Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

sexta-feira, 30 de março de 2012

O Mundo Invisível e a Guerra~


III
As Lições da Guerra

|Março de 1915|

…/

   Os terríveis combates entre as nações e as raças, além das convulsões que sacodem o mundo, produzem os mais sérios problemas e, em presença desse grande drama, mil questões se apresentam à mente humana ansiosa, havendo momentos em que a dúvida, a inquietação e o pessimismo dominam os espíritos mais fortes e decididos.

   O progresso será uma vã ilusão? A civilização ficará submersa no mar das paixões brutais? Os esforços dos séculos em prol da justiça, da fraternidade e da paz social serão inúteis? As concepções da arte e do génio do homem, os frutos do pesado e imenso trabalho de milhões de cérebros e de braços irão desaparecer arrasados pela tormenta?

   Esse abismo de desgraças é analisado calmamente pelo pensador espiritualista e do caos dos acontecimentos ele extrai a principal lei que rege o Universo.

   Acima de tudo, lembra-se de que nosso mundo é um planeta inferior, um laboratório onde desabrocham as almas ainda inexperientes com seus anseios confusos e suas paixões desordenadas.

   O profundo sentido da vida aparece, para o pensador espírita, com as duras necessidades que a ela são inerentes; é o início das qualidades e energias que existem em todos os seres.

   A fim de que as energias que existem desconhecidas e silenciosas nas profundezas da alma apareçam na superfície, há necessidade de aflições, angústias e lágrimas, porque não existe grandeza sem sofrimento, nem progresso sem provação.

   Se o homem na Terra se desenvencilhasse das vicissitudes da sorte e ficasse privado das grandes lições do sofrimento, poderia fortalecer o carácter, desenvolver a experiência ou valorizar as riquezas ocultas de sua alma?

   No mundo, sendo o mal uma fatalidade, não existirá responsabilidade para os maus?

   Seria um erro funesto aceitá-lo, porque o homem, em sua ignorância e cegueira, semeia o mal, cujas consequências caem pesadamente sobre ele, assim como sobre todos os que se associam às suas más acções. É isso que o momento actual comprova.

   Dois poderosos imperadores, um protestante e outro católico, desencadearam a guerra com todos os seus horrores; fazia meio século que vinham preparando, calculando e combinando tudo para obter uma vitória esmagadora.

   Os poderes espirituais, porém, interferiram no conflito, inspirando às nações em perigo uma heróica resistência e nelas fazendo surgir os tesouros do heroísmo que estavam acumulados nas almas célticas e latinas, desde anteriores existências.

   Vejam como se inverteu a situação após seis meses de lutas. Os alemães faziam uma guerra de conquista, no início da campanha; hoje estão reduzidos a combater em defesa própria.

   Nos momentos de amargura e de incerteza sempre surge um homem providencial. Neste caso, e para a França, esse homem é o general Joffre, que possui as qualidades exigidas pela grave situação do momento!

   Ele soube conter no Marne a enorme avalanche alemã e agora, como comandante sábio e competente, poupando seus soldados, prepara, prudentemente, os meios de expulsar o inimigo para além das fronteiras.

   Acima do confuso tumulto das batalhas, além dos clarões terríveis da carnificina e do incêndio, vislumbra-se uma aurora e um grandioso ideal começa a se esboçar; pressente-se a obra de moralização que dimana do sofrimento.

   Acima da labareda das paixões terrenas, sente-se a presença de um tribunal invisível que espera o final do conflito para reivindicar os direitos da eterna justiça.

   Nossos soldados sentem tais coisas de modo vago, têm a intuição de que sua causa é augusta e sagrada, e tal impressão vai, pouco a pouco, propagando-se por todo o país. Aí se explica por que a inteligência se tornou mais digna e os sentimentos ficaram mais graves e profundos.

   A borrasca espantou as futilidades e as leviandades, com tudo quanto era pueril e mundano em que nossa geração gostava de se ocupar, deixando permanecer o que havia em nós de mais sólido e melhor.
/…


LÉON DENIS, O Mundo Invisível e a Guerra, III – As Lições da Guerra, 1 de 3.
6º fragmento.
(imagem: Tanque de guerra britânico capturado pelos Alemães, durante a Primeira Guerra Mundial)

quarta-feira, 28 de março de 2012

a pedra e o joio~


Na hora do toque

   O toque é a forma mais comum de verificação da verdade. Usa-se o toque na Medicina, na Agricultura, na joalharia
– onde é tão conhecida a função da

pedra de toque – e praticamente em todas as actividades humanas. Foi pelo toque dos dedos nas chagas que Tomé reconheceu a legitimidade da aparição de Jesus ressuscitado. No Espiritismo a pedra de toque é a obra de Kardec.

   Mas porque essa obra e não outra? É bom que se deixe bem esclarecido esse porquê, pois há muitas pessoas que não entendem a razão disso e acham que se dá preferência a Kardec por motivos emocionais e até por fanatismo. Vamos tentar esclarecer o assunto da maneira mais rápida e racional.

   1º – A obra de Kardec não é pessoal, não é só dele. Era preciso alguém responder pela obra. O Professor Denizard Rivail, como se sabe, resolveu assumir essa responsabilidade e assinou-a com um pseudónimo: Allan Kardec, nome que havia possuído em encarnação anterior, quando sacerdote druida, entre os celtas. A obra é dos Espíritos Superiores da luminosa falange do Consolador ou Espírito da Verdade, que Jesus prometeu enviar à Terra quando os homens estivessem aptos para compreender a sua doutrina em essência. Por isso Kardec deu ao livro básico da doutrina o título de O Livro dos Espíritos e à própria doutrina o nome de Espiritismo. Por isso também os demais livros da Codificação trazem como subtítulo esta expressão: Segundo o Espiritismo, ou seja, de acordo com a Doutrina dos Espíritos.

   A doutrina, portanto, não é de Kardec, mas dos Espíritos Superiores que a revelaram a Kardec. Não obstante, Kardec fez a sua parte, quer através das perguntas que fazia aos Espíritos, quer através dos comentários explicativos que escreveu em todos esses livros. Esses comentários foram sempre submetidos por Kardec ao exame dos Espíritos, que os aprovavam ou emendavam. Kardec submetia tudo ao exame da razão, realizando um trabalho de cerca de quinze anos, sempre assistido pelos Espíritos Superiores dirigidos pelo Espírito da Verdade.

   2º – Desde 1857, quando foi publicado O Livro dos Espíritos, até hoje, nenhum dos princípios do Espiritismo foi desmentido pela Ciência ou pela Filosofia. Pelo contrário, todos eles têm sido sistematicamente confirmados por ambas. Quanto à Religião, nunca teve condições para contradizer o Espiritismo de maneira positiva, tentando sempre fazê-lo de maneira autoritária ou dogmática, sempre no interesse particular dos princípios de cada seita.

   Hoje o avanço das Ciências e da Filosofia confirma de maneira inegável e impressionante a legitimidade da Doutrina Espírita. As descobertas mais recentes da Parapsicologia, da Física e da Biologia nada mais fazem do que comprovar a verdade dos princípios espíritas, sem que os investigadores tivessem essa intenção. Até mesmo quando pensam haver negado o Espiritismo, os investigadores, sem o saber, o estão comprovando. Isso prova a solidez da obra de Kardec.

   3º – A Bíblia, livro religioso dos judeus, anunciou a vinda de Jesus. Os Evangelhos, que formam o livro religioso do Cristianismo, anunciaram a vinda do Espírito da Verdade. Os Espíritos Superiores que hoje se manifestam são unânimes em afirmar que Kardec foi o discípulo de Jesus enviado à Terra para realizar a codificação do Espiritismo, doutrina que representa a continuação histórica do Cristianismo e restabelece os ensinos de Cristo em espírito e verdade.

   As reformas religiosas por que passam hoje as Igrejas estão se processando de acordo com a orientação dada pelos princípios espíritas. As próprias pesquisas da Astronáutica, a ciência mais audaciosa do nosso tempo, estão confirmando o que os Espíritos disseram a Kardec sobre os mundos do Espaço, a infinitude do Universo, a inexistência do vácuo, a variedade infinita das formas da matéria e assim por diante.

   4º – Quanto mais avança o conhecimento, mais se vão descobrindo as relações da obra de Kardec com as alegorias e simbologias religiosas da chamada Sabedoria Antiga, das mais velhas religiões da Índia, da China, do Egipto, da Babilónia e assim por diante. Com tudo isso, o Espiritismo se confirma dia a dia como a doutrina do futuro. Ainda há pouco os jornais e revistas do mundo inteiro noticiaram que os cientistas soviéticos, os mais materialistas do mundo, viram-se obrigados a discutir a obra de Kardec num grande simpósio científico realizado na Rússia, e isso em virtude das recentes descobertas realizadas por eles na investigação da Física e da Biologia, com referência à antimatéria e ao corpo energético do homem, ou corpo bioplasmático, que na verdade confirma a teoria do perispírito ou corpo semimaterial do homem, que é um dos princípios fundamentais do Espiritismo. Nenhuma outra doutrina, em todo o mundo, tem recebido tão ampla e decisiva confirmação das pesquisas científicas modernas.

   5º – No campo da Filosofia passa-se a mesma coisa. A corrente filosófica que caracteriza o nosso século, a das chamadas Filosofias da Existência, não obstante suas diversas ramificações, confirma no geral a teoria espírita da natureza transcendente do homem. E por outro lado seguem o caminho do Espiritismo no estudo e na investigação da natureza humana, partindo do homem na existência para chegar à compreensão progressiva dessa natureza. Tudo converge, no pensamento actual, para a comprovação da legitimidade da obra de Kardec.

   Diante desse panorama positivo, qualquer obra que pretenda superar Kardec ou subestimar a Doutrina Espírita precisa ser submetida à prova do toque. E essa prova só pode ser feita de duas maneiras: de um lado, conferindo-se a pretensa superação com a obra de Kardec para verificar-se qual das duas está mais coerente e apresenta maior coesão, maior unidade e firmeza nos seus princípios; de outro lado, conferindo-se, como recomenda o próprio Kardec, os princípios da pretensa superação com as exigências do pensamento actual em todos os campos de nossa actividade mental.

   A obra de Kardec tornou-se, após um século de sua negação e rejeição pelos adversários, a pedra de toque da legitimidade das novas obras e novas teorias que vão surgindo no mundo. É por isso que essa obra – a obra de Kardec – oferece-nos os elementos necessários a uma crítica válida e a uma apreciação verdadeira das novas doutrinas que pretendem modificá-la ou superá-la. Se alguém nos apresentar outra obra em melhores condições do que essa, para servir de pedra de toque, estaremos prontos a trocar a pedra. Mas enquanto a obra de Kardec continuar nessa posição, não temos razão para substituí-la.


   Convém lembrar ainda este ponto importante: a falência total ou parcial da obra de Kardec representará a falência total ou parcial dos Espíritos Superiores, particularmente do Espírito da Verdade, e consequentemente a falência dos ensinos de Cristo.

   Isso não quer dizer que o Espiritismo seja uma doutrina cristalizada, incapaz de evoluir e se desenvolver. Quer dizer apenas que o Espiritismo realizou o toque da verdade na cultura humana, tocou nos pontos essenciais da comprovação da realidade universal pelo homem. Seus princípios fundamentais são realmente inabaláveis, mas estão sujeitos a desenvolvimentos que se darão de acordo com a evolução do homem, que progride sem cessar e aumenta constantemente a sua capacidade de compreender melhor a natureza humana, o mundo e a vida.
/…


José Herculano Pires – A Pedra e o Joio, Crítica à Teoria Corpuscular do Espírito. Na hora do toque. 2º fragmento.
(imagem: As Colhedoras de Grãos, pintura a óleo por Jean-François Millet)

terça-feira, 27 de março de 2012

O Génio Céltico e o Mundo Invisível~


A Irlanda

A história da Irlanda, através dos séculos, tem sido um longo martirológio.

As perseguições sofridas obrigaram a metade da população a se expatriar, em busca de terra distante, deixando


a ilha verdejante, tão cara para os corações célticos. Em menos de um século, a população caiu de oito para quatro milhões de habitantes. É desde essa época que se encontram os celtas em todas as partes do mundo.

Essa ilha é, entretanto, como vimos, o único país onde a língua céltica se revestiu de um carácter e de uma forma oficial. Rica, maleável, variada nas suas expressões, essa língua deu origem a uma literatura rica, na qual se reflecte toda a alma irlandesa, móvel, impressionável, sensível ao excesso e apaixonada por todas as grandes causas.

Frequentei, durante certo tempo, no Colégio de França, o curso de Literatura Céltica, de d’Arbois de Jubainville. Havia entre nós muitos irlandeses que ouviam, com avidez, a narração das proezas de seu herói nacional, Couhoulainn. Seguimos o texto gaélico em um livro alemão, porque não existia a tradução francesa, e esta penúria – é preciso reconhecer, para nossa vergonha – não se encontra somente neste tipo de estudos.

O professor nos ensinava que os manuscritos em língua gaélica datam do século V, e ao se enumerar todos aqueles que foram publicados até ao século XV, verifica-se que eles representam matéria de mil volumes.

Dessa obra volumosa brotam duas grandes fontes de inspiração, às quais os escritores irlandeses sempre consultam. Inicialmente, são as Epopéias Primitivas, colectânea de feitos históricos relativos à luta, longa e comovente, dos insulares contra os saxões invasores e opressores. É daí que os combatentes da última guerra da independência retiravam os exemplos e a lembrança que inflamavam sua coragem e sustentavam seu entusiasmo patriótico.

Depois, é a História Lendária dos Bardos e as Tríades, que na ordem filosófica e religiosa são como uma espécie de Bíblia para o mundo céltico e cuja paternidade é comum à Irlanda e ao País de Gales. Ela não foi fixada pela escrita a não ser no século VIII, ou pelo menos não se possui manuscritos mais antigos. Mas está estabelecido que esses cantos e essas Tríades eram transmitidos oralmente, há muitos séculos, e que sua origem se perde na noite dos tempos. Sabe-se que o ensino esotérico dos druidas era reservado unicamente aos iniciados e que não se podia transcrevê-lo a não ser na forma de uma escrita em vegetal, simbólica, cujo segredo somente era comunicado aos adeptos.

Apenas quando o poder dos druidas foi extinto e os bardos foram perseguidos é que se pensou em recolher esse ensino e entregá-lo à publicidade.

Encontram-se sinais dessas altas inspirações em toda a obra literária da Irlanda, junto ao culto ardente da Natureza, que é uma das formas do génio céltico. Sua rica poesia reflecte o encanto penetrante dessa ilha verdejante com suas florestas profundas, seus lagos sombrios, seus horizontes brumosos e as costas abruptas, recortadas, onde as ondas lançam seus queixumes eternos.

Em todo lugar pairam enxames de almas: duendes, gnomos, génios tutelares ou malfeitores, aos quais se misturam as almas dos mortos, os espíritos, cujo fluido material, paixões, ódios e amores encadeiam à Terra, e que se tornam errantes, aguardando uma reencarnação nova, visto que, neste ponto, os textos são formais: a Irlanda acreditava na pluralidade das vidas humanas.

Em todas as épocas, e talvez mais do que em algum outro país, a Irlanda teve então a intuição, o sentido íntimo e profundo da vida invisível, do mundo oculto, desse oceano de forças e de vida, povoado de multidões inumeráveis, cuja influência se estende sobre nós e, conforme nossas disposições psíquicas, nos protege ou nos atormenta, nos entristece ou nos arrebata.

É porque na história da Irlanda, como na Escócia, os feiticeiros exercem uma grande função. Os próprios santos possuem poderes misteriosos que se poderiam comparar ao magnetismo e ao dom da mediunidade. Para convencer-se disso podem ser lidas as biografias de S. Patrício e de S. Colombano, padroeiros da ilha.
/…


LÉON DENIS, O Génio Céltico e o Mundo Invisível, Primeira Parte OS PAÍSES CÉLTICOS, CAPÍTULO II – A Irlanda 1 de 3, 7º fragmento.
(Imagem: A Apoteose dos heróis franceses que morreram por seu país durante a guerra da Liberdade, pintura de Anne-Louis Girodet-Trioson)

segunda-feira, 26 de março de 2012

O peregrino sobre o mar de névoa~


O Desenvolvimento Científico

As teorias podem ser as mais brilhantes – como observou Bozzano –, mas não podem prevalecer contra a realidade dos factos. E Lombroso, que combatera tenazmente a volta às superstições, acabaria se penitenciando do seu erro nas páginas da revista Luce e Ombra, de Milão. Os frutos da tremenda batalha kardeciana começavam a modificar a mentalidade científica temerosa dos absurdos teológicos.

Kardec provara que as Ciências não deviam temer os fantasmas, mas enfrentá-los e explicá-los. Nenhuma autoridade era mais elevada, para ele, do que a realidade dos factos comprováveis pela experiência científica e objectiva das pesquisas. Os cientistas mais audaciosos aprenderam com ele a superar os condicionamentos do formalismo académico e enfrentar o mundo como ele é. Richet reconheceria, no Tratado de Metapsíquica, que Kardec jamais fizera uma afirmativa que não tivesse sido provada pelas pesquisas. O criador da Ciência actual e de sua metodologia eficiente e eficaz, queiram ou não os alérgicos ao futuro, na expressão recente de Remy Chauvin, foi precisamente Kardec, o homem do século XIX que revelou, numa batalha sem tréguas, estes dois princípios fundamentais da nossa mundividência:

1) A realidade é una e indivisível, firmada na Unidade Pitagórica que se revela na multiplicidade da Década;

2) Tudo se encadeia no Universo, sem solução de continuidade. Os que tentam fragmentar essa unidade orgânica estão presos às falíveis condições do sensório humano.

No desenvolvimento actual das Ciências, muitas cabeças gregas e troianas formularão novas, fascinantes e complexas teorias, mas só prevalecerão as que forem sancionadas pelas profecias fatais de Cassandra. O fatalismo, no caso, não decorre da natureza trágica das previsões, mas da comprovação dos factos. A figura de Kardec continua suspensa sobre o panorama científico actual como o orientador indispensável dos novos caminhos do conhecimento, na rota cósmica das constelações. Em recente congresso realizado em Moscovo, provocado pelas controvérsias sobre a descoberta do corpo bioplásmico do homem, Kardec foi considerado como um racionalista francês do século XIX que antecipou diversas conquistas da tecnologia moderna. Nossos jornais noticiaram a realização desse congresso, mas os dados a respeito foram escassos. Pesava sobre o congresso a suspeição de atitudes que pudessem perturbar as relações entre a Ciência Soviética e os interesses básicos da ideologia fundamental do Estado. Na Roménia marxista a Parapsicologia mudou de nome, passando a chamar-se Psicotrónica, e isso com a finalidade declarada de aproximar das ciências paranormais os materialistas mais ferrenhos ou mais cautelosos, que não desejam ver-se envolvidos em complicações espíritas. Todos esses factos provam que a Ciência Admirável elaborada pelo bruxo parisiense continua a pesar nas preocupações e no desenvolvimento da Ciência actual, que avança inelutavelmente sobre o esquema científico de Kardec. Este é o facto mais significativo dos nossos dias, que os espíritas não podem ignorar. As próprias pesquisas da Astronáutica têm seguido – sem querer e sem saber – o esquema de Kardec na Société Parisien. Das comunicações mediúnicas de Mozart, Bernard Pallissy, Georges e outras entidades, na Société, referindo-se à Lua, a Marte e Júpiter, até a remessa de homens à Lua e sondas soviéticas e norte-americanas a Marte e Júpiter mostram que o mapa das incursões possíveis foi decalcado, de maneira inconsciente, mas evidente, no mapa kardeciano. Além disso, as próprias descrições desses corpos celestes, feitas pelos espíritos comunicantes em Paris, que Kardec considerou com reservas, têm geralmente coincidido com os dados actuais das pesquisas astronáuticas. No tocante à Lua há um problema referente à sua posição na órbita em torno da Terra. Mas Kardec acentuou, no seu tempo, com o apoio do famoso astrónomo Flammarion, que os dados espirituais davam a única teoria existente na época sobre o problema. O esquema kardeciano não foi feito intencionalmente. Resultou de comunicações espirituais espontâneas, que Kardec recebeu com reservas, acentuando que esse facto não se enquadrava nas pesquisas da Société e eram recebidos como curiosidades significativas, sujeitas a confrontos futuros no processo de desenvolvimento das Ciências.

Também nessa atitude evidencia-se o critério científico de Kardec, interessado nos casos gratuitos, mas reservando a sua verificação real ao futuro. Aos que, na época, entusiasmados com essa possível revelação de problemas cósmicos, diziam a Kardec que as utopias de hoje se realizam no amanhã, Kardec respondia que deviam esperar a transformação das utopias em realidade para depois as aceitar. Os dados positivos, os factos, a realidade evidente e a lógica de clareza meridiana eram os elementos preferenciais do seu trabalho. Suas obras nos mostram a limpidez clássica do pensamento francês. Era o mestre por excelência. Sua didáctica ressalta de toda a sua obra. Richet lhe censurou a aparente facilidade com que aceitava a realidade dos fenómenos mediúnicos e da vida após a morte, mas acabou reconhecendo que ele nunca fizera uma só afirmação que não estivesse respaldada pelas pesquisas. Não dispunha dos recursos actuais da pesquisa tecnológica, mas tocou a verdade com a ponta dos dedos, como Tomé. Tudo quanto afirmou no seu tempo permanece válido até hoje. A instabilidade das hipóteses e das teorias científicas não existiu para ele. Os cientistas actuais não conseguiram abalar o edifício das suas conclusões. Giram ainda hoje como borboletas nocturnas em torno da sua lâmpada e acabam queimando as asas no fogo da sua verdade mil vezes comprovada em todo o mundo.

Esse problema da comprovação é frequentemente levantado pelos contraditores da doutrina e até mesmo por adeptos pouco informados, que alegam a impossibilidade de repetição dos fenómenos para atender às exigências do método científico. Com esse velho chavão nas mãos, pensando haver descoberto a chave do mistério, declaram com ênfase que a Ciência Espírita não é ciência, mas apenas um apêndice espúrio da doutrina. Com isso agridem a competência de Kardec e de todos os grandes cientistas que, desde o século passado até ao presente, de Crookes a Rhine, submeteram os fenómenos às formas possíveis de repetição. Basta a leitura das anotações de Kardec em Obras Póstumas, o episódio do seu encontro com o fenómeno das mesas-girantes, para se ver a falácia dessa acusação. A impossibilidade de repetição dos fenómenos espíritas implicaria a impossibilidade da pesquisa. Todos os anos da pesquisa sistemática, minuciosa e exaustiva de Kardec, e os anos de pesquisa exemplar de Crookes, Notzing, Gibier, Ochorowicz, Aksakof, Myers, Geley e Osty, e assim por diante, são displicentemente atirados no baú das antiguidades estúpidas. Foi por essa e por outras que Richet escreveu o seu livro O Homem Estúpido. A repetição de experiências é medida corriqueira em qualquer pesquisa. Os que lançam mão dessa alegação para negar a existência da Ciência Espírita nos dão a prova gratuita da sua incapacidade para tratar do assunto.

Houve interrupção no desenvolvimento da Ciência Espírita, alegam outros. Depois de Kardec ninguém mais pesquisou e os espíritas se entregaram a rememorar os feitos do passado. Se tivéssemos feito isso, simplesmente isso, já teríamos mantido viva a tradição doutrinária, vigorosamente apoiada em séries infindáveis de pesquisas mundiais, realizadas por nomes exponenciais das Ciências. Mas a verdade é que não houve solução de continuidade na investigação, mas simples diversificação das experiências em várias áreas culturais, acompanhada de renovações metodológicas. A Ciência Espírita projectou-se em direcções diversas, desdobrou-se em outras coordenadas e deu nascimento a outras ciências. Atacada por todos os lados, por todas as forças culturais da época, a Ciência Espírita firmou-se nos seus princípios e multiplicou os seus meios de comunicação. A escassez do elemento humano interessado na busca da realidade pura não lhe permitiu a expansão necessária. O homem terreno continua ainda apegado aos interesses imediatistas e aos seus preconceitos, à sua vaidade sem razão e sem sentido. São poucas as pessoas de mente aberta e coração sensível, nesta humanidade egoísta e voraz. Esses elementos compreensivos e abnegados nem sempre dispõem de condições culturais suficientes para enfrentar a luta contra as fascinações do seu próprio passado e dos insufladores de ideias confusas e perturbadoras no meio espírita e nas áreas adjacentes. Mas tudo isso faz parte da lenta e difícil evolução humana. Estamos ainda nos arrancando dos instintos animais, dos mecanismos condicionados pelos milénios do passado genésico. O panorama actual do mundo nos dá a medida exacta do nosso atraso evolutivo. O contraste chocante entre os pesados lastros da barbárie e as aspirações renovadoras do futuro, geralmente desprovidos de recursos materiais para realizações concretas urgentes, revelam a densidade do nosso carma colectivo.
/…


José Herculano Pires, Ciência Espírita e suas implicações terapêuticas, O Desenvolvimento Científico 2 de 3, 2º fragmento.
(imagem: O peregrino sobre o mar de névoa, por Caspar David Friedrich)

sexta-feira, 23 de março de 2012

o sentido da vida ~


Amar a Deus

Não somente um ilustre pastor protestante nos fez certa vez essa pergunta, como também o reverendo Otoniel Motta a explanou, do ponto de vista protestante, no seu livrinho Temas Espirituais, afirmando que os espíritas não podem amar a Deus, uma vez que não lhe atribuem nenhuma espécie de forma. Tivemos já a oportunidade de lembrar a ambos outro mandamento bíblico, aliás tão invocado pelos presentes, o de que não devemos adorar imagens. Esse mandamento foi renovado por Jesus, quando disse que devíamos adorar a Deus em espírito e verdade. Analisando ambos, e tendo em vista o que dissemos no capítulo anterior, compreenderemos que o Espiritismo vem renovar também a compreensão desses mandamentos, abrindo a inteligência do homem para a compreensão de Deus em espírito e verdade, única maneira de ele o adorar independentemente de qualquer imagem.

De um ponto de vista material, sabemos que há imagens de madeira, de barro, de metal e de outros elementos. Entretanto, do ponto de vista espiritual, devíamos saber que há também outras espécies de imagens, e muito especialmente as imagens mentais. Por acaso podemos admitir que a adoração de uma imagem mental seja menos condenável do que a das imagens materiais? Podemos admitir que não seja idolatria a adoração de ídolos mentais, forjados pelo homem à sua imagem e semelhança?

Contra a idolatria mental, tão perniciosa quanto a material, se ergue o Espiritismo. Essa idolatria levou Antero de Quental a escrever o célebre soneto em que considera Deus como um ser criado pelo homem, à imagem e semelhança deste. Levou também Marx e Engels a considerarem o fenómeno Deus como a simples projecção do homem a um plano superior, no anseio natural de querer superar as circunstâncias que o dominam e escravizam, na Terra. Graças à idolatria mental, os filósofos materialistas conseguiram desferir profundos golpes na crença de muitos homens acostumados a pensar. E multidões de crentes, por sua vez, no mundo inteiro, desviaram o sentimento de amor que deviam dedicar a Deus, para o simples ídolo mental que a religião lhes oferecia. Com isso, tornaram morta a sua própria fé, tiraram-lhe todas as possibilidades de expansão dinâmica, reduzindo-a a uma expressão inferior de puro fetichismo.

O Espiritismo apresenta-nos a seguinte constituição do Universo:

“Deus, espírito e matéria constituem o princípio de tudo o que existe, a trindade universal. Mas, ao elemento material, temos de juntar o fluido universal, que desempenha o papel de intermediário entre o espírito e a matéria...”

Como vemos, o Espiritismo é profundamente deísta, considerando Deus como elemento constitutivo e básico do Universo. O Deus do Espiritismo, entretanto, e por isso mesmo, não pode ser reduzido a uma simples imagem mental de forma humana.

Kardec nos apresenta Deus, em O Livro dos Espíritos, como eterno, imutável, imaterial, único, omnipotente, soberanamente justo e bom. São atributos que as religiões também reconhecem no Criador, e que por si mesmos contradizem a forma humana que lhe dão. Negando-lhe essa forma ou qualquer outra que lhe quisermos dar, o Espiritismo nos coloca em face, tão-somente, dos atributos de Deus. É, pois, pelos seus atributos, que o devemos amar. E quem não percebe que, dessa maneira, o Espiritismo nos desvia da idolatria, para nos encaminhar ao amor de Deus em espírito e verdade?

Do ponto de vista espírita, aliás, compreendemos a lição do amar a Deus sobre todas as coisas, lição que, usando a faculdade de pensar, não poderíamos compreender, do ponto de vista idólatra. Mesmo porque seria um contra-senso colocarmos o nosso amor por uma imagem qualquer, fosse ela mental ou não, acima do amor que devemos aos nossos entes mais queridos. Só um desvio mental, uma anomalia psíquica, nos levaria a tal coisa.

O Espiritismo nos ensina que devemos amar a Deus sobre todas as coisas, segundo a lição dos textos sagrados, e nos mostra, aliás, que é absolutamente indispensável fazermos isso, se quisermos cumprir a nossa tarefa terrena, alcançar o objectivo supremo da nossa encarnação neste planeta expiatório. E isso pelo simples motivo de que sendo Deus eterno, imutável e imaterial, devemos colocar o nosso interesse acima das coisas transitórias, mutáveis e materiais, que nos cercam e nos prendem à existência terrena. Sendo Deus único e omnipotente, nele devemos confiar e esperar, e não em outros seres e outras coisas, por mais belas e fascinantes que elas nos sejam apresentadas.

Mas o que é mais importante para todos nós, pequenos bichos da terra, tão pequenos, como dizia Camões, é que, sendo Deus soberano, justo e bom, é evidentemente a suprema justiça e a suprema bondade, pelo que devemos amar a justiça e a bondade acima de toda injustiça e de toda maldade. Amando a Deus sobre todas as coisas, através daquilo que de Deus podemos conhecer, que são os seus atributos, seremos capazes de realmente colocar Deus acima de tudo e de todos.

Assim compreendemos também o ensinamento de Cristo, de que devemos abandonar até mesmo os nossos pais, a nossa mulher e os nossos filhos, se o quisermos seguir. Pois o homem que ama a Deus, em espírito e verdade, sobre todas as coisas, está sempre com a verdade, a justiça, o amor, a bondade, a pureza, contra mesmo os seus próprios interesses da vida material. Coloca o seu amor a Deus acima das vantagens que pode auferir na vida, sempre que prefere a verdade à mentira, por mais fascinantes que sejam as promessas desta. E não terá dúvidas em romper com os próprios pais, a mulher e os filhos, quando estes ficarem com a mentira ou a injustiça, pois ele, fiel ao seu amor a Deus, preferirá sempre a justiça e a verdade.

Neste caso, porém, até o materialista não poderia amar a Deus mais eficientemente do que muitos religiosos, e de maneira mais real?

Já nos dirigiram, certa vez, essa pergunta, que vamos responder.


José Herculano Pires, O Sentido da Vida, Amar a Deus.
(imagem de contextualização: Leiria, Terreiro do Trigo, pintura em acrílico de Costa Brites)

~médium de Deus


Superioridade da natureza de Jesus

   Os factos relatados no Evangelho que têm sido até agora considerados milagrosos, fazem parte, na sua grande maioria, à ordem dos fenómenos psíquicos, quer dizer, dos que têm
como causa principal as faculdades e os atributos da alma.
Aproximando-os dos que são descritos e explicados no capítulo anterior, reconhecemos sem dificuldade que existe identidade de causa e efeito entre eles. A história mostra-nos semelhantes ocorrências em todos os tempos e entre todos os povos pela razão de que, desde que existem almas encarnadas e não encarnadas, se devem ter produzido os mesmos efeitos. Podemos, é verdade, contestar neste ponto a verdade da história; mas hoje produzem-se debaixo dos nossos olhos, por isso dizer à vontade e por indivíduos que nada têm de excepcional. O simples facto da reprodução de um fenómeno, em condições idênticas, é suficiente para provar que este é possível e está submetido a uma lei e que portanto não é milagroso.

   O princípio dos fenómenos psíquicos assenta, como vimos, nas propriedades do fluido do perespírito que constitui o agente magnético; sobre as manifestações da vida espiritual durante a vida e depois da morte; enfim, sobre o estado constituinte dos Espíritos e o seu papel como força activa da natureza. Conhecidos estes elementos e constatados os seus efeitos, têm como resultado fazer com que se admita a possibilidade de certos factos que se rejeitavam quando lhes era atribuída uma origem sobrenatural.

   Sem nada conjecturar sobre a natureza de Cristo, que não se enquadra nesta obra examinar, não o considerando, por hipótese, a não ser como Espírito superior, não nos podemos impedir de reconhecer nele um dos de mais elevada ordem e que está colocado pelas suas virtudes muito acima da humanidade terrestre. Devido aos imensos resultados que produziu, a sua encarnação neste mundo não podia deixar de ser uma dessas missões que só se confiam aos mensageiros directos da Divindade para o cumprimento dos seus desígnios. Supondo que ele não era Deus mesmo, mas sim um enviado de Deus para transmitir a sua palavra, seria mais do que um profeta, pois seria um Messias divino.

   Como homem, possuía a organização dos seres carnais; mas como Espírito puro, desligado da matéria, devia viver da vida espiritual mais do que da vida corporal de que não possuía em absoluto as fraquezas. A superioridade de Jesus sobre os homens não se devia de maneira nenhuma às qualidades especiais do seu corpo, mas às do seu Espírito, que dominava a matéria de maneira absoluta e à do seu perespírito extraído da parte da maior quinta-essência dos fluidos terrestres. (Capítulo XIV, n.º 9) *. A sua alma só devia estar presa ao corpo pelos elos estritamente indispensáveis; constantemente libertada, devia proporcionar-lhe uma dupla visão não só permanente mas de excepcional penetração e muito superior à que vemos nos homens vulgares. Devia passar-se o mesmo com todos os fenómenos que dependiam dos fluidos do perespírito ou psíquicos. A qualidade destes fluidos dava-lhe um imenso poder magnético secundado pelo desejo constante de praticar o bem.

   Nas curas que operava, agia como médium? Podemos considerá-lo um poderoso médium curandeiro? Não. Porque o médium é um intermediário, um instrumento de que se servem os Espíritos não encarnados. Ora, Cristo não precisava de ajuda, ele que ajudava os outros; agia então por si mesmo, devido ao seu poder pessoal, tal como o podem fazer os encarnados em certos casos e na medida das suas forças. De resto, que Espírito teria ousado insuflar-lhe as suas próprias ideias e encarregá-lo de as transmitir? Se recebia um influxo estranho, só podia ser de Deus; segundo a definição dada por um Espírito, ele era médium de Deus
/...

* “A natureza do invólucro fluídico está sempre em relação com o grau de evolução moral do Espírito. Os Espíritos inferiores não o podem mudar a seu gosto e por consequência não podem, à vontade, transportar-se de um mundo para o outro. Acontece então que o invólucro fluídico, apesar de etéreo e imponderável, em comparação com a matéria tangível é ainda demasiado pesado, se assim nos podemos exprimir, em comparação com o mundo espiritual, para permitir que saiam do seu meio. É preciso incluir nesta categoria aqueles cujo perespírito é suficientemente grosseiro para o confundirem com o seu corpo carnal e que, por essa razão, se julgam sempre vivos. Esses Espíritos, e o seu número é grande, permanecem na face da Terra como os encarnados, julgando sempre dedicar-se às suas ocupações; outros, um pouco menos desmaterializados, não o são no entanto o suficiente para se elevarem acima das regiões terrestres.

Os Espíritos superiores, pelo contrário, podem ir aos mundos inferiores e até encarnarem neles: Vão buscar, nos elementos constituintes do mundo onde entram, os materiais do invólucro fluídico ou carnal apropriado ao meio onde se encontram. Fazem como o fidalgo que despe a sua bela roupa para se vestir momentaneamente de burel, sem deixar por isso de ser fidalgo.

É assim que Espíritos da ordem mais elevada se podem manifestar aos habitantes da Terra ou encarnar em missão entre eles. Estes espíritos trazem com eles não o invólucro mas a recordação por intuição das regiões de onde vêm e que vêem em pensamento. São os que vêem entre cegos.”



ALLAN KARDEC, A GÉNESE – Os Milagres e as Profecias Segundo o Espiritismo – Capítulo XV, OS MILAGRES DO EVANGELHO, números 1 e 2, tradução portuguesa de Maria Manuel Tinoco, Editores Livros de Vida
(imagem: O Sermão da Montanha, Carl Heinrich Bloch, Copenhague, século XIX).

quinta-feira, 22 de março de 2012

Narrações do Infinito~



LÚMEN

Primeira narrativa – II
 
Resurrectio præteriti
(a
ressurreição
do
passado)

…/


   Quœrens – De sorte que se uma estrela cuja luz, suponhamos, necessita dois lustros para nos chegar, fosse subitamente aniquilada hoje, nós a estaríamos vendo durante esse decénio, de vez que só ao termo de tal tempo nos chegaria o seu derradeiro raio luminoso?

   Lúmen – Precisamente isso. Em uma palavra, os raios de luz que as estrelas nos enviam não nos chegam instantaneamente, e sim empregando um certo tempo em transpor a distância de separação, não nos mostrando as estrelas tal qual são agora, mas tal qual eram por ocasião em que partiram esses raios de luz transmissores do respectivo aspecto. Aí está uma surpreendente transformação do passado em presente. Para o astro observado, é o que já se passou, o já desaparecido; para o observador, é o presente, o actual. O passado do astro é rigorosa e positivamente o presente do observador. E porque o aspecto dos mundos muda de um ano a outro, e mesmo da véspera para o dia seguinte, pode-se representar esse aspecto igual a um escapamento no Espaço avançando no infinito para se revelar aos olhos dos longínquos contempladores. Cada aspecto é seguido de um outro, e assim sucessivamente; e, na forma de série de ondulações, levam ao longe o passado dos mundos, que se torna presente aos observadores escalonados na sua passagem. Isso que cremos ver presentemente nos astros já se passou, e o que lá está ocorrendo nós não vemos ainda.

   Identificai-vos, meu amigo, com esta representação de um facto real, por isso que vos interessa muito apreender tal marcha sucessiva da luz, e compreender com exactidão essa verdade incontestável: o aspecto das coisas, quando trazido pela luz, apresenta essas coisas, não tal qual elas são presentemente, mas tal qual eram anteriormente, segundo o intervalo de tempo necessário para que a respectiva imagem, assim trazida, percorra a distância que delas nos separa.

   Não vemos astro algum qual é no momento, mas qual o era no instante em que dele saiu o raio luminoso que nos chega. Não é o estado actual do céu que nos é visível, mas a sua história passada. Há mesmo tais e tais astros que não existem mais, desde há dez milénios, e são vistos ainda, por isso que o raio luminoso deles chegado saiu de lá muito tempo antes da sua destruição. Tal estrela dupla, da qual buscais com mil cuidados e muitas fadigas determinar a natureza e os movimentos, não existe mais, desde quando começaram a haver astrónomos sobre a superfície da Terra. Se o céu visível fosse aniquilado hoje, seria visto ainda amanhã, e ainda no ano próximo e ainda durante um século, um milénio, cinco, dez milénios, e por mais, exceptuadas apenas as estrelas muito próximas, que se extinguiriam, sucessivamente, à proporção do decurso de tempo necessário para que os respectivos raios luminosos, delas emanados, transpusessem a distância que nos separa: Alfa do Centauro extinguir-se-ia primeiro, em 48 meses, Sírio em 120, etc. E fácil agora, meu amigo, aplicar a teoria científica à explicação do estranho facto do qual fui testemunha. Se da Terra se vê a estrela Capela, não tal qual é no momento da observação, e sim tal qual foi 864 meses antes, de igual maneira de lá não se vê a Terra senão com idêntica diferença de aspecto, correspondente a igual período de tempo. A luz despende o mesmo tempo para percorrer os dois trajectos.

   Quœrens – Mestre, acompanhei atentamente vossas explicações. Não sendo luminosa, brilha a Terra, à distância, igual a uma estrela?

   Lúmen – A Terra espelha no Espaço a luz recebida do Sol. Quanto maior a longitude, mais o nosso planeta se parece a uma estrela, concentrada toda a luz do Sol em um disco que se torna cada vez menor. Assim, vista da Lua, essa superfície parece 14 vezes mais luminosa do que a do plenilúnio, pois é 14 vezes mais vasta. Observada do planeta Vénus, daria a aparência do mesmo brilho que tem Júpiter, visto da Terra. Contemplada de Marte, converte-se em estrela da manhã e do crepúsculo vespertino, oferecendo fases iguais às que Vénus apresenta. Assim, embora não tenha brilho próprio, brilha de longe, a exemplo da Lua e dos planetas, pela luz que recebe e reflecte do Sol no Espaço. Ora, assim como os acontecimentos de Neptuno sofrem um atraso de 4 horas, vistos da Terra, assim também os da Terra passam pela mesma demora quando observados da órbita de Neptuno. Por isso, de Capela, a Terra é vista com aquele dito retrocesso de sete decénios, aproximadamente.

   Quœrens – Por muito estranhos e raros que sejam esses aspectos para mim, compreendo agora perfeitamente por que, transportado à estrela Capela, não vistes a Terra no seu aspecto de 1864, data da vossa morte, mas na situação de Janeiro de 1793, por isso que a luz gasta 872 meses para atravessar o abismo que separa o globo terrestre daquela estrela. E compreendo, com a mesma clareza, não se tratar de uma visão ou fenómeno de memória, nem de um acto maravilhoso ou sobrenatural, mas de um facto presente, positivo, natural e evidente; e que, com efeito, quanto ocorrera na Terra, havia muito, só então poderia chegar ao conhecimento do observador colocado àquela longitude. Permiti, porém, intercale uma questão incidente. Para que, procedendo da Terra, testemunhásseis esses factos foi indispensável franquear tal distância, do nosso mundo à Capela, com velocidade maior do que a da própria luz?

   Lúmen – Sobre isso já vos falei, quando disse que eu acreditava tê-la transposto com a rapidez do pensamento, e que no dia mesmo da minha morte eu me encontrei no sistema daquela estrela – que tanto apreciei e admirei durante a minha estada na Terra. A velocidade da gravitação poderá dar uma imagem do que é a do pensamento, pois, vós o sabeis, é quase instantânea.

   Quœrens – Ainda uma objecção. Para que se possa ver, assim, de tão alto, a superfície do nosso globo, é necessário estar o céu puro, sem nuvens e sem brumas?

   Lúmen – Não, não é indispensável. orgãos especiais podem ver através de corpos opacos; a luz visível não é a única que existe: há raios invisíveis percebidos, por exemplo, pela fotografia.

   Quœrens – Ah! mestre, verdadeiramente, embora tudo se explique assim, tal visão não é menos estupenda. Em verdade, é um fenómeno extraordinário esse de ver – actualmente – o passado presente e de não o poder ver senão por esse modo pasmoso, e ainda o de não poder ver os astros tal qual o são no momento em que são examinados, nem tão pouco vê-los tal qual foram – simultaneamente –, e sim apenas o que foram em épocas diversas, segundo suas distâncias e o tempo que a luz de cada um gastou para chegar a Terra! Assim, nenhum olhar humano vê o universo sideral tal qual é!

   Lúmen – O espanto legítimo que experimentais na contemplação desta verdade, meu amigo, é apenas o prelúdio, ouso dizê-lo, do que vai agora aprender. Sem dúvida, parece, à primeira vista, muito extraordinário que, distanciando-se bastante no Espaço, encontre alguém maneira de assistir realmente a acontecimentos de eras desaparecidas e ressubir o rio do passado. Mas não reside nisso o facto que tenho a comunicar e que ides achar mais imaginário ainda, se quiserdes ouvir mais extensamente a narrativa da jornada que se seguiu à minha libertação do cárcere terrestre.

   Quœrens – Falai, eu vos peço, estou sequioso de vos escutar.
/…


CAMILLE FLAMMARION, Narrações do Infinito, LÚMEN Primeira narrativa – II, fragmento global 7º (C. Flammarion faz falar uma alma liberta dos vínculos corporais, a que ele denominou Lúmen)
(imagem: Jungle Tales_1895, pintura de James Jebusa Shannon)

quarta-feira, 21 de março de 2012

Saberes e o tempo~


A primeira ideia que os homens fizeram da Terra, do movimento dos astros e da constituição do Universo deve ter sido, na sua origem, unicamente baseada no testemunho dos sentidos. Na ignorância das leis mais elementares da física e das forças da natureza, não tendo mais que a sua visão limitada como meio de observação.
Ao ver o Sol surgir de manhã de um lado do horizonte e desaparecer do lado oposto, concluiu-se daí naturalmente que este girava à volta da Terra, enquanto esta permanecia imóvel. Se tivesse então sido dito aos homens que é o contrário que se passa, teriam respondido que isso não podia ser, porque, teriam eles dito, nós vemos o Sol mudar de sítio e não sentimos a Terra mexer-se.

A pouca extensão das viagens, que raramente ultrapassavam então os limites da tribo ou do vale, não permitiam que se constatasse a forma esférica da Terra. Como é que, aliás, se poderia supor que a Terra pudesse ser uma bola? Os homens não se poderiam manter sobre o ponto mais elevado e imaginá-la habitada em toda a sua superfície; como poderiam viver no hemisfério oposto, de cabeça para baixo e pés para cima? A coisa teria parecido ainda menos possível com um movimento de rotação. Quando vemos, ainda hoje, que se não apercebem deste fenómeno, não nos devemos espantar por os homens dos primeiros tempos não o terem nem sequer suspeitado.

A Terra era portanto para eles uma superfície plana, circular como uma mó de moinho, estendendo-se a perder de vista em sentido horizontal; daí a expressão ainda utilizada: ir até ao fim do mundo. Os seus limites, a sua espessura, o seu interior, a sua face inferior, o que havia por baixo, era o desconhecido (*).

O céu, aparecendo sob uma forma côncava, era, segundo a crença vulgar, uma abóbada real cujos bordos inferiores assentavam na Terra, demarcando-lhe os confins; vasta cúpula com a capacidade total repleta de ar. Sem nenhuma noção de infinito, de espaço, incapaz mesmo de o conceber, os homens imaginavam esta abóbada formada por matéria sólida; daí o nome de firmamento que sobreviveu à crença e que significa firme, resistente (do latim firmamentum, derivado de firmus e do grego herma, hermatos, firme, suporte, ponto de apoio).

As estrelas, cuja natureza não podiam imaginar, eram simples pontos luminosos, mais ou menos grandes, ligados à abóbada como lâmpadas suspensas, dispostas numa única superfície e, por consequência, todas à mesma distância da Terra, tal como se representam no interior de certas cúpulas pintadas de azul para imitar o azul dos céus.

Apesar de hoje as ideias serem muito diferentes, o uso das expressões antigas conservou-se; diz-se ainda, por comparação: a abóbada estrelada; sob a calote do céu.

A formação das nuvens por evaporação das águas da Terra era então igualmente desconhecida; não podiam pensar que a chuva que cai do céu tivesse a sua origem na Terra, de onde não se via a água subir. Daí a crença na existência das águas superiores e das águas inferiores, das fontes celestes e das fontes terrestres, em reservatórios situados nas regiões altas, suposição que estava perfeitamente de acordo com a ideia de uma abóbada capaz de as manter. As águas superiores, escapando-se por fissuras da abóbada, caíam em chuva e, consoante essas aberturas fossem maiores ou menores, a chuva era suave ou torrencial e diluviana.

A ignorância total sobre o conjunto do Universo e das leis que o regem, da natureza, da constituição e destino dos astros, que pareciam tão pequenos em comparação com a Terra, deve necessariamente ter feito com que esta fosse considerada a coisa principal, fim único da Criação, e onde os astros seriam acessórios criados unicamente para os seus habitantes. Este preconceito perpetuou-se até aos nossos dias, apesar das descobertas da ciência que mudaram, para o homem, o aspecto do mundo. Quantas pessoas acreditam ainda que as estrelas são ornamentos do céu para recrear a vista dos habitantes da Terra!

Não tardaram a aperceber-se do movimento aparente das estrelas que se movem em massa do Oriente para o Ocidente, levantando-se à noite e deitando-se de manhã, conservando as suas posições respectivas. Esta observação não teve durante muito tempo outra consequência para além de confirmar a ideia de uma abóbada sólida arrastando as estrelas no seu movimento de rotação.

Estas primeiras ideias, ideias ingénuas, foram durante longos períodos seculares a base das crenças religiosas e serviram de fundo a todas as cosmogonias antigas.

Mais tarde compreendeu-se, pela direcção do movimento das estrelas e pelo seu regresso periódico na mesma ordem, que a abóbada celeste não podia ser simplesmente uma semiesfera assente sobre a Terra, mas sim uma esfera inteira, côncava, no centro da qual se encontrava a Terra, sempre plana ou quando muito convexa e habitada unicamente na face superior. Era já um progresso.

Mas em que estava assente a Terra? Seria inútil mencionar todas as suposições ridículas concebidas pela imaginação, desde a dos índios que a diziam levada por quatro elefantes brancos e estes pelas asas de um imenso abutre. Os mais sensatos confessavam que não sabiam nada disso.

No entanto, uma opinião geralmente propagada nas teogonias pagãs situava nos lugares baixos, ou dito de outra maneira, nas profundezas da Terra, ou por baixo, não se sabia muito bem, a morada dos reprovados, chamados infernos, quer dizer, lugares inferiores; nos lugares altos, para além do lugar das estrelas, a morada dos bem-aventurados. A palavra inferno conservou-se até aos nossos dias, embora tenha perdido o seu significado etimológico desde que a geologia desalojou o lugar dos suplícios eternos das entranhas da Terra e que a astronomia demonstrou que não há nem alto nem baixo no espaço infinito.

Sob o céu puro da Caldeia, da Índia e do Egipto, berço das mais antigas civilizações, foi possível observar o movimento dos astros com tanta precisão quanta permitia a ausência de instrumentos especiais. Viu-se primeiro que certas estrelas tinham um movimento próprio independente da massa, o que não permitia supor que estivessem agarradas à abóbada; chamaram-lhes estrelas errantes ou planetas para as distinguir das estrelas fixas. Calcularam-se os seus movimentos e os seus regressos periódicos.

No movimento diurno da esfera estrelada observou-se a imobilidade da estrela polar à volta da qual as outras descreviam, em vinte e quatro horas, círculos oblíquos paralelos maiores ou menores, consoante as latitudes e as estações; a elevação da estrela polar abaixo do horizonte, variando com a altitude, colocou-nos no caminho da esfericidade da Terra; foi assim que, a pouco e pouco, fomos ficando com uma ideia mais certa do sistema do mundo.

Cerca do ano 600 antes de Jesus Cristo, Tales de Mileto (Ásia Menor), conheceu a esfericidade da Terra, a obliquidade da elíptica e a causa dos eclipses.

Um século depois, Pitágoras de Samos, descobre o movimento diurno da Terra sobre o seu eixo, o seu movimento anual à volta do Sol e liga os planetas e os cometas ao sistema solar.

160 anos antes de J. C., Hiparco de Alexandria (Egipto), inventa o astrolábio, calcula e prevê os eclipses, observa as manchas do Sol, determina o ano trópico, a duração das mudanças da Lua.

Por muito preciosas que fossem estas descobertas para o progresso da ciência, levaram cerca de 2000 anos a popularizar-se. As ideias novas, não tendo então para se propagarem mais do que raros manuscritos, continuavam a ser o quinhão de alguns filósofos que as ensinavam a discípulos privilegiados; as massas, que nem se pensava em esclarecer, não as aproveitavam em nada e continuavam a alimentar-se de velhas crenças.
/... 

(*) “ A mitologia hindu ensinava que o astro do dia se despojava à noite da sua luz e atravessava o céu durante a noite com uma face obscura. A mitologia grega representava o carro de Apolo puxado por quatro cavalos. Anaximandro, de Mileto, sustentava que em relação a Plutarco, que o Sol era uma quadriga cheia com um fogo muito vivo que se teria escapado por uma abertura circular. Epicuro teria, segundo alguns, emitido a opinião de que o Sol se acendia de manhã e se apagava à noite nas águas do oceano; outros pensam que ele fazia deste astro uma pedra-pomes aquecida até à incandescência. Anaxágoras considerava-o um ferro quente com o tamanho do Peloponeso. Estranha observação! Os antigos eram tão irresponsavelmente levados a considerar a grandeza aparente deste astro como se fosse real, que perseguiram este filósofo temerário por ter atribuído um tal volume ao archote do dia e que foi necessária toda a autoridade de Péricles para o salvar de uma condenação à morte, comutando-a por uma sentença de exílio.” (Flammarion, Estudos e Leituras Sobre Astronomia.)

Quando vemos tais ideias expressas no século v antes da era cristã, na época mais florescente da Grécia, não nos podemos espantar com as que os homens das primeiras eras tinham sobre o sistema do mundo. (N. do A.)


ALLAN KARDEC, A GÉNESE – Os Milagres e as Profecias Segundo o Espiritismo – Capítulo V, TEORIAS ANTIGAS E MODERNAS SOBRE O MUNDO, números de 1 a 10, tradução portuguesa de Maria Manuel Tinoco, Editores Livros de Vida
(imagem: Pitágoras, pormenor d'A escola de Atenas de Rafael Sanzio (1509)

terça-feira, 20 de março de 2012

O Espiritismo na Arte~


Segunda lição de o Esteta

– Composição virtual de obras artísticas. – A eclosão da inspiração

|22 de Novembro de 1921|

“Após ter-vos dado a descrição das cenas artísticas que registamos no espaço, para vós será interessante saber como agrupamos os elementos dessas cenas para compor virtualmente esses quadros.

Tentarei vos fazer compreender como reunimos as moléculas necessárias para que a nossa


vontade possa projectar os fluidos capazes de se transformarem em obras que simbolizem a beleza sob todas as formas. Essas obras serão sentidas e percebidas por outros seres fluídicos que não são criadores.

Os seres imateriais que flutuam nas regiões fluídicas, infinitamente ricas e subtis, só as alcançaram por uma longa e progressiva evolução pela qual adquiriram conhecimentos e aptidões suficientes para eles mesmos poderem criar, no mundo onde vivem, entre suas existências humanas.

Vejamos um exemplo. Um grande escultor, um grande pintor ou um grande artista parte da Terra. Ele ainda está sob a impressão dos trabalhos que executou durante sua existência anterior; chegado ao espaço, não estando mais o seu espírito limitado pela matéria, ele revê o caminho percorrido desde o dia em que recebeu a essência criadora divina e adquire a certeza de que poderá, nas novas existências, desenvolver e completar o que vós podeis chamar de parcela genial.

Ele vai ver, no espaço, desenrolarem-se todos os factos proeminentes que presidiram a eclosão da sua inspiração.

Se ele era arquitecto ou escultor, imediatamente, de acordo com sua vontade, sua memória voltará a traçar os monumentos ou as obras de arte que ele criou.

Admitimos que ele plane nesse meio do qual acabamos de falar; após um apelo a Deus, seu pensamento encontrará, por suas radiações, fluidos suficientes para reconstituir todas as suas obras. Se elas têm um carácter verdadeiro de beleza, se a inspiração é pura, se o ideal é elevado, os outros seres que rodeiam o artista sentirão despertar em si mesmos um desejo de imitação e, pouco a pouco, o véu material sendo levantado, seu pensamento pessoal será fecundado pelo do artista.

Assim, um grande mestre-escultor fará reviver esses belos monumentos nos quais a glória do Altíssimo foi cantada durante séculos. Então, imensas catedrais serão reedificadas; mas o artista não se limita sempre à obra que criou, sua visão à distância também reencontra as obras dos seus discípulos, e algumas vezes sua inspiração continua no espaço para formar de novo obras que tomam a diversos autores as partes mais bem-sucedidas de suas concepções. Se vós penetrásseis no espaço, no plano elevado a que me refiro, poderíeis perceber que monumentos, que não são semelhantes àqueles erigidos no vosso mundo, são reconstituídos pelo pensamento fluídico de seres inspirados por Deus.

O Criador supremo dá a cada um de seus filhos uma parcela animadora que se exterioriza quando o culto do belo e do ideal desperta neles. Vossos monumentos religiosos são as imagens vivas desse facto. Esses telhados arrojados, lançando-se em direcção ao céu, não são uma imagem fiel do pensamento do ser humano elevando-se em uma prece derradeira a esse Deus que nos criou? Quer seja uma catedral ou um templo da Antiguidade, quer seja na Grécia, em Roma, em Florença ou em vosso país, procurai e sempre encontrareis a confirmação de que o pensamento superior preside a eclosão das obras arquitectónicas.

Faço uma pequena comparação, talvez me afastando do meu assunto: se considerardes a história da Arquitectura na Alemanha nestes tempos modernos, constatareis que a elevação em direcção ao céu é ausente, que formas maciças e quadradas substituem a cúpula ou a ogiva; o pensamento estende-se sobre a Terra e não se eleva mais em direcção ao divino.

Em pintura, estudai a escola florentina na época da Renascença; verificareis que quando as obras têm um cunho místico, os traços se divinizam e as cenas tomam características de real beleza e de verdadeira grandeza.

Ocorre o mesmo em todas as artes. A música sacra, por exemplo, tem um carácter que toca de mais perto o divino, enquanto que a música profana, quando se aproxima da matéria, reveste a característica de um realismo baixo e grosseiro.”
/…


LÉON DENIS, O Espiritismo na Arte, Parte I – Composição virtual de obras artísticas, A eclosão da inspiração. 5º fragmento da obra.
(imagem: Mona Lisa 1503-1507 – Louvre, pintura de Leonardo da Vinci)

segunda-feira, 19 de março de 2012

~~~Párias em Redenção~~~


4. FÚRIA ASSASSINA
.../

   Florença
nada perdera
do esplendor antigo, quando República próspera e invejada.
Seus palácios
se misturavam aos museus, as bibliotecas e os conventos disputavam a glória da
maior posse


de objectos de arte: pinturas, afrescos, porcelanas, instrumentos de música, esculturas. As ruas pareciam ressumar os dias gloriosos do passado, quando os génios do Renascimento se refugiavam nas suas tascas para o prazer fugidio do vinho capitoso, em noites festivas, ou nos palácios, onde o luxo ostentava o poder, afogando nas paixões da lubricidade e das aventuras de todos os matizes a ardência dos desejos infrenes.

   A cidade verdejante exibia suas igrejas sobranceiras, de torres e pórticos que a celebrizaram, onde se guardam as obras geniais de Donatello, com o seu realismo medieval, Botticelli e suas madonas, Miguel Ângelo, Masaccio, Fra Angélico, Ghirlandaio, Rosselli, Cellini, da Vinci

   O fastígio passado ainda hoje ressurge, demora-se e teima por continuar, conquanto a desgraça de que fora vítima no século XV, pela cobardia moral de Pedro de Médici e os sofrimentos experimentados com Savonarola… Logo depois deles, porém, voltou ao esplendor, até a morte de João Gastão, o último dos Médici…

   Permanece continuadora fiel dos seus antepassados, na pintura, na escultura, na arquitectura, na literatura, como se o Renascimento não houvesse passado de todo. Não surgiam agora, é certo, novos vates nem artistas, mas o orgulho nacional, inigualável, cultivava, como no passado, os gozos que a faziam invejada, pelas noites orgíacas em que o mundanismo invadia palácios e templos, tabernas e solares, onde o crime do suborno e do homicídio recebiam altos salários, e em que se eliminavam as pessoas caídas em desagrado, sob o olhar complacente da justiça, regida pelos poderosos, com a maior facilidade. As sombras da Idade Média, de certo modo, perduravam na Capital da Toscana, na exuberância verde das colinas de San Miniato de Fiesole, e o Arno, no seu passar contínuo, lambendo os alicerces da cidade que se exaltava, impotente, junto às suas águas, prossegue, sendo testemunha silenciosa e túmulo discreto para cadáveres em quantidade, que lhe são arrojados na calada das noites e dormem no seu seio líquido, prateado.

   Girólamo, amigo das dissipações e já conhecedor da vida desregrada das noites de Florença, necessitava fugir do olhar sempre desconfiado e perquiridor dos conhecidos, que não deixavam de pensar, examinando a possibilidade de Lúcia assassinar as crianças para se transformar na possuidora dos haveres do duque, que Girólamo, pelas mesmas razões, se enquadrava na acusação que imputava à vítima do seu punhal certeiro e criminoso. A evasão, pois, tinha vários objectivos de alta importância: fugir à constante suspeição e embriagar-se de prazer antecipado, encontrando, também, meios de se libertar de Assunta. É  certo que lhe não fizessem propícios os fados, para livra-se em definitivo de qualquer perigo. Era moço e ambicionava o poder, no qual mergulharia com indescritível avidez. Para tanto, não tergiversara nem temera embrenhar-se no matagal dos nefandos delitos, e não cessaria de praticá-los senão quando estivesse asserenada a fúria interior que o conduzia.

   Visitado por pensamentos descontrolados e atormentado pela tensão de poder dar largas ao ânimo íntimo, longe dos olhares percucientes e indagadores; obrigado ali, por motivos óbvios, a manter luto e tristeza, em homenagem aos familiares e protectores falecidos, impondo-se um sacrifício crescente; objecto permanente, em Siena, da admiração de uns e da inveja de outros, não suportaria continuar, pelo que resolveu evadir-se, através da viagem que saberia justificar.

   Tendo entregue ao Senhor Bispo, seu novo protector, e ao testamenteiro, seu áulico ambicioso, a regularização dos documentos e a temporária guarda dos bens do Palácio di Bicci, o aventureiro tomou a diligência que fazia o percurso normal entre as duas cidades e, justificando a necessidade do afastamento, rumou na direcção da metrópole, Florença.

   Amainava a quadra hibernal e as chuvas eram, agora, escassas. A cidade se recuperava do rigor das tempestades e da humidade. As velhas e tortuosas ruas recobravam o movimento diminuído pela imposição da estação chuvosa e a alegria voltava a explodir estuante nas praças e lugares públicos. Só o frio permanecia rigoroso.

   De imediato, o jovem senense formou alegre roda em torno de sua pessoa, hóspede que se fizera de Donato Angélico, que na villa reunia a juventude irresponsável e gozadora da cidade. Homem abastado, aquele Donato Angélico era comerciante de tecidos e importador de destaque, tendo-se transformado em figura obrigatória de todas as rodas da frivolidade dourada, contribuindo com a bolsa larga para noitadas alegres, em que se misturavam o vício e o luxo em duelo de corrupção violenta.

   A villa, ajardinada e discretamente resguardada por árvores de nobre porte e ciprestes altaneiros, parecia repousar dolentemente à margem direita do rio, que a contornava em parte, aumentando a sumptuosidade da sua arquitectura, que procedia do século XVI, adornada de peças de alto valor, disputadas pelos museus em prosperidade crescente.

   A sociedade burguesa, que fora responsável pela glória da cidade, e de cujo seio saíram os melhores administradores e protectores do seu progresso, continuava o ciclo de domínio. As rédeas do poder haviam passado, depois dos Médici, a uma outra casta dominadora, conquanto sob a suserania da Casa de Áustria, mas a cidade nas mãos dos banqueiros e industriais do lanifício e das sedas, já que os remanescentes da nobreza e o povo em geral se encontravam dominados pela força do comércio, sempre lucrativo e generoso.

   Desse modo, Dom Donato e os seus pares se permitiam exorbitâncias somente concedidas a pequenos monarcas, alimentando o tédio e a ociosidade dos seus convidados em longos dias de repouso e demoradas noites de desperdício. Era exactamente o local próprio, em cujo clima de viciação Girólamo anestesiava o torpe espírito. A ambição desmedida fazia-o sonhar com a forma eficaz de utilizar os haveres, que desde já lhe soavam aos ouvidos. A tragédia em que terminara os dias a família di Bicci di M. não repercutia em Florença e, embora a cidade fervilhasse de comentários infelizes, a corte da irresponsabilidade na Capital não se inteirara dos detalhes horripilantes do infortúnio que se consumara nos arredores de Siena, uma das suas cidades rivais e, por isso, detestada pelos florentinos.

   Apesar de acontecimentos funestos dessa natureza não sensibilizaram demasiado a sociedade contemporânea a que nos referimos, não passariam sem a mordacidade dos maus e dos folgazões, através de comentários ácidos; e as intrigas forjadas junto aos ouvidos das autoridades, não obstante inexpressivas, sem valor diante das classes poderosas, que as impunham e retiravam como peças de um jogo de xadrez desinteressante, poderiam criar dificuldades para Girólamo.

   Os conceitos de ordem, justiça, verdade e amor eram cavilosamente considerados no mundo profano e, mesmo entre os seguidores do Crucificado, na vida religiosa, a consciência se deixava intoxicar pelo miasma do dinheiro, fechando os olhos aos deslizes morais, dos quais se podia ser absolvido com alguns “sacrifícios”, convertidos em moeda sonante, tais como: o arrependimento, orações, jaculatórias, punições aos transgressores da Lei Divina, como se a prece, o arrependimento dos erros e a renovação interior devessem ser tidos na condição punitiva e não piedosa, de cuja atitude a alma se retira lenida pela paz e refeita nas energias gastas, quando das jornadas pelos corredores sombrios do pecado!

   Os remanescentes da família di Bicci di M., logo retornaram a Florença, tentaram um cometimento junto às autoridades relapsas, cujo poder, todavia, não atingia Siena, especialmente após informadas da conivência do Bispo daquela cidade, em atitude protectoral ao miserando herdeiro. Incomodar um “príncipe” da Igreja naqueles dias ainda era considerado uma temeridade… Desaconselhados de abrirem uma contenda inútil, desde que o testamento era válido e Girólamo fora adoptado legalmente pelo duque, tornado seu herdeiro natural, portanto, perante a lei e pela vontade do extinto, o assunto morreu, asfixiado em licores e esquecido quase de imediato.

   Os primeiros dias transcorriam, pois, na villa Angélico, em alacridade festiva e ociosidade remunerada.   
/…
  

VICTOR HUGO, Espírito “PÁRIAS EM REDENÇÃO” – LIVRO PRIMEIRO, 4. FÚRIA ASSASSINA (fragmento 1 de 3) texto mediúnico recebido por DIVALDO PEREIRA FRANCO
(imagem: A Alma da Floresta – 1898, pintura de Edgar Maxence)