Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

quarta-feira, 21 de março de 2012

Saberes e o tempo~


A primeira ideia que os homens fizeram da Terra, do movimento dos astros e da constituição do Universo deve ter sido, na sua origem, unicamente baseada no testemunho dos sentidos. Na ignorância das leis mais elementares da física e das forças da natureza, não tendo mais que a sua visão limitada como meio de observação.
Ao ver o Sol surgir de manhã de um lado do horizonte e desaparecer do lado oposto, concluiu-se daí naturalmente que este girava à volta da Terra, enquanto esta permanecia imóvel. Se tivesse então sido dito aos homens que é o contrário que se passa, teriam respondido que isso não podia ser, porque, teriam eles dito, nós vemos o Sol mudar de sítio e não sentimos a Terra mexer-se.

A pouca extensão das viagens, que raramente ultrapassavam então os limites da tribo ou do vale, não permitiam que se constatasse a forma esférica da Terra. Como é que, aliás, se poderia supor que a Terra pudesse ser uma bola? Os homens não se poderiam manter sobre o ponto mais elevado e imaginá-la habitada em toda a sua superfície; como poderiam viver no hemisfério oposto, de cabeça para baixo e pés para cima? A coisa teria parecido ainda menos possível com um movimento de rotação. Quando vemos, ainda hoje, que se não apercebem deste fenómeno, não nos devemos espantar por os homens dos primeiros tempos não o terem nem sequer suspeitado.

A Terra era portanto para eles uma superfície plana, circular como uma mó de moinho, estendendo-se a perder de vista em sentido horizontal; daí a expressão ainda utilizada: ir até ao fim do mundo. Os seus limites, a sua espessura, o seu interior, a sua face inferior, o que havia por baixo, era o desconhecido (*).

O céu, aparecendo sob uma forma côncava, era, segundo a crença vulgar, uma abóbada real cujos bordos inferiores assentavam na Terra, demarcando-lhe os confins; vasta cúpula com a capacidade total repleta de ar. Sem nenhuma noção de infinito, de espaço, incapaz mesmo de o conceber, os homens imaginavam esta abóbada formada por matéria sólida; daí o nome de firmamento que sobreviveu à crença e que significa firme, resistente (do latim firmamentum, derivado de firmus e do grego herma, hermatos, firme, suporte, ponto de apoio).

As estrelas, cuja natureza não podiam imaginar, eram simples pontos luminosos, mais ou menos grandes, ligados à abóbada como lâmpadas suspensas, dispostas numa única superfície e, por consequência, todas à mesma distância da Terra, tal como se representam no interior de certas cúpulas pintadas de azul para imitar o azul dos céus.

Apesar de hoje as ideias serem muito diferentes, o uso das expressões antigas conservou-se; diz-se ainda, por comparação: a abóbada estrelada; sob a calote do céu.

A formação das nuvens por evaporação das águas da Terra era então igualmente desconhecida; não podiam pensar que a chuva que cai do céu tivesse a sua origem na Terra, de onde não se via a água subir. Daí a crença na existência das águas superiores e das águas inferiores, das fontes celestes e das fontes terrestres, em reservatórios situados nas regiões altas, suposição que estava perfeitamente de acordo com a ideia de uma abóbada capaz de as manter. As águas superiores, escapando-se por fissuras da abóbada, caíam em chuva e, consoante essas aberturas fossem maiores ou menores, a chuva era suave ou torrencial e diluviana.

A ignorância total sobre o conjunto do Universo e das leis que o regem, da natureza, da constituição e destino dos astros, que pareciam tão pequenos em comparação com a Terra, deve necessariamente ter feito com que esta fosse considerada a coisa principal, fim único da Criação, e onde os astros seriam acessórios criados unicamente para os seus habitantes. Este preconceito perpetuou-se até aos nossos dias, apesar das descobertas da ciência que mudaram, para o homem, o aspecto do mundo. Quantas pessoas acreditam ainda que as estrelas são ornamentos do céu para recrear a vista dos habitantes da Terra!

Não tardaram a aperceber-se do movimento aparente das estrelas que se movem em massa do Oriente para o Ocidente, levantando-se à noite e deitando-se de manhã, conservando as suas posições respectivas. Esta observação não teve durante muito tempo outra consequência para além de confirmar a ideia de uma abóbada sólida arrastando as estrelas no seu movimento de rotação.

Estas primeiras ideias, ideias ingénuas, foram durante longos períodos seculares a base das crenças religiosas e serviram de fundo a todas as cosmogonias antigas.

Mais tarde compreendeu-se, pela direcção do movimento das estrelas e pelo seu regresso periódico na mesma ordem, que a abóbada celeste não podia ser simplesmente uma semiesfera assente sobre a Terra, mas sim uma esfera inteira, côncava, no centro da qual se encontrava a Terra, sempre plana ou quando muito convexa e habitada unicamente na face superior. Era já um progresso.

Mas em que estava assente a Terra? Seria inútil mencionar todas as suposições ridículas concebidas pela imaginação, desde a dos índios que a diziam levada por quatro elefantes brancos e estes pelas asas de um imenso abutre. Os mais sensatos confessavam que não sabiam nada disso.

No entanto, uma opinião geralmente propagada nas teogonias pagãs situava nos lugares baixos, ou dito de outra maneira, nas profundezas da Terra, ou por baixo, não se sabia muito bem, a morada dos reprovados, chamados infernos, quer dizer, lugares inferiores; nos lugares altos, para além do lugar das estrelas, a morada dos bem-aventurados. A palavra inferno conservou-se até aos nossos dias, embora tenha perdido o seu significado etimológico desde que a geologia desalojou o lugar dos suplícios eternos das entranhas da Terra e que a astronomia demonstrou que não há nem alto nem baixo no espaço infinito.

Sob o céu puro da Caldeia, da Índia e do Egipto, berço das mais antigas civilizações, foi possível observar o movimento dos astros com tanta precisão quanta permitia a ausência de instrumentos especiais. Viu-se primeiro que certas estrelas tinham um movimento próprio independente da massa, o que não permitia supor que estivessem agarradas à abóbada; chamaram-lhes estrelas errantes ou planetas para as distinguir das estrelas fixas. Calcularam-se os seus movimentos e os seus regressos periódicos.

No movimento diurno da esfera estrelada observou-se a imobilidade da estrela polar à volta da qual as outras descreviam, em vinte e quatro horas, círculos oblíquos paralelos maiores ou menores, consoante as latitudes e as estações; a elevação da estrela polar abaixo do horizonte, variando com a altitude, colocou-nos no caminho da esfericidade da Terra; foi assim que, a pouco e pouco, fomos ficando com uma ideia mais certa do sistema do mundo.

Cerca do ano 600 antes de Jesus Cristo, Tales de Mileto (Ásia Menor), conheceu a esfericidade da Terra, a obliquidade da elíptica e a causa dos eclipses.

Um século depois, Pitágoras de Samos, descobre o movimento diurno da Terra sobre o seu eixo, o seu movimento anual à volta do Sol e liga os planetas e os cometas ao sistema solar.

160 anos antes de J. C., Hiparco de Alexandria (Egipto), inventa o astrolábio, calcula e prevê os eclipses, observa as manchas do Sol, determina o ano trópico, a duração das mudanças da Lua.

Por muito preciosas que fossem estas descobertas para o progresso da ciência, levaram cerca de 2000 anos a popularizar-se. As ideias novas, não tendo então para se propagarem mais do que raros manuscritos, continuavam a ser o quinhão de alguns filósofos que as ensinavam a discípulos privilegiados; as massas, que nem se pensava em esclarecer, não as aproveitavam em nada e continuavam a alimentar-se de velhas crenças.
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(*) “ A mitologia hindu ensinava que o astro do dia se despojava à noite da sua luz e atravessava o céu durante a noite com uma face obscura. A mitologia grega representava o carro de Apolo puxado por quatro cavalos. Anaximandro, de Mileto, sustentava que em relação a Plutarco, que o Sol era uma quadriga cheia com um fogo muito vivo que se teria escapado por uma abertura circular. Epicuro teria, segundo alguns, emitido a opinião de que o Sol se acendia de manhã e se apagava à noite nas águas do oceano; outros pensam que ele fazia deste astro uma pedra-pomes aquecida até à incandescência. Anaxágoras considerava-o um ferro quente com o tamanho do Peloponeso. Estranha observação! Os antigos eram tão irresponsavelmente levados a considerar a grandeza aparente deste astro como se fosse real, que perseguiram este filósofo temerário por ter atribuído um tal volume ao archote do dia e que foi necessária toda a autoridade de Péricles para o salvar de uma condenação à morte, comutando-a por uma sentença de exílio.” (Flammarion, Estudos e Leituras Sobre Astronomia.)

Quando vemos tais ideias expressas no século v antes da era cristã, na época mais florescente da Grécia, não nos podemos espantar com as que os homens das primeiras eras tinham sobre o sistema do mundo. (N. do A.)


ALLAN KARDEC, A GÉNESE – Os Milagres e as Profecias Segundo o Espiritismo – Capítulo V, TEORIAS ANTIGAS E MODERNAS SOBRE O MUNDO, números de 1 a 10, tradução portuguesa de Maria Manuel Tinoco, Editores Livros de Vida
(imagem: Pitágoras, pormenor d'A escola de Atenas de Rafael Sanzio (1509)

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