Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

terça-feira, 31 de janeiro de 2017

Inquietações Primaveris ~


Psicologia da Morte

Na dramática História da Psicologia, em que tantos caminhos e descaminhos foram trilhados, surgiu neste século de novidades violentas a psicologia da Morte, resultante das ressurreições clínicas produzidas nos hospitais, através das técnicas médicas de restabelecimento das pulsações cardíacas em pessoas vitimadas por morte súbita. Nos Estados Unidos, a Dra. Ross, tornou-se famosa, com as suas investigações minuciosas sobre as sensações e visões ocorridas durante o estado de quase-morte (EQM) e descritas pelos pacientes ressuscitados. A Psicologia voltou à fase da introspecção, dependendo dos relatos dos pacientes, mas agora já apoiada em longas e profundas pesquisas instrumentais. Os relatos dos pacientes podem ser comparados com as observações e as sondagens clínicas. A verdade é que estes factos sempre aconteceram, em todo o mundo, mas só agora estão a ser submetidos à pesquisa científica. A técnica da mecânica de ressurreição, com massagens e ginástica dos braços, deu tranquilidade ao materialismo científico. Mas a inquietação provocada pelos relatos orais dos pacientes criou alguns problemas, impedindo a explicação simplória da vida como efeito de mecanismos orgânicos. A morte perderia com isso o seu prestígio e a vida se transformaria numa questão de relojoaria. Bastaria accionar o pêndulo parado para se pôr o defunto a prumo e restabelecer o seu tic-tac. Mas a vida e a morte não se mostraram assim tão dóceis, não quiseram satisfazer os biólogos e os químicos empenhados em produzir vida em laboratório. Não obstante, neste caso, não apareceram as intervenções de poderes extracientíficos, à maneira do que fizeram os clérigos no passado, ao interromperem as pesquisas com anátemas e maldições. Menos felizes que os psicólogos da morte foram os pesquisadores soviéticos que, na Universidade de Kirov, conseguiram provar a existência do corpo bioplásmico dos seres vivos, o que lhes custou a excomunhão estatal, reforçada fora da URSS pelas condenações das Igrejas através de instituições científicas por elas controladas. O mesmo já havia acontecido nos Estados Unidos com o problema da reencarnação e o das pesquisas parapsicológicas. O Prof. Rhine, da Universidade de Duke, teve de reagir contra os psicólogos que o criticavam, mostrando que usavam contra as suas pesquisas métodos anti-científicos, com os simples argumentos, sem a contra-prova experimental. Mas tudo isso pertence ao processo de desenvolvimento das Ciências, que é uma luta incessante contra os preconceitos e as crendices institucionalizadas. A verdade é que, de todas estas lutas, restou o facto inegável da possibilidade de elaboração da Psicologia da Morte. A pesquisa no homem vivo reintegra a morte na sua natureza psico-biológica, tirando-lhe os aspectos misteriosos e o sentido de sobrenatural que teólogos e gurus lhe deram através dos séculos. Toda a mitologia igrejeira da morte, da ressurreição e do renascimento ou reencarnação caem por terra com os seus arranjos e adereços, para que a Morte, como a Verdade, possa sair do fundo do poço com a sua nudez clássica.

Ao mesmo tempo, no precioso filão das explorações da morte, de que tanta gente tem vivido à tripa-forra, surgiram as tentativas de manutenção da morte em conserva, com os cadáveres de milionários congelados, em catalepsia forçada, na manutenção precária de uma sub-vida sem nenhuma perspectiva. Faltam-nos os recursos básicos para uma experiência realmente científica nesse campo, que são o frio absoluto e um soro mágico que impedisse as queimaduras do gelo absoluto, que Barnayll inventou em Nas Noites dos Tempos, em termos de ficção científica. Mas como a esperança é a última a morrer e os milionários podem pagar todas as esperanças, é evidente que essas tentativas prosseguirão livremente.

As pesquisas parapsicológicas provaram a existência da percepção extra-sensorial nos animais. Nas pesquisas espíritas, mais antigas e mais profundas, as manifestações físicas de animais foram amplamente verificadas. Animais domésticos mortos foram materializados, comprovando a sua sobrevivência ao fenómeno da morte. Em São Paulo, no famoso Grupo Espírita de Odilon Negrão, deu-se a manifestação ectoplásmica inesperada de um cachorro de raça, pertencente à família de um amigo. Três médiuns de materialização participaram na reunião: a D. Hilda Negrão, o Dr. Urbano de Assis Xavier, cirurgião-dentista, e o Dr. Luis Parigote de Sousa, médico. Nenhum dos presentes pensava no cachorro, que tinha morrido na Fazenda da família, em São Manuel. Foram os espíritos controladores do trabalho que anunciaram a presença do animal, pelo fenómeno de voz-directa (a voz do espírito vibrando no ar, sem intermediário mediúnico). O Dr. António, presente, foi quem reconheceu o animal, que, materializando-se, se dirigiu a ele, festejando-o. O prof. Ernesto Bozzano, famoso cientista e pesquisador espírita de Milão (Itália), verificou e estudou vários casos desta natureza. Os anais das Sociedades de pesquisas Psíquicas de Inglaterra e dos Estados Unidos registam numerosos casos destes espontâneos. Conan Doyle, o famoso escritor e historiador inglês, médico e pesquisador psíquico, obteve fotografias de fenómenos semelhantes. Kardec foi o primeiro a constatar esta realidade, hoje na pauta das pesquisas parapsicológicas. John Gunter, famoso repórter e ensaísta alemão, no seu livro Nestes Tempos Tumultuosos, nas vésperas da II Guerra Mundial, relata uma curiosa manifestação de um cachorro de raça, de grande porte, que assombrava um Hotel de Luxo da Baviera. A manifestação deu-se à sua frente, na escadaria do Hotel. Estes factos puseram por terra as teorias cartesianas sobre os animais-máquina, movidos apenas por instintos e, as doutrinas religiosas que atribuem alma exclusivamente aos seres humanos. Esse antropocentrismo, bem ao gosto da vaidade dos homens, já foi também abalado pelas pesquisas da Psicologia Animal e pelas pesquisas parapsicológicas. Com isso, reafirma-se o princípio espírita da evolução geral dos seres através das espécies, sustentadas por Roussell Wallace, o cientista inglês que se opôs ao materialismo das teorias de Darwin. Os resultados de pesquisas e factos espontâneos demonstram que a lógica da natureza é superior à lógica pretensiosa dos homens.

A Psicologia Sem Alma, de Watson, nos Estados Unidos, negou a própria alma humana, baseando-se nas teorias do reflexo russo de Betcherev e Pavlov, mas acabou reduzida a um sistema mecanicista de interpretação do homem.

Freud não era espiritualista, mas foi obrigado a penetrar nas profundezas da alma nas suas pesquisas do inconsciente. A complexidade do dinamismo anímico por ele revelada contraditava flagrantemente com a simplicidade não raro ingénua das suas conclusões negativistas. Contrariando Descartes, que descobriu na sua própria alma a ideia de Deus e elevou esse facto à condição de lei universal, Freud perdeu-se nos subterrâneos da libido e considerou a ideia de Deus como simples introjecção do mito fálico no inconsciente. Carl Jung, seu discípulo, insurgiu-se contra o mestre, formulando a teoria dos arquétipos, em que o arquétipo Supremo é a ideia de Deus, que Kant considerou como o supremo conflito formulado pela mente humana. No seu livro O Homem Descobre a Sua Alma, Jung sustenta a impossibilidade ontológica de excluirmos a alma da realidade ôntica da pessoa humana. Nesse livro, Jung declara, em 1944, estar convencido de que “o estudo científico da alma é a Ciência do Futuro". No campo da Parapsicologia a contribuição de Jung foi a mais importante, com a sua teoria das coincidências significativas, com a qual superou as grosseiras comparações da mente com as emissões radiofónicas, demonstrando que não há emissão de energias físicas no processo telepático, mas coincidências mentais num plano de afinidade supra-sensível. Nas suas memórias, Jung relata factos paranormais de que foi participante e até mesmo produtor, certa vez quando discutia o problema com Freud, tendo este se negado a analisar a questão, que lhe parecia fora do seu campo de estudos.

Para Rhine, a Psicologia não pode desviar-se do seu objecto, que é a alma. Por isso acusou a Psicologia actual de haver perdido o seu objecto, transformando-se numa ecologia, como ciência do comportamento humano, das relações do sujeito com o meio em que vive. A Psicologia da Alma abrange necessariamente o novo ramo das Ciências Psicológicas, que revela a dinâmica essencial das relações corpo-alma durante a vida e no momento da morte, quando a alma ou espírito se liberta do seu condicionamento carnal. Já dizia o padre Vieira: “Quereis saber o que é alma? Vede um corpo sem alma.” A morte é o momento em que a alma e o seu instrumento de manifestação material, o corpo carnal, se mostram separados. Neste estado de separação o corpo material imobiliza-se e o corpo bioplásmico dos pesquisadores russos da Universidade de Kirov continua em actividade, desprendendo-se do corpo carnal. O corpo espiritual da tradição cristã, que Kardec chamou de perispírito, pois se apresenta como um envoltório semimaterial do espírito propriamente dito, foi considerado pelos russos como da vida. A designação científica de bioplásmico define-o na sua natureza e nas suas funções. Bio, porque é vida, corpo vital e, plásmico porque é constituído por um plasma físico, elemento formado de partículas atómicas livres, não ligadas a nenhuma constelação atómica, a nenhum átomo. Este corpo, que foi fotografado pelos russos, através das câmaras Kirlian de fotografias paranormais, apresenta-se brilhante e transparente como se fosse de vidro. As pesquisas com vegetais e animais, em Kirov, provaram que este corpo rege todas as funções do corpo carnal e oferece uma visão total do estado de saúde, doença ou aproximação de estados mórbidos do corpo carnal.

Tudo isto corresponde exactamente ao que a pesquisa espírita já havia revelado sobre o perispírito. O corpo carnal só se cadaveriza quando o corpo bioplásmico se desligou completamente dele. Então a morte consuma-se. É importante que esta descoberta tenha sido feita na URSS por cientistas materialistas, confirmando plenamente as conquistas da Ciência Espírita, feitas por Kardec e por cientistas do maior renome como Crookes, Richet, Crawford, Zöllner, Scherenck-Notzing, Paul Gibier, Ochorovicz e outros. Tivemos ocasião de ver esse corpo em algumas das nossas experiências mediúnicas, muito antes das pesquisas de Kirov. As pesquisadoras da Universidade de Prentice Hall, nos Estados Unidos, que foram à URSS, viram as fotografias e entrevistaram os cientistas responsáveis pelas pesquisas de Kirov, mostraram-se deslumbradas com o corpo espiritual do homem. O relato completo dessa descoberta pode ser lido no livro Experiências Psíquicas Por Trás da Cortina de Ferro, de Lynn Schroeder e Sheila Ostrander, da Editora Cultrix, São Paulo. O título inglês não se refere a experiências, mas a descobertas. A edição original americana é da própria Universidade de Prentice Hall, mas há edições posteriores da Editore Bentam Books, de Nova York.

A Psicologia da Morte não ficará, certamente, restrita aos problemas específicos da relação alma-corpo. A morte nasce das entranhas da vida; por isso, vida e morte caminham juntas, de mãos dadas, ao longo da existência. Costuma dizer-se que começamos a morrer desde que nascemos. Buda dizia que a morte nos visita 75 vezes em cada uma das nossas respirações. A Psicologia da Morte, portanto, deve começar na vida, pesquisando as diversas formas por que as criaturas em geral encaram a morte, como a sentem em relação a si mesmas e em relação aos outros, que influências a morte exerce na vida das pessoas; quais os sentimentos que determinam certas atitudes em face da morte; como se encara hoje o problema das exigências religiosas na hora da morte e nos funerais; qual o efeito do terror da morte no comportamento das criaturas em várias idades; como se poderá mudar tudo isto em favor de condições melhores e assim por diante. A observação de Heideggard sobre a nossa tendência de sempre falarmos da morte como sendo dos outros e não nossa, merece especial atenção nas pesquisas. Vivemos num mundo que só conhecemos por uma face, embora sabendo que a outra face nos espreita. Conhecemos a face da vida, sempre voltada para nós, mas nada ou quase nada sabemos da face da morte. Que efeitos terá essa situação no nosso psiquismo? Os homens matam-se por coisas mínimas. Quais os impulsos reais que levam os homens a essa situação brutal e inconsequente? Por que a morte parece não afectar a maioria das criaturas, que vivem sem preocupação com ela?

Se a Psicologia da Morte não se interessar pela vida, fracassará na sua tentativa de esclarecer os problemas da morte e de ajustar-nos conscientemente ao facto de que nascemos para morrer. Só poderemos compreender a vida depois de compreendermos a morte. Não é estranho que tenhamos feito tudo ao contrário, até agora, temendo e ao mesmo tempo desprezando a morte? A morte é certa, dizem com indiferença. Não obstante, a morte é geralmente incerta, pois não sabemos quando e de que maneira chegará. Se todos nos interessássemos mais pela morte, não poderíamos viver melhor, com menos ambições e desespero inúteis? A Psicologia da Morte não surge por acaso. Na mortalidade massiva do nosso tempo a morte adquire maior importância do que a vida; porque sabemos que estamos na vida e a conhecemos bem. Mas e a morte?

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"As EQM (experiências de quase-morte), vários outros estudos (i)


José Herculano Pires, Educação para a Morte, 18 – Psicologia da Morte, 23º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: O caranguejo, pintura de William-Adolphe Bouguereau)

domingo, 15 de janeiro de 2017

O Mundo Invisível e a Guerra ~

XII 
Autoridade e Liberdade (2)

|Agosto de 1917|

  Retornemos ao problema da liberdade, cuja noção está marcada na consciência individual e, sob o nome de livre-arbítrio, designa o privilégio que o homem tem de se decidir num sentido determinado e orientar os seus actos para o bem ou para o mal, sendo que a ideia de responsabilidade é inseparável da ideia de liberdade.

  Se fôssemos apenas máquinas dirigidas por forças cegas, autómatos regidos pelo acaso, seríamos irresponsáveis, sendo impossível qualquer sanção à nossa conduta. A sociedade ficaria sujeita a todos os ventos da paixão, a todos os apetites e cobiças.

  A teoria do determinismo, que renega o livre-arbítrio e a responsabilidade, é funesta nas suas consequências, porque corrói os alicerces de toda a lei moral e destrói tudo o que constitui dignidade, altivez e nobreza do carácter humano. Ao preconizar uma indulgência mórbida para com os desequilibrados, os viciosos e os criminosos, o determinismo coloca obstáculos a qualquer tipo de repressão, favorecendo e alentando a todos os abusos e excessos. A ele se pode atribuir, em grande parte, o enfraquecimento e a decadência em que se encontrava o nosso país antes da guerra.

  Por uma estranha contradição, muitas vezes vimos homens, que na política eram adeptos das mais amplas e completas liberdades, rebater, sem embargo, o princípio de liberdade inscrito em nós. Esperamos que as duras lições da guerra lhes tenham aberto os olhos e que agora abandonem ideias perigosas, condenadas por todos os espíritos elevados.

  Não é por acaso que somos dotados do livre-arbítrio ao nascer. Não é a liberdade o que nos espera com a chegada a este mundo, porém a servidão: servidão material, servidão das necessidades, cuja lei imperiosa nos obriga ao trabalho, ao esforço, adquirindo e desenvolvendo a própria liberdade.

  Um olhar à nossa volta nos apresenta a infinita variedade das vontades e da liberdade concedidas a cada um. Somente o Espiritismo e as reencarnações podem explicar esses contrastes e anomalias aparentes.

  As almas frágeis, curvadas ao peso da matéria, sujeitas a todos os desfalecimentos, são espíritos jovens, nascidos recentemente para a vida e que ainda não souberam avaliar as forças ocultas que possuem. Ao contrário, as almas fortes, que conseguiram alto grau de progresso, possuem numerosas existências de lutas e sacrifícios, nas quais aumentaram o seu capital de energia e retemperaram a sua vontade. Entre estas e aquelas existem inumeráveis degraus que representam outras etapas a percorrer e através das quais o ser vê, paulatinamente, aumentar o seu livre-arbítrio e recuar o círculo das fatalidades.

  A diversidade das situações explica-se por si mesma, pois, em razão do seu livre-arbítrio, há almas que se adiantam mais vagarosamente e outras com mais rapidez.

  No começo de nossa trajectória a matéria nos oprime, domina e esmaga, porém, no momento em que a alma se haja elevado o suficiente, começa a dominar a natureza inferior, impondo-lhe os seus desígnios. A educação por meio do trabalho e pela dor desenvolve nela qualidades e forças que a libertam dos laços e dos atractivos materiais.

  Ela se encontra, desde então, apta a ocupar lugar nas comunidades superiores, aprendendo a conduzir-se sem o estímulo do aguilhão da necessidade. Junto com a plenitude de sua liberdade adquire a plenitude da sabedoria e da razão.

  Para que pudessem reinar, neste mundo, a paz e a justiça, seria necessário que as nossas instituições se orientassem por aquelas que regulam a vida nesse Universo invisível onde cada um está no lugar que lhe corresponde e todo o ser recebe uma função adequada ao seu valor moral e aos progressos conseguidos. No entanto, vemos que na Terra tal não acontece.

  Nela os alicerces fundamentais de toda a ordem social – a autoridade e a liberdade –, no lugar de se fundirem num todo harmonioso, se colidem e quase sempre se combatem. A autoridade torna-se perigosa se não está aliada ao mérito e ao saber. A liberdade não o é menos quando se trata de homens violentos, ignorantes e apaixonados.

  Para cada um de nós a lei divina reserva uma série de provações e de trabalhos na medida das nossas necessidades evolutivas e das reparações que as nossas vidas anteriores exigem, porém a lei humana ignora tudo isso.

  Outro erro fundamental de certos sociólogos é a preocupação de estabelecerem a igualdade entre todos os homens. Ela não existe na natureza nem na própria sociedade humana. Jamais se poderá impedir que homens activos, previdentes, económicos superem os indolentes, os imprevidentes e os pródigos.

  No fundo, a igualdade é a própria negação da liberdade e ambas se anulariam mutuamente caso a fraternidade não lhes atenuasse os efeitos antagónicos.

  É verdade que um poderoso movimento de democratização agita todos os países e os povos se voltam para a liberdade. Entretanto, já o dissemos, a liberdade política sem o valor moral, isto é, sem a sabedoria e a razão que a justificam, é uma conquista perigosa, porque o homem terreno coloca os seus direitos acima de seus deveres.

  Ele tem a liberdade de praticar o bem e pratica com maior frequência o mal, que recai sobre ele mesmo com todo o peso das suas consequências, daí as inevitáveis catástrofes, dilacerações, padecimentos e lágrimas.

  As lições da adversidade são necessárias, pois do fundo do abismo dos males a que nos arrasta a guerra vemos melhor os nossos erros e faltas. Estão ressurgindo verdades que estavam esquecidas, fazendo resplandecer entre as nossas angústias um raio do pensamento divino.

  O homem muitas vezes amaldiçoa a dor porque não lhe compreende a eficácia, mas o espírito que paira sobranceiro abençoa-a porque vê nela um instrumento do seu progresso. A dor é o único correctivo do mal que praticamos livremente.

  Se Deus houvesse eliminado o mal e a dor, como alguns filósofos propõem, a nossa liberdade ficaria diminuída na mesma proporção e a nossa personalidade se apoucaria juntamente com os nossos merecimentos. Deus nos permite desfalecimentos e quedas para que as consequências que acarretam sejam um meio de reerguimento.

  Assim, da tormenta actual o nosso país poderá sair moralmente engrandecido, mais sensato e prudente pelos efeitos da rude provação, e aureolado por uma nova glória.

  Todo o sofrimento é uma purificação e a própria guerra, apesar dos horrores que produz, está revestida de uma trágica beleza, se considerada como uma obra de sacrifício.

  O que a História mais exalta é a memória dos que souberam sofrer e morrer: os heróis e os mártires, por exemplo. Não existe nada mais sublime do que o nosso próprio sacrifício, em prol de uma causa justa e de uma nobre ideia!

  A presente guerra é, antes de tudo, um conflito de ideias e trará para o futuro consequências incalculáveis. É a luta da espiritualidade contra o materialismo mais violento, mais cruel; a revolta da consciência humana contra o autoritarismo militar e todos os seus excessos.

  Faz cinquenta anos que o seu jugo oprimia o mundo e, pelo menor motivo, a Alemanha ameaçava os seus vizinhos com o seu pesado sabre.

  Toda a Europa ressoava ao estrondo das armas; o chão estremecia com a marcha das longas colunas de tropas, ao cadente patear dos cavalos, sob o rodar dos canhões. Agora, outras perspectivas se vislumbram; depois dessa guerra devastadora, terminado o militarismo alemão, parece que uma paz definitiva poderá reinar no mundo ensanguentado.

  Espíritos tristes, considerando as devastações espantosas causadas pela guerra, ainda duvidam do futuro de uma civilização que pode produzir tais flagelos; eles não contemplam as coisas de altura suficiente. Uma atenta observação lhes mostraria que, do meio da confusão dos acontecimentos, se elaboram, vagarosamente, a consciência universal e a vontade que os povos possuem de destruir, para sempre, a causa de tantos males.

  Paulatinamente, se forma um acordo entre as nações que unem os seus esforços para eliminar o conflito latente, a “paz armada” que vem destruindo a Europa há meio século, enchendo o abismo sem fim dos gastos inúteis que absorvem a maior parte da produção do trabalho e da capacidade dos povos. Se essa guerra pode chegar a tais resultados, ninguém vacilará em reconhecer que, pelo menos, nos obrigará a dar um grande passo para um futuro melhor.

  As dolorosas lições do presente terão fornecido os seus frutos e o prestígio da glória militar se dissipará como a fumaça. Republicanos ou monárquicos, todos querem determinar as responsabilidades do grande drama, tirando delas as punições necessárias. As instituições sociais passarão por profundas modificações e as ideias democráticas parecem impor-se aos mais indiferentes.

  A política secreta já não se usa mais, os povos querem poder gerir o seu próprio destino. A Alemanha, habituada a todas as servidões, parece tremer diante de um sopro libertador.

  Ela sente em si, como todas as outras nações, uma intensa necessidade de renovação e progresso.

  Como podemos definir o progresso? Ele é o objectivo principal da actividade humana, nas suas diversas formas: material, intelectual e moral. Ele deve ser realizado nesses três aspectos, paralelamente, a fim de dar ao poder social o desenvolvimento e o equilíbrio que fazem dele um todo harmonioso.

  O conjunto dos esforços empregados e dos resultados adquiridos constitui a civilização. Porém quando a civilização se apega a uma ou a outra daquelas formas e despreza as demais, o equilíbrio se rompe e a humanidade caminha para um cataclismo. É o que está a acontecer no momento actual. A Ciência concedeu meios formidáveis de destruição ao homem e este os consagrou às obras do mal. A orgulhosa Alemanha pretendia dominar o mundo pela força e pelo terror.

  De outro lado, o sensualismo e a corrupção dos costumes haviam enfraquecido bastante a resistência dos seus adversários. As furiosas paixões desencadearam a borrasca e Deus permitiu que tudo acontecesse a fim de que, ao sinistro clarão dos acontecimentos, pudéssemos calcular toda a extensão dos nossos erros e a humanidade se regenerasse pelo sofrimento.

  Pelas mesmas razões a civilização já desapareceu várias vezes da face da Terra. Os nossos vícios e a nossa cegueira já nos conduziram à beira de um abismo, onde nos teríamos projectado, se não tivéssemos os auxílios poderosos do mundo invisível.

  Quando uma civilização chegou ao ponto de transviar o homem das leis divinas, daquilo que Platão denominava “o real caminho da alma”, quando perdeu de vista o principal objectivo da existência, que é a educação e o aperfeiçoamento moral do homem, tal civilização está condenada a desaparecer por culpa dos seus próprios excessos. Se não for inteiramente destruída ela se verá, no mínimo, abalada nas suas mais íntimas profundezas.

  Pelos ferozes caprichos das batalhas, pelas epidemias e por todos os males decorrentes da guerra, milhares de almas se libertaram, escapando assim da contaminação pelos maus exemplos, das tradições que perpetuam os erros e os abusos, para renascer depois no meio terrestre, quando purificados pela dor, ou noutros mundos melhores.

  A grande lei das reencarnações não é mais do que uma das formas da eterna lei do progresso e nada prevalece contra ela. Às vezes ela parece ter sido sustada pelos efeitos da liberdade humana, porém, mais cedo ou mais tarde, retoma o seu curso, exercendo a sua acção sob novas formas.

  Por meio dos triunfos e dos martírios das nações, através das mortes aparentes e das ressurreições, poder-se-ia seguir a marcha majestosa da humanidade para o belo e para o bem supremos, sob o olhar atento de Deus.

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LÉON DENIS, O Mundo Invisível e a Guerra, XII Autoridade e Liberdade (2) Agosto de 1917, 29º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: Tanque de guerra britânico capturado pelos Alemães, durante a Primeira Guerra Mundial)