Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

quinta-feira, 22 de março de 2012

Narrações do Infinito~



LÚMEN

Primeira narrativa – II
 
Resurrectio præteriti
(a
ressurreição
do
passado)

…/


   Quœrens – De sorte que se uma estrela cuja luz, suponhamos, necessita dois lustros para nos chegar, fosse subitamente aniquilada hoje, nós a estaríamos vendo durante esse decénio, de vez que só ao termo de tal tempo nos chegaria o seu derradeiro raio luminoso?

   Lúmen – Precisamente isso. Em uma palavra, os raios de luz que as estrelas nos enviam não nos chegam instantaneamente, e sim empregando um certo tempo em transpor a distância de separação, não nos mostrando as estrelas tal qual são agora, mas tal qual eram por ocasião em que partiram esses raios de luz transmissores do respectivo aspecto. Aí está uma surpreendente transformação do passado em presente. Para o astro observado, é o que já se passou, o já desaparecido; para o observador, é o presente, o actual. O passado do astro é rigorosa e positivamente o presente do observador. E porque o aspecto dos mundos muda de um ano a outro, e mesmo da véspera para o dia seguinte, pode-se representar esse aspecto igual a um escapamento no Espaço avançando no infinito para se revelar aos olhos dos longínquos contempladores. Cada aspecto é seguido de um outro, e assim sucessivamente; e, na forma de série de ondulações, levam ao longe o passado dos mundos, que se torna presente aos observadores escalonados na sua passagem. Isso que cremos ver presentemente nos astros já se passou, e o que lá está ocorrendo nós não vemos ainda.

   Identificai-vos, meu amigo, com esta representação de um facto real, por isso que vos interessa muito apreender tal marcha sucessiva da luz, e compreender com exactidão essa verdade incontestável: o aspecto das coisas, quando trazido pela luz, apresenta essas coisas, não tal qual elas são presentemente, mas tal qual eram anteriormente, segundo o intervalo de tempo necessário para que a respectiva imagem, assim trazida, percorra a distância que delas nos separa.

   Não vemos astro algum qual é no momento, mas qual o era no instante em que dele saiu o raio luminoso que nos chega. Não é o estado actual do céu que nos é visível, mas a sua história passada. Há mesmo tais e tais astros que não existem mais, desde há dez milénios, e são vistos ainda, por isso que o raio luminoso deles chegado saiu de lá muito tempo antes da sua destruição. Tal estrela dupla, da qual buscais com mil cuidados e muitas fadigas determinar a natureza e os movimentos, não existe mais, desde quando começaram a haver astrónomos sobre a superfície da Terra. Se o céu visível fosse aniquilado hoje, seria visto ainda amanhã, e ainda no ano próximo e ainda durante um século, um milénio, cinco, dez milénios, e por mais, exceptuadas apenas as estrelas muito próximas, que se extinguiriam, sucessivamente, à proporção do decurso de tempo necessário para que os respectivos raios luminosos, delas emanados, transpusessem a distância que nos separa: Alfa do Centauro extinguir-se-ia primeiro, em 48 meses, Sírio em 120, etc. E fácil agora, meu amigo, aplicar a teoria científica à explicação do estranho facto do qual fui testemunha. Se da Terra se vê a estrela Capela, não tal qual é no momento da observação, e sim tal qual foi 864 meses antes, de igual maneira de lá não se vê a Terra senão com idêntica diferença de aspecto, correspondente a igual período de tempo. A luz despende o mesmo tempo para percorrer os dois trajectos.

   Quœrens – Mestre, acompanhei atentamente vossas explicações. Não sendo luminosa, brilha a Terra, à distância, igual a uma estrela?

   Lúmen – A Terra espelha no Espaço a luz recebida do Sol. Quanto maior a longitude, mais o nosso planeta se parece a uma estrela, concentrada toda a luz do Sol em um disco que se torna cada vez menor. Assim, vista da Lua, essa superfície parece 14 vezes mais luminosa do que a do plenilúnio, pois é 14 vezes mais vasta. Observada do planeta Vénus, daria a aparência do mesmo brilho que tem Júpiter, visto da Terra. Contemplada de Marte, converte-se em estrela da manhã e do crepúsculo vespertino, oferecendo fases iguais às que Vénus apresenta. Assim, embora não tenha brilho próprio, brilha de longe, a exemplo da Lua e dos planetas, pela luz que recebe e reflecte do Sol no Espaço. Ora, assim como os acontecimentos de Neptuno sofrem um atraso de 4 horas, vistos da Terra, assim também os da Terra passam pela mesma demora quando observados da órbita de Neptuno. Por isso, de Capela, a Terra é vista com aquele dito retrocesso de sete decénios, aproximadamente.

   Quœrens – Por muito estranhos e raros que sejam esses aspectos para mim, compreendo agora perfeitamente por que, transportado à estrela Capela, não vistes a Terra no seu aspecto de 1864, data da vossa morte, mas na situação de Janeiro de 1793, por isso que a luz gasta 872 meses para atravessar o abismo que separa o globo terrestre daquela estrela. E compreendo, com a mesma clareza, não se tratar de uma visão ou fenómeno de memória, nem de um acto maravilhoso ou sobrenatural, mas de um facto presente, positivo, natural e evidente; e que, com efeito, quanto ocorrera na Terra, havia muito, só então poderia chegar ao conhecimento do observador colocado àquela longitude. Permiti, porém, intercale uma questão incidente. Para que, procedendo da Terra, testemunhásseis esses factos foi indispensável franquear tal distância, do nosso mundo à Capela, com velocidade maior do que a da própria luz?

   Lúmen – Sobre isso já vos falei, quando disse que eu acreditava tê-la transposto com a rapidez do pensamento, e que no dia mesmo da minha morte eu me encontrei no sistema daquela estrela – que tanto apreciei e admirei durante a minha estada na Terra. A velocidade da gravitação poderá dar uma imagem do que é a do pensamento, pois, vós o sabeis, é quase instantânea.

   Quœrens – Ainda uma objecção. Para que se possa ver, assim, de tão alto, a superfície do nosso globo, é necessário estar o céu puro, sem nuvens e sem brumas?

   Lúmen – Não, não é indispensável. orgãos especiais podem ver através de corpos opacos; a luz visível não é a única que existe: há raios invisíveis percebidos, por exemplo, pela fotografia.

   Quœrens – Ah! mestre, verdadeiramente, embora tudo se explique assim, tal visão não é menos estupenda. Em verdade, é um fenómeno extraordinário esse de ver – actualmente – o passado presente e de não o poder ver senão por esse modo pasmoso, e ainda o de não poder ver os astros tal qual o são no momento em que são examinados, nem tão pouco vê-los tal qual foram – simultaneamente –, e sim apenas o que foram em épocas diversas, segundo suas distâncias e o tempo que a luz de cada um gastou para chegar a Terra! Assim, nenhum olhar humano vê o universo sideral tal qual é!

   Lúmen – O espanto legítimo que experimentais na contemplação desta verdade, meu amigo, é apenas o prelúdio, ouso dizê-lo, do que vai agora aprender. Sem dúvida, parece, à primeira vista, muito extraordinário que, distanciando-se bastante no Espaço, encontre alguém maneira de assistir realmente a acontecimentos de eras desaparecidas e ressubir o rio do passado. Mas não reside nisso o facto que tenho a comunicar e que ides achar mais imaginário ainda, se quiserdes ouvir mais extensamente a narrativa da jornada que se seguiu à minha libertação do cárcere terrestre.

   Quœrens – Falai, eu vos peço, estou sequioso de vos escutar.
/…


CAMILLE FLAMMARION, Narrações do Infinito, LÚMEN Primeira narrativa – II, fragmento global 7º (C. Flammarion faz falar uma alma liberta dos vínculos corporais, a que ele denominou Lúmen)
(imagem: Jungle Tales_1895, pintura de James Jebusa Shannon)

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