Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

sexta-feira, 23 de junho de 2017

| o grande enigma ~


a acção de Deus | no Mundo e na História

Deus, foco de inteligência e de amor, é tão indispensável à vida interior quanto o Sol à vida física!

Deus é o sol das almas. É Dele que emanam essas forças, às vezes energia, pensamento, luz, que anima e vivifica todos os seres. Quando se pretende que a ideia de Deus é inútil, indiferente, tanto valeria dizer que o Sol é inútil, indiferente à Natureza e à vida.

Pela comunhão de pensamento, pela elevação da Alma a Deus, se produz uma penetração contínua, uma fecundação moral do ser, uma expressão gradual das potências Nele encerradas, porque essas potências, pensamento e sentimento, não podem revelar-se e crescer senão por altas aspirações, pelos transportes do nosso coração. Fora disso, todas essas forças latentes dormitam no nosso íntimo, conservam-se inertes, adormecidas!

Falamos da prece. Expliquemo-nos ainda a respeito desta palavra. A prece é a forma, a expressão mais potente da comunhão universal. Ela não é o que muitas pessoas supõem: uma recitação frívola, o exercício monótono e muitas vezes repetido. Não! Pela verdadeira prece, a prece improvisada, aquela que não comporta fórmulas, a Alma se transporta às regiões superiores; aí haure forças, luzes; aí encontra apoio que não podem conhecer nem compreender aqueles que desconhecem Deus. Orar é voltarmo-nos para o Ser eterno, é expor-lhe os nossos pensamentos e as nossas acções, para submetê-los à sua Lei e fazer da sua vontade a regra de nossa vida; é encontrar, por esse meio, a paz do coração, a satisfação da consciência, numa palavra, esse bem interior que é o maior, o mais imperecível de todos os bens!

Diremos, pois, que desconhecer, desprezar a crença em Deus e a comunhão do pensamento que a Ele se liga, a comunhão com a Alma do Universo, com esse foco de onde irradiam para sempre a inteligência e o amor, seria, ao mesmo tempo, desconhecer o que há de maior; depreciar as potências interiores que fazem a nossa verdadeira riqueza. Seria espezinhar a nossa própria felicidade, tudo o que pode promover a nossa elevação, a nossa glória, a nossa ventura.

O homem que desconhece Deus e não quer saber que forças, que recursos, que socorros Dele dimanam, esse é comparável a um indigente que habita ao lado de um palácio, cheio de tesouros, e se presta a morrer de miséria, diante da porta que lhe está aberta e, pela qual tudo o convida a entrar.

Ouvem-se frequentemente certos profanos que dizem: “Não tenho necessidade de Deus!” Palavras tristes, deploráveis, palavras orgulhosas dos que, sem Deus, nada seriam, não teriam existido. Oh! cegueira do espírito humano, cem vezes pior que a do corpo! Ouviste alguma vez a flor dizer: não tenho necessidade de sol? Pois bem, nós o sabemos, Deus não é somente a luz das Almas; é também o amor! E o amor é a força das forças. O amor triunfa perante todas as potências brutais. Lembremo-nos de que se a ideia cristã venceu o mundo antigo, se venceu o poder romano, a força dos exércitos, o gládio dos Césares, foi pelo amor! Venceu por estas palavras: “Felizes os que têm a doçura, porque possuirão a Terra!”.

E, com efeito, não há homem, por mais duro, por mais cruel, que não se sinta desarmado contra vós, se estiver convencido de que quereis o seu bem, a sua felicidade e de que tal desejais de modo real e desinteressado.

O amor é todo-poderoso; é o calor que faz fundir os gelos do cepticismo, do ódio, da fúria, o calor que vivifica as almas embotadas, porém, prestes a desabrochar e a dilatar ao bafejo desse raio de amor.

Notai bem: são as forças subtis e invisíveis as rainhas do mundo, as senhoras da Natureza. Vede a electricidade! Nada pesa e não parece coisa alguma; entretanto, a electricidade é uma força maravilhosa; volatiliza os metais e decompõe todos os corpos. O mesmo se dá com o magnetismo, que pode paralisar o braço de um gigante. De igual modo o amor pode dominar a força e reduzi-la; pode transformar a alma humana, princípio da vida em cada um, sede das forças do pensamento. Eis a razão por que Deus, sendo o foco universal, é também o poder supremo. Se compreendêssemos a que alturas, a que grande e nobre tarefa o nosso Espírito pode chegar pela compreensão profunda da obra divina, pela penetração do pensamento de Deus em cada ser, seríamos transportados de admiração.

Há homens convencidos de que, prosseguirmos nós a nossa ascensão espiritual, acabaremos por perder a existência, para nos aniquilar no Ser supremo. É isso um erro grave: porque, ao contrário, se conforme a razão indica e o confirmam todos os grandes Espíritos, quanto mais nos desenvolvemos em inteligência e em moral, mais a nossa personalidade se afirma. O ser pode estender-se e irradiar; pode crescer em percepções, em sensações, em sabedoria, em amor, sem por isso deixar de ser ele próprio. Não percebemos que os Espíritos elevados são personalidades poderosas? E nós próprios não sentimos que, quanto mais amamos, mais nos tornamos susceptíveis de amar; que quanto melhor compreendemos mais nos sentimos capazes de compreender?

Estar unido a Deus é sentir, é realizar o pensamento de Deus. Mas o poder de sentir essa possibilidade de acção do Espírito não o destrói. Só pode engrandecê-lo. E quando chega a certo grau de ascensão, a Alma torna-se, por sua vez, uma das potências, uma das forças activas do universo; ela se transforma num dos agentes de Deus na obra eterna, porque a sua colaboração se estende sem cessar. O seu papel é transmitir as vontades divinas aos seres que estão abaixo dela, atrair a ela, na sua luz, no seu amor, tudo o que se agita, luta e sofre nos mundos inferiores. Não se contenta mesmo com uma acção oculta. Muitas vezes encarna, ocupa um corpo e torna-se um missionário, desses que passam quais meteoros na noite dos séculos.

Há outras teorias que consistem em crer que, quando em consequência de suas peregrinações, a Alma chega à perfeição absoluta, a Deus, depois de longa permanência no meio das beatitudes celestes, torna a descer ao abismo material, ao mundo da forma, ao mais baixo grau da escala dos seres, para recomeçar a lenta, dolorosa e penosa ascensão que acaba de conseguir.

Tal teoria não é mais admissível que a outra; para aceitá-la seria necessário fazer abstracção da noção do Infinito. Ora, essa noção impõe-se embora escape à nossa análise. Basta reflectir um pouco para compreender que a Alma pode prosseguir a sua marcha ascendente e aproximar-se sem cessar do apogeu, sem jamais o atingir. Deus é o Infinito! É o Absoluto! E nunca seremos, em relação a Ele, apesar do nosso progresso, senão seres finitos, relativos, limitados.

O ser pode, pois, evoluir, crescer sem cessar, sem nunca realizar a perfeição absoluta. Isto parece difícil de compreender e, entretanto, que há de mais simples? Escolhemos um exemplo ao alcance de todos, um exemplo matemático. Tomai uma unidade – e a unidade é um pouco a imagem do ser – e ajuntai-lhe a maior fracção que encontrardes. Aproximar-vos-eis do algarismo 2, mas nunca o atingireis. Nós, homens, encerrados na carne, temos grande dificuldade em fazer ideia do papel do Espírito, que contém em si todas as potências, todas as forças do Universo, todas as belezas e esplendores da vida celeste e os faz irradiar sobre o mundo. Mas o que podemos e devemos compreender é que esses Espíritos potentes, esses missionários, esses agentes de Deus, foram, tal qual agora somos, homens de carne, cheios de fraquezas e misérias; atingiram essas alturas pelas suas pesquisas e os seus estudos, pela adaptação de todos os seus actos à lei divina. Ora, o que fizeram todos podemos fazer nós também. Todos têm o gérmen de um poder e de uma grandeza iguais ao seu poder e à sua grandeza. Todos têm o mesmo futuro grandioso, e só de nós mesmo dependem o desenvolvimento desse gérmen através das nossas inúmeras existências.

Graças aos estudos psíquicos, aos fenómenos telepáticos, estamos mais ou menos aptos a compreender, desde já, que as nossas faculdades não se limitam aos nossos sentidos. O nosso Espírito pode irradiar além do corpo, pode receber as influências dos mundos superiores, as impressões do pensamento divino. O apelo do pensamento humano é ouvido; a Alma, quebrando as fatalidades da carne, pode transportar-se a esse mundo espiritual, que é a sua herança, o seu domínio o seu por vir. Eis por que é necessário que cada um de nós se torne o seu próprio médium, aprenda a se comunicar com o mundo superior do Espírito.

Esse poder tem sido até aqui privilégio de alguns iniciados. Hoje, é necessário que todos o adquiram e que todo o homem chegue a apreender, a compreender as manifestações do pensamento superior. Ele pode chegar aí por uma vida pura e sem mácula e pelo exercício gradual das suas faculdades.

A acção de Deus desvela-se no Universo, tanto no mundo físico quanto no mundo moral; não há um único ser que não seja objecto da sua solicitude. Nós a vemos manifestar-se nessa majestosa lei do progresso que preside à evolução dos seres e das coisas, levando-os a um estado sempre mais perfeito. Essa acção mostra-se igualmente na história dos povos. Pode seguir-se, através dos tempos, essa marcha grandiosa, esse impulso da Humanidade para o bem, para o melhor. Sem dúvida, há nessas caminhadas seculares muitos desfalecimentos e recuos, muitas horas tristes e sombrias; não se deve, porém, esquecer que o homem é livre nas suas acções. Os seus males são quase sempre consequência de erros, dos seus estados de inferioridade.

Não é uma escolha providencial que designa os homens destinados a produzir as grandes inovações, os descobrimentos que contribuem para o desenvolvimento da obra civilizadora? Esses descobrimentos se encadeiam; aparecem, uns depois dos outros, de maneira metódica, regular, à medida que podem encaixar-se com êxito aos progressos anteriores.

O que demonstra, de modo brilhante, a intervenção de Deus na História é o aparecimento, no tempo próprio, nas horas solenes, desses grandes missionários, que vêm estender a mão aos homens e os repor na senda perdida, ensinando-lhes a lei moral, a fraternidade, o amor aos seus semelhantes, dando-lhes o grande exemplo do sacrifício próprio das causas de todos.

Haverá algo mais imponente do que essa missão dos Enviados divinos? Eles vêm e caminham no meio dos povos. Em vão os sarcasmos e o ridículo chovem sobre eles. Em vão o desprezo e o sofrimento os atingem. Eles seguem sempre! Em vão se levantam à sua volta os patíbulos, os cadafalsos.

As fogueiras se acendem. Mas eles seguem, com a fronte altiva, a alma serena. Qual é, pois, o segredo da sua força? Quem os impele assim para a frente?

Acima das sombras da matéria e das vulgaridades da vida, mais alto que a Terra, mais alto que a Humanidade, eles vêem resplandecer esse foco eterno, um raio que os ilumina e lhes dá a coragem de afrontar todas as dores, todos os suplícios.

Contemplaram a Verdade sem os véus e, daí em diante, não têm outra preocupação se não difundir, pôr ao alcance das multidões, o conhecimento das grandes leis que regem as almas e os mundos!

Todos esses Espíritos potentes têm declarado que vêm em nome de Deus e para executar a sua vontade. Jesus afirma-o várias vezes: “É meu Pai, diz ele, que me envia.” E Jeanne d'Arc não é menos precisa: “Venho da parte de Deus, para livrar a França dos ingleses.”

No meio da noite temerosa do século XV, nesse abismo de misérias e de dores em que soçobravam a vida e a honra de uma grande nação, que trazia Jeanne à França traída, subjugada, agonizante? Era algum socorro material, soldados, um exército? Não, o que ela trazia era a , a fé em si mesma, a fé no futuro da França, a fé em Deus!

“Eu venho da parte do Rei dos Céus – dizia ela – e trago-vos os socorros do Céu.” E com essa fé a França se ergueu, escapou à destruição e à morte!

O mesmo aconteceu de 1914 a 1918. Só houve um remédio, quer para esse cepticismo aparatoso, quer para essa indiferença cega que caracterizava o espírito francês antes da guerra. Só houve um remédio para essa apatia do pensamento e da consciência nacionais que nos dissimulavam a extensão do perigo. Esse remédio foi a fé em nós mesmos, nos grandes destinos da Pátria, a fé nessa Potência Suprema que salvou de novo a França nos dias do Marne e de Verdun.

Mas os dias de perigo e de glória passaram; a união sagrada não sobreviveu ao drama sanguinolento. O pessimismo, o desencorajamento e a discórdia retomaram a sua acção mórbida; a anarquia e a ruína batem à nossa porta.

O único meio de salvar a sociedade em perigo é elevar os pensamentos e os corações, todas as aspirações da alma humana para a Potência Infinita – que é Deus; é unir a nossa vontade à sua e nos compenetrarmos da sua Lei: aí está o segredo de toda a força, de toda a elevação!

E ficaremos surpreendidos e maravilhados, avançando nesta senda esquecida, de reconhecer, de descobrir que Deus não é abstracção metafísica, vago ideal perdido nas profundezas do sonho, ideal que não existe, conforme o dizem Vacherot e Renan, senão quando nele pensamos. Não; Deus é um ser vivo, sensível, consciente. Deus é uma realidade activa. Deus é o nosso pai, o nosso guia, o nosso condutor, o nosso melhor amigo; por pouco que lhe dirijamos os nossos apelos e que lhe abramos o nosso coração, Ele nos esclarecerá com a sua luz, nos aquecerá no seu amor, expandirá sobre nós a sua Alma imensa, a sua Alma rica de toda a perfeição; por Ele e Nele somente nos sentiremos felizes e verdadeiramente irmãos; fora Dele só encontraremos obscuridade, incerteza, decepção, dor e miséria moral. Eis o socorro que Jeanne trazia à França, o socorro que o Espiritualismo moderno traz à Humanidade!

Pode dizer-se que o pensamento que Deus irradia sobre a História e sobre o mundo; Ele tem inspirado as gerações na sua marcha, tem sustentado, levantado milhões de almas desoladas. Tem sido a força, a esperança suprema, o último apoio dos aflitos, dos espoliados, dos sacrificados, de quase todos aqueles que, através dos tempos, têm sofrido a injustiça, a maldade dos homens, os golpes da adversidade!

Se evocardes a memória das gerações que se têm sucedido sobre a Terra, por toda a parte, vereis os olhares dos homens voltados para essa luz, que nada poderá extinguir, nem diminuir!

É essa a razão pela qual vos dizemos: Meus irmãos, recolhei-vos no silêncio das vossas moradas; elevai frequentemente a Deus os transportes dos vossos pensamentos e dos vossos corações, expondo-lhe as vossas necessidades, as vossas fraquezas, as vossas misérias, e, nas horas difíceis, nos momentos solenes de vossa vida, dirigi-lhe o apelo supremo. Então, no mais íntimo do vosso ser, ouvireis como que uma voz vos responder, consolar, socorrer.

Essa voz vos penetrará de uma emoção profunda; fará talvez brotar as vossas lágrimas, mas levantar-vos-eis fortalecidos, reconfortados.

Aprendei a orar do mais profundo da vossa alma, e não mais da ponta dos lábios; aprendei a entrar em comunhão com o vosso Pai; a receber os seus ensinamentos misteriosos, reservados, não aos sábios e poderosos, mas às almas puras, aos corações sinceros.

Quando quiserdes encontrar refúgio contra as tristezas e as decepções da Terra, lembrai-vos de que há somente um meio: elevar o pensamento a essas regiões puras da luz divina, onde não penetram influências grosseiras do nosso mundo. Os rumores das paixões, o conflito dos interesses não vão até lá. Chegando a essas regiões, o Espírito se desprende das preocupações inferiores, de todas as coisas mesquinhas das nossas existências; paira acima da tempestade humana, mais alto que os ruídos discordantes da luta pela vida, pelas riquezas e honras vãs; mais alto que todas essas coisas efémeras e mutáveis que nos ligam aos mundos materiais. Lá em cima, o Espírito se esclarece, inebria-se dos esplendores da verdade e da luz. Ele vê e compreende as leis do seu destino.

Diante das largas perspectivas da imortalidade, perante o espectáculo dos progressos e da ascensão que nos esperam na escala dos mundos, que se tornam para nós as misérias da vida actual, as vicissitudes do tempo presente?

Aquele que tem no seu pensamento e no seu coração essa  ardente, essa confiança absoluta no futuro, essa certeza que o eleva, esse está blindado contra a dor. Ficará invulnerável no meio das provas. Está aí o segredo de todas as forças, de todo o valor, o segredo dos inovadores, dos mártires, de todos aqueles que, através dos séculos, oferecem a sua vida por uma grande causa; de todos aqueles que, no meio das torturas, sob a mão do algoz, enquanto os seus ossos e a sua carne, esmagados pela roda ou pelo torniquete, não eram mais do que lama sanguinolenta, encontravam ainda a força suficiente para dominar os seus sofrimentos e afirmar a Divina Justiça; daqueles que, sobre o cadafalso, e assim sobre a lenha das fogueiras, viviam, já por antecipação, a vida apreciável e gloriosa do Espírito.

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Léon Denis, O Grande Enigma, Primeira parte / Deus e o Universo, VIII Acção de Deus no Mundo e na História, 19º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: As majestosas e violentas palavras dos poemas, pintura em acrílico de Costa Brites)

segunda-feira, 12 de junho de 2017

Victor Hugo e o invisível ~


Jean-Paul Sartre e Victor Hugo ~

Eis dois nomes que representam duas concepções de vida: o primeiro é um apologista da matéria, o segundo um defensor do espírito. São duas figuras que sintetizam duas interpretações do Ser; o primeiro sustenta que a única realidade é o nada, o segundo afirma que a criação responde à vida.

Jean-Paul Sartre quer modificar o mundo sem encontrar para o homem um sentido; Victor Hugo sustenta que o  mundo se modificará indiscutivelmente pela própria evolução do SerO primeiro é um filósofo da negação e sobre essa base deseja dar à sociedade e à história um devir. O segundo é um poeta e revela o que a realidade encerra no seu mundo interior. Sartre impõe ao Ser um processo assente no nada, Hugo descobre a teleologia do espírito e mostra-a a cantar.

O primeiro filosofa sobre a base da Negação; o segundo desenha preciosidades cósmicas sobre os cimentos da Afirmação. Sartre encarna a fealdade externa do mundo; Hugo é o vidente da beleza humana e divina. O primeiro vê em tudo uma espantosa e sombria solidão; o segundo capta em tudo o que existe um Ser latente que procura mostrar-se como uma realidade da essência do universo.

Jean-Paul Sartre faz filosofia para ao mesmo tempo negá-la; Victor Hugo elabora uma nova poesia para ampliá-la continuamente. O primeiro compraz-se em anunciar o triunfo e o império da morte e do nada; o segundo demonstra que a vida é uma manifestação da essência divina, a afirmar-se no seu Ser infinito.

O filósofo Sartre escreveu O Ser e o nada para anunciar à humanidade que tudo morre e se extingue no nada. Mediante uma complicada linguagem metafísica, busca demonstrar que do nada surge o Ser para se reintegrar nele sem nenhuma finalidade existencial. O Ser é o nada e o nada é o Ser no pensamento de Sartre, que parecia regozijar-se ao se entregar a essa elaboração metafísica suicida.

O humanismo de Sartre funda-se na negação universal do Ser. Nega o espírito, o sentido da vida, a verdade, a moral, a liberdade e, finalmente, a existência de Deus.

O poeta Victor Hugo escreveu A legenda dos séculos para demonstrar em primeiro lugar o significado do universo, a afirmação da vida, a evolução e o desenvolvimento dos espíritos, aceitando a existência de uma Causa Suprema. Assim, Hugo penetra no aparente caos do mundo e extrai das suas profundezas a ordem e a finalidade. Demonstra que tanto o planeta terra como os demais mundos do universo formam um imenso cenário sobre o qual assenta um plano do que existe. Disse à humanidade que o homem não existe em vão; assinala que a vida tem um significado espiritual e que tudo é chamado a transformar-se para se elevar a estados superiores. Hugo possuía a divina vidência do universo; via com os olhos do espírito o que está escrito nas páginas do infinito. Descobre assim que o homem é imortal e que, mediante uma criadora palingenesia, se aperfeiçoa até alcançar os níveis mais altos da sabedoria. Para Victor Hugo o nada não existe; ele sustenta como único saber a Afirmação do Ser e o Sentido espiritual do homem e do universo. Ainda que no meio do mal, faz ver à criatura humana que ele é uma etapa para chegar ao bem. Por isso, apesar das mais duras contradições históricas e existenciais, afirma como única realidade a existência do bem.

Em Sartre está o nada como base de todo o humanismo social e filosófico. Sustenta que o advento de um estado superior na terra se dará sobre a base de uma liberdade assente no nada. Aspira a uma sociedade socialista, onde o bem e a igualdade desaparecerão ontologicamente no não-ser. Quer criar uma igualdade social para que o homem não se sinta vencido pelo pessimismo existencial.

Em Victor Hugo está a vida como fundamento do Espírito, da Justiça e da Beleza. Para ele, todos os planetas estão povoados por seres inteligentes; sustenta a doutrina da pluralidade dos mundos habitados relacionada com a filosofia da pluralidade das existências da alma. Pela poesia, capta os fraternos rumores do mundo invisível. Cantou que morrer é nascer noutra lugar e nascer é morrer no mundo do espírito, dizendo que o nada é uma ilusão dos sentidos.

Jean-Paul Sartre é o sustentáculo do existencialismo ateu, da negação e do não-serVictor Hugo é o propulsor do espiritualismo espírita, da imortalidade da alma e da palingenesia espiritual. Sartre vê no mineral, na planta e no animal apenas cegos resultados da matéria inconsciente. Não alcança a profundidade infinita da vida, que existe nos olhos de um cão, de um cavalo ou de um réptil. Para ele, o mineral, o vegetal e o animal não são mais que resultados da casualidade. Para Victor Hugo, um mineral está presente na vida esperando o momento para a sua manifestação; no vegetal toma alento a inteligência do Ser em vias de evolução e no animal encontra-se o espírito em situação rudimentar, esperando a sua divina transformação: passar da forma em que se encontra para atingir a hominal.

Como se vê, em Victor Hugo tudo é chamado a ser, a evoluir, a aperfeiçoar-se, a chegar ao mundo da consciência para melhor compreender toda a criação.

Será heresia, ateísmo e ofensa à essência da religião este processo do homem e do universo sustentado pelo autor de As Contemplações?

Cremos que não, pois não cabe nesta cosmovisão nem o ateísmo nem a heresia. Pensamos que nesta visão de Victor Hugo, terminantemente oposta ao conceito niilista de Jean-Paul Sartreestá o verdadeiro sentido do ser e do mundo, como demonstração viva e real de que Deus é amor, como dizia João, o evangelista.

Eis, aqui, enfim, duas visões da existência: uma que proclama a morte e o nada como únicas realidades do ser e a outra que demonstra a eternidade da vida, as potencialidades do espírito frente ao nada e o seu aperfeiçoamento divino pela lei dos renascimentos. Duas visões do mundo das quais depende o futuro da civilização e da cultura; dois projectos a respeito do ser e da vida sustentados por dois homens: o primeiro cego e enganado pelo Nada e pela Negação e o segundo iluminado pelo espírito e a verdade.

Sem uma dignificação "espiritual" do poeta e do escritor sobre a base de uma segura convicção "de sua imortalidade pessoal", a decadência moral das letras e das artes será inevitável. Tal como Nietzsche proclamou a morte de Deus, niilismo lançará o desolador grito: "a Beleza está morta". Assim, a aparição do mediunismo poético e literário é uma necessidade moral que se impõe no momento em que tudo se reduz a sensações e prazeres corporais. Contrariamente, avançará o existencialismo sobre cujas bases pretende firmar-se uma solução niilista e ateia do homem e do universo.

Se o nada é o que rege o processo histórico; se a morte é o sustentáculo da vida espiritual do ser, a humanidade está vivendo de ilusões. Toda a ânsia de verdade, de justiça e de beleza é uma incongruência ao não responder a nenhum sentido espiritual da existência.

A se prosseguir nessa negação do fenómeno mediúnico por medo ou por defeito; continuando a procurar-se uma intrincada explicação do mesmo a fim de não aceitar nele a presença do Espírito, estaremos a sujeitar-nos ao Nada, ao Ateísmo e à Morte. Estaremos indo de encontro à vida infinita para reclamar outra finita e sem sentido, cuja única meta é o não-ser.

Acreditamos que o mediunismo literário merece ser considerado como uma possível realidade espiritual pela crítica do nosso tempo. Este novo tipo de literatura resultará como uma blindagem espiritual frente ao império do materialismo, pois o homem, como expressão altamente tecnológica deverá saber, neste momento, de onde vem e para onde se dirige. mediunidade tanto literária como filosófica deverá elevar a sua lâmpada divina no meio desta noite terrena para salvar a raça do ódio e do nada.

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Humberto Mariotti (i)Victor Hugo Espírita, Jean-Paul Sartre e Victor Hugo, 16º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: Criança com uma boneca, pintura de Anne-Louis GIRODET-TRIOSON)