Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

terça-feira, 29 de novembro de 2011

~~~Párias em Redenção~~~


2. ALUCINAÇÃO E CRIME
…/

   A noite avançava lavada e varrida pelas chuvas e ventos, que desabavam abundantes, e o moço revira-se impaciente no leito, desassossegado. A avançadas horas, deixou-se abater por torpor dominante e, assaltado por esquisito

pesadelo, sentiu-se amarrado ao leito, experimentando os sentidos psíquicos exaltados. Foi dominado pela sensação desusada de que, embora caído pesadamente sobre a cama, podia locomover-se no quarto em brumas espessas, entre as quais, direcção estóica e hierática, como sempre o fora. Agitando-se penosamente e desejando evadir-se do desagradável e insólito fenómeno que o avassalava, compreendeu-se vencido ante aquela que lhe fora mãe espiritual dedicada e cujo amor ele estava prestes a desrespeitar, por meio de hediondo crime. A entidade acercou-se dele e, traduzindo inconfundível melancolia na voz, marcada por acento de doída angustia, inquiriu:

   – Que pretendes, Girólamo? Assim retribuis, através do crime nefário que premeditas, o calor da afeição pura e da dedicação que recebeste deste lar? Substituíste por ácido o sangue que pulsa nas tuas veias para, enlouquecido, te comprometeres por penosos séculos de infeliz peregrinação ressarcidora? Susta o golpe, antes que o golpe te vença, sem que consigas aniquilar-te a ti mesmo. Ninguém tem o direito de erguer a mão, que se torna sacrílega quando investe contra a vida de outrem. Mesmo diante do revel, a nós não nos pertence o direito de destruir, e sim Àquele que a produz, e que se utiliza de recursos que nos escapam, para equilibrar tudo, no padrão da Sua Sabedoria. Estaca, e modifica a intenção! Ignoras que a vida não cessa e que nós outros, os que antecipamos na jornada do túmulo, vivemos?!

   Desfigurado pela visita inusitada, o moço, em febre, arguiu, desafiadoramente:

   – Deliro, oh! Deus. Enlouqueço! Ninguém volta da morte. Você está morta, titia! Deixe-me em paz, antes que me estourem os miolos avassalados por demónios perversos. Não pode ser você. Deve ser algum enviado das geenas, para aniquilar-me.

   – Não, filho, sou eu mesma, quem retorna. É a voz da minha alma que te fala hoje, como fizera ontem, despertando as mínimas expressões de consciência, de dignidade, na tua razão, obnubilada pela ambição ignóbil que te vence. Morri, mas não fiquei destruída. Não encontrei o céu de repouso ou o inferno de desdita. Deparei-me com a vida estuante, colocada pela Excelsa Misericórdia Divina ao alcance dos que Lhe respeitam as leis. A vida aqui é a razão da vida daí. Ressurgimos do portal de cinzas da sepultura com as asas de anjos ou os pesados grilhões atros, resultantes das nossas atitudes na Terra, que nos alçam a regiões de paz inefável ou nos conduzem a abismos de dores demoradamente remissíveis, até a consciência ferida no seu mais fundo sentir experimente a necessidade de tudo recomeçar e refazer… Somos os construtores da nossa ventura como também do nosso infortúnio. Por isso, reprime o passo e detém-te, antes que seja tarde demais.

   – Agora já é tarde demais! O ódio que me arde nalma destruir-me-á antes que eu possa recuar. Tenho que cumprir esse destino…

   – O destino nos pertence. A cada instante estamos a elaborá-lo, modificando-o ou estabelecendo-o através do que pensamos, do que dizemos, do que fazemos. Cada um consegue o que cultiva, quanto acontece ao agricultor que recolhe a resposta da terra através do grão que lhe atira na cova. Susta o vil pensamento e reflecte. Por que te voltas contra a inocência de Lúcia e a pureza das crianças? Que te fizeram, revel? O ódio que lhes devotas são as farpas da inveja e do despautério do teu espírito ingrato. Volta-te para Deus e escuta a insuperável mensagem de amor do Seu Filho Jesus. Escolhe: agora, ou será tarde demais, realmente. Esquece a sandice e não serás esquecido pela Justiça Celeste. Este é o momento da tua redenção: pára! Ignoras as realidades da vida: do ontem e do amanhã…

   – Não posso, não posso. É muito tarde para mim. Tudo está pronto. Não posso, nem desejo recuar…

   – Eu lamento, por ti e por outrem que não está em condições de perguntar-te e de amar-te. Na minha imensa, incomparável dor, eu te perdoo e choro por ti e por alguém mais. No entanto, ouve-me, Girólamo, é tempo. Foge, viaja, sai desta casa, evade-te ainda hoje, buscando renovação noutros sítios e retorna depois. Serás sempre bem recebido. Terás o de que necessitas, o que ambicionas, porém, por outros meios. Dai em busca da paz, enquanto luze a oportunidade, pelo amor de Deus eu te rogo, meu filho!

   Tresloucado, espírito em alucinação, o moço gritou:

   – Nunca! Agora irei até ao fim, até a minha total desgraça ou ventura. Não pararei!

   – Atingirás, sim, a desgraça. Deus tenha piedade de ti! Eu te perdoo, filho. Perdoe-nos Senhor a todos nós!

   A emissária espiritual levou a nívea mão ao peito levemente ofegante e lágrimas silenciosas, longas, lhe escorreram pela face venerada. Um olhar de indizível dor foi endereçado ao moço, conduzido pela teimosa incoerência de raciocínios e, embora distendendo, logo após, os braços para recolhê-lo outra vez no seio sofrido, Girólamo, como se libertasse do magnetismo que o retinha preso, atirou-se na direcção do corpo que se debatia em desespero no leito e despertou gritando, de olhar esgazeado, suado, aturdido…
Ergueu-se de um salto, apoiou-se à janela, abriu-a e aspirou o ar húmido e frio da noite para recobrar a lucidez e coordenar as ideias assaltadas pela quase demência.

   Transcorridos alguns minutos, aumentando a luz no quarto, entregou-se aos sombrios pensamentos já habituais, enquanto ruminava com a desconcertante visão, que parecia persegui-lo, embora desperto. Sentia-se assistido pela tia; conquanto não a pudesse ver naquele instante, percebia-se por ela visitado. Deixou repentinamente a alcova, desceu ao patamar da parte térrea, abriu a porta de entrada, procurando, sem saber exactamente o quê, meios de reencontar-se. A chuva torrencial, porém, prosseguia. Em derredor da herdade, os rios transbordavam, as estradas estavam quase intransponíveis…

   Em inquisição crescente, aguardou a madrugada e o dia brumoso raiou. O cansaço venceu-o com a chegada da manhã, quando, então, se recolheu por algumas horas, em pesado e tormentoso sono.

   Levantou-se tarde e não compareceu à refeição matinal.

   Amainada a tormenta, deambulou a esmo pela terra encharcada e ao retornar, com a alma em frangalhos, foi recebido pela vigilante Assunta, que o aguardava ansiosamente.

   Higienizando-se, tomou caldo quente e reparador, que a serva lhe trouxe. Amolentado de carácter, deixou-se arrastar pelas paixões absorventes e cuidou, com a consócia, do crime em delineamento, sobre todos os detalhes da tragédia que logo mais seria consumada. Buscou repousar, enquanto Assunta, que guardara o soporífico que ele lhe entregara, desceu à cozinha.

   Naquela noite, Assunta oferecera-se a Lúcia para cuidar do repasto das crianças, prontificando-se a ajudá-las a se recolherem ao leito, informando que também lhe traria a refeição, contanto que descansasse das últimas e longas fadigas.

   Embora pressentindo a borrasca que a ameaçava, Lúcia, exaurida pelo cansaço, aceitou a oferenda da mulher pusilânime e se quedou em leve recreio com os pequenos órfãos.

   Após servir a refeição frugal, Assunta trouxe imensa bandeja de prata com chávenas e bule de chá fumegante, bolinhos de milho, leite e açúcar. Antes, porém, adicionara forte quantidade de pó sonífero, que se misturara ao chá, e, sorridente, serviu às vítimas em potencial, que ignorando a trama cruel, se deixaram conduzir inermes pela má e injusta adversária gratuita. Transcorridos poucos minutos, e não podendo vencer a moleza e o sono que de todos se apossou, recolheram-se aos leitos, vestidos conforme se encontravam.

   A astuta comparsa de Girólamo trocou os trajes das crianças, que ressonavam sob o peso do produto forte, e as depôs nas respectivas camas. Lúcia, porém, foi arrastada, como se encontrava, para o lado do cataló da menina Grazziella, ali ficando adormecida, enquanto a relutância que oferecera ao invencível mal-estar. Isto feito, Assunta cerrou a porta, deu ciência a Girólamo de toda a ocorrência e demandou, por sua vez, o próprio dormitório.


   A noite, embora ameaçadora, não se encontrava sacudida pelas chuvas nem pelos ventos da véspera. Uma lua fria e triste espiava entre nuvens carregadas. O relâmpago aparecia de longe em longe e a voz do trovão chegava cansada e rouca aos cenários dos próximos e tristes acontecimentos.

   Horas avançadas, Girólamo caminhava pela alcova, agitado, em trajes de dormir.

   O punhal afiado brilhava aos reflexos do luar que por vezes penetrava no quarto, colocado sobre delidada arca de cânfora trabalhada.
/...


VICTOR HUGO, Espírito “PÁRIAS EM REDENÇÃO ” – LIVRO PRIMEIRO, 2. ALUCINAÇÃO E CRIME (fragmento 3 de 4) texto mediúnico recebido por DIVALDO PEREIRA FRANCO
(imagem: L’âme de la forêt _1898, pintura de Edgar Maxence)

sábado, 26 de novembro de 2011

Narrações do Infinito~



LÚMEN

Primeira narrativa* I

Resurrectio præteriti
(a
ressurreição
do
passado)




Quœrens – Vós me haveis prometido, ó LÚMEN!, fazer a narrativa dessa hora, estranha entre todas, que se seguiu ao vosso derradeiro suspiro, e descrever de que modo, por uma lei natural, embora mui singular, revistes o passado no presente e penetrastes um mistério que havia permanecido oculto até hoje.

Lúmen – Sim, meu velho amigo, vou cumprir a promessa e, graças à longa correspondência de nossas almas, espero compreendereis esse fenómeno estranho, conforme o classificastes. Há contemplações cuja força o olhar mortal não pode suportar. A morte, que me libertou dos frágeis e fatigáveis sentidos do corpo, ainda não vos tocou com a sua mão emancipadora. Pertenceis ao mundo dos vivos. Apesar do isolamento de ermo, nessas reais torres do arrabalde
Saint-Jacques, onde o profano não vem perturbar vossas meditações, fazeis, sem embargo disso, parte da existência terrestre e das suas superficiais preocupações. Não vos admireis, pois, no instante de vos associar ao conhecimento do meu mistério, do convite para que vos isoleis, mais ainda, dos ruídos exteriores e me presteis toda a –  intensidade de atenção – de que o vosso Espírito seja capaz de concentrar nele próprio.

Quœrens – Serei todo ouvidos, para vos escutar, ó LÚMEN!, e todo o meu Espírito estará concentrado em vos compreender. Falai, sem receio nem circunlóquio, e dignai-vos de me fazer conhecedor das impressões, ignotas para mim, que sucedem à cessação da vida.

Lúmen – Por onde desejais comece a narração?

Quœrens – Se bem recordardes, a partir do momento em que, mãos trémulas, eu vos fechei os olhos. Gostaria que daí partisse a vossa origem.

Lúmen – Oh! a separação do princípio pensante e do organismo nervoso não deixa na alma nenhuma espécie de recordação. É como se as impressões do cérebro, que constituem a harmonia da memória, se apagassem inteiramente e fossem logo restabelecidas sob outro modo. A primeira sensação de identidade que se experimenta depois da morte assemelha-se à que se sente ao despertar, durante a vida, quando, acordando pouco a pouco, à consciência da manhã, ainda se está penetrado pelas visões da noite. Chamado pelo futuro e pelo passado, o Espírito busca, por seu turno, retomar a plena posse de si mesmo e deter as impressões fugitivas do sonho esvaecido, que passam ainda nele com o respectivo cortejo de quadros e acontecimentos. Às vezes, absorvido em tal retrospecção de um sonho cativante, sente sob as pálpebras, que de novo se fecham, os elos ténues da visão reatados e o espectáculo prosseguir; recai, então, no sonho e numa espécie de meio-sono. Assim se balança nossa faculdade pensante ao sair desta vida, entre uma realidade que não compreende ainda e um sonho não desaparecido completamente. As mais diversas impressões se amalgamam e confundem, e se, sob o peso de sentimentos perecedouros, tem saudades da Terra de onde vem exilado, é então oprimida por um sentimento de tristeza indefinível que pesa sobre nossos pensamentos, nos envolve de trevas e retarda a clarividência.

Quœrens – Experimentastes essas sensações imediatamente após a morte?

Lúmen – Após a morte? Mas não existe morte. O facto que designais sob tal nome, a separação do corpo e da alma, não se efectua – por assim dizer – sob uma forma dita material, comparável à separação química de elementos dissociados que se observa no mundo físico. Não se percebe essa separação definitiva, que vos parece tão cruel, mais do que a pode perceber o recém-nascido, saindo do ventre materno. Somos verdadeiramente nascidos para a vida celeste, tal qual o fomos para a existência terrestre. Apenas, não estando a alma envolta nas faixas corporais que a revestem na Terra, adquire ela mais prontamente a noção do seu estado e da sua personalidade. Tal faculdade de percepção varia todavia – essencialmente – de uma para outra alma. Há as que durante o viver nunca se elevaram rumo do céu, nem sentiram o desejo de penetrar as leis da Criação. Essas, dominadas ainda pelos apetites corporais, permanecem longo tempo em estado de perturbação e de inconsciência. Outras existem, felizmente, que, desde esta vida, voaram com as suas aspirações aladas rumo aos cimos do belo eterno. Estas, vêem chegar com calma e serenidade o instante da separação; elas sabem que o progresso é a lei da existência, que entraram no Além, numa vida superior à de aquém; seguem, passo a passo, a letargia que sobe ao coração e, quando o último movimento, vagaroso e insensível, pára em seu curso, elas estão já acima do corpo e daí já observaram o adormecimento. Libertando-se dos liames magnéticos, sentem-se rapidamente arrebatadas por uma força desconhecida rumo do ponto da Criação, a que as suas aspirações, sentimentos e esperanças as atraem.
/…

(*) Escrito em 1866. Publicado pela primeira vez, na "Revista do XIX.º Século", de 1 de Fevereiro de 1867. Desenvolvido, depois, pelas aplicações sucessivas do mesmo princípio de óptica transcendente.  


CAMILLE FLAMMARION, Narrações do Infinito, LÚMEN Primeira narrativa – I. 1º fragmento global da obra (Camille Flammarion faz falar, pela mediunidade, uma alma após a morte, que em vida havia preparado e a quem passou a chamar Lúmen)
(imagem: Jungle Tales_1895, pintura de James Jebusa Shannon)

terça-feira, 22 de novembro de 2011

O Génio Céltico e o Mundo Invisível~


CAPÍTULO I

Origem dos celtas. Guerra dos gauleses.
Decadência e queda. Longa
noite; o despertar. O movimento pancéltico

Nos primeiros vislumbres da História, encontramos os celtas estabelecidos em boa parte da Europa.

De onde vieram? Qual foi o lugar de sua origem? Certos historiadores colocam o berço de sua raça nas montanhas de Taurus, no centro da Ásia Menor, nas vizinhanças dos caldeus. Quando a população aumentou, eles teriam transposto o Pont-Euxin (no Mar Negro) e penetrado até à parte central da Europa. Mas, nos nossos dias, essa teoria parece ter caído em desuso, ocorrendo o mesmo com a hipótese dos arianos.

Camille Jullian, do Colégio de França, na sua obra mais recente sobre a Histoire de la Gaule, contenta-se em fixar entre 600 e 800 a.C. a chegada à Gália dos “kymris”, o ramo mais moderno dos celtas. Eles vinham, crê-se, da foz do Rio Elba e das costas da Jutlândia, enxotados por maremotos, o que os obrigou a emigrar em direcção ao sul.

Chegados à Gália, encontraram um ramo mais antigo dos celtas, os gaélicos, que ali se achavam fixados desde muito tempo e que eram de estatura menor, geralmente morenos, enquanto que os “kymris” eram altos e louros. Essas diferenças são ainda sensíveis na Armorique, onde as costas do oceano, no Morbihan, são povoadas de homens pequenos e morenos, misturados com elementos estrangeiros, atlantes ou bascos, que se fundiram com as populações primitivas. Nas Costas do Norte (Côtes-du-Nord) ou na Mancha os habitantes eram de estatura mais alta, aos quais vieram se juntar os celta-bretões expulsos da grande ilha pelas invasões dos anglo-saxões.

Os considerandos de C. Jullian se acham confirmados pelo parentesco das línguas célticas e germânicas, semelhantes pela sua estrutura, pelos sons guturais, abuso de letras duras como o K, o W, etc.

No meio das correntes migratórias, que se cruzam e se entrecruzam na noite da pré-história, a Ciência acha um processo mais seguro nos estudos linguísticos para reconstituir a filiação das raças humanas.

Daremos apenas um resumo da história dos gauleses. Sabe-se que nossos antepassados, durante séculos, encheram o mundo com o barulho de suas armas. Ávidos de aventuras, de glórias e de combates, eles não podiam se resignar a uma vida apagada e tranquila e iam para a morte como a uma festa, tal era sua certeza do Além.

Conhecem-se suas numerosas incursões na Itália, na Espanha, na Alemanha e até no Oriente. Os gauleses invadiam regiões vizinhas e, pela lei de choque de retorno, sofreram invasões e foram reduzidos à impotência.

A alma da Gália se acha nas instituições druídicas e bárdicas. Os druidas não eram somente os sacerdotes, mas também os filósofos, os sábios, os educadores da juventude. Os ovates presidiam as cerimónias do culto e os bardos consagravam-se à poesia e à música.

Mais adiante exporemos o que era a obra e o verdadeiro carácter do Druidismo.
  
No início de nossa era, os romanos já tinham penetrado na Gália, escalado o vale do Rhône e, após terem ocupado Lyon, avançaram até ao coração do país.

Os gauleses resistiram com energia e provocaram, às vezes, rudes reveses a seus inimigos; entretanto, eles estavam divididos e não ofereciam, amiúde, mais do que resistências locais. Sua coragem, levada até à temeridade, e seu desprezo pelas astúcias guerreiras e pela morte tornavam-se uma desvantagem para eles.

Combatiam em desordem, nus até à cintura, com armas mal preparadas, contra adversários cobertos de ferro, astuciosos e desleais, fortemente disciplinados e abastecidos de um material considerável para a época.

Vercingétorix, o grande chefe arverno, sustentado pelo poderio dos druidas, conseguiu, certa vez, sublevar toda a Gália contra César, e uma luta grandiosa teve lugar.  Educado pelos bardos, Vercingétorix tinha em parte as qualidades que se impõem à admiração dos homens e os levam à obediência e ao respeito. Seu amor pela Gália aumentava com o progresso crescente dos exércitos romanos.

Que diferença entre Vercingétorix e César! O herói gaulês, cheio de fé na potência invisível que governa os mundos, sustentado por sua crença nas vidas futuras, tinha por regra de conduta o dever, por ideal a grandeza e a liberdade de seu país.

César, profundamente céptico, só acreditava na fortuna. Tudo nesse homem era astúcia e cálculo; uma sede intensa de dominação o devorava. Após uma vida de excessos, crivado de dívidas, ele veio à Gália procurar na guerra os meios de elevar seu crédito. Ele cobiçava de preferência as cidades ricas e, após tê-las entregue à pilhagem, viam-se longos comboios se encaminharem para a Itália, levando ouro gaulês aos credores de César.

É necessário lembrar que, em nome do patriotismo, César perjurou, negou as liberdades romanas e oprimiu seu país. Certamente não negaremos o génio político e militar de César, mas devemos, na verdade, lembrar que esse génio era marcado por vícios vergonhosos.

E é nos escritos desse inimigo da Gália que se vai sempre procurar a verdade histórica! É nos seus Comentários, escritos sob a inspiração do ódio, com a intenção evidente de se realçar ante os olhos de seus concidadãos, que se estuda a história da guerra das Gálias. Mas, dois autores romanos, Pollion e Suetônio, confessam que essa obra está cheia de inexatidões, de erros voluntários.

Em resumo, os gauleses, ardentes, entusiastas, impressionáveis, tinham-se beneficiado da corrente céltica, dessa grande corrente, veículo das altas inspirações, que, desde os primeiros tempos, tinham influenciado todo o nordeste da Europa. Eles foram impregnados pelos eflúvios magnéticos do solo, desses elementos que, em todas as regiões da Terra, caracterizam e diferenciam as raças humanas.

Mas seu ardor juvenil, sua paixão pelas armas e pelos combates os tinham levado muito longe, e as perturbações causadas à ordem e à marcha regular das coisas retornaram pesadamente sobre eles, em virtude dessa lei soberana que reconduz aos indivíduos, como aos povos, todas as consequências das obras que eles executaram.         

Porque tudo o que fazemos pesa sobre nós, através dos tempos, na forma de chuvas ou de raios, de alegrias ou de dores, e a dor não é o agente menos eficaz da educação das almas e da evolução das sociedades.       /...

LÉON DENIS, O Génio Céltico e o Mundo Invisível, Primeira Parte OS PAÍSES CÉLTICOS, CAPÍTULO I – Origem dos celtas. Guerra dos gauleses. Decadência e queda. Longa noite; o despertar. O movimento pancéltico. 1º  fragmento.
(imagem: The Apotheosis of the French Heroes who Died for their Country During the War for Freedom_1802, pintura de Anne-Luis GIRODET-TRIOSON)

sábado, 19 de novembro de 2011

Árias, párias e rajás


Os arianos puros

   Era
na Índia
de então
que se
reuniam
os arianos
puros, entre os
quais se
cultivavam
igualmente
as lendas de um
mundo perdido,
no qual o povo hindu
colocava as fontes
de sua nobre origem.
Alguns acreditavam se tratasse do antigo continente da Lemúria, arrasado em parte pelas águas dos oceanos Pacífico e Índico, e de cujas terras ainda existem porções remanescentes, como a Austrália.

   A realidade, porém, qual já vimos, é que, como os egípcios, os hindus eram um dos ramos da massa de proscritos da Capela, exilados no planeta. Deles descendem todos os povos arianos, que floresceram na Europa e hoje atingem um dos mais agudos períodos de transição na sua marcha evolutiva. O pensamento moderno é o descendente legítimo daquela grande raça de pensadores, que se organizou nas margens do Ganges, desde a aurora dos tempos terrestres, tanto que as línguas das raças brancas guardam as mais estreitas afinidades com o sânscrito, originário de sua formação e que constituía uma reminiscência da sua existência pregressa, em outros planos.

Os rajás e os párias

   Na verdade, esses sistemas avançados de religião e filosofia evocam o fastígio da raça no seu mundo de origem, de onde foi precipitada ao orbe terreno pelo seu orgulho desmedido e infeliz.

   Os arianos da Índia, porém, não se compadeceram das raças atrasadas que encontraram em seu caminho e cuja evolução devia representar para eles um imperativo de trabalho regenerador na face da Terra; os aborígenes foram considerados como os párias da sociedade, de cujos membros não podiam aproximar-se sem graves punições e severos castigos.

   Ainda hoje, o espírito iluminado de Gandhi, que é obrigado a agir na esfera da mais atenciosa psicologia dos seus irmãos de raça, não conseguiu eliminar esses absurdos sociais. Do seio do grande povo de iniciados e profetas. Os párias são a ralé de todos os seres e são obrigados a dar sinal de alarme quando passam por qualquer caminho, a fim de que os venturosos se afastem do seu contágio maléfico.

   A realidade, contudo, é que os rajás soberanos, ao influxo da misericórdia do Cristo, voltam às mesmas estradas que transitaram sobre o dorso dos elefantes ajaizados de pedrarias, como mendigos desventurados, resgatando o pretérito em avatares de amargas provações expiatórias. Os que humilharam os infortunados, do alto de seus palácios resplandecentes volvem aos mesmos caminhos, cheios de chagas cancerosas, exibindo a sua miséria e a sua indigência.

   E o que é de admirar-se é que nenhum povo da Terra tem mais conhecimento, acerca da reencarnação, do que o hindu, ciente dessa verdade sagrada desde os primórdios da sua organização neste mundo.

(Arianismo, Wikipédia)


ESPÍRITO EMMANUEL, A Caminho da Luz, V - A ÍNDIA. Texto mediúnico recebido em 1938 por FRANCISCO CÂNDIDO XAVIER
(imagem: The Peri (The Sacred Elephant; The Sacred Lake) 1882, pintura de Gustave Moreau)

terça-feira, 15 de novembro de 2011

Deus na Natureza...


E o Sol,
fonte dessa luz e dessa vida,
espiou uma última vez lá da faixa marinha do horizonte,
como que satisfeito com aquela
homenagem que nem um ser
ousara recusar-lhe...
E assim, contente da jornada,
mergulhou orgulhoso no hemisfério
de outros povos.

Fez, então, grande silêncio
em toda a Natureza.
Nuvens de ouro e púrpura
evolaram-se às paragens reais
e ocultaram os últimos
timbres avermelhados.

A sombra descia do alto. As ondas adormeceram, porque o vento abrandara. Os pequeninos seres alados adormeceram também e Vésper, núncia da noite, começou a luciluzir no éter.

“Ó misterioso Incógnito! – exclamei – grande, imenso Ser, que somos nós, pois? Supremo autor da harmonia, quem és tu, se tão grandiosa é a tua obra? Pobres mitos humanos os que supõem conhecer-te – ó Deus! Átomos, nada mais que átomos, como somos ínfimos! E como tu és grande! Quem, pois, ousou nomear-te pela primeira vez?

“Que orgulhoso insensato pretendeu definir-te, ó Deus! – ó meu Deus, todo poder e ternura, imensidade sublime e inconcebível!

“E, como qualificar os que vos têm negado, que em vós não crêem, que vivem fora do vosso pensamento e jamais sentiram vossa presença – ó Pai da Natureza!

“Amo-te! amo-te! Causa suprema e desconhecida, Ser que palavra alguma pode traduzir, eu vos amo, divino Princípio! mas... sou tão pequenino, que não sei se me ouvireis, se me entendereis.”

Como estes pensamentos se precipitavam fora de mim, para fundirem-se na afirmação grandiosa de toda a Natureza, as nuvens se rasgaram no poente e a radiação áurea das regiões iluminadas inundou a montanha.

“Sim! tu me ouves, ó Criador! tu que dás a beleza e o perfume à florinha silvestre! A voz do oceano não abafa a minha voz e o meu pensamento a ti se eleva, ó Deus! com a prece colectiva.”

Do todo do Cabo, minha vista se estendia ao Sul como ao Ocidente, na planície como sobre o mar. Voltando-me, lobriguei as cidades humanas, meio adormecidas nas plagas. No Havre as ruas comerciais se iluminavam e além, na margem oposta, Trouville acendia o seu parque de diversões.

E enquanto a Natureza se mostrava reconhecida ao seu Autor com o saudar a missão de um dos seus astros fiéis; enquanto todos os seres lhe enviavam as suas preces e o rumor dos mares se misturava ao vento, em acção de graças ao fim de um belo dia; enquanto a obra criada, unânime e recolhida, se oferecera ao Criador, a criatura imortal e responsável – ser privilegiado da Criação, expoente do pensamento – o Homem, vivia à margem, indiferente a tantos esplendores, sem olhos de ver nem ouvidos de ouvir, parecendo ignorar essa harmonia universal, em cujo seio deveria encontrar a sua felicidade e a sua glória.

/...

CAMILLE FLAMMARION, Deus na Natureza, Tomo V - Deus (4 de 4) fragmento.

sexta-feira, 11 de novembro de 2011

O sentido moral

Se estudarmos todas as paixões e até todos os vícios, verificaremos que têm a sua origem no instinto de conservação. Este instinto está em toda a sua força nos animais e nos seres primitivos que se aproximam mais da animalidade; aí domina sozinho, porque neles não existe ainda como contrapeso o sentido moral; o ser ainda não nasceu para a vida intelectual. Pelo contrário, o instinto enfraquece à medida que a inteligência se desenvolve, porque esta domina a matéria.

O destino do Espírito é a vida espiritual; mas, nas primeiras fases da sua existência corporal, existem unicamente necessidades materiais a satisfazer e, com este fim, o exercício das paixões é uma necessidade para a conservação da espécie e dos indivíduos, materialmente falando. Mas saído deste período, tem outras necessidades, primeiro semimorais e semimateriais, depois exclusivamente morais. É então que o Espírito domina a matéria; se lhe sacode o jugo, avança na sua via providencial e aproxima-se do seu destino final. Se, pelo contrário, se deixa dominar por ela, fica para trás, assemelhando-se à besta. Nesta situação, o que outrora era um bem, porque era uma necessidade da natureza, torna-se um mal, não só por não ser uma necessidade, mas porque isso se torna prejudicial à espiritualização do ser. Assim como o que é qualidade na criança passa a ser defeito no adulto. O mal é deste modo relativo e a responsabilidade proporcional ao grau de evolução.

Todas as paixões têm portanto a sua utilidade providencial; sem isso, Deus teria feito qualquer coisa de inútil e prejudicial. É o abuso que constitui o mal e o homem abusa devido ao seu livre-arbítrio. Mais tarde, esclarecido pelo seu próprio interesse, escolhe livremente o bem e o mal.

O instinto e a inteligência

Que diferença existe entre o instinto e a inteligência? Onde acaba um e começa o outro? O instinto é uma inteligência rudimentar ou uma faculdade distinta, um atributo exclusivo da matéria?

O instinto é a força oculta que instiga os seres orgânicos a actos espontâneos e involuntários para a sua conservação. Nos actos instintivos não há nem reflexão, nem combinação, nem premeditação. É assim que a planta procura o ar, se volta para a luz, orienta as suas raízes para a água e para a Terra alimentadora; que a flor se abre e se fecha alternadamente consoante a necessidade; que as plantas trepadoras se enrolam à volta do suporte ou se agarram com as suas gavinhas. É por instinto que os animais são prevenidos quanto ao que lhes é útil ou prejudicial; que se dirigem consoante as estações para climas propícios; que constroem, sem ligações prévias, com mais ou menos arte, consoante as espécies, ninhos macios e abrigos para a sua progenitura, dispositivos para apanharem em armadilhas as presas com que se alimentam; que manobram com perícia as armas ofensivas ou defensivas com que estão dotados; que os sexos se aproximam; que a mãe mima os seus meninos e estes procuram o seio da mãe. No homem, o instinto domina exclusivamente no início da vida; é por instinto que a criança chora para exprimir as suas necessidades, que toma os alimentos, que tenta falar e andar. Mesmo no adulto, alguns actos são instintivos: são assim os movimentos espontâneos para evitar um risco, para se afastar de um perigo, para manter o equilíbrio; são também assim o fechar das pálpebras para suavizar o clarão da luz, a abertura maquinal da boca para respirar, etc.

A inteligência revela-se por actos voluntários, reflectidos, premeditados, combinados, segundo a oportunidade das circunstâncias. É incontestavelmente um atributo exclusivo da alma.

Qualquer acto maquinal é instintivo; o que revela reflexão, combinação, uma deliberação, é inteligente; um é livre, o outro não o é.

O instinto é um guia seguro que nunca engana; já a inteligência, pelo facto de ser livre, está por vezes sujeito ao erro.

Se o acto instintivo não tem o carácter do acto inteligente, revela pelo menos uma causa inteligente essencialmente previdente. Se admitirmos que o instinto tem a sua origem na matéria, teremos de admitir que a matéria é inteligente, mesmo mais seguramente inteligente e previdente do que a alma, dado que o instinto não se engana, enquanto a inteligência se engana.

Se consideramos o instinto como uma inteligência rudimentar, como é que, em certos casos, é superior à inteligência reflectida?

Que lhe permite fazer coisas que a inteligência não pode produzir?

Se é atributo de um princípio espiritual especial, que acontece a esse princípio? Dado que o instinto se apaga, esse princípio seria então anulado? Se os animais só são dotados de instinto, o seu futuro não tem portanto saída; os seus sofrimentos não têm qualquer compreensão. Não estaria conforme com a justiça nem com a bondade de Deus.

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ALLAN KARDEC, A GÉNESE, Os Milagres e as Profecias Segundo o Espiritismo Capítulo III, O BEM E O MAL, Fonte do bem e do mal 10, 11 e 12. Tradução portuguesa de Maria Manuel Tinoco, Editores Livros de Vida.

quinta-feira, 10 de novembro de 2011

O sistema de Capela


   Nos mapas zodiacais, que os astrónomos terrestres compulsam em seus estudos, observa-se desenhada uma grande estrela na constelação do Cocheiro, que recebeu, na Terra, o nome de Cabra ou Capela.

   Magnífico sol entre os astros que nos são mais vizinhos, ela, na sua trajectória pelo Infinito, faz-se acompanhar, igualmente, da sua família de mundos, cantando as glórias divinas do Ilimitado.

   A sua luz gasta cerca de 42 anos para chegar à Terra, considerando-se, desse modo, a regular distância existente entre a Capela e o nosso planeta, já que a luz percorre o espaço com a velocidade aproximada de
300.000 quilómetros por segundo.

   Quase todos os mundos que lhe são dependentes já se purificaram física e moralmente, examinadas as condições de atraso moral da Terra, onde o homem se reconforta com as vísceras dos seus irmãos inferiores, como nas eras pré-históricas de sua existência, marcham uns contra os outros ao som de hinos guerreiros, desconhecendo os mais comezinhos princípios de fraternidade e pouco realizando em favor da extinção do egoísmo, da vaidade, do seu infeliz orgulho.

Um mundo em transições

   Há muitos milénios, um dos orbes da Capela, que guarda muitas afinidades com o globo terrestre, atingira a culminância de um dos seus extraordinários ciclos evolutivos.

   As lutas finais de um longo aperfeiçoamento estavam delineadas, como ora acontece convosco, relativamente às transições esperadas no século XX, neste crepúsculo de civilização.

   Alguns milhões de Espíritos rebeldes lá existiam, no caminho da evolução geral, dificultando a consolidação das penosas conquistas daqueles povos cheios de piedade e virtudes, mas uma acção de saneamento geral os aligaria daquela humanidade, que fizera jus à concórdia perpétua, para a edificação dos seus elevados trabalhos.

   As grandes comunidades espirituais, directoras do cosmos, deliberaram, então, localizar aquelas entidades, que se tornaram pertinazes no crime, aqui na Terra longínqua, onde aprenderiam a realizar, na dor e nos trabalhos penosos do seu ambiente, as grandes conquistas do coração e impulsionando, simultaneamente, o progresso dos seus irmãos inferiores.

Espíritos exilados na Terra

   Foi assim que Jesus recebeu, à luz do seu reinado de amor e justiça, aquela turba de seres sofredores e infelizes.

   Com a sua palavra sábia e compassiva, exortou essas almas desventuradas à edificação da consciência pelo cumprimento dos deveres de solidariedade e de amor, no esforço regenerador de si mesmas. Mostrou-lhes os campos imensos de luta que se desdobravam na Terra, envolvendo-as no halo bendito da sua misericórdia e da sua caridade sem limites. Abençoou-lhes as lágrimas santificadoras, fazendo-lhes sentir a sua colaboração quotidiana e a sua vinda no provir.

   Aqueles seres angustiados e aflitos, que deixavam atrás de si todo um mundo de afectos, não obstante os seus corações empedernidos na prática do mal, seriam degredados na face obscura do planeta terrestre; andariam desprezados na noite dos milénios da saudade e da amargura; reencarnariam no seio das raças ignorantes e primitivas, a lembrarem o paraíso perdido nos firmamentos distantes. Por muitos séculos não veriam a suave luz da Capela, mas trabalhariam na Terra acariciados por Jesus e confortados na sua imensa misericórdia.


ESPÍRITO EMMANUEL, A Caminho da Luz, III-AS RAÇAS ADÂMICAS. Texto mediúnico ditado em 1938 a FRANCISCO CÂNDIDO XAVIER
(imagem: Concert d'Anges_1897, pintura de Edgar Maxence)

terça-feira, 8 de novembro de 2011

O pensamento é força electromagnética...


A Vontade

   Comparemos a mente humana – espelho vivo da consciência lúcida – a um grande escritório, subdividido em diversas secções de serviço.

   Aí possuímos o Departamento do Desejo, em que operam os propósitos e as aspirações, acalentando o estímulo ao trabalho; o Departamento da Inteligência, dilatando os patrimónios da evolução e da cultura; o Departamento da Imaginação, amealhando as riquezas do ideal e da sensibilidade; o Departamento da Memória, arquivando as súmulas da experiência, e outros, ainda, que definem os investimentos da alma.
  
   Acima de todos eles, surge o Gabinete da Vontade.

   A vontade é a gerência esclarecida e vigilante, governando todos os sectores da acção mental.

   A Divina Providência concedeu-a por auréola luminosa à razão, depois da laboriosa e multimilenária viagem do ser pelas províncias obscuras do instinto.

   Para considerar-lhe a importância, basta lembrar que ela é o leme de todos os tipos de força incorporados ao nosso conhecimento.

   A electricidade é energia dinâmica.

   O magnetismo é energia estática.

   O pensamento é força electromagnética.

   Pensamento, electricidade e magnetismo conjugam-se em todas as manifestações da vida universal, criando gravitação e afinidade, assimilação e desassimilação, nos campos múltiplos da forma que servem à romagem do espírito para as metas supremas, traçadas pelo Plano Divino.

   A vontade, contudo, é o impacto determinante.

   Nela dispomos do botão poderoso que decide o movimento ou a inércia da máquina.

   O cérebro é o dínamo que produz a energia mental, segundo a capacidade de reflexão que lhe é própria; no entanto, na vontade temos o controle que a dirige nesse ou naquele rumo, estabelecendo causas que comandam os problemas do destino.

   Sem ela, o desejo pode comprar ao engano aflitivos séculos de reparação e sofrimento, a inteligência pode aprisionar-se na enxovia da criminalidade, a imaginação pode gerar perigosos monstros na sombra, e a memória, não obstante fiel à sua função de registadora, conforme a destinação que a Natureza lhe assinala, pode cair em deplorável relaxamento.

   Só a vontade é suficientemente forte para sustentar a harmonia do espírito.

    Em verdade, ela não consegue impedir a reflexão mental, quando se trate da conexão entre os semelhantes, porque a sintonia constitui lei inderrogável, mas pode impor o jugo da disciplina sobre os elementos que administra, de modo a mantê-los coesos na corrente do bem.


ESPÍRITO EMMANUEL, Pensamento e Vida – A Vontade. Texto mediúnico ditado a FRANCISCO CÂNDIDO XAVIER
(imagem: A Female Saint – 1941, pintura de Edgar Maxence)

O antigo Egipto



IV-A Civilização Egípcia





Os egípcios e as ciências psíquicas

   As ciências psíquicas da actualidade eram familiares aos magnos sacerdotes dos templos.
   O destino e a comunicação dos mortos e a pluralidade das existências e dos mundos eram, para eles, problemas solucionados e conhecidos. O estudo de suas artes pictóricas positivam a verdade destas nossas afirmações. Num grande número de frescos, apresenta-se o homem terrestre acompanhado de seu duplo espiritual. Os papiros nos falam de suas avançadas ciências nesse sentido, e, através deles, podem os egiptólogos modernos reconhecer que os iniciados sabiam da existência do corpo espiritual preexistente, que organiza o mundo das coisas e das formas. Seus conhecimentos, a respeito das energias solares com relação ao magnetismo humano, eram superiores aos da actualidade. Desses conhecimentos nasceram os processos de mumificação dos corpos, cujas fórmulas se perderam na indiferença e na inquietação dos outros povos.

   Seus reis estavam tocados do mais alto grau de iniciação, enfeixando nas mãos todos os poderes espirituais e todos os conhecimentos sagrados. É por isso que a sua desencarnação provocava a concentração mágica de todas as vontades, no sentido de cercar-lhes o túmulo de veneração e de supremo respeito. Esse amor não se traduzia, apenas, nos actos solenes da mumificação. Também o ambiente dos túmulos era santificado por um estranho magnetismo. Os grandes directores da raça, que faziam jus a semelhantes consagrações, eram considerados dignos de toda a paz no silêncio da morte.

   Nessas saturações magnéticas, que ainda aí estão a desafiar milénios, residem as razões da tragédia amarga de Lord Carnarvon e de alguns dos seus companheiros que penetraram em primeiro lugar na câmara mortuária de Tut Ankh Amon, e ainda por isso é que, muitas vezes, nos tempos que correm, os aviadores ingleses observam o não funcionamento dos aparelhos radiofónicos, quando as suas máquinas de voo atravessam a limitada atmosfera do vale sagrado.

As pirâmides

   A assistência carinhosa do Cristo não desamparou a marcha desse povo cheio de nobreza moral. Enviou-lhe auxiliares e mensageiros, inspirando-o nas suas realizações, que atravessaram todos os tempos provocando a admiração e o respeito da posteridade de todos os séculos.

   Aquelas almas exiladas, que as mais interessantes características espirituais singularizaram, conheceram, em tempo, que o seu degredo na Terra atingia o fim. Impulsionados pelas forças do Alto, os círculos iniciáticos sugerem a construção das grandes pirâmides, que ficaram como a sua mensagem eterna para as futuras civilizações do orbe. Esses grandiosos monumentos teriam duas finalidades simultâneas: representariam os mais sagrados templos de estudo e iniciação, ao mesmo tempo que constituíam, para os pósteros, um livro do passado, com as mais singulares profecias em face das obscuridades do porvir.

   Levantaram-se, destarte, as grandes construções que assombraram a engenharia de todos os tempos. Todavia, não é o colosso de seus milhões de toneladas de pedra nem o esforço hercúleo do trabalho de sua justaposição o que mais empolga e impressiona a quantos contemplam esses monumentos. As pirâmides revelam mais extraordinários conhecimentos daquele conjunto de espíritos estudiosos das verdades da vida. A par desses conhecimentos, encontravam-se ali os roteiros futuros da humanidade terrestre. Cada medida tem sua expressão simbólica, relativamente ao sistema cosmogónico do planeta e à sua posição no sistema solar. Ali está o meridiano ideal, que atravessa mais continentes e menos oceanos, e através do qual se pode calcular a extensão das terras habitáveis pelo homem, a distância aproximada entre o Sol e a Terra, a longitude percorrida pelo globo terrestre sobre a sua órbita no espaço de um dia, a precessão dos equinócios, bem como muitas outras conquistas científicas que somente agora vêm sendo consolidadas pela moderna Astronomia.

Redenção

   Depois dessa edificação extraordinária, os grandes iniciados do Egipto voltam ao plano espiritual, no curso incessante dos séculos.

   Com o seu regresso aos mundos ditosos da Capela, vão desaparecendo os conhecimentos sagrados dos templos tebanos, que, por sua vez, os receberam dos grandes sacerdotes de Mênfis.

   Aos mistérios de Ísis e de Osíris, sucederam-se os de Elêusis, naturalmente transformados nas iniciações da Grécia antiga.

   Em algumas centenas de anos, reuniram-se de novo, nos planos espirituais, os antigos degredados, com a sagrada bênção do Cristo, seu patrono e salvador. A maioria regressa, então, ao sistema da Capela, onde os corações se reconfortam nos sagrados reencontros das suas afeições mais santas e mais puras, mas grande número desses Espíritos, estudiosos e abnegados, conservaram-se nas hostes de Jesus, obedecendo a sagrados imperativos do sentimento e, ao seu influxo divino, muitas vezes têm reencarnado na Terra, para desempenho de generosas e abençoadas missões.


ESPÍRITO EMMANUEL, A Caminho da Luz, IV-A Civilização Egípcia, (fragmento 2 de 2) texto mediúnico ditado em 1938 a FRANCISCO CÂNDIDO XAVIER

domingo, 6 de novembro de 2011

~~~Párias em Redenção~~~


2. ALUCINAÇÃO E CRIME
…/

   – Girólamo, filha,
prosseguiu, com inesquecível expressão , é coração atormentado, dirigido por um espírito gravemente enfermo.
Louco nas suas ambições desvairadas, prepara a taça espumante de fel

para fazer-nos sorvê-la, enveredando por longo e estreito corredor que o conduzirá demoradamente, séculos a fio, pela senda de terríveis flagícios, que ele mesmo elabora desde agora, para purificar-se depois, dolorosamente.

   Perdoemo-lo por antecipação, evitando sintonizar com funestas ideias que o infelicitam e que logo mais explodirão como maremoto furioso, tentando levar-nos de roldão… Antiga vítima nossa, guarda cicuta no espírito invigilante e, qual animal acusado no reduto em que se refugia, sem sol, prepara-se para desferir a agressão do desforço. Serás a sua primeira vítima… Reveste-te, porém, de coragem para o supremo holocausto. Os filhinhos amados estão também no seu plano… Pagareis, todos, assim, velho débito ao sofredor que se torna algoz. É claro que as Leis Superiores da Vida dispõem de meios eficazes para a justa cobrança, sem a necessidade de novos verdugos… Enfermidade, luto e dor, desastre e acidente, amor e bondade., renúncia e abnegação, sacrifício e devotamento são também instrumentos superiores de que se utilizam os Mensageiros Divinos no acerto de contas das diversas consciências em falta com a Consciência Cósmica… No entanto, precípites e desequilibrados, não compreendem os homens que somente as virtudes evangélicas, quando praticadas, poderão redimir e salvar a criatura humana. Estaremos contigo, com todos…

   “Bom ânimo, filha! Jesus na manjedoura é um poema de amor falando às belezas da vida; Jesus na cruz é um poema de dor falando sobre as grandezas da Eternidade.

   “Não recusemos o cálice. Roguemos forças para sorvê-lo, se necessário, até a última gota.

   “Jesus, o Amigo dos sofredores, e a Senhora das Dores nos ajudarão.

   “Coragem, filha, coragem! Confia e ama!...”

   A visão celeste se desfez e Lúcia subitamente despertou. Banhada em suores, fitou os vitrais da janela ogival, parecendo ver ainda, em névoa clara e flutuante, o amado rosto, repetindo: “Ama, ama…”

   Levou a mão à cabeça e, assistida pela companheira devota, enxugou o pranto e o suor, recobrando paulatinamente a lucidez. Desejou narrar o sonho ditoso que a arrebatara, mas preferiu silenciar.

   Da parte inferior da casa, escutou os lamentos e as vozes desesperadas das carpideiras, que se deixaram conduzir por histeria profissional. Compreendeu que terminara o ofício fúnebre e que logo mais ocorreria o sepultamento na capela, em cujo solo jaziam os despojos da Senhora duquesa.

   Amparada pela serva amiga e companheira, desceu as escadas do hall, algo enfraquecida pelas últimas experiências de que se vira objecto.

   O esquife estava sendo erguido por Girólamo e os diversos membros da confraria da Madonna Assunta, de Siena. Repicaram dolentes os sinos; a gritaria infrene estrugia no ar.

   Recobrou as forças e avançou.

   À porta, ajoelhou-se para acompanhar com afecto os despojos humanos do seu benfeitor e se surpreendeu ante o olhar feroz do sobrinho do Senhor di Bicci di M., que a varara implacável. Pálido e de olheiras fundas, era a expressão da alucinação recalcada. Imediatamente, Lúcia recordou-se da visão dominadora que a visitara e baixou a cabeça.

O Bispo, momentaneamente emocionado, começou a litania do “De profundis”:
“Muitas vezes me angustiaram desde a minha mocidade,
“Diga, agora, Israel:
“Muitas vezes me angustiarm desde a minha mocidade,
“Contudo não prevaleceram contra mim.
“Sobre as minhas costas lavraram os aradores;
“Prolongaram os seus sulcos.
“Jeová é justo:
“Ele corta as cordas dos perversos.
“Sejam envergonhados e repelidos para trás…”
“… A bênção de Jeová seja sobre vós;
“Nós vos abençoamos em nome de Jeová.” (*)

   O cortejo atravessou o átrio, vencendo a distância entre o palácio e a capela gótica, de portas abertas de par em par.

   No mausuléu de mármore de Carrera, trabalhando, para guardar os despojos da família, a lápide paralela à da Senhora duquesa estava aberta e pedreiros se encontravam a postos.

   Depois da aspersão da água benta e das palavras finais, o ataúde foi colocado e a laje cimentada, sendo posteriormente aposto o selo com as armas da casa.

   Estavam concluídas as homenagens àquele que fora o duque Giovanni di Bicci di M.

   Mergulhada em sombras, a torre alta do palácio, símbolo do poder dos senhores, parecia uma sentinela triste e solitária.

   As entidades religiosas recolheram os estandartes, foram retirados os paramentos, começou-se a desmontar o catafalco e os primeiros convidados deram início à partida. Lentamente, o silêncio se foi abatendo sobre o solar, enquanto a chuva, miúda e impertinente, acompanhada de trovões e relâmpagos ao longe, oferecia o lúgubre espectáculo da Natureza em convulsão. O dia sombrio passou, vagaroso, e, quando a noite desceu fragorosa sobre o burgo, todos, cansados e opressos, buscaram o repouso mais cedo.

   As crianças participaram das exéquias do genitor sem a perfeita compreensão do que ocorrera. Ficaram retidas, quanto possível, na parte superior da casa, evitando-se, por orientação de Lúcia, tudo quanto as pudesse perturbar. Carinhosa, a serva recolhera os pequerruchos logo após o falecimento do amo e dissera, em linguagem compatível à idade deles, o que ocorrera, prometendo-lhes a sua dedicação integral até à morte. Afeiçoadas à ama zelosa, com a mente povoada de sonhos e a imaginação sôfrega, os filhinhos do Senhor duque experimentaram as lágrimas da tristeza momentânea e foram recolhidos ao leito pelo cuidado da moça diligente. O dia longo e triste, passaram-no, ora fitando das escadas altas o que ocorria na parte inferior, ora assistidas por dedicada serva, designada especialmente para tal fim.

   Com os crepes pesados da noite e a boca silenciosa da sombra, o palácio somente escutava a tempestade que não amainava, de todo, lá fora.

   No amplo quarto de Girólamo, encontraram-se o moço agitado e Assunta, ardente de paixão pelo enamorado, cujas migalhas de afecto e ternura disputava leonicamente, de alma e encrespada pela febre tormentosa da ânsia de tudo liquidar, o jovem despediu a companheira e rogou-lhe soledade para pensar. No dia imediato, necessitaria definir situações para o tentame contava, desde já, com a sua valiosa quão indisfeita ordem, de modo a que se pudesse comprovar a sua inocência. Nada poderia falhar. O repouso, portanto, era-lhe ala dos servidores e procurou o repouso.

   Girólamo, todavia, não conseguiu conciliar o sono. As mãos frias e trémulas atestavam-lhe a tensão emocioal. O suor lhe escorria em bagas. Embora recolhido no leito, quase delirando sob e expectativa de como concretizar os planos que lhe ardiam nalma, experimentava a pressão da própria insânia. 

(*) Salmo 129, também chamado da Penitência; versículos 1 a 5 e 8.

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VICTOR HUGO, Espírito “PÁRIAS EM REDENÇÃO ” – LIVRO PRIMEIRO, 2. ALUCINAÇÃO E CRIME (fragmento 2 de 4) texto mediúnico ditado a DIVALDO PEREIRA FRANCO
(imagem: L’âme de la forêt _1898, Edgar Maxence)

sexta-feira, 4 de novembro de 2011

O Materialismo e o Positivismo


   Como o oceano, o pensamento tem seu fluxo e refluxo. Quando a Humanidade entra, sob qualquer ponto de vista, no domínio das exagerações, produz-se, cedo ou tarde, uma reacção vigorosa. Os excessos provocam excessos contrários. Depois dos séculos de submissão e de fé cega, a Humanidade, cansada do sombrio ideal de Roma, atirou-se às teorias do nada. As afirmações temerárias trouxeram negações furiosas. Empenhou-se o combate, e o alvião do materialismo fez brecha no edifício católico.



   As idéias materialistas ganham terreno. Repelindo os dogmas da Igreja como inacessíveis, grande número de espíritos cultivados desertaram da crença espiritualista e, ao mesmo tempo, da crença em Deus. Afastando as concepções metafísicas, procuraram a verdade na observação directa dos fenómenos, no que se convencionou chamar o método experimental.

   Podem-se resumir assim as doutrinas materialistas: “Tudo é matéria. Cada molécula tem suas propriedades inerentes em virtude das quais se formou o Universo com os seres que em si contém. É uma hipótese a idéia de um princípio espiritual governando a matéria, pois esta se governa a si própria por leis fatais, mecânicas. A matéria é eterna, e só ela é eterna. Saídos do pó, voltaremos ao pó. O que chamamos alma, o conjunto das nossas faculdades intelectuais, a consciência, mais não é que uma função do organismo e esvai-se com a morte.”
“O pensamento é uma secreção do cérebro”, disse Carl Vogt, e o mesmo autor acrescenta: “As leis da Natureza são inflexíveis; não conhecem moral nem benevolência.”

   Se a matéria é tudo, que é pois a matéria? Os próprios materialistas não poderiam dizê-lo porque a matéria, desde que é analisada em sua essência íntima, subtrai-se, escapa e foge como enganadora miragem.

   Os sólidos transformam-se em líquidos, os líquidos em gases; após o estado gasoso vem o estado radiante; depois, por depurações inumeráveis, cada vez mais subtis, a matéria passa ao estado imponderável. Torna-se então essa substância etérea que enche o espaço, e de tal sorte ténue que se tomaria pelo vácuo absoluto, se a luz, atravessando-a, não a fizesse vibrar. Os mundos banham-se em suas ondas, como nas de um mar fluídico.

   Assim, de grau em grau, a matéria se dissipa em poeira invisível. Tudo se resume em força e movimento.

   Os corpos, orgânicos ou inorgânicos – diz-nos a Ciência –, minerais, vegetais, animais, homens, mundos, astros, mais não são que agregações de moléculas, as quais são a seu turno compostas de átomos, separados uns dos outros, em estado de movimento constante e de renovamento perpétuo.

   O átomo é invisível, mesmo com o auxílio dos mais poderosos microscópios. Apenas pode ser concebido pelo pensamento, de tal sorte é sua extrema pequenez.  E essas moléculas, esses átomos, agitam-se, movem-se, circulam, evolucionam em turbilhões incessantes, no meio dos quais a forma dos corpos só se mantém em virtude da lei de atracção.

   Pode-se, pois, dizer que o mundo é composto de átomos invisíveis, regidos por forças imateriais. A matéria, examinada de perto, esvai-se como fumaça; não tem mais que uma realidade aparente, e base alguma de certeza nos pode oferecer. Realidade permanente, certeza, só há no espírito. Unicamente a este é que o mundo se revela em sua unidade viva, em seu eterno esplendor. Somente este é que pode apreciar e compreender a sua harmonia. É no espírito que o Universo se conhece, se reflecte, se possui.

   O espírito é mais ainda. É a força oculta, a vontade que governa e dirige a matéria – Mens agitat molem – e lhe dá a vida. Todas as moléculas, todos os átomos, dissemos, agitam-se, renovam-se incessantemente. No corpo humano há uma torrente vital comparável ao curso das águas. Cada partícula retirada da circulação é substituída por outras partículas. O próprio cérebro está submetido a estas mudanças e o nosso corpo inteiro renova-se em alguns meses.

   É portanto inexacto dizer que o cérebro produz o pensamento, pois ele não passa de um instrumento deste. Através das modificações perpétuas da carne, mantém-se a nossa personalidade e com ela a nossa memória e a nossa vontade. Há no ser humano uma força inteligente e consciente que regula o movimento harmónico dos átomos materiais de acordo com as necessidades da existência; há um princípio que domina a matéria e lhe sobrevive.

   O mesmo sucede com o conjunto das coisas. O mundo material não é senão o aspecto exterior, a aparência móbil, a manifestação de uma realidade substancial e espiritual que nele existe. Assim como o eu humano não está na matéria variável, e sim no espírito, assim o eu do Universo não está no conjunto dos globos e dos astros que o compõem, mas sim na Vontade oculta, na Potência invisível e imaterial que dirige as suas molas secretas e regula a sua evolução.

   A ciência materialista só vê um lado das coisas. Em sua impotência para determinar as leis do Universo e da vida, depois de haver proscrito a hipótese, é obrigada, ela também, a sair da sensação, da experiência, e recorrer à hipótese para dar uma explicação das leis naturais. É o que ela faz tomando por base do mundo físico o átomo, que os sentidos não alcançam.

   Jules Soury, um dos mais autorizados escritores materialistas, na análise que fez dos trabalhos de Haeckel, não hesita em confessar esta contradição: “Nada podemos conhecer, diz ele, da constituição da matéria.”

   Se o mundo fosse somente um composto de matéria, governado pela força cega, isto é, pelo acaso, não se veria essa sucessão regular, contínua, dos mesmos fenómenos, produzindo-se segundo uma ordem estabelecida; não se veria essa adaptação inteligente dos meios aos fins, essa harmonia de leis, forças e proporções, que se manifesta em toda a Natureza. A vida seria um acidente, um facto de excepção e não de ordem geral. Não se poderia explicar essa tendência, esse impulso, que, em todas as idades do mundo, desde a aparição dos seres elementares, dirige a corrente vital, em progressos sucessivos, para formas cada vez mais perfeitas. Cega, inconsciente, sem fito, como poderia a matéria se diversificar, se desenvolver sob o plano grandioso, cujas linhas aparecem a qualquer observador atento? Como poderia coordenar seus elementos, suas moléculas, de maneira a formar todas as maravilhas da Natureza, desde as esferas que povoam o espaço infinito até os órgãos do corpo humano; o cérebro, os olhos, o ouvido, até os insectos, até os pássaros, até as flores?

   Os progressos da Geologia e da Antropologia pré-histórica lançaram vivas luzes sobre a história do mundo primitivo. Mas foi erradamente que os materialistas acreditaram achar na lei da evolução dos seres um ponto de apoio, um socorro para as suas teorias. Uma coisa essencial se deduz destes estudos. É a certeza de que a força cega em parte nenhuma domina de modo absoluto. Ao contrário, o que triunfa e reina é a inteligência, a vontade, a razão. A força brutal não tem bastado para assegurar a conservação e o desenvolvimento das espécies. Os seres que tomaram posse do globo e avassalaram a Natureza não foram os mais fortes, os mais bem armados fisicamente, mas sim os mais bem dotados do ponto de vista intelectual.

   Desde a sua origem, o mundo encaminha-se para um estado de coisas cada vez mais elevado. Através dos tempos afirma-se a lei do progresso nas transformações sucessivas do globo e das quadras da Humanidade. Um alvo se revela no Universo, alvo para o qual tudo tende, tudo evoluciona, seres e coisas; esse alvo é o Bem, é o Melhor. A história da Terra é o mais eloquente testemunho desta verdade.

   Sem dúvida nos objectarão que a luta, o sofrimento e a morte estão no fundo de tudo. Mas o esforço e a luta são as próprias condições do progresso e, quanto à morte, ela não é o nada, como provaremos mais adiante, porém a entrada do ser em uma fase nova de evolução. Do estudo da Natureza e dos anais da história do mundo, um facto capital se destaca; é que em tudo quanto existe há uma Causa e para conhecer-se essa Causa é preciso avançar além da matéria, até essa Lei viva e consciente que nos explica a ordem do Universo, assim como as experiências da Psicologia moderna nos demonstram o problema da vida.

   Julga-se principalmente uma doutrina filosófica por suas consequências morais, pelos efeitos que produz sobre a vida social. Consideradas sob este ponto de vista, as teorias materialistas, baseadas no fatalismo, são incapazes de servir de incentivo à vida moral, de sanção às leis da consciência. A idéia, inteiramente mecânica, que dão do mundo e da vida, destrói a noção de liberdade e, por conseguinte, a de responsabilidade.  Fazem da luta pela vida uma lei inexorável, pela qual os fracos devem sucumbir aos golpes dos fortes, uma lei que bane para sempre da Terra o reinado da paz, da solidariedade e da fraternidade humana. Penetrando os espíritos, tais teorias só podem acarretar, aos infelizes, a indiferença e o egoísmo; aos deserdados, o desespero e a violência, a todos a desmoralização.

   Sem dúvida, há materialistas honestos e ateus virtuosos, mas não se dá isto em virtude da aplicação rigorosa das suas doutrinas. Se são assim é apesar de suas opiniões e não por causa delas; é por um impulso secreto de sua natureza, é porque sua consciência soube resistir a todos os sofismas. Não menos logicamente daí se depreende também que o materialismo, suprimindo o livre-arbítrio, fazendo das faculdades intelectuais e das qualidades morais a resultante de combinações químicas, de secreções da substância parda do cérebro, considerando o Génio como uma nevrose, degrada a dignidade humana, e rouba à existência todo o carácter elevado.

   Com a convicção de que nada mais há além da vida presente e que não existe outra justiça superior à dos homens, cada qual pode dizer: Para que lutar e sofrer? Para que a piedade, a coragem, a retidão? Por que nos constrangermos e domarmos nossos apetites e desejos? Se a Humanidade está abandonada a si própria, se em nenhuma parte existe um poder inteligente e equitativo que a julgue, a guie e sustente, que socorro pode ela esperar? Que auxílio lhe tornará mais leve o peso das suas provações?

   Se não há no Universo razão, justiça, amor, nem outra coisa além da força cega prendendo os seres e os mundos ao jugo de uma fatalidade, sem pensamento, sem alma, sem consciência, então o ideal, o bem, a beleza moral são outras tantas ilusões e mentiras. Não é mais aí, porém na realidade bruta; não é mais no dever, mas sim no gozo, que o homem precisa ver o alvo da vida e, para realizá-lo, cumpre passar por cima de toda a sentimentalidade vã.

   Se viemos do nada para voltar ao nada, se a mesma sorte, o mesmo olvido, espera o criminoso e o homem dedicado; se, conforme as combinações do acaso, uns devem ser exclusivamente votados aos trabalhos e outros às honras; então, cumpre ter-se a ousadia de proclamar que a esperança é uma quimera, visto não haver consolação para os aflitos, justiça para as vítimas da sorte. A Humanidade rola, arrastada pelo movimento do planeta, sem fito, sem luz, sem moral, renovando-se pelo nascimento e pela morte, dois fenómenos entre os quais o ser se agita e passa, sem deixar outro vestígio mais do que uma faísca na noite.

   Sob a influência de tais doutrinas, a consciência só tem que emudecer e dar margem ao instinto brutal; o espírito de cálculo deve suceder ao entusiasmo, e o amor do prazer substituir as generosas aspirações da alma. Então cada um só cuidará de si próprio. O desgosto da vida, o pensamento do suicídio virão perseguir os desgraçados. Os deserdados só terão ódio para os que possuem bens e, em seu furor, reduzirão a pedaços esta civilização grosseira e material.

   Mas não, o pensamento e a razão erguem-se frementes e protestam contra essas doutrinas de desolação, afirmando que o homem luta, trabalha e sofre, não, porém, para acabar no nada; dizendo que a matéria não é tudo, que há leis superiores a ela, leis de ordem e de harmonia, e que o Universo não é somente um mecanismo inconsciente.

   Se tudo é matéria, qual a causa porque, sendo ela cega, mostra obedecer a leis inteligentes e sábias? Como, desprovida de razão, de sentimento, poderia a matéria produzir seres racionais e sensíveis, capazes de discernir o bem do mal, o justo do injusto? Pois quê! o ente humano é susceptível de amar até ao sacrifício, acha-se nele gravado o ideal do bem e do belo, e teria saído de um elemento que não possui estas qualidades em nenhum grau? Sentimos, amamos, sofremos e emanaríamos de uma causa inconsciente e insensível, de uma causa que é surda, inexorável e muda? Seríamos mais perfeitos ou melhores que ela?

   Tal raciocínio é um ultraje à lógica. Não se poderia admitir que a parte seja superior ao todo, que a inteligência derive de uma causa ininteligente, que de uma natureza sem intuitos possam sair seres susceptíveis de almejarem um alvo.

   Ao contrário, o senso comum diz-nos que, se a inteligência, se o amor do bem e do belo existem em nós, mister se faz que aí tenham sido colocados por uma causa que os possua em grau superior. E, se em todas as coisas se manifesta a ordem, se um plano se revela no mundo, cumpre também que um pensamento os tenha elaborado, que uma razão os tenha concebido.

   Mas não insistamos em problemas sobre os quais precisaremos fazer exame mais demorado e abordemos uma doutrina que com o Materialismo tem numerosos pontos de contacto. Queremos falar do Positivismo.

   Mais subtil, ou menos franca que o Materialismo, essa filosofia nada afirma, nada nega. Afastando qualquer estudo metafísico, qualquer investigação das causas primárias, ela estabelece que o homem nada pode saber do princípio das coisas; que, por conseguinte, é supérfluo o estudo do mundo e da vida. Todo o seu método refere-se à observação dos factos verificados pelos sentidos e das leis que o ligam. Só admite a experiência e o cálculo.

   Mas o vigor deste método teve de dobrar-se perante as exigências da Ciência, e o Positivismo, como o Materialismo, apesar do seu horror à hipótese, foi constrangido a admitir teorias não verificáveis pelos sentidos. É assim que raciocina sobre a matéria e a força, cuja natureza íntima lhe é desconhecida; que admite a lei da atracção, o sistema astronómico de Laplace, a correlação das forças, coisas estas impossíveis de demonstração experimental. Mais ainda, viu-se o fundador do Positivismo, Auguste Comte, depois de ter eliminado todos os problemas religiosos e metafísicos, voltar às qualidades ocultas e misteriosas das coisas,  e terminar sua obra estabelecendo o culto da Terra. Este culto tinha suas cerimónias e seus sacerdotes assalariados. É verdade que os positivistas renegaram essas aberrações.

   Não insistiremos sobre este ponto, nem mesmo sobre a particularidade que apresenta a vida de Littré, sábio eminente, chefe venerado do ateísmo moderno, que é a de se ter feito baptizar em seu leito de morte, depois de haver aceito as visitas frequentes de um sacerdote católico. Tal desmentido, feito por ele aos princípios da sua vida inteira, deve entretanto ser assinalado. Esses dois exemplos, dados pelos mestres do Positivismo, demonstram a impotência das doutrinas que não se interessam pelas aspirações do ser moral e religioso. Provam que a negação e a indiferença nada fundam; que, apesar de todos os sofismas, chega a hora em que, diante dos mais endurecidos cépticos, ergue-se o pensamento de além-túmulo.

   Todavia, não se pode desconhecer que tenha o Positivismo tido sua razão de ser e prestado incontestáveis serviços ao Espírito humano, constrangendo-o a fortificar mais seus argumentos, a determinar melhor suas teorias, a fazer maiores concessões à demonstração. Os seus fundadores, fatigados das abstrações metafísicas e das discussões de escola, quiseram firmar a Ciência em terreno sólido.

   Era porém tão limitada a base por eles escolhida que, ao seu edifício, faltaram simultaneamente amplidão e solidez. Querendo restringir o domínio do pensamento, aniquilaram as mais belas faculdades da alma. Repelindo as idéias sobre o espaço, sobre o infinito, sobre o absoluto, tiraram a certas ciências, à Matemática, à Geometria, à Astronomia, toda a possibilidade de se desenvolverem e progredirem. Com referência a isso, há um facto muito significativo: é no campo da Astronomia Estelar, ciência proscrita por Auguste Comte como sendo do domínio do incognoscível, que as mais belas descobertas têm sido realizadas.

   O Positivismo está na impossibilidade de fornecer à consciência uma base moral. Neste mundo o homem não tem só direitos a exercer, tem também deveres a cumprir; é a condição iniludível de qualquer ordem social.

   Mas, para preencher os deveres, cumpre conhecê-los; e como possuir esses conhecimentos sem indagar-se o alvo da vida, das origens e dos fins do ser? Como conformarmo-nos com a regra das coisas, segundo a própria expressão de Littré, se a nós mesmos nos interdizemos de explorar o domínio do mundo moral e o estudo dos factos da consciência?

   Com louvável intuito, certos pensadores, materialistas e positivistas, quiseram instituir o que chamaram a moral independente, isto é, a moral desprendida de qualquer concepção religiosa. Acreditaram achar assim um terreno neutro em que todos os bons espíritos poderiam reunir-se. Porém, os materialistas não reflectiram que, negando a liberdade, tornavam impotente e vã toda a moral. Teria também sido preciso que, para ser eficaz, a noção do dever fosse aceita por todos, mas poderia essa noção ser apoiada numa teoria mecânica do mundo e da vida?

   A moral não pode ser tomada por base, por ponto de partida. Ela é a consequência de princípios, o coroamento de uma concepção filosófica. Eis por que a moral independente ficou sendo uma teoria estéril, uma ilusão generosa, sem influência sobre os costumes.

   Com o estudo atento e minucioso da matéria, as escolas positivistas contribuíram para enriquecer certos ramos de conhecimentos humanos, mas perderam de vista o conjunto das coisas e as leis superiores do Universo. Encerrando-se no seu domínio exclusivo, imitaram o mineiro que se aprofunda mais e mais nas entranhas da terra, que aí descobre tesouros ocultos, mas que, ao mesmo tempo, perde de vista o grande espectáculo da Natureza que se mostra imponente sob os raios do Sol.

   Essas escolas nem mesmo têm sido fiéis ao seu programa, porque, depois de terem proclamado o método experimental como o único meio de se conhecer a verdade, deram desmentido a si próprias negando a priori toda a espécie de fenómenos, de manifestações psíquicas, que vamos examinar. Coisa notável, assim como os mais intolerantes homens da Igreja, elas também mostraram os mesmos preceitos e a mesma desdenhosa incredulidade perante esses factos que vinham aluir as suas teorias. O Positivismo, portanto, não pode ser considerado como a última fase da ciência, porque esta é essencialmente progressiva e sabe completar-se avançando. O Positivismo não é senão uma das formas temporárias da evolução filosófica, pois os séculos não sucederam aos séculos, não se acumularam as obras dos sábios e dos filósofos para tudo ficar limitado à teoria do incognoscível. O pensamento humano avança, desenvolve-se e, dia a dia, penetra mais além. O que hoje é desconhecido não o será amanhã. A carreira do Espírito humano não está terminada. Fixar-lhe um limite é desconhecer a lei do progresso, é falsear a verdade.

   Tempo chegará em que todos esses vocábulos: materialista, positivista, espiritualista, perderão sua razão de ser, porque o pensamento estará livre das peias e barreiras que lhe impõem escolas e sistemas. Quando perscrutamos o fundo das coisas, reconhecemos que matéria e espírito não passam de meios variáveis e relativos para expressão do que existe unicamente de positivo no Universo, isto é – a força e a vida, que, achando-se em estado latente no mineral, se vão desenvolvendo progressivamente do vegetal ao ente humano e, mesmo acima deste, nos degraus inumeráveis da escala superior.



LÉON DENIS in Depois da Morte, Primeira Parte Crenças e Negações VII – O MATERIALISMO E O POSITIVISMO.
(imagem: The Light of the Harem  1880, pintura de Lord Frederick Leighton)