo ~

| Galileu, Espírito
(Études Uranographiques) (XII)

A vida universal ~ 🌈

   Esta imortalidade das almas, de que o sistema do mundo físico constitui a base, pareceu imaginária aos olhos de certos pensadores de sobreaviso; qualificaram-no ironicamente de imortalidade viajante e não perceberam que só ela era verdadeira frente ao espectáculo da Criação. No entanto, é fácil fazer entender toda a sua grandeza, diria quase toda a sua perfeição.

   Que as obras de Deus sejam criadas pelo pensamento e pela inteligência; que os mundos sejam a residência dos seres que os contemplam e que descobrem sob o seu véu o poder e a sabedoria do que os formou, foi questão que deixou de ser o poder duvidosa para nós; mas se as almas que os povoam são solidárias, é o que importa saber.

   A inteligência humana, com efeito, tem dificuldade em reconhecer esses globos radiosos que cintilam no espaço como simples massas de matéria inerte e sem vida; tem dificuldade em imaginar que existem, nessas regiões longínquas, magníficos crepúsculos e noites esplêndidas, sóis fecundos e dias repletos de luz, vales e montanhas onde as múltiplas criações da natureza desenvolveram toda a sua pompa luxuriante; tem dificuldade em imaginar, digo eu, que o espectáculo divino, onde a alma se pode embeber como se da sua própria vida se tratasse, esteja despojado de existência e privado de qualquer ser com peso que o pudesse contemplar.

   Mas a esta ideia eminentemente justa da Criação é preciso acrescentar a da humanidade solidária e é nisso que consiste o mistério da eternidade futura.

   Uma mesma família humana foi criada na universalidade dos mundos e a esses mundos foram dados os elos de uma fraternidade ainda não apreciada por vós. Se estes astros que se harmonizam nos seus vastos sistemas são habitados por inteligências, não é de forma nenhuma por seres desconhecidos uns dos outros, mas sim por seres marcados na fronte pelo mesmo destino, que têm de se encontrar momentaneamente consoante as suas funções na vida e reencontrar-se segundo as suas simpatias mútuas; é a grande família dos Espíritos que povoam as terras celestes; é o grande esplendor do Espírito divino que abraça a vastidão dos céus e que permanece como tipo primitivo e final da perfeição espiritual.

   Por que estranha aberração se julgou ser preciso recusar à imortalidade as vastas regiões do éter, quando a encerravam num limite inadmissível e numa dualidade absoluta? O verdadeiro sistema do mundo deveria então anteceder a verdadeira doutrina dogmática e a ciência a teologia? Desviar-se-ia esta enquanto a sua base assentasse sobre a metafísica? A resposta está dada e mostra-nos que a nova filosofia se sentará triunfante sobre as ruínas da antiga, porque a sua base se terá elevado vitoriosa sobre erros antigos.

/…
(*) Este capítulo foi textualmente extraído de uma série de comunicações ditadas à Sociedade Espírita de Paris, em 1862 e 1863, sob o título de Études Uranographiques e assinado, Galileu; médium M. C. F. (N. do A.)


ALLAN KARDEC, A GÉNESE – Os Milagres e as Profecias Segundo o Espiritismo, Capítulo VI, Uranografia Geral, O espaço e o tempo – A vida universal (de 53 a 57), 34º fragmento desta obra. Tradução portuguesa de Maria Manuel Tinoco, Editores Livros de Vida.
(imagem de contextualização: Diógenes e os pássaros de pedra, pintura em acrílico de Costa Brites).

domingo, 17 de março de 2024

Hippolyte Léon Denisard Rivail


Pneumatografia ou Escrita Directa ~

   A pneumatografia é a escrita produzida directamente pelo Espírito, sem nenhum intermediário; difere da psicografia, por ser esta a transmissão do pensamento do Espírito, mediante a escrita feita com a mão do médium. Demos estas duas palavras no Vocabulário Espírita, no início de nossa Instrução Prática, com a indicação da sua diferença etimológica. Psicografia, do grego psykê, borboleta, alma; e graphus, eu escrevo; Pneumatografia, de pneuma, ar, sopro, vento, Espírito. No médium escrevente a mão é um instrumento, mas é a sua alma, ou Espírito encarnado, o intermediário, o agente ou o intérprete do Espírito estranho que se comunica; na Pneumatografia, é o próprio Espírito estranho que escreve directamente, sem intermediário.

   O fenómeno da escrita directa é, inegavelmente, um dos mais extraordinários do Espiritismo. Por anormal que pareça à primeira vista, é hoje um facto verificado e incontestável. Se dele ainda não falámos, é porque esperávamos poder dar-lhe a explicação e já ter procedido às observações necessárias, a fim de tratar a questão com conhecimento de causa. A teoria, sempre necessária para nos inteirarmos da possibilidade dos fenómenos espíritas em geral, talvez ainda se torne mais necessária neste caso que, sem contestação, é um dos mais estranhos que se possam apresentar; deixa, porém, de parecer sobrenatural, desde que se lhe compreenda o princípio.

   Da primeira vez que este fenómeno se produziu, deixou um sentimento dominante de dúvida. Logo acudiu aos que o presenciaram a ideia de um embuste. Toda a gente, com efeito, conhece a acção das tintas chamadas simpáticas, cujos traços, a princípio completamente invisíveis, aparecem ao fim de algum tempo. Podia, pois, dar-se o caso que tivessem, por esse meio, abusado da credulidade dos assistentes, e longe nos acharmos de afirmar que nunca o tenham feito. Estamos até convencidos de que algumas pessoas, não com propósitos mercenários, mas tão-só por amor-próprio e para fazer acreditar nas suas faculdades, hão empregado subterfúgios.

   Na terceira das cartas escritas de MontaigneJ.-J. Rousseau refere o seguinte facto: “Em 1743 vi em Veneza uma nova espécie de sortilégio, mais estranho que os de Préneste; quem o quisesse consultar entrava numa câmara, ali permanecendo sozinho, caso o desejasse. De um livro de folhas brancas tirava uma de sua escolha; depois, segurando essa folha, pedia mentalmente, e não em voz alta, aquilo que desejava saber; em seguida, dobrava a folha branca, depositava-a num envelope, lacrava-o e o colocava, assim fechado, dentro de um livro. Finalmente e sem perder de vista o livro, depois de haver recitado algumas fórmulas muito extravagantes, verificava se o selo não tinha sido violado, abria o envelope, retirava a folha e encontrava nela escrita a resposta. O mágico que fazia estas sortes era o primeiro secretário da Embaixada da França e chamava-se J.-J. Rousseau.”

   Duvidamos que Rousseau tenha conhecido a escrita directa, pois, de contrário, teria sabido outras coisas relativas às manifestações espíritas e não teria tratado do assunto com tanta leviandade. Como ele próprio reconheceu quando o inquirimos (ii) sobre este facto, é provável que se utilizasse de um processo que aprendera de um charlatão italiano.

   Entretanto, pelo facto de se poder imitar uma coisa, fora absurdo concluir-se pela sua inexistência. Nestes últimos tempos, não se há encontrado meio de imitar a lucidez sonambúlica, ao ponto de causar ilusão? Mas, porque este processo de saltimbanco se tenha exibido em todas as feiras, dever-se-á concluir que não haja verdadeiros sonâmbulos? Só porque certos comerciantes vendem vinho falsificado, será razão para que não haja vinho puro? O mesmo sucede com a escrita directa. Muito simples e fáceis eram, aliás, as precauções a serem tomadas para garantir a veracidade deste facto e, graças a estas precauções, hoje ele já não pode ser objecto da mais pequena dúvida.

   Considerando-se que a possibilidade de escrever sem intermediário representa um dos atributos do Espírito; uma vez que os Espíritos sempre existiram desde todos os tempos e que desde todos os tempos se hão produzido os diversos fenómenos que conhecemos, o da escrita directa igualmente se há de ter operado na Antiguidade, tanto quanto nos dias actuais. É deste modo que se pode explicar o aparecimento das três palavras célebres, na sala do festim de Baltazar. A Idade Média, tão fecunda em prodígios ocultos, mas que eram abafados por meio das fogueiras, também deve ter conhecido a escrita directa; igualmente é possível que, na teoria das modificações por que podem os Espíritos fazer passar a matéria, teoria que desenvolvemos no nosso artigo anterior, se encontre o fundamento da crença na transmutação dos metais. É um ponto que abordaremos mais tarde.

   Um dos nossos assinantes dizia-nos ultimamente que um seu tio, cónego, que durante muitos anos havia sido missionário no Paraguai, obtinha, por volta do ano 1800, a escrita directa, juntamente com o seu amigo, o célebre Abade Faria. O seu processo, que o nosso assinante nunca chegou a conhecer bem, e que de alguma sorte surpreendera casualmente, consistia numa série de anéis pendurados, aos quais eram adaptados lápis, dispostos em posição vertical, cujas pontas se apoiavam em papel. Esse processo reflectia a infância da arte, progredimos depois.

   Todavia, quaisquer que tenham sido os resultados obtidos nas diversas épocas, só depois de vulgarizadas as manifestações espíritas é que se tomou a sério a questão da escrita directa. Ao que parece, o primeiro a torná-la conhecida, nestes últimos anos, foi o Barão de Guldenstubbé, em Paris, que publicou sobre o assunto uma obra muito interessante, com grande número de fac-símiles das escritas que obteve (iii). O fenómeno já era conhecido na América, havia algum tempo. A posição social do Sr. Guldenstubbé, a sua independência, a consideração de que goza nas mais elevadas rodas afastam incontestavelmente toda a suspeita de fraude intencional, porquanto não havia nenhum motivo de interesse a que ele obedecesse. Quanto muito, o que se poderia supor, é que fora vítima de uma ilusão; a isto, porém, um facto responde peremptoriamente: o de haverem outras pessoas obtido o mesmo fenómeno, cercadas de todas as precauções necessárias para evitar qualquer embuste e qualquer causa de erro.

   A escrita directa é obtida, como em geral a maior parte das manifestações espíritas não espontâneas, por meio da concentração, da prece e da evocação. Tem-se produzido em igrejas, sobre túmulos, no pedestal de estátuas, ou imagens de personagens evocadas. Evidentemente, o local não exerce nenhuma outra influência, além da de facultar maior recolhimento espiritual e maior concentração dos pensamentos, porquanto está provado que o fenómeno se obtém, igualmente, sem estes acessórios e nos lugares mais comuns, sobre um simples móvel caseiro, desde que os que o desejam obter se encontrem nas devidas condições morais e, entre estes, se encontre quem possua a necessária faculdade mediúnica.

   Julgou-se, a princípio, ser preciso colocar aqui ou ali um lápis com o papel. O facto então podia, até certo ponto, explicar-se. É sabido que os Espíritos produzem o movimento e a deslocação dos objectos; que, algumas vezes, os tomam e atiram longe. Bem podiam, pois, pegar também os lápis e servir-se deles para desenhar letras. Visto que o impulsionam, utilizando-se da mão do médium, de uma prancheta, etc., podiam, do mesmo modo, impulsioná-lo directamente. Porém, não tardou, que se reconhecesse que o lápis era dispensável, que bastava um pedaço de papel, dobrado ou não, para que, ao fim de alguns minutos, se encontrassem nele grafadas as letras. Aqui, o fenómeno já muda completamente de aspecto e transporta-nos a uma ordem inteiramente nova das coisas. As letras hão de ter sido traçadas com uma substância qualquer. Ora, sendo certo que ninguém forneceu ao Espírito essa substância, segue-se que a produziu ele próprio. De onde a tirou? Esse é o problema.

   O general russo, conde de B... mostrou-nos uma estrofe de dez versos alemães obtida desta maneira por intermédio da irmã do Barão de Guldenstubbé, simplesmente colocando uma folha de papel, arrancada de sua própria caderneta, debaixo do pedestal do relógio da chaminé. Tendo-a retirado, ao fim de alguns minutos, nela encontrou versos em caracteres tipográficos alemães muito finos e de perfeita pureza. Através de um médium psicógrafo o Espírito disse-lhe que queimasse esse papel; como hesitasse, lamentando sacrificar um espécimen tão precioso, o Espírito acrescentou: “Nada temais; dar-te-ei um outro”. Com essa garantia, assentiu queimar o papel, colocou depois uma segunda folha, igualmente tirada de sua carteira, sobre a qual os versos se reproduziram, exactamente da mesma maneira. E foi essa segunda edição que vimos e examinamos com o maior cuidado e, coisa bizarra, os caracteres apresentavam um relevo como se tivessem saído do prelo. Não é, pois, apenas o lápis que os Espíritos podem criar, mas também a tinta e os caracteres de imprensa.

   Um dos nossos honrados colegas da Sociedade, o Sr. Didier obteve há alguns dias os resultados seguintes, que tivemos oportunidade de constatar, e cuja autenticidade podemos garantir. Tendo ido à igreja de Nossa Senhora das Vitórias, com a Sra. Huet, que há pouco tempo teve sucesso em experiências deste género, pegou uma folha de papel de carta com o timbre de sua casa comercial, dobrou-a em quatro e a colocou sobre os degraus de um altar, rogando, em nome de Deus, que um Espírito bom se dignasse escrever alguma coisa. Ao fim de dez minutos de recolhimento encontrou no interior e numa das partes dobradas da folha a palavra fé e num dos outros campos a palavra Deus. A seguir, tendo pedido ao Espírito que dissesse quem havia escrito aquilo, recolocou o papel no mesmo lugar e, dez minutos depois, encontrou estas palavras: por Fénelon.

   Oito dias depois, a 12 de Julho, quis repetir a experiência e dirigiu-se ao Louvre, à sala Coyzevox, situada sob o pavilhão do relógio. Sobre a base do busto de Bossuet pôs uma folha de papel, dobrada como a primeira, mas nada obteve. Acompanhava-o um menino de cinco anos e o seu boné foi deixado no pedestal da estátua de Luís XIV, que se encontrava a alguns passos da primeira. Julgando que a experiência houvesse falhado, já se dispunha a sair quando, ao apanhar o boné, percebeu debaixo deste, como se fora escrito a lápis sobre o mármore, a expressão amai a Deus, seguida da letra B. O primeiro pensamento que veio à mente dos assistentes foi o de que tais palavras poderiam ter sido escritas anteriormente por mãos estranhas, que não foram percebidas. Entretanto, quiseram tentar a prova novamente, recolocando a folha dobrada em cima dessas palavras, cobrindo-as com o boné. Decorridos alguns minutos perceberam que a folha continha três letras: a i m. Repuseram o papel e pediram que fossem os escritos completados e obtiveram: Amai a Deus, isto é, aquilo que fora escrito no mármore, menos o B. Ficava assim evidente que as primeiras letras traçadas resultavam de escrita directa. Ressaltava, ainda, este facto curioso: as letras foram grafadas sucessivamente e não de uma vez; quando da primeira inspecção, não houvera tempo de concluir as palavras. Saindo do Louvre, o Sr. D... dirigiu-se à igreja de Saint-Germain l'Auxerrois onde obteve, pelo mesmo processo, as palavras: Sede humildesFénelon, escritas de maneira muito clara e muito legível. Estas palavras ainda podem ser vistas no mármore da estátua a que nos referimos.

   A substância de que são feitos estes caracteres tem toda a aparência da grafite do lápis e é facilmente apagada com a borracha. Examinámo-la ao microscópio e constatamos que não é incorporada no papel, mas simplesmente depositada na superfície, de maneira irregular, sobre as suas asperezas, formando arborescências muito semelhantes às de certas cristalizações. A parte apagada pela borracha deixa à mostra as camadas de matéria negra introduzida nas pequenas cavidades das rugosidades do papel. Destacadas e retiradas com cuidado, essas camadas são a própria matéria que se produz durante a operação. Lamentamos que a pequena quantidade recolhida não nos tenha permitido fazer a sua análise química; mas não perdemos a esperança de o conseguir mais tarde.

   Quem quiser reportar-se às explicações que foram dadas no nosso artigo anterior encontrará completa a teoria do fenómeno. Para escrever desta maneira, o Espírito não se serve das nossas substâncias, nem dos nossos instrumentos. Ele próprio fabrica a matéria e os instrumentos de que há mister, tirando, para isso, os materiais preciosos, do elemento primitivo universal que, pela acção de sua vontade, sofre as modificações necessárias à produção do efeito desejado. É-lhe possível, portanto, fabricar tanto o lápis vermelho, a tinta de imprimir, a tinta comum, como o lápis preto, ou, até, caracteres tipográficos bastante resistentes para darem relevo à escrita.

   Tal o resultado a que nos conduziu o fenómeno da tabaqueira, descrito no nosso número anterior, e sobre o qual nos estendemos longamente, porque nele percebermos oportunidade para perscrutarmos uma das importantes leis do Espiritismo, lei cujo conhecimento pode esclarecer mais de um mistério, mesmo do mundo visível. Assim é que, de um facto aparentemente vulgar, pode sair a luz. Tudo está em observar com cuidado e isso todos podem fazer como nós, desde que se não limitem a observar efeitos, sem lhes procurarem as causas. Se a nossa fé se fortalece dia a dia, é porque compreendemos. Tratai, pois, de compreender, se quiserdes fazer prosélitos sérios. Ainda outro resultado decorre da compreensão das causas: o de deixar traçada uma linha divisória entre a verdade e a superstição.

   Considerando a escrita directa do ponto de vista das vantagens que possa oferecer, diremos que, até ao presente, a sua principal utilidade há consistido na comprovação material de um facto sério: a intervenção de um poder oculto que, neste fenómeno, tem mais um meio de se manifestar. Todavia, raramente são extensas as comunicações que por essa forma se obtêm. Em geral espontâneas, elas se reduzem a algumas palavras ou proposições e, às vezes, a sinais ininteligíveis. Têm sido dadas em todas as línguas: em grego, em latim, em sírio, em caracteres hieroglíficos, etc., mas ainda se não prestaram às dissertações seguidas e rápidas, como permite a psicografia ou a escrita pela mão do médium (iv).


JEAN-JACQUES ROUSSEAU

(Médium: Sra. Costel / Agosto de 1861)

Nota – A médium encontrava-se ocupada com assuntos alheios ao Espiritismo; dispunha-se a escrever sobre assuntos pessoais, quando uma força invisível a compeliu a dissertar o que se segue, não obstante o seu desejo de continuar o trabalho começado. É o que explica o início da comunicação:

   “Eis-me aqui, embora não me tivesses chamado. Venho falar-te de coisas muito estranhas às tuas preocupações. Sou o Espírito de Jean-Jacques Rousseau. Há muito tempo que esperava a ocasião de me comunicar contigo. Escuta, pois.

   “Penso que o Espiritismo é um estudo puramente filosófico das causas secretas dos movimentos interiores da alma, pouco ou nada definidos até agora. Ele explica, mais ainda do que descobre, horizontes novos. A reencarnação e as provas sofridas antes de atingir o fim supremo não são revelações, mas uma confirmação importante. Estou comovido pelas verdades que este meio põe à luz. Digo meio com intenção, porque, a meu ver, o Espiritismo é uma alavanca que afasta as barreiras da cegueira. A preocupação com as questões morais está inteiramente por nascer. Discute-se a política que move os interesses morais; discutem-se os interesses privados; apaixona-se pelo ataque ou pela defesa das personalidades; os sistemas têm partidários e detractores, mas as verdades morais, que são o pão da alma, o alimento da vida, são deixadas na poeira acumulada pelos séculos. Todos os aperfeiçoamentos são úteis aos olhos da multidão, salvo os da alma. A sua educação, a sua elevação são quimeras, boas só para deleitarem os sacerdotes, os poetas, as mulheres, seja como modo, seja como ensinamento.

   “Se o Espiritismo ressuscitar o Espiritualismo, devolverá à Sociedade o impulso que a uns dá a dignidade interior, a outros resignação e a todos a necessidade de se elevarem para o Ser Supremo, esquecido e desprezado pelas suas ingratas criaturas.

                                                                                          Jean-Jacques Rousseau"

/…

(ii) Por mediunidade. Adenda desta publicação.
(iii) La realité des Esprits et de leurs manifestations, démontrée par le phenomène de l`écriture directe, pelo barão de Guldenstubbé, 1 vol. in-8o, com 15 estampas e 93 fac-símiles. Preço 8 fr. Casa Frank, rua Richelieu. Encontra-se também nas Casas Dentu e Ledoyen.
(iv) N. do T.: Vide O Livro dos Médiuns, Segunda Parte, capítulo XII.


Allan Kardec (i), aliás, Hippolyte Léon Denisard Rivail, Pneumatografia ou Escrita Directa, Revista Espírita – Jornal de Estudos Psicológicos / Agosto de 1859; – Jean-Jacques Rousseau, Dissertações e ensinos espíritas / Médium: Sra. Costel / Agosto de 1861, 19ºs fragmentos da Revista objecto do presente titulo desta publicação.
(imagem de contextualização: Dança rebelde, 1965 – Óleo sobre tela, de Noêmia Guerra)

segunda-feira, 5 de fevereiro de 2024

metapsíquica | e depois


~~~ Prólogo ~~~

(A Crise da Morte)

Conforme já tive oportunidade de dizer muitas vezes, desde há alguns anos que me consagro ao exame dos principais apanhados de revelações transcendentais, aplicando-lhes os processos de análise comparada e obtendo resultados tão inesperados quão importantes. As pesquisas que empreendi fazem emergir a prova de que as numerosíssimas informações obtidas mediunicamente, a respeito do meio espiritual, concordam admiravelmente entre si, no que concerne às indicações de natureza geral, que, aliás, são as únicas necessárias para que se conclua a favor da origem das revelações de que se trata, origem que se manifesta estranha aos médiuns, pelos quais tais revelações se obtêm.

Com efeito, os desacordos aparentes, de natureza secundária, que se notam nessas revelações, provêm evidentemente de causas múltiplas, que são fáceis de ser apreendidas e são inteiramente justificáveis. Acrescentarei, a este propósito, que algumas categorias desses supostos desacordos contribuem eficazmente para nos dar uma visão nítida e sintética dos modos pelos quais se desenvolve a existência espiritual, pois que parecem determinados pelas condições psíquicas especiais de cada personalidade de defunto que se comunica.

Creio mesmo ser necessário insistir sobre o facto de que, se persisto em me ocupar com um tema condenado ao ostracismo pela Ciência, é que, graças às minhas laboriosas investigações, adquiri a certeza de que, em futuro não distante, a secção metapsíquica das revelações transcendentais alcançará grande valor científico e, por conseguinte, constituirá o ramo mais importante das disciplinas metapsíquicas. Que importa, pois, seja esse ramo actualmente repudiado pelos metapsiquistas de orientação rigorosamente científica e totalmente desprezado por grande parte dos próprios espíritas, entre os quais eu mesmo me encontrava, não há mais de três anos?

Reconheço que não podia ser de outra maneira, porque é conforme à evolução mental nas pesquisas metapsíquicas; que o investigador comece por se ocupar com as manifestações supranormais de natureza especialmente física, para depois cogitar das manifestações de natureza especialmente inteligente, contendo indicações verificáveis de identificação pessoal dos defuntos. Segue-se que, só quando se haja chegado à certeza científica, com relação à origem espírita da parte mais interessante dos fenómenos metapsíquicos, se compreenderá o grande valor científico, moral, social, das revelações transcendentais estudadas sistematicamente. Elas então se elevarão rapidamente ao lugar de honra, na classificação das manifestações metapsíquicas. A alvorada desse dia ainda não despontou. Mas, isso não impede que um pesquisador insulado possa adiantar-se à sua época, de maneira a formar para si uma opinião precisa a tal respeito, fundando-se nos factos coleccionados. Nestas circunstâncias, esse pesquisador está obrigado, em consciência e para o bem de toda a gente, a ter a coragem da sua opinião, embora os tempos ainda não amadurecidos o exponham a críticas mais ou menos severas. Ora, eu me sinta com essa coragem: mudei de parecer, relativamente ao valor teórico das colecções de revelações transcendentais e, não hesito um só instante em declará-lo.

A isso, aliás, me vejo animado pelo exemplo de alguns pesquisadores eminentes, que não vacilaram em publicar declarações análogas. Eis como a propósito se exprime o professor Oliver Lodge:

Estas revelações são ditas inverificáveis, por não ser possível fazerem-se pesquisas para se verificar o que elas afirmam, como se faz para a verificação das informações concernentes a negócios pessoais, ou acontecimentos mundanos... De todas as formas, sou levado a crer, da mesma maneira que outros pesquisadores cujo número é cada vez maior, que vem próximo o tempo em que se deverá recolher sistematicamente e discutir o material metapsíquico de natureza inverificável, material que se presta a ser examinado e analisado com fundamento na sua consistência intrínseca, que lhe confere um grau notável de probabilidade, da mesma forma que as narrações dos exploradores africanos se prestam a ser analisadas e verificadas, com fundamento nas suas concordâncias...

Lembrarei que, do ponto de vista filosófico, se tem notado que tudo contribui para dar a supor que, em última análise, a prova real da sobrevivência dependerá do estudo e da comparação dessas narrações de exploradores espirituais, mais do que das provas resultantes das informações pessoais fornecidas acerca de acontecimentos do passado, relativamente aos quais — enquanto não se chegar a penetrar fundo na natureza da memória — será sempre possível conjecturar que todo o passado é potencialmente acessível às faculdades supranormais da consciência humana... embora eu não considere racional a hipótese de uma memória impessoal... (Raymond, págs. 347-348)

O professor Hyslop, a propósito da publicação de duas colecções de revelações sobre o Além, ponderou, a seu turno:

Nada há de impossível nas informações que essas mensagens contêm... A maioria das pessoas ridiculariza o conceito de um meio espiritual tal como o que se desenha nas revelações; porém, esses senhores, que gastam o ridículo com tanta leviandade, não se lembram de que, assim fazendo, supõem conhecer toda a verdade a respeito do mundo espiritual... Não me pronuncio nem por um lado, nem pelo outro, mas declaro não ter objecção alguma a opor à existência de um meio espiritual, como o que se nos descreve, ainda que devesse parecer mais absurdo do que o nosso meio terrestre. Não chego a compreender por que se exige que o mundo espiritual seja mais ideal do que o nosso. Os dois mundos são obra do mesmo Autor, quer este se chame Matéria, ou Deus. Ninguém o pode afirmar ou negar a priori. O facto de negar ou de lançar no ridículo as revelações transcendentais equivale a pretender conhecer, de modo certo, o mundo espiritual, o que constitui presunção indigna de um céptico que raciocine...

Em suma, os livros desta espécie são importantes, pois que nos dão uma primeira ideia sobre o mundo espiritual, oferecendo-nos assim oportunidade de comparar os detalhes contidos nas diferentes revelações obtidas... Ora, no nosso caso, comprova-se que as informações, que nos são transmitidas nessas mensagens pelas personalidades que se comunicam, concordam com outras que nos vêm por intermédio de médiuns que não eram religiosos e não tinham a crença e a inteligência deste médium… (American Journal of the S. P. R., 1913, págs. 235-237)

Acrescentarei que há um meio de se verificarem as afirmações concernentes à existência espiritual, com exclusão da prova Indirecta fornecida pela identificação pessoal do Espírito que se comunica. Esse meio consiste em experimentar com um número suficiente de médiuns, para comparar em seguida os resultados, depois de se haverem recolhido as informações necessárias sobre a instrução especial de cada um deles a respeito. Se se chegasse a comprovar que um dos médiuns empregados ignorava absolutamente as teorias espíritas (o que excluiria a hipótese de uma colaboração subconsciente), seria conveniente experimentar com outros médiuns, para se obterem Informações sobre o mesmo assunto; e assim por diante, sem que se estabelecessem relações entre eles. É evidente que, nessas condições, uma concordância de informações fundamentais, repetindo-se com uma centena de indivíduos diferentes, teria valor bastante grande a favor da demonstração da existência real de um mundo espiritual análogo ao que fora revelado. (Ibid., 1914, págs. 462-463.)

Tal a opinião de dois sábios muito distintos, acerca do valor teórico das colecções de revelações transcendentais. Observarei que o método de pesquisa proposto pelo professor Hyslop é, em suma, o que adoptei. Ele, com efeito, propõe se experimente com grande número de médiuns, que não conheçam a doutrina espírita, a fim de se compararem em seguida os resultados. A coisa é teoricamente possível, mas de realização difícil, porque é raro que um só pesquisador chegue a encontrar numerosos médiuns, de maneira a poder levar a efeito uma empresa formidável como esta. O mais prático era, pois, aproveitar o material imenso que se acumulou nestes últimos anos, relativamente às revelações transcendentais, para empreender uma selecção severa de todas as peças, classificando-as, analisando-as, comparando-as, tendo o cuidado de colher informações sobre os conhecimentos especiais de cada médium, no tocante à doutrina espírita. Tal precisamente a tarefa a que me propus ao empreender as minhas pesquisas, às quais já consagrei dois anos de trabalho, chegando a descartar cerca de metade do material reunido. Porém, como notasse que o material classificado e comentado assumia proporções tais que impediriam a sua publicação em volume, julguei oportuno suspender temporariamente as pesquisas, para consagrar algumas monografias de ensaios aos resultados já obtidos. A que se segue é a primeira que me disponho a publicar.

Começo por inserir um número suficiente de revelações transcendentais, referentes às impressões experimentadas, no momento da entrada, no mundo espiritual, pelas personalidades dos mortos que se comunicam. Declaro desde logo que esse grupo de narrações, embora teoricamente interessante e significativo, não é o mais eficaz para a demonstração da tese que sustento.

Ele, com efeito, refere-se aos episódios iniciais da existência extraterrestre, sobre os quais se exercem plenamente as consequências da lei de afinidade, pela qual cada Espírito desencarnado é levado necessariamente a gravitar para o estado espiritual que corresponde ao grau de sua evolução psíquica, alcançado em consequência da passagem pela existência na carne, o que não pode deixar de determinar diferenças sensíveis nas descrições que nos chegam dos mortos, acerca da entrada deles no mundo espiritual. De qualquer maneira, ver-se-á que esses desacordos se dão unicamente nos detalhes secundários, quer sejam pessoais, quer dependam do meio, nunca no que concerne às condições correspondentes, de ordem geral.

Antes de entrar no assunto de que vou tratar, cumpre-me fazer uma declaração, destinada a prevenir uma pergunta que os meus leitores poderiam formular. Refere-se a esta circunstância: todos os factos, que citarei, de defuntos que narram a sua entrada no meio espiritual, são tirados de colecções de revelações transcendentais publicadas na Inglaterra e nos Estados Unidos. Porquê? — perguntar-me-ão os leitores — esse exclusivismo puramente anglo-saxónio?

Responderei que por uma só razão, absolutamente peremptória: não há na França, na Alemanha, na Itália, em Espanha, em Portugal, colecções de revelações transcendentais sob a forma de tratados, ou de narrativas continuadas, orgânicas, divididas em capítulos, ditadas por uma só personalidade mediúnica e confirmadas por provas excelentes de identidade dos defuntos que se comunicaram. Nas poucas colecções que hão aparecido nas nações acima citadas — colecções constituídas de curtas mensagens — obtidas pelo sistema dos interrogatórios dirigidos a uma multidão de Espíritos, não se encontram episódios concernentes à crise da morte, se exceptuarmos o conhecido livro de Allan Kardec: O Céu e o Inferno, em que no qual se podem ler três ou quatro episódios desta espécie. Mas, se bem se encontrem neles algumas concordâncias fundamentais com as narrações dos outros Espíritos que se comunicam, esses episódios são de natureza muito vaga e geral, para poderem ser tomados em consideração, numa obra de análise comparada.

Em tais condições, é claro que, se os povos anglo-saxónicos são os únicos que, até hoje, hão mostrado saber apreciar o grande valor teórico e prático das revelações transcendentais, como são os únicos que a isso se consagraram, empregando métodos racionais, não me restava outra coisa senão tomar o material necessário onde o encontrava. E tanto mais razão havia para assim proceder, propondo-me a escrever toda uma série de monografias relativamente às concordâncias e aos desacordos que os processos de análise comparada fazem ressaltar das colecções de revelações transcendentais, quanto é certo que não podia deixar de começar pelo princípio, isto é, pelo que os mortos têm a dizer acerca da crise da morte.

Passemos agora à exposição dos casos. Citarei, antes de tudo, alguns episódios extraídos de obras dos primeiros pesquisadores, a fim de fazer ressaltar que, desde o começo do movimento espírita, se obtiveram mensagens mediúnicas em que a existência e o meio espirituais são descritos em termos idênticos aos das que se obtêm presentemente, se bem que a mentalidade dos médiuns fosse então dominada pelas concepções tradicionais referentes ao paraíso e ao inferno e, por conseguinte, pouco preparada para receber mensagens de defuntos, afirmando que o meio espiritual é o meio terrestre espiritualizado.

Primeiro Caso

Extraio este facto de uma obra intitulada: Letters and Tracts on Spiritualism, obra que contém os artigos e as monografias publicadas pelo juiz Edmonds, de 1854 a 1874. Sabe-se que Edmonds era um notável médium psicógrafo, falante e vidente. Alguns meses depois da morte acidental do seu confrade, o juiz Peckam a quem ele muito estimava, deu-se o caso de Edmonds escrever uma longa mensagem, em que o seu amigo morto referia as circunstâncias de sua morte. As passagens seguintes são tiradas da mensagem em questão:

Se houvera podido escolher a maneira de desencarnar, certamente não teria preferido a que o destino me impôs. Todavia, presentemente não me queixo do que me aconteceu, dada a natureza maravilhosa da nova existência que se abriu subitamente diante de mim.

No momento da morte, revi, como em panorama, os acontecimentos de toda a minha existência. Todas as cenas, todas as acções que eu praticara passaram perante o meu olhar, como se se houvessem gravado na minha mentalidade, em fórmulas luminosas. Nem um só dos meus amigos, desde a minha infância até à morte, faltou à chamada. Na ocasião em que mergulhei no mar, tendo nos braços a minha mulher, me apareceram o meu pai e a minha mãe e foi esta quem me tirou da água, mostrando uma energia cuja natureza só agora compreendo. Não me lembro de ter sofrido. Quando imergi nas águas, não experimentei sensação alguma de medo, nem mesmo de frio, ou de asfixia. Não me recordo de ter ouvido o barulho das ondas a quebrarem-se sobre as nossas cabeças. Desprendi-me do corpo quase sem me aperceber disso e, abraçado sempre à minha mulher, segui a minha mãe, que viera para nos acolher e guiar.

O primeiro sentimento penoso só me assaltou quando dirigi o pensamento para o meu caro irmão; porém, a minha mãe, percebendo-me a inquietação, logo ponderou: O teu irmão também não tardará a estar connosco: A partir desse momento, todo o sentimento penoso desapareceu do meu espírito. Pensava na cena dramática que acabara de viver, unicamente com o fito de levar socorro aos meus companheiros de desgraça. Logo, entretanto, vi que estavam salvos das águas, do mesmo modo por que eu fora. Todos os objectos me pareciam tão reais à volta de mim que, se não fosse a presença de tantas pessoas que sabia mortas, teria corrido para junto dos náufragos.

Quis informar-te de tudo isso, a fim de que possas mandar uma palavra de consolação aos que imaginam que os que lhes são caros e que desapareceram comigo sofreram agonias terríveis, ao se verem presas da morte. Não há palavras que te possam descrever a felicidade que experimentei, quando vi que vinham ao meu encontro ora uma, ora outra das pessoas a quem mais amei na Terra e que todas acudiam a me dar as boas-vindas nas esferas dos imortais.

Não tendo estado doente e não tendo sofrido, fácil me foi adaptar-me imediatamente às novas condições de existência...

Com esta última observação, o Espírito alude a uma circunstância que concorda com as informações cumulativas, obtidas sobre o mesmo assunto, por grande número de outras personalidades mediúnicas, isto é, que só nos casos excepcionais de mortes imprevistas, sem sofrimentos e combinadas com estados serenos da alma, é possível ao Espírito atravessar a crise da desencarnação, sem haver necessidade de ficar submetido a um período mais ou menos longo de sono reparador. Ao contrário, nos casos de morte consecutiva a longa enfermidade, em idade avançada, ou com a inteligência absorvida por preocupações mundanas, ou oprimida pelo medo da morte, ou, ainda, apenas, mas firmemente, convencida da aniquilação final, os Espíritos estariam sujeitos a um período mais ou menos prolongado de inconsciência.

Ponderarei que estas observações já se referem a um desses detalhes secundários a que aludi no início e nos quais se notam desacordos aparentes, que, na realidade, se resumem em concordâncias reguladas por uma lei geral, que necessariamente se manifesta de maneiras muito diferentes, segundo a personalidade dos defuntos e as condições espirituais tão diversas em que se encontram no momento da desencarnação.

Cumpre-se atente, além disso, no detalhe interessante de dizer o morto ter tido, no momento da morte, a visão panorâmica de todos os acontecimentos de sua existência. Sabe-se que este fenómeno é familiar aos psicólogos; foi referido muitas vezes por pessoas salvas de naufrágios. (Publiquei a respeito uma longa monografia nesta mesma Revista, no decorrer dos anos de 1922-1923.) Ora, no caso relatado pelo juiz Edmonds, como em muitos outros casos do mesmo género, assistimos ao facto importante de um morto afirmar haver passado, a seu turno, pela experiência da visão panorâmica, de que falam os náufragos salvos da morte. Isto se torna teoricamente importante, desde que se tenha em mente que o juiz Edmonds não conhecia a existência dos fenómenos desta espécie, ignorados pelos psicólogos de sua época. Ele, pois, não podia auto-sugestionar-se nesse sentido, o que constitui boa prova a favor da origem, estranha ao médium, da mensagem de que se trata.

Notarei, finalmente, que neste episódio, ocorrido nos primeiros tempos das manifestações mediúnicas, já se observam muitos detalhes fundamentais, concernentes aos processos da desencarnação do Espírito, os quais serão depois constantemente confirmados, em todas as revelações do mesmo género. Assim, por exemplo, o detalhe de o Espírita não perceber, ou quase não perceber, que se separara do corpo e, ainda menos, que se encontra num meio espiritual. Também o outro detalhe de o Espírito se encontrar com uma forma humana e se ver cercado de um meio terrestre, ou quase terrestre, de pensar que se exprime de viva-voz como dantes e perceber, como antes, as palavras dos demais. Assinalemos ainda outro detalhe: o de encontrar o Espírito desencarnado, ao chegar ao limiar da nova existência, para o acolherem e guiarem, outros Espíritos de mortos, que são geralmente os seus parentes mais próximos, mas que também podem ser os seus mais caros amigos, ou os Espíritos-guias.

Detalhe fundamental também este que, com os outros, será confirmado por todas as revelações transcendentais sucessivas, até aos nossos dias, salvo sempre circunstâncias mais ou menos especiais de mortos moralmente inferiores e degradados, aos quais a inexorável lei de afinidade (lei físico-psíquica, irresistível no seu poder fatal de atracção dos semelhantes) prepararia condições de acolhimento espiritual muito diferentes das com que se depararam os Espíritos evolvidos.

/...


Ernesto Bozzano (1862-1943) (i)A Crise da Morte, Publicação original (1930), "La Crisi Della Morte"; Prólogo, Primeiro Caso. 1º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: Puro aire, uma pintura de Josefina Robirosa)

quarta-feira, 20 de dezembro de 2023

Da sombra do dogma à luz da razão ~


~ Uranografia Geral (*)
O espaço e o tempo ~

| Galileu, Espírito
(Études Uranographiques) (X)

Os desertos do espaço 🌈

  Um deserto imenso, sem fronteiras, estende-se para lá do aglomerado de estrelas de que acabámos de falar e envolve-o. Ermos se sucedem a ermos e as planícies incomensuráveis do vazio estendem-se ao longe. Encontrando-se os amontoados de matéria cósmica isolados no espaço como ilhas flutuantes de um imenso arquipélago, se quisermos apreciar de qualquer maneira a ideia da enorme distância que separa a pilha de estrelas de que fazemos parte das aglomerações mais próximas, é preciso sabermos que estas ilhas estelares estão disseminadas e são raras no vasto oceano dos céus e que a extensão que as separa umas das outras é incomparavelmente maior do que aquela que lhes mede as dimensões respectivas.

  Ora, lembramo-nos que a nebulosa estelar mede, em números redondos, mil vezes a distância das estrelas mais próximas tomada como unidade, quer dizer uns cem mil triliões de léguas. A distância que se estende entre elas, sendo muito mais vasta, não poderia ser expressa em números acessíveis ao entendimento do nosso espírito; só a imaginação nas suas mais elevadas concepções é capaz de ultrapassar esta imensidão prodigiosa, os seus ermos mudos e privados de qualquer aparência de vida e considerar de qualquer maneira a ideia desta infinidade relativa.

  No entanto, este deserto celeste que envolve o nosso Universo sideral e que parece estender-se como os confins longínquos do nosso mundo astral, é abarcado pela vista e pelo poder infinito do Altíssimo que, para lá destes céus dos nossos céus, desenvolveu a trama da sua Criação ilimitada.

  Para lá destas vastas solidões, com efeito, os mundos resplandecem na sua magnificência assim como nas regiões acessíveis às investigações humanas; para além destes desertos, vogam no límpido éter esplêndidos oásis e renovam constantemente as cenas admiráveis da existência e da vida. Ali, desenvolvem-se os longínquos agregados de substância cósmica que o olho profundo do telescópio entrevê através das regiões transparentes do nosso céu, essas nebulosas a que chamais irresolúveis e que vos aparecem como leves nuvens de poeira branca perdidas num ponto desconhecido do espaço etéreo. Ali, revelam-se e desenvolvem-se mundos novos cujas condições variadas e estranhas às que são inerentes ao vosso globo lhes dão uma vida que as vossas concepções não conseguem imaginar nem os vossos estudos constatar. É aí que resplandece em toda a sua plenitude o poder criador; para quem venha das regiões ocupadas pelo vosso sistema, ali estão em acção outras leis cujas forças regem as manifestações da vida e os caminhos novos que trilhamos nesses países estranhos abrem-nos perspectivas desconhecidas (**).

/…

(*) Este capítulo foi textualmente extraído de uma série de comunicações ditadas à Sociedade Espírita de Paris, em 1862 e 1863, sob o título de Études Uranographiques e assinado, Galileu; médium M. C. F. (N. do A.)

(**) Dá-se em astronomia o nome de nebulosas irresolúveis àquelas a que não foi ainda possível distinguir as estrelas que as compõem. Tinham sido consideradas primeiro como montes de matéria cósmica em vias de condensação para formar mundos, mas hoje pensa-se geralmente que esta aparência se deve ao afastamento e que com instrumentos suficientemente fortes todas seriam resolúveis.

Uma comparação familiar pode dar uma ideia, apesar de muito imperfeita, das nebulosas resolúveis: são os grupos de faíscas projectadas pelo fogo-de-artifício no momento da sua explosão. Cada uma das suas faíscas representará uma estrela e o conjunto será a nebulosa ou o grupo de estrelas reunidas num ponto do espaço e submetidas a uma lei comum de atracção e movimento. Vistas a uma certa distância, estas faíscas mal se distinguem e o seu grupo tem o aspecto de uma pequena nuvem de fumo. Esta comparação não seria exacta caso se tratasse de matéria cósmica condensada.

A nossa Via Láctea é uma dessas nebulosas; conta com cerca de trinta milhões de estrelas ou sóis que ocupam nada menos de algumas centenas de triliões de léguas de extensão e no entanto não é a maior. Suponhamos somente uma média de vinte planetas habitados circulando à volta de cada sol, o que faria cerca de seiscentos milhões de mundos só para o nosso grupo.

Se nos pudéssemos transportar da nossa nebulosa para uma outra, estaríamos ali como no meio da nossa Via Láctea, mas com um céu estrelado com um aspecto totalmente diferente; e esta apesar das suas dimensões colossais em relação a nós, aparecer-nos-ia, ao longe, como um pequeno floco lenticular perdido no infinito. Mas antes de atingirmos a nova nebulosa, seríamos como o viajante que sai de uma cidade e percorre um vasto país desabitado antes de chegar a outra cidade; teríamos atravessado espaços incomensuráveis desprovidos de mundos e de estrelas, aquilo a que Galileu chama os desertos do espaço. À medida que fôssemos avançando, veríamos a nossa nebulosa a fugir atrás de nós, diminuindo de extensão à nossa vista ao mesmo tempo que à nossa frente, se apresentaria aquela para a qual nos dirigíamos, cada vez mais distinta, semelhante à massa de fagulhas do fogo-de-artifício. Transportando-nos em pensamento para as regiões do espaço, para além do arquipélago da nossa nebulosa, veremos à nossa volta milhões de arquipélagos semelhantes e de formas diversas, contendo cada um milhões de sóis e centenas de mundos habitados.

Tudo o que nos pode identificar com a imensidão do infinito e com a estrutura do Universo é útil para o alargamento das ideias tão reduzidas pelas crenças vulgares. Deus engrandece aos nossos olhos à medida que vamos compreendendo melhor a grandeza das suas obras e a nossa pequenez. Nós estamos longe, como se vê, dessa crença implantada pela Génese de Moisés, que faz da nossa pequena Terra imperceptível a principal criação de Deus e dos seus habitantes o objecto único da sua solicitude. Compreendemos a vaidade dos homens que julgam que tudo no Universo foi feito para eles e dos que se atrevem a discutir a existência do Ente supremo. Dentro de alguns séculos, espantar-se-ão por uma religião, feita para glorificar Deus o ter rebaixado a tão mesquinhas proporções e que tenha rejeitado, por ser concepção do Espírito do mal, as descobertas que só podiam aumentar a nossa admiração pela sua omnipotência, iniciando-nos nos mistérios grandiosos da Criação; ainda se admirarão mais quando souberem que foram rejeitados porque deviam emancipar o espírito dos homens e retirar a preponderância aos que se diziam representantes de Deus na Terra. (N. do A.)


ALLAN KARDEC, A GÉNESE – Os Milagres e as Profecias Segundo o Espiritismo, Capítulo VI, Uranografia Geral, O espaço e o tempo – Os desertos do espaço (de 45 a 47), 32º fragmento desta obra. Tradução portuguesa de Maria Manuel Tinoco, Editores Livros de Vida.
(imagem de contextualização: Diógenes e os pássaros de pedra, pintura em acrílico de Costa Brites).

domingo, 18 de junho de 2023

Da sombra do dogma à luz da razão ~


~ Uranografia Geral (*) 
O espaço e o tempo ~

| Galileu, Espírito 
(Études Uranographiques)
(IX)

As estrelas fixas ~ 🌈

  As estrelas a que chamamos fixas e que constelam os dois hemisférios do firmamento, não estão de maneira nenhuma isoladas de toda a atracção exterior como geralmente se supõe; longe disso, pertencem todas a uma mesma aglomeração de astros estelares. Esta aglomeração não é outra senão a grande nebulosa de que fazemos parte e cujo plano equatorial que se projecta no céu recebeu o nome de Via Láctea. Todos os sóis que a compõem são solidários; as suas múltiplas influências reagem perpetuamente uma sobre a outra e a atracção universal reúne-as todas numa mesma família.

  Entre estes diversos sóis, a maior parte está, como o nosso, rodeado de mundos secundários que iluminam e fecundam pelas mesmas leis que presidem à vida do nosso sistema planetário. Uns, como Sírio, são milhares de vezes mais magníficos em dimensão e em riquezas que o nosso e o seu papel mais importante no Universo, assim como há planetas em maior número e muito superiores ao nosso a rodeá-lo. Outros são muito diferentes pelas suas funções astrais. É assim que um certo número destes sóis, verdadeiros gémeos da ordem sideral, se encontram acompanhados pelos seus irmãos da mesma idade e formam, no espaço, sistemas binários a que a natureza atribuiu funções muito diferentes das que pertencem ao nosso Sol (**).

  Apesar do número prodigioso destas estrelas e dos seus sistemas, apesar das distâncias incomensuráveis que as separam, não deixam por isso de pertencer todas à mesma nebulosa estelar que as observações dos mais potentes telescópios mal podem atravessar e que as concepções mais arrojadas da imaginação mal conseguem ultrapassar; nebulosa que, todavia, não passa de uma unidade na ordem das nebulosas que compõem o mundo astral. 

  As estrelas a que chamamos fixas não estão de maneira nenhuma imóveis na vastidão. As constelações que imaginámos sobre a abóbada do firmamento não são criações simbólicas reais. A distância da Terra e a perspectiva sob a qual medimos o Universo a partir desta estação são as duas causas desta dupla ilusão de óptica. (Capítulo V, n.º 12.) 

  Vimos que a totalidade dos astros que brilham na cúpula azul está encerrada numa mesma aglomeração cósmica, numa mesma nebulosa a que chamamos Via Láctea; mas, por pertencerem todos ao mesmo grupo, estes astros não deixam de ser animados cada um deles por um movimento próprio de translação no espaço; o repouso absoluto não existe em lado nenhum. São regidos pelas leis universais de atracção e rolam no espaço sob o impulso incessante desta força imensa; rolam, não de acordo com rotas traçadas por acaso, mas segundo as órbitas fechadas, cujo centro é ocupado por um astro superior. Para tornar as minhas palavras mais compreensíveis através de um exemplo, falarei especialmente do vosso Sol. 

  Sabemos, pelas observações modernas, que não é fixo nem central, como se julgava nos primeiros tempos da astronomia nova, mas que avança no espaço arrastando com ele o seu vasto sistema de planetas, de satélites e de cometas. 

  Ora esta caminhada não é fortuita e não vai mesmo errando em vazios infinitos, perder longe das regiões que lhe estão consignadas os seus filhos e os seus súbditos. Não, a sua órbita é calculada e, conjuntamente com outros sóis da mesma ordem que ele e como ele rodeados de um certo número de terras habitadas, gravita à volta de um sol central. O seu movimento de gravitação, tal como o dos sóis seus irmãos, não é apreciável nas observações anuais, pois períodos seculares em grande número mal bastariam para marcar o tempo de um desses anos astrais. 

  O sol central de que acabámos de falar é ele mesmo um globo secundário relativamente a um outro mais importante ainda à volta do qual perpetua uma caminhada lenta e calculada em companhia de outros sóis da mesma, ordem. 

  Poderíamos verificar esta subordinação sucessiva de sóis para sóis que a nossa imaginação se cansasse de percorrer uma tal distância; porque, não o esqueçamos, podemos contar em números redondos uns trinta milhões de sóis na Via Láctea, subordinados uns aos outros como gigantescas rodas dentadas de um imenso sistema. 

  E estes astros, em quantidade incontável, vivem, cada um deles, uma vida solitária; tal como nada está isolado na economia do vosso pequeno mundo terrestre, nada está isolado no incomensurável Universo. 

  Estes sistemas de sistemas pareceriam de longe, ao olhar investigador do filósofo que fosse capaz de abarcar o quadro desenvolvido pelo espaço e pelo tempo, uma poeira de pérolas de ouro levantada em turbilhões sob o sopro divino que faz voar os mundos siderais nos céus como grãos de areia no deserto. 

  Acabou-se a imobilidade, o silêncio e a noite! O grande espectáculo que assim se desenvolvesse sob o nosso olhar seria a criação real, imensa e plena de vida etérea que o olhar infinito do Criador abarca no conjunto imenso. 

  Mas até aqui só falámos numa nebulosa; os seus milhões de sóis, os seus milhões de terras habitadas não formam, como dissemos, mais do que uma ilha do arquipélago infinito. 
                                                                                            Pelo Espírito de Galileu 

/… 
(*) Este capítulo foi textualmente extraído de uma série de comunicações ditadas à Sociedade Espírita de Paris, em 1862 e 1863, sob o título de Études Uranographiques e assinado, Galileu; médium M. C. F. (N. do A.)
(**) É aquilo a que se chama em astronomia estrelas duplas. São dois sóis em que um gira à volta do outro, como um planeta à volta do seu sol. De que estranhos e magníficos espectáculos devem usufruir os habitantes dos mundos que compõem estes sistemas iluminados por um duplo sol! Mas também como devem ser aí diferentes as condições da vida!
Numa comunicação feita posteriormente, O Espírito de Galileu acrescenta: «Há mesmo sistemas mais complicados onde dois sóis diferentes representam, em face um do outro, o papel de satélites. Produzem-se então efeitos de luz maravilhosos para os habitantes dos globos que iluminam; tanto mais que, apesar da sua proximidade aparente, entre eles podem circular mundos habitados e receber alternadamente ondas de luz diversamente coloridas cuja reunião forma a luz branca.» Aí, os anos já não se medem pelos mesmos períodos, nem os dias pelos mesmos sóis e estes mundos iluminados por duplo archote recebem em herança condições de existência inimagináveis para os que nunca saíram deste pequeno mundo terrestre.
Os astros, sem cortejo, privados de planetas, receberam os melhores elementos de habitabilidade alguma vez dados a alguém. As leis da natureza são diversificadas na sua imensidão e se a unidade é a palavra importante do Universo a variedade infinita não deixa de ser o seu eterno atributo. (N. do A.) 


ALLAN KARDEC, A GÉNESE – Os Milagres e as Profecias Segundo o Espiritismo, Capítulo VI, Uranografia Geral, O espaço e o tempo – As estrelas fixas (de 37 a 44), 31º fragmento desta obra. Tradução portuguesa de Maria Manuel Tinoco, Editores Livros de Vida. 
(imagem de contextualização: Diógenes e os pássaros de pedra, pintura em acrílico de Costa Brites).